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Proc. n.º 833/03
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, neste Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 - A., identificado nos autos, reclama para a conferência, nos termos do art. 78º-A, n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator e que é do seguinte teor:
«1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Junho de 2003, que, na parte em que condenou o arguido na pena de um ano e três meses de prisão pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º
1, do Código Penal, manteve a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da Maia.
2. Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs “recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, nos termos do art. 70.º, n.º 1, als. g) e i) da Lei do Tribunal Constitucional (...)”.
3. Perante o teor de tal requerimento, o Juiz Relator proferiu, nos termos do artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC, um despacho convidando o arguido para, no prazo de
10 dias, proceder “às indicações em falta”, que foram, de resto, especificadas pelo próprio Tribunal – “o recorrente devia ter: indicado a norma cuja constitucionalidade ou ilegalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie; identificado a decisão a que se refere a alínea g) do n.º 1 do art.
70.º; indicado a norma a que se refere a alínea i) do n.º 1 do mesmo preceito”.
4. Notificado do despacho, o arguido vem afirmar que:
“1) O presente recurso é interposto nos termos do art. 70.º, n.º 1, al. i) da Lei do Tribunal Constitucional, cumprindo o disposto no n.º 1 do art. 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
2) As normas violadas no Douto Acórdão recorrido foram os arts. 431.º do CPP e os arts. 29.º, n.º 5, e 32.º, n.º 1 e 2 da CRP e Princípio «In dubio pro reo», questão já suscitada nas alegações de recurso apresentadas pelo arguido cumprindo o disposto n.º 2 e 4.º do art. 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
3) Tendo o Tribunal Constitucional, quanto à matéria controvertida decidido nos Acórdãos n.º 96-0591, 97-0040 e 96-493, todos in www.dgsi.pt, cumprindo o disposto no n.º 3 e 4 do art. 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional”.
5. O recurso foi admitido por despacho prolatado a fls. 533, decisão esta que, nos termos do 76.º, n.º 3, da LTC, não vincula este Tribunal.
Cumpre agora decidir.
6. Convém começar por mencionar que “para que se possa suscitar um incidente de inconstitucionalidade é necessária a verificação de certos requisitos e circunstâncias que na doutrina processual geral se designam por requisitos ou pressupostos processuais” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª Ed., Coimbra, 2000). Ora, como se verá, no caso sub judicio, não se verificam os requisitos da admissibilidade do recurso, pelo que, não podendo o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do presente recurso, elabora-se, nos termos do artigo
78.º-A, n.º 1, da LTC, a presente decisão sumária.
Da conjugação complementar do requerimento de interposição do recurso com a resposta ao despacho de aperfeiçoamento formulado pelo Juiz do tribunal a quo, resulta que o presente recurso de constitucionalidade vem, desde logo, interposto ao abrigo da al. i) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC.
Não existe, porém, qualquer fundamento para tal, porquanto não estão preenchidos os pressupostos aí exigidos. De facto, para que o Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, al. i) é necessário que a decisão recorrida tivesse recusado a aplicação de uma norma constante de acto legislativo, “com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou que a tivessem aplicado em desconformidade com o decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional”. No caso sub judicio não houve qualquer recusa de aplicação de norma do direito interno com fundamento em contrariedade com um instrumento convencional de direito internacional, nem o tribunal proferiu qualquer juízo em sede das questões abrangidas pelo artigo
70.º, n.º 1, al. i), da LTC.
Como se esclarece no Acórdão n.º 290/02:
“Com efeito, nos termos desta última disposição legal, nestes casos, «o recurso
é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicados na decisão recorrida». Sobre a natureza destas questões, assinala José Manuel M. Cardoso da Costa ( A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed. rev. e act., Coimbra, 1992, pág.
27, nota 27): Note-se que, no seu desenho legal, a competência agora reconhecida ao Tribunal não apresenta inteira homologia com a do controlo da constitucionalidade (ou da
«legalidade»): não só porque apenas é contemplada em sede de controlo concreto, como ainda porque é limitada aos casos, referidos no art. 70º, n.º 1, alínea i), cit., de desaplicação da lei interna pelos tribunais ou, então, de decisão destes contrária a orientação anterior do Tribunal Constitucional; e sublinhe-se, por outro lado, que o legislador se absteve intencionalmente de qualificar a situação, assim, e desde logo, não tomando posição sobre o controverso problema da primazia do direito convencional. Este, justamente, será um ponto a decidir pelo Tribunal, nele residindo o núcleo da questão ou das questões «jurídico-internacionais» que entram na sua competência; quando às questões «jurídico-internacionais», nelas caberá antes de mais, certamente, a da vigência e validade da convenção como instrumento jurídico-internacionalmente vinculante (cfr. cit. art. 71º, n.º 2). Face a uma sua tal configuração, bem se poderá dizer que esta competência do Tribunal se aproxima de (se não rigorosamente se identifica com) uma competência de «qualificação normativa» (à semelhança de certa competência do Tribunal Constitucional Federal alemão, por vezes assim catalogada). E, no mesmo sentido, sublinha J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, págs. 1031 e segs.): São questões jurídico-constitucionais as que se localizam em sede de direito constitucional (cfr. art. 8º), devendo ser analisadas e resolvidas segundo as normas e princípios constitucionais consagrados e de acordo com os instrumentos hermenêuticos de interpretação e concretização específicos deste ramo de direito. Estão neste caso, por ex., as questões referentes ao sistema de
«incorporação» das normas internacionais no direito interno (recepção plena, recepção condicionada), os problemas referentes à posição hierárquica das normas de direito internacional (valor supraconstitucional, valor constitucional, valor infraconstitucional mas supralegal, valor de lei) e os problemas relacionados com a qualificação de normas reguladoras de actos ou relações internacionais
(ex.: exclusão do carácter jurídico-constitucional do direito diplomático). Serão questões jurídico-internacionais as que se localizam no plano do direito internacional, geral, convencional e consuetudinário, cabendo discuti-las e analisá-las à face dos princípios e normas deste direito e segundo as suas regras de interpretação e concretização específicas. Estarão, porventura, neste caso, as questões relativas às relações entre o direito internacional e o direito interno (monismo, dualismo), ao campo de aplicação das normas internacionais (relação entre os estados, criação de direitos e deveres também para particulares), ao problema da vigência do direito internacional e aos conflitos entre as normas internacionais e as leis internas do estado
(cumprimento de obrigações, responsabilidade internacional dos Estados)”.
Ora, como facilmente se conclui pela confrontação com o aresto em crise, nenhum destes problemas foi equacionado pela decisão recorrida.
Resta, pois, considerar o disposto na al. g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Como “questão prévia” relativamente à aplicação desta norma, importa referir que o Tribunal Constitucional irá considerá-la apesar do recorrente ter referido, em sede de resposta ao convite de aperfeiçoamento, apenas que “o presente recurso é interposto nos termos do art. 70.º, n.º 1, al. i) da Lei do Tribunal Constitucional, cumprindo o disposto no n.º 1 do art. 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional”. De facto, atendendo ao teor das menções constantes da restante parte dessa peça processual – designadamente onde o recorrente,
“cumprindo o disposto no n.º 3 e 4 do art. 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional” indicam-se os “Acórdãos n.º 96-0591, 97-0040 e 96-493” – pode entender-se que tal “restrição” resulta de um lapso que não manifesta vontade diferente da expressada no requerimento de interposição.
Assim sendo, cumpre apurar se estão preenchidos os requisitos processuais determinantes do conhecimento de um recurso interposto ao abrigo da al. g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Ora, constitui pressuposto deste recurso que a norma arguida de inconstitucionalidade tenha sido aplicada pelo tribunal a quo e tenha sido julgada anteriormente inconstitucional por este Tribunal Constitucional, cabendo ao recorrente, desde logo, o ónus de indicar o Acórdão deste Tribunal que haja julgado inconstitucional a norma aplicada pelo tribunal recorrido (cf. os Acórdãos n.os 133/88 e 289/02).
O recorrente indicou então os “Acórdãos n.º 96-0591, 97-0040 e 96-493, todos in www.dgsi.pt” . A referência efectuada pelo recorrente, que menciona tais Acórdãos tomando em linha de conta o número do processo em que essas decisões foram proferidas, remete, inequivocamente, para a consideração, dos Acórdãos n.os 1049/96, 1078/96 e 340/97. Todavia, este Tribunal não proferiu, em nenhuma dessas decisões, qualquer juízo de inconstitucionalidade relativamente às normas aí sindicadas, além de que, em todo o caso, tais normas – relativas ao sistema de recursos e aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça – não foram, de qualquer modo, determinantes da decisão recorrida, não se vislumbrando, assim, que o tribunal a quo tenha aplicado, como ratio decidendi, qualquer norma já julgada inconstitucional por este Tribunal – e que, de resto, nem o próprio recorrente especifica. Pelo que, também quanto ao artigo 70.º, n.º 1, al. g), não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso.
7. Destarte, por tudo o exposto, decido não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente com 6 (seis) UC de taxa de justiça.».
2 - Sustentando a sua reclamação diz o recorrente que «[...] desde logo os Tribunais que previamente analisaram estes autos violaram nas suas decisões o art.º 29º, n.º 5 e 32º, n.os 1 e 2 da CRP ao não respeitarem o princípio in dubio pro reum, bem como o Tribunal da Relação do Porto ao não fazer um reexame da matéria de facto assente, violando assim o direito ao recurso quanto àquela matéria, e não interpretando de acordo com a CRP o art.
431º do CPP, que ao não ser cumprido violou os direitos constitucionais do Arguido» e que «quanto aos acórdãos citados os mesmos em sede de alegações, se tal for permitido ao Arguido, serão convenientemente analisados provar-se-á a aplicação de normas do CPP contra as normas e princípios constitucionais».
3 - O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto respondeu dizendo que «a reclamação é manifestamente improcedente, em nada abalando a evidente inverificação dos pressupostos do recurso».
Cumpre decidir.
B – Fundamentação
4 - Confrontando os fundamentos alegados na reclamação e a ratio decidendi da decisão reclamada, verifica-se que o reclamante nenhuma crítica dirigiu contra a correcção e bondade jurídicas dos fundamentos em que esta se abona. Na verdade, o reclamante em nada contradiz o juízo aí formado de que não se verificam os pressupostos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que interpôs ao abrigo das alíneas g) e i) do n.º 1 do art.
70º da LTC.
Ao invés, o reclamante aduz uma argumentação que se alheia totalmente das razões que aí se relevaram para se decidir como se decidiu.
Por outro lado, constata-se que, mesmo colocada a questão nos termos em que o reclamante o faz no articulado da sua reclamação, sempre o recurso não seria de admitir, embora aqui por razões diversas das expostas na decisão reclamada.
Na verdade, na posição ora tomada, o reclamante, com excepção do que concerne à norma do art. 431º do CPP, apresenta-se a questionar não a constitucionalidade de qualquer norma de direito infraconstitucional que a decisão recorrida haja determinado e aplicado mas antes a constitucionalidade da própria decisão, com fundamento por parte da mesma de uma directa violação de preceitos ou princípios constitucionais (arts. 29º, n.º 5; 32º, n.os 1 e 2 da CRP e princípio do in dubio pro reo).
Ora, é por demais consabido que apenas a inconstitucionalidade/ilegalidade de normas pode ser fundamento do recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade/ilegalidade regido no art. 70º da LTC e não também a inconstitucionalidade de decisões judiciais ou de actos administrativos que, aplicando directamente as normas constitucionais, acabem por violá-las (cfr., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 674/99,
155/00, 157/00 e 232/00, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 25/02/2000, 9/10/2000, 9/10/2000 e 15/7/2002).
Finalmente, e relativamente ao falado art. 431º do CPP, verifica-se que o reclamante nem chega sequer a colocar uma verdadeira questão de constitucionalidade, porquanto não só não define a dimensão normativa em que o preceito foi interpretado como não indica, de forma minimamente perceptível
(cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 178/95, publicado nos AcsTC, 30º volume, pp.
1118), quais os preceitos ou princípios constitucionais que esse sentido normativo terá ofendido, ficando-se pela alegação de que “violou os direitos constitucionais do Arguido”.
C – Decisão
5 - Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos