Imprimir acórdão
Processo n.º 58/04
3ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. Nos autos de Processo Comum Colectivo n.º 233/2000, que correram termos no Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, foram julgados, entre outros, os arguidos A. e B., ali melhor identificados, vindo, cada um deles, a ser condenado, por acórdão de 8 de Julho de 2002, na pena de 8 (oito) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Deste aresto recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra o Ministério Público e os dois arguidos. Com este recurso subiu um outro anteriormente interposto pelo arguido B., de despacho proferido na fase de instrução, que desatendeu a arguição de nulidade das intercepções telefónicas aos telemóveis n.ºs 9-------------, 9------------, 9----------- e 9-----------.
Por acórdão de 12 de Fevereiro de 2003, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento a todos os recursos interpostos. Inconformados, interpuseram os arguidos recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por acórdão de 16 de Outubro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu baixar a pena imposta ao arguido A. (de 8 anos para 6 anos de prisão) e, em tudo o mais, confirmar ao acórdão recorrido, negando provimento aos recursos.
Notificado deste acórdão, o recorrente A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, por requerimento de 4 de Novembro de 2003 (cfr. fls. 3417), com fundamento nas alíneas b) e f) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação “da constitucionalidade do entendimento perfilhado, no caso sub iudice, pelo Supremo Tribunal de Justiça, quanto aos artigos 187º, 188º e 249º, 263º e 270º, todos do Código do Processo Penal, porquanto tal interpretação é ostensivamente contrária ao consagrado nos artigos
18º, 32º, 34º e 219º da Constituição da República Portuguesa”.
O recorrente B. também reagiu contra este aresto apresentando, em 3 de Novembro de 2003, dois requerimentos (cfr. fls. 3425 e 3429), interpondo recurso para o Tribunal Constitucional e arguindo a nulidade daquele aresto.
Quanto ao recurso de constitucionalidade, fundamenta-se o recorrente na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, pretendendo a apreciação das normas dos artigos 48°, 55°, 86°, 89°, 187° e 188°, 241º, 248° a 253° do Código de Processo Penal, nas interpretações que diz terem sido feitas pelo acórdão recorrido, que enuncia no requerimento de interposição e entende afrontarem o disposto nos artigos 18º, 32º, 34º e 219º da Constituição da República Portuguesa.
No outro requerimento arguiu a nulidade do acórdão de 16 de Outubro de 2003, sustentando ter havido omissão de pronúncia quanto à matéria constante das conclusões 1ª a 5ª da sua motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por acórdão de 16 de Dezembro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a arguição de nulidade do acórdão de 16 de Outubro.
Veio, então, o recorrente B. interpor recurso deste acórdão – o de
16 de Dezembro de 2003 – para o Tribunal Constitucional, nos termos do requerimento de fls. 3465, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação das seguintes normas, a que imputa violação dos artigos 32º e 34º da Constituição:
- Os artigos 187º, n.º1, e 188º, n.º1 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no “sentido de que podem ser juntas a um processo as escutas telefónicas levadas a efeito noutro processo, sem que o juiz dos autos onde foram remetidas, oiça as fitas gravadas e ordene a transcrição em auto de acordo com a sua relevância para a descoberta da verdade ou a prova desse processo e não competindo ao juiz a função exclusiva de ordenar a junção aos autos das transcrições provenientes doutro processo;
- O artigo 188º, n.º 1, do mesmo código, na interpretação de que a expressão “imediatamente”, insita nessa norma, permite que a P.J. entregue as fitas gravadas ou elementos análogos ao juiz findos vários dias, nalguns postos meses, após findo o prazo de intercepção”.
Por despacho do relator no Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Janeiro de 2004, foram admitidos os três recursos interpostos para o Tribunal Constitucional.
2. No Tribunal Constitucional, foi proferido o despacho de fls.
3471, convidando os recorrentes a completarem os seus requerimentos de interposição de recurso, tendo ambos respondido como consta dos requerimentos de fls. 3476 e 3483, face ao que foi ordenada a notificação para alegações.
O recorrente A. apresentou as suas alegações, as quais concluiu nos seguintes termos:
1. «Pretende o recorrente ver fiscalizada a (in) constitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça aos artigos 187.º e 188.º do Código do Processo Penal, a qual, salvo melhor opinião, é manifestamente contrária ao consagrado nos artigos 18.º, 32.ºe 34.º da Constituição da República Portuguesa.
2.Porquanto, no âmbito dos presentes autos foram consideradas, como meio de prova válido, cópias certificadas de transcrições de intercepções telefónicas, autorizadas no âmbito do processo n.º 306/00 que corria termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Águeda e do processo n.º1227/00 que corria termos no Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, tendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido encontrarem-se “respeitados os comandos legais de ordem processual penal” que regulam o recurso àquele meio de prova.
3.Contudo, nos presentes autos, não foi ponderada a necessidade extrema de recorrer ao meio de prova em questão, nem foi o mesmo considerado pelo Tribunal como o único meio de prova idóneo a descobrir os factos, ou a promover decisivamente a investigação, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e da lesão mínima dos direitos constitucionalmente consagrados, ou seja, nenhuma autoridade judicial aferiu da necessidade, adequação e proporcionalidade da realização de intercepções telefónicas, e, mormente, do respeito pelo princípio da subsidiariedade, nos presentes autos.
4. A consagração da imposição do respeito ao princípio da Subsidiariedade, enquanto requisito de admissibilidade do recurso ao meio de prova _intercepções telefónicas-, encontra-se expressamente plasmada na última parte do n.º1 do artigo 187.º do Código do Processo Penal (“1. A intercepção e gravação de conversações telefónicas ou comunicações telefónicas só podem ser ordenadas ou autorizadas pelo juiz, (...) se houver fundadas razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.”)
5. Defendendo a Doutrina, à luz dos comandos constitucionais, uma inequívoca interpretação restritiva daquele artigo e a imperatividade da realização de um juízo de ponderação que conclua pela imprescindibilidade daquele meio de prova, face à prova resultante da investigação. O que não aconteceu no caso sub iudice.
6. Não obstante, o Supremo Tribunal de Justiça julgou verificados todos os requisitos legais que concorrem na admissibilidade do meio de prova.
7. Ora, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça permite que a parte final do n.º1 do artigo 187.º do Código do Processo Penal, (que encerra a consagração processual dos princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, através da atribuição de carácter subsidiário ao meio de prova) seja interpretada de forma extensiva e alheia às circunstâncias e diligências realizadas em casos concretos.
8. Acresce que, no âmbito dos presentes autos não houve, igualmente, qualquer controlo judicial do meio de prova, em obediência aos requisitos legais previstos no artigo 188.º do Código do Processo Penal, nomeadamente, o Tribunal não seleccionou as gravações das intercepções telefónicas que deveriam ser transcritas, porque probatoriamente relevantes, nem tão pouco as ouviu.
9. O Tribunal não aferiu da relevância probatória para estes autos das intercepções e gravações telefónicas levadas a efeito noutros, não se coibindo, contudo, o Supremo Tribunal de Justiça de decidir que o facto do recorrente ter tido acesso aos despachos judiciais “(...) do senhor juiz de instrução que autorizaram e fundamentaram o recurso às escutas, acompanharam a sua evolução e mandaram transcrever o que interessava, de acordo com o que probatoriamente se considerou relevante (Cf. Certidões de fls. 1434 a 1440), como também às próprias transcrições” impõe a conclusão de que “puderam controlar a legalidade desse meio de prova.”
10. Ora, o acesso aos referidos despachos não é susceptível de sanar a impossibilidade dos arguidos, nestes autos, aferirem do respeito aos requisitos processuais e aos princípios constitucionais na realização do meio de prova.
11. A assunção da legalidade de intercepções e gravações levadas a cabo noutros processos, nos termos defendidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, obnubila o exercício do direito à defesa de sujeito processual que, sendo estranho ao processo em que as mesmas se realizaram, é directamente por elas afectado e, bem assim, olvida o facto daqueles não disporem de legitimidade processual nos outros autos para, nomeadamente, arguir nulidades referentes ao meio de prova que, nestes autos, é considerado pelo Tribunal na formação da sua convicção, uma vez que tal arguição deve obediência ao regime previsto na al. c) do n.º3 do art.120.º do Código do Processo Penal.
12. A posição assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça, permite que o artigo
188.º do Código do Processo Penal e, em concreto, o seu n.º 3, seja interpretado no sentido de que a aferição da relevância probatória de intercepções telefónicas que, a posteriori, servirem para sustentar a convicção do Tribunal, seja efectuado por Magistrado Judicial que não conhece a factualidade do processo, assim como, admite a consideração de meio de prova, realizado no
âmbito de outro processo, que padeça da nulidade processual consagrada no artigo
189.º do Código do Processo Penal, na sequência, por exemplo, de evidente violação do n.º1 do referido artigo 188.º daquele diploma legal.
13. A admissibilidade da interpretação efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça aos artigos 187.º e 188.º, ambos do Código do Processo Penal, conduz à frustração da excepcionalidade do próprio regime naqueles previsto e subverte e trai a ratio legis, incentivando a banalização do recurso a escutas telefónicas que, muito embora padeçam de nulidade, porque exportadas de processo diverso, são consideradas como meio de prova válido, porquanto jamais aquele seu vício poderá ser suscitado.
14. De todo o exposto, impõe-se concluir que a interpretação aduzida pelo Supremo Tribunal de Justiça fere o disposto nos artigos 18.º, 32.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa, porquanto admite o recurso ao meio de prova de forma contundentemente lesiva dos direitos fundamentais consagrados no artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa; colocando, desta feita, em causa o consagrado no n.º2 do art.18.º da Lei Fundamental, a par do que, coarcta as garantias de defesa dos arguidos, constitucionalmente plasmadas no art.32.º.
15. Mais pretende o recorrente ver fiscalizada a (in) constitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça aos artigos 249.º, 263.º e
270.º todos do Código do Processo Penal, a qual, salvo melhor opinião, é contrária ao consagrado no n.º1 do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa.
16. O Supremo Tribunal de Justiça decidiu que as diligências efectuadas no dia
12 de Abril de 2000, realizadas sem o conhecimento do Ministério Público, consubstanciam “actos cautelares necessários e urgentes para assegurar o meio de prova”, encontrando-se, desta feita, legitimadas pelo disposto “nos artigos
55.º, n.º2 e 248.º a 256.º, todos do CPP”.
17. Ora, os presentes autos tiveram origem numa denúncia anónima que frisava a alegada prática de crime de tráfico de estupefacientes pelo co-arguido do aqui recorrente B., na sequência da qual a Polícia Judiciária decidiu proceder, de imediato, a diligências de prova à absoluta revelia do Ministério Público, sendo que este apenas delas teve conhecimento no dia seguinte.
18. As diligências policiais efectuadas naquele referido dia 12 de Abril de
2000, a serem urgentes, deveriam, salvo melhor opinião, ter sido realizadas no
âmbito do processo n.º 306/00, que se encontrava pendente naquela mesma brigada e no qual o crime e o suspeito investigados eram coincidentes com o objecto da denúncia, ou seja, o dito “processo conexo” a que o Supremo Tribunal de Justiça se refere.
19. O que, de resto, se impunha em conformidade com a letra e o espírito do disposto no n.º1 do art.249.º do Código do Processo Penal.
20. As diligências investigatórias desencadeadas pela Policia Judiciária, ao longo do dia 12 de Abril de 2000, sem conhecimento do Ministério Público, evidenciam que os actos levados a cabo por aquela polícia não se inserem no conceito de “actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, nos termos consagrados no n.º1 do artigo 249.º do Código do Processo Penal.
21. A interpretação de que tais actos se encontravam “a coberto da competência própria atribuída aos órgãos de polícia criminal, na iminência da consumação de um crime”, determina o esvaziamento das competências do Ministério Público, e, em concreto, do disposto no n.º 1 do artigo 270.º do Código do Processo Penal, o qual permite a delegação de competências, específicas e para situações concretas, do Ministério Público aos órgãos de investigação criminal.
22. A interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no caso sub iudice, aos artigos 249.º, n.º1, 263.º e 270.º do Código do Processo Penal colide, assim, com o constitucionalmente consagrado no n.º1 do artigo 219.º _ Princípio do Exercício da Acção Penal pelo Ministério Público, pois admite que os órgãos de polícia criminal, sempre que assim o entenderem, procedam a diligências probatórias que não se enquadrem nas suas competências e sem previamente darem integral conhecimento da investigação ao Ministério Público, ou mesmo, que na pendência de um processo, os órgãos de polícia criminal decidam, à margem daquele, realizar actos e diligências, não obstante estas se reportarem à investigação já em curso.
23. Uma interpretação conforme ao consagrado no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa, não pode admitir a subsunção das diligências levadas a efeito pela Polícia Judiciária no regime dos artigos 249.º, n.º1, 263.º e 270.º, todos do Código do Processo Penal.
24. Atendendo a todo o exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade da interpretação do Supremo Tribunal de Justiça aos artigos 249.º, n.º1, 263.º e
270.º do Código do Processo Penal, porquanto colide com o consagrado no n.º1 do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa. Termos em que, e com o douto suprimento de V. Ex.as, deverá ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação plasmada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito dos presentes autos, aos artigos 187º, 188º e
249º, 263º e 270º, todos do Código do Processo Penal, porquanto contrária ao consagrado nos artigos 18º, 32º, 34º e 219º da Constituição da República Portuguesa.»
O recorrente B. concluiu as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
1. «O douto acórdão, de que se recorre, interpretou as normas constante dos artigos 86°, 89°, 187° e 188°, todos do CPP, com o sentido de que sendo levadas a cabo intercepções telefónicas num processo que encontra em segredo de justiça e sendo juntas a outro processo, o arguido visado, em sede de instrução, não pode ter acesso a todos os elementos atinentes à realização dessas escutas a fim de sindicar a sua legalidade.
2. Com efeito, o arguido requereu a abertura da instrução e solicitou ao tribunal acesso a elementos constantes do processo onde as escutas se realizaram
(processo 306/00), tendo o tribunal indeferido o seu pedido com fundamento no segredo de justiça desses autos.
3. Desta feita a defesa foi cerceada no seu direito de sindicar a validade das escutas telefónicas, de forma adequada.
4. A interpretação, dada a estas normas, inquina-as de inconstitucionalidade material por contenderem com o estatuído nos artigos 32°, n.ºs. 1 e 5 da CRP.
5. O douto acórdão interpretou as normas constantes dos artigos 48°, 55°,
187° e 188°, do CPP, com o sentido de que é permitido utilizar escutas telefónicas, realizadas num processo, para realização de diligências de investigação noutro processo sem autorização prévia do juiz. Mais interpretou as referidas normas, com o sentido de que é possível utilizar escutas telefónicas, como meio de obtenção de prova, sem que, primeiramente, se instaure um processo e se verifiquem os pressupostos de que a sua autorização depende, designadamente os princípios da subsidiariedade, necessidade e imediação.
6. Na verdade no dia 12/04/00 a Policia Judiciária por sua iniciativa, sem autorização prévia do MºPº, decidiu levar a efeito um conjunto de diligências de investigação, socorrendo-se do resultado de escutas telefónicas realizadas, no âmbito de outro processo.
7. Conforme parecer solicitado ao Professor Costa Andrade a PJ estava impedida de, além do mais, utilizar as escutas telefónicas produzidas noutro processo atendendo ao seu regime constitucional e legal, nomeadamente ao princípio da reserva absoluta de juiz e aos princípios da subsidiariedade e da adequação.
8. Acresce que o material transcrito no âmbito do outro processo foi junto a este sem a necessária autorização e selecção pelo juiz.
9. A interpretação dada às normas supra citadas contende com o estatuído nos artigos 18°, n.ºs. 2 e 3, 32°, n.º 1, 34°, n.º 1 e 219° da CRP, inquinando-as de inconstitucionalidade material.
10. O douto acórdão, de que se recorre, interpretou as normas 48°, 55° 241°
248° a 253°, do CPP, com o sentido de que é possível aos órgãos de policia criminal encetar diligências fora do âmbito do processo de inquérito que já decorria contra esse arguido, instaurando, assim, um novo processo.
11. Os factos sob investigação eram os mesmos, e não obstante o MºPº decidiu, por despacho lavrado no momento em que deduziu a acusação, que os dois processos corriam autonomamente.
12. Como opinou o Professor Costa Andrade, no parecer junto aos presentes autos, que só o MºPº tem legitimidade para promover o processo penal em obediência ao preceito constitucional que defere aquela entidade competência para exercer a acção penal.
13. Ainda no dizer daquele Mestre a PJ actuou sem a necessária promoção do MºPº, tendo dado conhecimento do ocorrido no dia seguinte. Ora, a utilização das escutas telefónicas só a partir deste momento poderiam ser equacionadas.
14. Assim a PJ desenvolveu um conjunto de diligências, designadamente a utilização das escutas telefónicas, quando não estava legitimada para tal.
15. A interpretação dada a estas normas contende com o estatuído nos artigos
32° e 219° da CRP , inquinando-as de inconstitucionalidade material.
16. Mais interpretou o douto acórdão referido, as normas constantes dos artigos 187° e 188°, do CPP, com o sentido de que é possível juntar a um processo a correr termos, escutas telefónicas no âmbito de outro processo, sem que o juiz oiça as fitas gravadas e ordene a sus transcrição em auto de acordo com o contexto dos factos investigados no processo onde vão ser juntas.
17. Mais interpretou, a expressão 'imediatamente', contida no n.º 1 do artigo
188° do CPP, com o sentido de que o período de 43 dias, que passaram entre o início de intercepção e o momento em que o juiz tomou conhecimento do conteúdo das escutas, não contende com o estatuído nos artigos 32°, n.º 1 e 34°, n.º 1, da CRP.
18. Conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional este lapso de tempo, entre o início da escuta e o conhecimento do material gravado pelo juiz, não pode ser tão longo.
19. A expressão 'imediatamente' tem de ser interpretada no contexto da defesa dos direitos liberdades e garantias constitucionalmente protegidos.
20. E a ser assim, quando a lei de processo penal utiliza esta expressão nos demais casos dá-lhe um conteúdo bem apertado, ou seja, não ultrapassando algumas horas.
21. A ausência de controlo judicial está bem expresso na não desmagnetização dos diálogos que se revelaram sem interesse para a prova.
22. Diga-se, ainda, que os suportes magnéticos não constam dos presentes autos, pois, estão incorporados ao processo 306/00, que ainda se encontra em segredo de justiça.
23. Resulta do exposto que o douto acórdão interpretou as referidas normas contra o estatuído nos preceitos constitucionais (artigos 32° e 34°) inquinando-as de inconstitucionalidade material.»
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pelo não conhecimento do objecto do recurso, concluindo do seguinte modo:
1. «A questão de constitucionalidade invocada relativa à falta de conhecimento e controlo por parte do juiz relativamente a escutas e transcrições que não lhe foram imediatamente presentes, não foi adequadamente suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça, de modo a que estivesse obrigado a dela conhecer, pelo que na ausência de um requisito de admissibilidade do recurso, face ao disposto no artigo 72º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional, não deverá conhecer-se do mesmo.
2. As restantes questões de constitucionalidade relativas às normas do Código de Processo Penal invocadas, não resultam de uma aplicação pela decisão recorrida, com a dimensão interpretativa que lhes é assacada pelos recorrentes, motivo pelo qual estão subtraídas à pronúncia por parte do Tribunal Constitucional.
3. Termos em que não deverá conhecer-se do recurso.»
O relator proferiu despacho convidando as partes a pronunciar-se sobre outra perspectiva de decisão que consiste em não se conhecer do recurso de constitucionalidade, atendendo à sua natureza instrumental e ao facto de o acórdão recorrido parecer dever ser interpretado como assentando, relativamente
às mesmas questões, em fundamentação alternativa (o caso julgado) não posta em causa no recurso de constitucionalidade.
Ambos os recorrentes se opuseram à procedência das questões obstativas ao conhecimento do recurso. Quanto à questão suscitada pelo relator, o recorrente B. sustentando, em síntese, que no ponto 8 do acórdão o Supremo Tribunal de Justiça apenas excluiu, por essa razão formal, o conhecimento das questões relativas ao recurso intercalar. E o recorrente A. sustentando que o provimento do recurso interposto implicará a alteração do acórdão recorrido, determinando a reapreciação da causa e a oficiosa revogação do constante do ponto 8 desse acórdão.
II
A)
Foram interpostos pelos arguidos recorrentes três recursos de constitucionalidade, sendo dois referentes ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Outubro de 2003 e um (do recorrente B.) respeitante ao acórdão do mesmo Tribunal de 16 de Dezembro de 2003.
Duas questões podem ser imediatamente resolvidas:
1ª. O recorrente A. indica, no seu requerimento de interposição, que o recurso é interposto com base nas alíneas b) e f) do n.º1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Porém, é manifesto não ocorrerem os pressupostos do recurso previsto na alínea f) uma vez que a decisão recorrida não aplicou normas ou interpretações normativas cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) do n.º1 do artigo 70º, nem o recorrente justifica tal pretensão.
De resto, tendo o recorrente, nas suas alegações, concluído apenas no sentido da declaração de inconstitucionalidade das normas/interpretações por si invocadas, sempre teria que se considerar o recurso restrito ao fundamento previsto na aludida alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
2ª. Afirma o recorrente B. que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2003 que recaiu sobre a arguição de nulidades do acórdão daquele Tribunal de 16 de Outubro de 2003 aplicou as normas dos artigos
187º, n.º1, e 188º, n.º1 e 3, do Código de Processo Penal, no “sentido de que podem ser juntas a um processo as escutas telefónicas levadas a efeito noutro processo, sem que o juiz dos autos onde foram remetidas, oiça as fitas gravadas e ordene a transcrição em auto de acordo com a sua relevância para a descoberta da verdade ou a prova desse processo e não competindo ao juiz a função exclusiva de ordenar a junção aos autos das transcrições provenientes doutro processo”, e
“o artigo 188º, n.º1, do mesmo código, com o sentido de que a expressão
“imediatamente”, ínsita nessa norma, permite que a P.J. entregue as fitas gravadas ou elementos análogos ao juiz findos vários dias, nalguns postos meses, após findo o prazo de intercepção”.
Porém, esse acórdão – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
16 de Dezembro de 2003 – indeferiu o requerimento de arguição de nulidades por entender que o acórdão ao qual o recorrente imputava tal vício – o acórdão de 16 de Outubro de 2003 – se tinha pronunciado sobre as questões em apreço e, para tanto, transcreveu a parte deste aresto onde estava resolvida tal questão. Pronunciou-se, apenas, sobre a questão da nulidade do acórdão reclamado, não apreciou nem reapreciou as questões do acompanhamento das escutas pelo juiz ou das condições de aproveitamento num processo de prova obtida por intercepção de comunicações ordenada noutro processo.
É certo que o recorrente disse, quando o interpôs, que este recurso
“faz parte do já também interposto para o mesmo Tribunal Constitucional, só que agora versando sobre a parte da decisão que se pronunciou sobre a nulidade do douto aresto proferido”.
Sucede, porém, que nem por esta via se podem considerar verificados os pressupostos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade quanto às questões respeitantes às referidas normas. Efectivamente, o que se censurava ao acórdão de 16 de Outubro era a omissão de pronúncia sobre a questão colocada nas conclusões 1ª a 5ª da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. fls. 3228 – XVI vol. dos autos). Ora, o que neste passo da motivação o recorrente suscitara fora a nulidade do acórdão da Relação por não se ter pronunciado sobre as referidas questões. Portanto, a decisão do acórdão de 16 de Dezembro afirma apenas ter havido pronúncia no acórdão de 16 de Outubro sobre a questão da nulidade por omissão de pronúncia do acórdão da Relação, não faz, explícita ou implicitamente, aplicação das referidas normas dos artigos
187º e 188º do Código de Processo Penal.
Tanto basta para concluir que o acórdão de 16 de Dezembro de 2003 não aplicou, sequer implicitamente, as normas que o requerente indica no requerimento de interposição do recurso de fls. 3462, pelo que do recurso dele interposto se não pode tomar conhecimento.
Restam, portanto, os recursos interpostos do acórdão de 16 de Outubro de 2003.
B)
1. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica que é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão, na decisão recorrida, do julgamento que nele viesse a ser efectuado (ver, por exemplo, o Acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
Ora, no ponto 8 do acórdão recorrido afirmou-se o seguinte:
«(...)
8 - Com a explanação que antecede sobre os controvertidos pontos das escutas telefónicas e da falta de promoção do processo pelo M.ºPº, pretendemos apenas secundar o juízo da Relação de Coimbra sobre tais matérias, dado o melindre das questões. Mas, a uma razão de acerto jurídico, que fará substantivamente improceder os recursos em tais pontos, acresceria uma outra razão, esta de ordem formal, e que levaria necessariamente ao mesmo resultado.
É que as referidas questões, como questões prévias que são, terão sido já decididas definitivamente pelo Tribunal da Relação, da decisão não havendo recurso para este Supremo. Na verdade, prescreve o art. 399º do CPP, como princípio geral, que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei. E o seguinte art. 400º do CPP dispõe sobre as decisões que não admitem recurso, entre as quais inclui: acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa
[n.º 1, c)].
“Causa” só pode ser entendida para estes efeitos como o processo destinado a determinar a responsabilidade criminal do agente pela prática de facto ilícito
(Ac. de 21.2.02, proc. n. 131/02-5). Neste aspecto, teria razão a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, quando advogou nas suas alegações escritas, quanto ao recorrente B. (e também na audiência, relativamente ao recorrente A.), a irrecorribilidade da decisão quanto às mencionadas questões. Em sentido exactamente coincidente, e por sinal versando a questão, entre outras, do indeferimento pela Relação da nulidade de escutas telefónicas se pronunciou o Acórdão deste STJ de 20/6/02, , Processo n.º 1860/02 - 5, de que foi relator o Conselheiro Simas Santos. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão, também deste Supremo, de 27/2/03, Processo n.º 515/03 - 5, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, sumariado nos Sumários de Acórdãos do STJ, e onde pode ler-se:
«Não é admissível recurso, além do mais, 'de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa' - art. 400º, n.º 1, c), do CPP.
Assim, não se tratando de decisão final proferida pela relação em recurso, mas de decisão interlocutória, isto é, decisão que não ponha termo ao processo, seja com que fundamento for, não é admissível novo recurso dessa decisão. Pôr termo à causa significa que a questão substantiva fica definitivamente decidida, que o processo não prosseguirá para a sua apreciação, e não que o processo no seu todo fica definitivamente julgado». Em consequência de tudo o que foi explanado, poderíamos, em suma, concluir da mesma forma que concluiu o Acórdão já referido de 23/10/02 (Conselheiro Leal Henriques) : ... «por uma via ou por outra sempre a pretensão do impugnante
[aqui, as pretensões dos impugnantes) teria(m) que improceder, como improcede(m).
(...)»».
Face a este ponto da fundamentação do acórdão recorrido, foram as partes colocadas perante a possibilidade de não se tomar conhecimento do recurso, uma vez que, na hipótese de que outras razões não obstassem a esse conhecimento e que este Tribunal viesse a dar razão aos recorrentes, tal decisão não teria virtualidade para implicar a alteração do sentido do acórdão recorrido, que sempre se manteria com este outro fundamento de ordem formal.
Quando ouvido sobre esta questão, o recorrente B. sustentou que esta passagem do acórdão tinha de ser interpretada como restrita às inconstitucionalidades que foram objecto do recurso interposto do despacho interlocutório. Tal resulta óbvio, entende o recorrente, de o Supremo Tribunal de Justiça fundar o não conhecimento do recurso na alínea c) do nº 1 do artigo
400º do Código de Processo Penal.
Porém, mesmo que este fundamento do acórdão recorrido pudesse ser objecto desta interpretação mais restrita – e não pode, como se verá –, nunca tal redução aproveitaria ao recurso interposto pelo recorrente que a defende. Na verdade, foi o recorrente B. quem, na fase de instrução, interpôs recurso do despacho que desatendeu a arguição da nulidade das intercepções telefónicas, recurso esse que subiu com o recurso da decisão final do tribunal colectivo e a que a Relação negou também provimento. Portanto, o que se afirma no ponto 8 do acórdão recorrido visa seguramente, pelo menos, a situação deste recorrente. Ou seja, pelo menos quanto a este recorrente, o resultado a que chegou nos pontos anteriores do acórdão, sobre as questões relativas às escutas e à falta de promoção inicial do processo pelo Ministério Público – em toda a extensão dessas questões, note-se –, entendeu-o o Supremo Tribunal de Justiça igualmente alcançável pela via, dita de ordem formal, que consiste em considerar tais questões definitivamente resolvidas pelo acórdão da Relação.
Sucede que nesta passagem do acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça se refere, por igual, à situação do recorrente A. quanto às mesmas questões. Não pode ser outra a leitura do acórdão quando conclui que “[em] consequência de tudo o que foi explanado, poderíamos, em suma, concluir da mesma forma que conclui o Acórdão já referido de 23/10/02 (Conselheiro Leal Henriques): … «por uma via ou por outra sempre a pretensão do impugnante [ aqui, as pretensões dos impugnantes] teria(m) que improceder, como improcede(m)»”. O cuidado em adaptar a frase retirada do acórdão de 23/10/02 ao plural ( à pluralidade de sujeitos impugnantes) e em evidenciar graficamente essa adaptação torna indiscutível que o acórdão teve a intenção de estender esta fundamentação à improcedência dos recursos dos dois recorrentes quanto às questões relativas às escutas e à falta de promoção inicial do processo pelo Ministério Público.
Ora, não cabe a este Tribunal apreciar o acerto deste entendimento, no plano da interpretação do direito ordinário e da sua aplicação ao caso concreto, designadamente quanto a saber se é exacto que a decisão da Relação se firmara, no que toca às referidas questões, em relação a ambos os recorrentes e em toda a sua extensão. Quanto a esse fundamento, o Tribunal Constitucional só poderia intervir, se os recorrentes tivessem suscitado, a propósito do entendimento das normas relativas aos recursos que lhe subjaz, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Sucede que tudo o que referem respeita à parte do acórdão em que, para usar a linguagem do acórdão recorrido, se consideraram os recursos substantivamente improcedentes quanto a tudo o que respeitava a tais questões. Sobre a outra razão, de ordem formal, que o Supremo Tribunal de Justiça afirmou suficiente para conduzir, por si só, ao mesmo resultado de improcedência dos recursos a que já antes chegara, em tudo o que se refere às referidas questões, os recorrentes nada disseram.
Consequentemente, fosse qual fosse a decisão do Tribunal Constitucional quanto às questões de constitucionalidade que os recorrentes querem ver apreciadas, sempre se manteria de pé o dito fundamento de ordem formal, que constitui uma ratio decidendi por si só suficiente (“por uma via ou por outra”) para manter o sentido da decisão final assumida pelo acórdão recorrido. Contrariamente ao que pretende o recorrente A. (cfr. resposta de fls.
3611), não pode este Tribunal, ao qual não está cometida a função de hiper-revisão das decisões dos demais tribunais, determinar a revogação oficiosa deste fundamento que, sendo autónomo e não consequencial, ficaria incólume perante eventual decisão de provimento sobre as questões de constitucionalidade.
2. Tanto basta, considerando a função instrumental da intervenção do Tribunal Constitucional em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, para não tomar conhecimento do objecto dos recursos, sem necessidade de analisar as demais questões que, na perspectiva do Ministério Público, conduziriam a idêntico resultado.
III
Pelo exposto, decide-se
a) Não tomar conhecimento dos recursos interpostos pelos recorrentes A. e B.;
b) Condenar os recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, por cada um deles.
Lisboa, 23 de Junho de 2004
Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida