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Processo n.º 758/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. e marido B. intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, contra C. e mulher D., acção pedindo a resolução do contrato de arrendamento de uma fracção autónoma de prédio sito no lugar de
------------, freguesia de ----------------, ---------, propriedade da autora, de que os réus são arrendatários, com a consequente condenação destes a despejarem o locado, e ainda em indemnização por actuarem com abuso de direito. Aduziram, em suma, que os réus compraram entretanto uma casa de habitação, pelo que não têm necessidade da fracção arrendada, enquanto os autores vivem em casa emprestada por um familiar e têm, por isso, interesse em que a fracção em causa lhes seja entregue a fim de aí instalarem a sua morada de família; no entanto, os rés exigem a quantia de 3 500 000$00 para abandonarem a fracção arrendada
(pela qual pagam renda mensal de apenas € 71,85), o que consubstancia uma conduta imoral e ilícita.
Por despacho saneador, de 6 de Janeiro de 2000, foi a acção julgada improcedente, basicamente por se haver entendido ter carácter taxativo a enunciação dos casos de resolução do contrato por iniciativa do senhorio, constante do artigo 64.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), e por, dos dois requisitos elencados no n.º 1 do subsequente artigo 71.º para a denúncia para habitação do senhorio, não se ter provado o primeiro (ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de 5 anos, pois está provado que os autores adquiriram o prédio por doação em 26 de Outubro de 1999) e nem sequer ter sido alegado o segundo (não terem, há mais de um ano, casa própria ou arrendada na localidade, que satisfaça as necessidades de habitação própria). Quanto ao pedido indemnizatório, foi o mesmo desatendido, por não se provar nem qualquer conduta ilícita dos réus, designadamente integradora de abuso de direito, nem qualquer dano dos autores.
Os autores apelaram desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando, entre o mais, a inconstitucionalidade, por violação dos princípios consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 20.º, n.º 1, e 65.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da interpretação dada por essa decisão ao disposto no artigo 64.º do RAU (taxatividade das causas de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio).
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 7 de Outubro de 2003, julgou improcedente a apelação, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:
“Como resulta do estabelecido no artigo 684.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente. Assim, estas, assentando no pressuposto de que os autores pediram que se declarasse resolvido o contrato de arrendamento por se terem alterado relevantemente as circunstâncias em que foi celebrado, constituindo a actuação dos réus ofensa ao dever de boa fé e abuso do direito que emergiu daquele, de modo a brigar com o direito dos recorrentes à habitação, que a Constituição em vigor reconhece, censuram a sentença recorrida por atribuir prevalência ao disposto taxativamente no artigo 64.° do RAU sobre os mencionados princípios. A essa luz, consideram transferida para o senhorio a tutela constitucional do direito à habitação, por carecerem de local onde residam, a operar directamente. Atingem este ponto defendendo que os réus já não carecem da habitação arrendada, facto essencial à justificação daquela protecção constitucional. Acontece que os demandados não se socorrem, nem se impõe que se socorram, do disposto no artigo 65.° da Constituição, bastando-se, e entende-se aqui que bem, com o direito que para eles emergiu do contrato celebrado, bem como da disciplina legal do respectivo exercício. Tem-se por excessivo que o disposto no artigo 64.° do RAU dependa do invocado suporte na citada norma, pois a mesma teria perfeito cabimento na ordem jurídica, caso o texto constitucional fosse até omisso sobre o direito à habitação. Por outro lado, tão-pouco podem os recorrentes valer-se, procedentemente, da arrogada titularidade do mencionado preceito constitucional, pois não é certo que tal garantia deva efectivar-se, ao menos directamente, contra os réus. Por conseguinte, considera-se que a sentença recorrida, ao basear-se no disposto no artigo 64.° do RAU, que teve como excluindo o direito de resolução do contrato por a situação dos autos não estar aí prevista, não afrontou a citada norma constitucional. Quanto à ofensa do dever de boa fé por banda dos réus, também não resultaria dos factos alegados pelos autores, ainda que inteiramente demonstrados. Com efeito, está contida no âmbito das obrigações e direitos emergentes do contrato a sustentação da posição contratual, mesmo sendo o inquilino dono de uma casa de habitação, pois esse facto não é, em si, causador de qualquer prejuízo para o senhorio. Segundo o Prof. João de Castro Mendes, Direito Civil – Teoria Geral, 1967, 3.° vol., págs. 411 a 413, quando a lei estabelece que no cumprimento da obrigação e no exercício do direito devem as partes proceder de boa fé, refere-se à boa fé no sentido ético, que é, então, a imposição da consideração pelos interesses legítimos da outra parte. É a devida ponderação dos interesses alheios. Reconhece-se ao agente, claro, a liberdade de prosseguir os seus próprios interesses, mas nessa prossecução deve evitar, na medida do possível, sacrificar injustificadamente os interesses alheios. Quando a medida do sacrifício do interesse alheio não é justificada por um interesse próprio estamos fora da boa fé em sentido ético. Face ao quadro alegado pelos autores, em que face ao seu interesse no despejo do locado se coloca o interesse dos réus em manter o arrendado, onde segundo a própria alegação dos primeiros mantêm centrada a sua vida, não se vê que aquele desequilíbrio, exigido pelo ilustre autor citado, se verifique. Aliás, tão-pouco o legislador do RAU teve por injustificado que o inquilino dispusesse de casa para além da arrendada, presente o aqui exposto sobre a conformidade do citado artigo 64.° com a Constituição. Improcedem, assim, as correspondentes conclusões dos apelantes. No concernente ao invocado abuso do direito por parte dos recorridos, emerge também do já explicado que não ocorre. Na verdade, manterem-se os réus a viver no locado, fim para que o tomaram de arrendamento, não excede de nenhum modo os limites da boa fé, já atrás expostos, porquanto a defesa do seu interesse na respectiva ocupação não afronta excessivamente o dos autores em aí instalarem a respectiva residência. Finalmente, pretenderem os inquilinos receber certa quantia para desocuparem o referido apartamento não configura, tal como vem alegado, procedimento que vá além do que seja aceitável para os compensar do sacrifício, como se viu inexigível, do seu mencionado interesse. Nada vem alegado que desenhe possível ilicitude nem sequer desvalor ético dessa posição, pois a troca de bens ou direitos que sejam disponíveis não é censurada pela ordem jurídica, designadamente o disposto nos artigos 64.°, n.° 1, alínea c), do RAU e 14.° do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro. Improcedem, como tal, essas conclusões dos apelantes, do que decorre, com o mais exposto, não dever o recurso ter êxito.”
Os autores interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a questão da inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 65.º, 1.º e 20.º da CRP, da norma do artigo 64.º do RAU, maxime da alínea c) do seu n.º 1, interpretado como consagrando um elenco taxativo de causas de resolução do contrato de arrendamento para habitação.
No Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações, no termo das quais formularam as seguintes conclusões:
“1.ª – O caso dos autos tem a caracterização concreta seguinte:
a) Os recorrentes são donos de uma fracção urbana autónoma, destinada a habitação, que, antes de a adquirirem, ou seja, em 30 de Outubro de
1974, foi dada de arrendamento aos recorridos para a habitação destes; os recorrentes precisam dessa fracção para aí instalarem a sua habitação, porque não têm casa própria nem arrendada, nunca a tiveram em parte alguma, vivem em casa emprestada, com a sujeição de terem de a entregar aos donos em qualquer momento; os recorrentes não têm meios económicos para adquirirem uma habitação própria, e para satisfazerem essa necessidade, de forma estável e permanente, terão de pagar uma renda mensal de valor não inferior a 250,00 euros, ou adquirirem uma casa com recurso ao crédito, cuja prestação mensal não será inferior a 600,00 euros. b) Os recorridos são donos de uma casa que adquiriram com recurso ao crédito, que lhes foi concedido com bonificação de juros, à custa do erário público, que não habitam, pondo como condição para resolver o contrato de arrendamento, resolução que permitiria aos recorrentes satisfazerem a sua necessidade de habitação, o pagamento por estes da quantia de 3500 contos. c) Os recorridos agem assim porque apenas pagam aos recorrentes a irrisória renda mensal de 71,85 euros.
2.ª – Este facto sociológico revela um sério conflito de interesses: um conflito entre o interesse dos recorrentes à resolução do ajuizado contrato de arrendamento, para habitarem o arrendado, e o interesse dos recorridos à manutenção da vigência desse contrato. Esse conflito legitima o pedido da sua dirimição, por parte dos recorrentes, perante o sistema judiciário competente para dirimir esse conflito.
3.ª – Um conflito de interesses é, sobretudo, um problema prático-jurídico, por isso mais que um problema teorético, que o sistema judiciário deverá resolver, quando, adrede, impetrado. A resolução consiste na normação ou regulação do conflito, através de uma estatuição ou sanção jurídica concreta desse caso (ou problema).
4.ª – A normação ou regulação jurídica, que resolve o problema que assim é colocado ao sistema judiciário, não se logra, com justiça, através da simples aplicação de uma norma jurídica – ou da concatenação de várias normas, que assim assumem a natureza de uma norma –, que seria suposto que ela se oferecesse como solução previamente dada, e da qual o caso concreto seria como que uma cópia fiel dessa solução oferecida pelo sistema jurídico, porque o caso concreto da vida é uma irrepetível singularidade (como são todos aqueles que a natureza oferece), sem equipolência possível com a previsão da norma.
5.ª – Por isso, a normação ou regulação de um caso concreto da vida, em que esse caso integre um conflito de interesses, e por isso postulante de uma composição
(normação) desses interesses em conflito, não logrará uma composição justa, pela via subsuntiva pressuposta na concepção judicativa enunciada na conclusão imediatamente anterior.
6.ª – A justa composição dos conflitos de interesses, que são conflitos humanos, pressupõe a ponderação de todos os elementos concretos que integram o caso decidendo, que é uma situação (sujeito da acção) postulante de predicação (o quale que a normação lhe introduz). Por isso, o acto judicativo opera-se em tensão dialéctica entre a situação e normas e valências axiológico-normativas que o ordenamento jurídico oferece como critério de resolução do caso em crise normativa.
7.ª – O caso concreto dos autos revela uma espécie sociológica frequente, e a sua relevância prática manifesta-se face aos princípios jurídicos decorrentes dos artigos:
– 64.°, n.º 1, alínea c), do RAU;
– 334.°, 762.°, n.º 2, 437.°, 335.°, n.º 2, e 1025.° do Código Civil;
– 1.°, 9.°, alínea d), 17.°, 18.°, n.º 1, 65.°, n.ºs 1, 2 e 3, 103.º e 104.° da CRP;
– 17.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ex vi artigo 16.°, n.º 2, da CRP;
– os princípios constitucionais da unidade do sistema jurídico e da interpretação das leis em conformidade com a Constituição.
8.ª – No caso dos autos, os recorrentes pretendem a resolução do contrato de arrendamento, por serem donos do arrendado e por aí pretenderem instalar a sua habitação, com base nos factos sumariados na alínea a) da conclusão 1.ª, a cuja pretensão os recorridos se opõem, sustentando o disposto no artigo 64.º do RAU, sendo certo que a posição dos recorridos tem as características descritas nas alíneas b) e c) da mesma conclusão 1.ª.
9.ª – A posição de ambas as partes, em abstracto, releva face ao disposto no n.º 1 do artigo 65.° da CRP, que diz que: «Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar».
Em concreto, os recorrentes têm o seu direito (o seu crédito de habitação) insatisfeito, enquanto os recorridos têm o seu direito (o seu crédito de habitação) satisfeito, até de forma pública subsidiada.
10.ª – O direito à habitação é um direito social, cujo exercício tem as mesmas garantias dos direitos fundamentais (artigos 17.° e 18.°, n.º 1, da CRP), sendo por isso de aplicação directa e imediata.
11.º – Face a este direito constitucionalmente consagrado, perfila-se o disposto no corpo do n.º 1 do artigo 64.° do RAU, que diz que: «O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário (...)»; nos casos previstos nas alíneas que o integram.
O sentido prático-normativo desta norma parece ser o de garantir o exercício daquele direito constitucional, cobrando assim a natureza de um direito tendencialmente perpétuo, através da consagração do princípio da taxatividade das causas de resolução do contrato de arrendamento.
12.ª – Ao nível jurídico deste tendencial princípio da perpetuidade, perfilam-se também outros princípios jurídicos, de natureza contratual, nomeadamente:
– o princípio da proibição dos contratos de locação (artigo 1025.º do Código Civil);
– o princípio do não abuso do direito (artigo 334.° do Código Civil);
– da prevalência do direito superior (artigo 335.°, n.º 2, do Código Civil);
– da resolução do contrato por alteração anormal da base contratual, quando a exigência da obrigação (in casu, garantia do gozo da coisa) afecta gravemente os princípios da boa fé (artigo 437.° do Código Civil);
– o princípio de as partes procederem de boa fé na execução dos contratos
(artigo 762.°, n.º 2, do Código Civil).
13.ª – Agora, em posição hierárquica superior, manifestam-se os princípios constitucionais:
– da unidade do sistema jurídico, com os seus postulados de coerência lógica, mas sobretudo de respeito pelo fundamento da ordem jurídica – que é a pessoa humana, na sua eminente dignidade – e pela sua intenção última – que é o princípio de justiça (artigo 1.º da CRP);
– da interpretação das leis em conformidade com a Constituição.
14.ª – Pelo prisma da compreensão axiológico-normativa de todos estes princípios jurídicos, à luz da perspectiva traçada nas conclusões 2.ª a 6.ª, maxime nesta
última, percebe-se que o sujeito passivo do direito consignado no artigo 65.°, n.º 1, da CRP é o Estado (artigos 9.°, alínea d), 65.°, n.ºs 2 e 3, 103.° e
104.° da CRP), e não os entes de direito privado.
15.ª – Ainda à luz dos abordados princípios constitucionais da unidade do sistema jurídico, da interpretação das leis em conformidade com a Constituição e de ao Estado incumbir a garantia da habitação – o disposto no corpo do n.º 1 do artigo 64.º do RAU é inconstitucional, porque: a) garante a perpetuidade do direito ao arrendamento, mesmo nas circunstâncias em que falecem ao arrendatário os motivos da garantia de perpetuidade, que é a carência de habitação, acima das valências que impregnam o disposto nos artigos
1025.°, 334.°, 335.°, n.º 2, 437.° e 762.° do Código Civil; b) permite transferir uma obrigação pública (do Estado), constitucionalmente assim consagrada, para sujeitos de direito privado; c) impede o senhorio de exercer o seu direito constitucional à habitação, através do que é seu (artigo 17.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ex vi artigo 16.°, n.º 2, da CRP).
16.ª – As instâncias recorridas aplicaram assim uma norma inconstitucional, que é o artigo 64.°, n.º 1, in corpo, do RAU, em violação do disposto nos artigos 1.º, 9.º, alínea d), 17.°, 18.°, n.º 1, 65.°, n.ºs 1, 2 e
3, 103.° e 104.° da CRP e artigo 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Pelo que, e sem prescindir:
17.ª – A interpretação que as instâncias fizeram do disposto no corpo do n.° 1 do artigo 64.° do RAU, bem como da alínea c) que integra esse número, não se compagina com as postulações que caracterizam o acto judicativo, entendido este nos termos descritos na conclusão 6.ª, como não levou em conta os princípios e normas constitucionais que ora se invocaram, nem o fundamento da juridicidade – a pessoa humana – e o princípio que dá carácter ao ordenamento jurídico – o princípio de justiça.
18.ª – Por isso, foi julgado prevalecente a intenção axiológico-normativa do corpo do n.º 1 do artigo 64.° do RAU, não só face ao direito constitucional à habitação dos recorrentes (artigo 65.°, n.º 1, da CRP), como aos princípios que proíbem o abuso de direito, da prevalência do direito de valor superior, da resolução do contrato quando a exigência da obrigação afecta gravemente os princípios da boa fé, e do dever de as partes agirem de boa fé na execução de um contrato (artigos 334.°, 335.°, n.º 2, 437.° e 762.°, n.º 2, do Código Civil).
Da interpretação conjunta destas normas do Código Civil e do artigo
65.°, n.º 1, da CRP, bem como dos princípios da unidade do sistema jurídico e da interpretação das leis conforme à Constituição, e ainda face ao fundamento (a pessoa humana) e intenção da ordem jurídica (a justiça), no caso concreto, o corpo do n.º 1 do artigo 64.° do RAU não pode ser aplicado, porque não vigora
(em concreto).
19.ª – Ainda por força desta ampla normatividade, o comportamento dos recorridos, resumido nas alíneas b) e c) da conclusão 1.ª, viola as valências axiológico-normativas consagradas nessas normas e princípios, pelo que é um comportamento desvalioso, e, como tal, sancionado pela alínea c) do n.° 1 do artigo 64.° do RAU.
20.ª Resumindo:
– o disposto no corpo do n.° 1 do artigo 64.° do RAU é inconstitucional; Sem prescindir;
– a interpretação que as instâncias fizeram do disposto nessa norma é inconstitucional;
– a interpretação que as instâncias fizeram do disposto na alínea c) do n.° 1 do artigo 64.° do RAU é inconstitucional.”
Os réus, ora recorridos, contra-alegaram, concluindo:
“1.ª – O direito à habitação previsto no artigo 65.° da CRP deve ser concretizado pelas políticas de habitação nele mencionadas, não decorrendo desse preceito a possibilidade de os cidadãos exigirem uma imediata prestação habitacional.
2.ª – Os cidadãos apenas poderão exigir do Estado, regiões autónomas e autarquias locais a concretização do direito constitucional à habitação, já que tal preceito não vincula nem interfere nas relações privadas, designadamente nos contratos de arrendamento celebrados entre os particulares.
3.ª – O artigo 65.° da CRP não releva para as relações contratuais locatícias, pelo que não deve ser aplicado nas causas de extinção desses contratos.
4.ª – É na lei ordinária, enquanto meio de concretização do direito constitucional à habitação, que o senhorio e o julgador devem encontrar as soluções para salvaguarda dos eventuais direitos do locador face à sua necessidade de habitação.
5.ª – A taxatividade imposta pelo n.° 1 do artigo 64.° do RAU não viola o disposto no artigo 65.° da CRP, pelo que aquele preceito não é inconstitucional.
6.ª – Não obstante o objecto do presente recurso serem normas e não decisões judiciais, a interpretação que as instâncias fizeram do n.º 1 do artigo 64.º do RAU não enfrenta qualquer regra constitucional.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Cumpre começar por salientar que o objecto do presente recurso é constituído tão-só pela questão da constitucionalidade da interpretação da norma do n.º 1 do artigo 64.º do RAU no sentido de que do mesmo consta uma enunciação taxativa das causas de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio (interpretação que, aliás, é a que se apresenta como a mais conforme com o teor literal do preceito: “1. O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário: (...).”). Não está ora em causa a correcção jurídica dessa interpretação normativa, nem, em especial, a pretensa incompatibilidade entre ela e determinados princípios do direito ordinário, designadamente do direito civil, como o princípio da boa fé ou o da proibição do abuso de direito.
Por outro lado, também não está em causa o exercício do direito de denúncia do arrendamento, para habitação do senhorio, direito cuja existência, em rigor, nunca foi expressamente reclamado pelos autores, e a qual, na verdade, era desde logo afastada pela circunstância de os autores serem proprietários do local há menos de cinco anos, para além de as instâncias terem considerado que eles nem sequer haviam alegado a necessidade do prédio para sua habitação, referindo apenas a circunstância de estarem a habitar um andar emprestado por um seu familiar (irmão da autora).
2.2. É numerosa a jurisprudência do Tribunal Constitucional a propósito de questões de constitucionalidade suscitadas no
âmbito de arrendamento para habitação, surgindo como particularmente pertinente, para a apreciação do presente caso, recordar as considerações tecidas no Acórdão n.º 322/2000 (Diário da República, II Série, n.º 258, de 8 de Novembro de 2000, pág. 18 159; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 498, pág.
32; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., pág. 519).
Ponderou-se nesse Acórdão (que não julgou inconstitucional a norma do artigo 64.º, n.º 2, alínea c), do RAU, interpretada no sentido de que, tendo o arrendatário deixado de ter residência permanente na casa arrendada, a circunstância de lá permanecem seus pais não constituía facto impeditivo da resolução do contrato):
“II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio.
3.1. Em matéria de arrendamento para habitação, vigora no nosso direito, quanto ao senhorio, a regra da renovação automática e obrigatória, introduzida pelo Decreto n.º 5411, de 17 de Abril de 1919 (cf. os artigos 68.º e 69.º do Regime do Arrendamento Urbano). Visou-se, com esta regra, conferir estabilidade à posição do locatário que, findo o prazo convencionado ou fixado na lei, pode impor ao senhorio a renovação do contrato, unilateral e discricionariamente.
O senhorio não pode, pois, denunciar o contrato de arrendamento ad nutum. Salvo o caso de denúncia do contrato por necessidade da casa para habitação (cf. o artigo 71.º do Regime do Arrendamento Urbano) – que aqui não importa considerar –, o senhorio só pode resolver o contrato (e, assim, despejar o inquilino), quando se verifique algum dos fundamentos enumerados nas alíneas a) a j) do n.º 1 do artigo 64.º daquele Regime do Arrendamento Urbano. E, mesmo assim, no que toca ao fundamento da alínea i), necessário é ainda que não ocorra nenhuma das situações enunciadas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do mesmo artigo
64º, pois, ocorrendo alguma delas, o despejo já não pode ser decretado. A enumeração das causas de resolução do contrato de arrendamento, constantes do citado artigo 64.º, é, assim, taxativa.
3.2. O fundamento de despejo que aqui importa considerar é, justamente, o da alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º – e tão-só na parte em que tal norma se refere à falta de residência permanente do locatário na casa arrendada. Reza assim a norma em causa:
Artigo 64.º (Casos de resolução pelo senhorio)
1. O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário: i) Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado
à habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia.
O arrendatário que não tiver residência permanente na casa arrendada pode, pois, em princípio, ser despejado pelo senhorio. Só não corre esse risco, se, no caso, se verificar alguma das situações enunciadas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do mesmo artigo 64.º.
No caso dos autos, de entre as situações que obstam à resolução do contrato apesar de se verificar falta de residência permanente do inquilino na casa arrendada, só importa considerar a que diz respeito à permanência, nesse local, de parentes em linha recta do arrendatário, prevista na alínea c) do n.º
2. Reza como segue este n.º 2, alínea c):
Artigo 64.º (Casos de resolução pelo senhorio)
2. Não tem aplicação o disposto na alínea i) do número anterior: c) Se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano.
Pode dizer-se unânime na jurisprudência o entendimento segundo o qual o arrendatário tem residência permanente na casa onde tem o seu lar – ou seja, onde tem instalada e organizada a sua vida familiar e social e a sua economia doméstica; onde dorme e toma as refeições de forma habitual e de modo estável; e onde também recebe a sua correspondência, os seus amigos e as visitas (cf. Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 5.ª edição, Coimbra, 2000, págs. 385 e seguintes).
Na jurisprudência, é também corrente o entendimento de que, quando o arrendatário não tem residência permanente na casa arrendada, a permanência aí de parentes seus em linha recta só obsta ao despejo, se eles já anteriormente viviam com o locatário; se a ausência deste é temporária (ou seja, se ele tiver o propósito de ali regressar); e se, entre o arrendatário e os familiares que lá ficaram, continuar a existir um vínculo de dependência económica. Por isso, quando se dá a desintegração ou o desmembramento da família, a circunstância de os pais do arrendatário continuarem a residir na casa arrendada já não pode constituir facto impeditivo do despejo (cf. Aragão Seia, ob. cit., págs. 399 a 401; cf. também António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 3.ª edição, Lisboa, 1994, pág. 191).
A necessidade de se verificar um vínculo de dependência económica entre o arrendatário e os seus parentes em linha recta, que permaneceram no local arrendado, fundamenta-a a jurisprudência no facto de estarem autorizados a viver com o arrendatário na casa locada «todos os que vivem com ele em economia comum» (cf. o artigo 76.º, n.º 1, do Regime do Arrendamento Urbano), presumindo-se que vivem nessas condições «os seus parentes ou afins na linha recta (...), ainda que paguem alguma retribuição (...)»” (cf. o n.º 2 do mesmo artigo 76.º).
3.3. É nesta orientação jurisprudencial que se inscreve o acórdão recorrido. Nele, de facto – depois de se ponderar que «a permanência de familiares no arrendado só releva quando não tiver havido desintegração ou desmembramento da família» –, acrescentou-se que, tendo o arrendatário (recorrente) saído da casa arrendada «com carácter de permanência», «aí ficando os seus pais», existe
«desmembramento da família». E, «havendo desintegração não existe causa impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento, mesmo que na casa fiquem familiares constituindo um novo agregado familiar, pois o agregado familiar contemplado nesta alínea é o do arrendatário, e não o constituído por familiares que dele se desagreguem». Sublinhou-se ainda que «a ausência do arrendatário tem de ser sempre temporária, mantendo-se em suspenso o seu regresso ao lar».
Vista a norma sub iudicio tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido, que seguiu na linha jurisprudencial corrente, há, agora, que ver se a mesma é inconstitucional, como pretendem os recorrentes.
4. A questão de constitucionalidade.
4.1. O artigo 65.º, n.º 1, da Constituição reza assim.
«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.»
Como se escreveu no Acórdão n.º 151/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., pág. 647), todos têm direito a uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja proporcionada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade. Para assegurar um tal direito – prescreve o n.º 2 do mesmo artigo 65.º –, há-de o Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e equipamento social; b) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
Mais: o Estado deve ainda adoptar «uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso
à habitação própria» – preceitua o n.º 3 do mesmo artigo 65.º.
O direito à habitação (ou seja, o direito a ter uma morada decente ou condigna) é, assim, um direito a prestações – um direito «sob reserva do possível», cujo grau de realização depende, naturalmente, das opções que o Estado faça em matéria de política de habitação. Essas opções estão, de resto, condicionadas pelos recursos materiais (financeiros e outros) de que o Estado possa dispor, em cada momento. É, por isso, um direito de realização gradual – realização que a Constituição comete ao Estado, em colaboração com as autarquias locais. Mas – sublinhou-se no citado Acórdão n.º 151/92 – fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente
é – um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E, para isso, pode até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir.
É a esta luz – insistiu-se no citado Acórdão n.º 151/92 – que hão-de ser avaliadas normas como aquelas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática e obrigatória. Nelas, o legislador, ciente da falta de casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação: de facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistia de denunciar livremente o contrato de arrendamento celebrado – direito este que está compreendido, seja no direito de iniciativa económica, seja no direito de propriedade privada. A legislação sobre arrendamento para habitação é fortemente vinculística, sendo um domínio onde a hipoteca social que recai sobre a propriedade privada é, talvez, mais forte.
4.2. A referida hipoteca social justifica-se, quando está em causa satisfazer as necessidades de habitação do arrendatário. Mas já não é exigível, quando o arrendatário, por ter mudado para outro local o centro da sua vida familiar, deixou de ter residência permanente na casa arrendada. E isso, mesmo que aí tenha deixado a viver seus pais. Num caso assim, com efeito, não pensando o arrendatário voltar a residir no local arrendado, nunca a Constituição poderia impor uma tal restrição aos direitos do senhorio que o impedisse de resolver o contrato. Se a circunstância de lá continuarem a viver os pais do arrendatário, tendo este deixado a casa definitivamente, fosse impeditiva do despejo, então a lei estava a sacrificar os direitos do senhorio nas aras do direito à habitação não já do inquilino, mas de alguém que só lá podia viver enquanto este lá residisse. Este Tribunal, no Acórdão n.º 32/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pág. 208) – depois de dizer que «o que a recorrente pretende é o reconhecimento, por efeito da sua qualidade de arrendatária, do direito de não habitar, por tempo indeterminado, o prédio arrendado» – já teve, aliás, ocasião de sublinhar que «tal pretensão não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que neste se visa assegurar o direito de habitar, não o de não habitar». Ora, se, no caso aqui sub iudicio, não pudesse decretar-se o despejo, o que se estaria a assegurar era, justamente, o direito de o arrendatário não habitar a casa arrendada. Isso, porém, «não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação».
Também o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 9 de Maio de
1972 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 217, pág. 92), já decidiu que «o arrendatário pode ter tantas residências quantas desejar, o que não pode é beneficiar para aquela em que não tenha residência permanente do benefício da legislação proteccionista da habitação com as limitações que impõe ao termo do contrato por vontade do senhorio».
(...)
4.4. Em conclusão, pois: a norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 64.º do Regime do Arrendamento Urbano, tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido (isto é, no sentido de que, tendo o arrendatário deixado de ter residência permanente na casa arrendada, a circunstância de lá permanecerem seus pais não constitui facto impeditivo da resolução do contrato), não é, assim, inconstitucional.
De resto, este Tribunal, no seu Acórdão n.º 952/96 (por publicar), em que estava em causa o referido artigo 64.º, n.º 1, alínea i) – conjugada com a alínea c) do seu n.º 2 –, já decidiu que, «na interpretação feita (...) de que a falta de residência permanente do arrendatário no arrendado só não acarretará a resolução do respectivo contrato de arrendamento no caso de ali permanecer um familiar do arrendatário que com ele convivesse há mais de um ano e estivesse na sua dependência económica, não viola o artigo 65.º, n.º 1, da Constituição ou outra norma ou princípio constitucional» (cf., também identicamente, o citado Acórdão n.º 24/2000).
O Tribunal concluiu desse modo, depois de frisar que, «dada a necessária intervenção do legislador ordinário para concretizar o conteúdo do direito, o cidadão só pode exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos plasmados na lei (cf. Acórdão n.º 130/92, in Diário da República, II Série, de
24 de Julho de 1992), não sendo também constitucionalmente exigível que tal direito se realize pela imposição de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos constitucionalmente consagrados de terceiros, como é o caso do direito de propriedade (cf. Acórdão n.º 101/92, in Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992)».
Também por estas razões, que, em direitas contas, não são substancialmente diferentes das referidas atrás, se justifica o juízo de não inconstitucionalidade a que aqui se chegou.”
A precedente transcrição, apesar da diversidade da norma concreta então em causa e também do diverso sentido dos juízos de constitucionalidade emitido e a emitir, reveste-se de interesse para o presente caso, por salientar, não apenas o carácter taxativo da enunciação das causas de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio, mas sobretudo o fundamento constitucional das opções legislativas no sentido de limitar os poderes do senhorio de resolver ou denunciar contratos de arrendamento para habitação, designadamente quando esteja em causa a residência permanente do inquilino, residência esta que – como também se demonstrou – pode radicar-se no local arrendado, independentemente de o inquilino dispor de outras residências, mesmo de sua propriedade.
No presente caso, está assente, em sede de matéria de facto, que os réus “continuam a residir no apartamento pertencente aos autores, no qual confeccionam e consomem as suas refeições diárias, onde dormem diariamente e onde recebem familiares e amigos, também aí recebendo a sua correspondência e tendo o seu telefone instalado” e que “o filho dos réus convive, durante o dia, com os seus pais, no apartamento que pertence aos autores”, tendo os réus alegado que a habitação que compraram se destina a este seu filho, que efectivamente a habita, nela dormindo, aí tendo todos os seus pertences e aí recebendo os seus amigos. Em suma, o local arrendado continua a ser a residência permanente dos réus.
Neste contexto, entenderam as instâncias não assistir aos autores nem o direito de denúncia do contrato para habitação própria, pelas razões atrás enunciadas, nem o direito de resolução do contrato, seja por falta de habitação permanente dos inquilinos, seja por qualquer outra das causas taxativamente elencadas no n.º 1 do artigo 64.º do RAU. E, como se viu, pelos fundamentos expendidos no Acórdão n.º 322/2000, nem aquela taxatividade nem estas limitações aos poderes do senhorio são constitucionalmente intoleráveis.
Como também não se mostra constitucionalmente censurável a interpretação dada pelas instâncias à norma da alínea c) do n.º 1 do citado artigo 64.º (“Aplicar o prédio, reiterada ou habitualmente, a práticas ilícitas, imorais ou desonestas”) no sentido de não abranger comportamentos dos inquilinos, como os imputados aos réus, de condicionamento do abandono voluntário do local ao pagamento de uma indemnização, norma essa especificamente invocada pelos autores, que vislumbraram na reclamação dessa indemnização uma conduta ilícita e imoral (por violadora da boa fé e integradora de abuso de direito). É óbvio que o legislador teve em vista realidades diferentes quando se refere a aplicação do prédio a práticas ilícitas, imorais ou desonestas, reiteradas ou habituais, tendo, aliás, o acórdão recorrido salientado nada ter de ilícito os réus – que se entendeu manterem o direito de permanecer no local arrendado por contra eles não terem os autores direito de resolução ou de denúncia do arrendamento – reclamarem uma compensação monetária pelo sacrifício (inexigível) que o abandono desse local representará.
Improcedem, assim, na sua totalidade, as conclusões das alegações dos recorrentes.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 64.º, n.º 1, em especial a sua alínea c), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, interpretada no sentido de que estabelece uma enumeração taxativa das causas de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio, nelas não incluindo a exigência, pelo inquilino contra o qual não é validamente invocável qualquer causa de resolução ou de denúncia do contrato, de uma compensação pelo abandono voluntário do local arrendado; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Custas pelos recorrentes, que formam um grupo, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Abril de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos