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Processo n.º 530/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O recorrente A., (doravante designado por A.) vem, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar para a conferência da decisão sumária, de 1 de Outubro de 2003, que decidiu, ao abrigo do n.º 1 desse artigo 78.º-A, não conhecer do objecto do presente recurso.
1.1. Essa decisão sumária tem a seguinte fundamentação:
“1. O consórcio A. veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional (cf. requerimento de fls. 1882 a 1894) do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção Social), de 6 de Novembro de 2002 (cf. fls. 1645 a
1664), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciadas as questões de inconstitucionalidade das normas:
A) do artigo 731.º do Código de Processo Civil, na interpretação que teria sido acolhida pelo acórdão recorrido, por violação do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), na vertente da garantia do duplo grau de jurisdição;
B) do artigo 22.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro, e dos n.ºs 2 e 3 da Base XVII da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, com a interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, por violação do princípio da legalidade, consagrado no artigo 203.º da CRP;
C) dos artigos 715.º, 726.º e 684.º-A do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, por violação do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 20.º da CRP;
D) dos artigos 664.º, 515.º, 522.º-A, 522.º-B, 522.º-C, 698.º, 672.º e 675.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação que lhes foi dada no acórdão recorrido, por violação do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º, e do artigo 205.º, n.º 2, ambos da CRP.
Segundo o recorrente, as enunciadas questões de inconstitucionalidade, que se teriam colocado pela primeira vez nestes autos com a prolação do acórdão de 6 de Novembro de 2002, foram suscitadas no pedido de reforma do mesmo acórdão por ele apresentado (cf. fls. 1796 a 1813).
2. Lido este pedido de reforma, constata-se que:
A) Relativamente ao artigo 731.º do Código de Processo Civil:
Na parte III desse pedido de reforma (n.ºs 12 a 22), o recorrente não suscita nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, sendo imputada directamente à decisão judicial recorrida, em si mesmo considerada, a violação desse preceito da lei ordinária, o cometimento da nulidade de excesso de pronúncia e a violação do “direito fundamental de defesa”, “na vertente da violação da garantia do duplo grau de jurisdição”.
Sabido que a fiscalização concreta da constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional incide apenas sobre normas (ou interpretações normativas) e não sobre a eventual violação da Constituição directamente imputada às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, esta parte do objecto do recurso não pode ser apreciada.
B) Relativamente ao artigo 22.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro, e aos n.ºs 2 e 3 da Base XVII da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965:
A questão de inconstitucionalidade a este respeito suscitada pelo recorrente (cf. parte IV do pedido de reforma, n.ºs 23 a 31) é manifestamente infundada. Na verdade, tal inconstitucionalidade radica numa pretensa violação do princípio da legalidade, estabelecido no artigo 203.º da CRP, mas que se traduz no mero entendimento, sustentado pelo recorrente, de que o acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente (ilegalmente ...) o regime legal aplicável. A dar-se este alcance ao princípio constitucional da legalidade, de todas as decisões dos tribunais que a parte vencida considerasse ilegais passaria a haver recurso para o Tribunal Constitucional, o que é manifestamente absurdo.
C) Relativamente aos artigos 715.º, 726.º e 684.º-A do Código de Processo Civil:
Na parte correspondente do pedido de reforma (parte V, n.ºs 38 a
50), volta o recorrente a não suscitar nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, não identificando, de forma precisa, qual interpretação normativa que considera inconstitucional em termos de o Tribunal recorrido ficar obrigado a dela conhecer (cf. artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Na verdade, o que o recorrente considera violador da Constituição é a conduta processual do Tribunal recorrido ao omitir a audição prevista no n.º 3 do artigo 715.º do Código de Processo Civil. Mas – repete-se – objecto do recurso de constitucionalidade só podem ser normas jurídicas (ou interpretações normativas) e não decisões judiciais ou actos (ou omissões) processuais.
D) Relativamente aos artigos 664.º, 515.º, 522.º-A, 522.º-B,
522.º-C, 698.º, 672.º e 675.º, n.º 2, do Código de Processo Civil:
A inconstitucionalidade a este respeito (aliás, só parcialmente) suscitada na parte II (n.ºs 8 a 11) respeita a interpretação normativa – a não vinculação da Relação a reapreciar a prova gravada pela circunstância de o tribunal de 1.ª instância ter a ela procedido – que já havia sido acolhida no acórdão da Relação.
Se o recorrente entendia que essa interpretação era inconstitucional podia e devia ter suscitado tal questão na alegação para o Supremo Tribunal de Justiça, antes de este ter proferido o acórdão ora recorrido, não podendo considerar-se meio nem momento adequado para o efeito a suscitação da questão apenas no pedido de reforma deste acórdão.
3. Em face do exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo
78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.”
1.2. A reclamação apresentada desenvolveu a seguinte argumentação:
“1. O não conhecimento do objecto do recurso foi, na decisão sumária, justificado com a invocação de três ordens de razões, a saber:
(i) relativamente ao artigo 731.° do CPC, por um lado, e aos artigos 715.°,
726.° e 684.°-A do CPC, por outro, afirmou o Senhor Conselheiro Relator que não foi suscitada pelo recorrente nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, mas que estariam apenas em causa as decisões judiciais em si mesmas consideradas;
(ii) quanto ao artigo 22.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro, e aos n.ºs 2 e 3 da Base XVII da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de
1965, entendeu o Senhor Conselheiro Relator que a invocada interpretação desconforme à Constituição dos referidos preceitos, em concreto desconforme ao princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado, é manifestamente infundada já que invocar essa desconformidade na interpretação de normas por referência ao aludido princípio da legalidade permitiria que «de todas as decisões dos tribunais que a parte vencida considerasse ilegal passaria a haver recurso para o Tribunal Constitucional, o que é manifestamente absurdo» (Nada disse o Senhor Conselheiro Relator quanto ao facto, também alegado, de a interpretação desses preceitos feita pelo Supremo Tribunal de Justiça violar, igualmente, o disposto no artigo 13.° da Constituição); e,
(iii) finalmente, no que se refere aos artigos 664.°, 515.°,
522.°-A, 522.°-B, 522.°-C, 698.°, 672.º e 675.°, n.º 2, do CPC, considerou o Senhor Conselheiro Relator que a inconstitucionalidade da interpretação dos referidos preceitos não foi suscitada atempadamente.
Ora,
2. Salvo o devido respeito, o entendimento do Senhor Conselheiro Relator expresso na decisão sumária não é correcto,
Ressalvando-se o afirmado quanto à invocada interpretação inconstitucional dos artigos referidos em (iii) supra que, reconhece-se, poderia ter sido suscitada anteriormente ao pedido de reforma e só não o foi por não se ter, sequer, equacionado, aquando das contra-alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, a hipótese de não vir a ser respeitado no processo o princípio do caso julgado ...
Quanto ao mais, entende o recorrente ter total fundamento o recurso que interpôs para este Tribunal Constitucional. Senão vejamos.
3. Contrariamente ao que pretende o Senhor Conselheiro Relator na decisão referida, em sede do pedido de reforma do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça foi, pelo recorrente, efectivamente suscitada a inconstitucionalidade da interpretação das normas vertidas nos artigos 731.º e
715.°, 726.º e 684.°-A do CPC, e não apenas questionada a bondade do conteúdo decisório daquele acórdão.
Na verdade,
4. O recorrente afirmou ser inconstitucional a interpretação da norma do artigo 731.º, n.º 2, do CPC feita no acórdão, pois que, interpretá-la, como fez o Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de não ser necessário, depois de reconhecida a nulidade do acórdão da Relação de Lisboa por omissão de pronúncia, mandar baixar o processo à 2.ª instância para reforma, importava, como importou, a «violação do direito fundamental de defesa do réu A., na vertente da violação da garantia do duplo grau de jurisdição», preceituado no artigo 20.º da CRP.
Note-se que o próprio elemento literal do preceito mencionado exigia essa interpretação conforme à Constituição, sendo nele claro o objectivo de garantir à parte prejudicada pela nulidade o duplo grau de jurisdição (cf. Lopes do Rego, in Comentário ao Código de Processo Civil, pág. 495).
Por outro lado,
5. Afirmou, também, o ora recorrente ser inconstitucional a interpretação da norma do artigo 684.°-A, n.º 1, do CPC feita no acórdão, e bem assim das normas dos artigos 715.°, n.ºs 2 e 3, e 726.° do CPC. É que,
O Supremo Tribunal de Justiça interpretou essas normas no sentido de que
(i) mesmo não tendo decaído em nenhuma questão em sede de recurso de apelação, o ora recorrente teria que ter ampliado o objecto do recurso, nos termos dos artigo 684.º-A do CPC, se queria ver apreciados os argumentos que em sua defesa esgrimiu naquele recurso
e de que
(ii) com base nesse pressuposto, o Supremo Tribunal não tinha de conhecer das questões cujo conhecimento, pela solução dada ao litígio em sede de recurso de apelação, aí havia ficado prejudicado.
E essa interpretação importava, como importou, a violação do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.° da CRP. Na verdade,
6. O Supremo Tribunal de Justiça negou ao réu A. a possibilidade, que lhe é conferida pela lei, de ver conhecidas nessa instância questões juridicamente relevantes e essenciais à sua posição processual nestes autos. E isso só sucedeu, repete-se, porque o Supremo Tribunal de Justiça fez uma interpretação das aludidas normas contrária à Constituição.
Assim,
7. No pedido de reforma do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça foi efectivamente suscitada pelo A. a questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas em causa, e não apenas postas em crise as decisões judiciais em si mesmas consideradas, como incorrectamente se afirma na decisão sumária.
8. Também no que respeita às normas do artigo 22.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro, e dos n.ºs 2 e 3 da Base XVII da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, foi suscitada pelo recorrente a inconstitucionalidade da interpretação das mesmas feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, por violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 203.° da CRP.
E,
9. Salvo o devido respeito, não pode deixar de se discordar do Senhor Conselheiro Relator quando afirma que, a ser como pretende o recorrente, de qualquer decisão judicial que a parte vencida considerasse ilegal passaria a haver recurso para o Tribunal Constitucional.
Na verdade,
10. Manda o princípio da legalidade que as decisões dos Tribunais estejam sujeitas à Lei.
Ora,
11. A interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez dos preceitos normativos supra referidos contrariou frontalmente esse princípio constitucional, já que ao decidir contra a Lei a ela se não sujeitou, como devia.
12. E ao fazer essa interpretação desconforme à Constituição, para além de ter conduzido a uma decisão injusta, frustrou a confiança que o princípio da legalidade pretende tutelar.
Acresce que,
13. O recorrente A., no pedido de reforma do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, afirmou, também, que a interpretação das mesmas normas, no sentido de tratar de forma diferente entidades que estariam na mesma posição substancial [A. e B., respectivamente utilizador e empresa de trabalho temporário, considerando que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, para efeitos de condenação do A., que a posição de «entidade patronal» no contrato de trabalho temporário se desdobra entre essas duas figuras, e não obstante condenou a segunda a título meramente subsidiário], era ainda inconstitucional por violar o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.° da CRP.
14. Sobre esta invocada inconstitucionalidade não se pronunciou, no entanto, o Senhor Conselheiro Relator.
15. Atento o exposto, entende o recorrente ter, oportunamente, invocado interpretações normativas desconformes à Constituição, que podem e devem, em sede de fiscalização concreta, ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional no âmbito do presente recurso, tanto mais que,
As apontadas inconstitucionalidades, que ofendem claramente a tutela constitucional de direitos do recorrente, a não serem declaradas são susceptíveis de lhe causar gravíssimos e irremediáveis prejuízos.”
1.3. Notificada desta reclamação, a recorrida B. manifestou-se no sentido do seu indeferimento, com confirmação da decisão sumária reclamada.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
São basicamente três as questões de constitucionalidade referidas no requerimento de interposição do presente recurso: (i) reapreciação pela Relação da prova objecto de gravação na 1.ª instância; (ii) definição da responsabilidade por acidentes de trabalho verificados no decurso da utilização de trabalho temporário; e (iii) poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.
2.1. Relativamente à primeira, o Tribunal da Relação entendeu que, apesar de o tribunal de 1.ª instância ter efectuado a gravação da prova, a pedido da ré seguradora, o certo é que, diferentemente do que sucedeu no processo civil, em que essa possibilidade foi imediatamente aplicada aos processos pendentes em 1 de Janeiro de 1997, por força do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 392-A/95, de 12 de Dezembro, no processo laboral apenas com o novo Código de Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 2000, se veio a prever e permitir a gravação da prova com vista à sua reapreciação. Não sendo esta faculdade aplicável ao caso dos presentes autos, a gravação efectuada na 1.ª instância traduziu-se num acto inútil e insusceptível de ser tomado em conta para a alteração da decisão da matéria de facto pretendida pelo apelante A..
Nas contra-alegações apresentadas pelo réu A. relativas ao recurso de revista deduzido pelo autor (cf. fls. 1536 a 1587), a este respeito apenas se imputa ao acórdão da Relação violação do caso julgado que se teria formado com a decisão do tribunal de 1.ª instância de proceder à gravação da prova, sem se suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade (cf. n.ºs 87 a 90 e conclusão ee) dessas contra-alegações).
O STJ, no acórdão ora recorrido, desatendeu esta argumentação do réu A., reiterando o entendimento (já expresso no acórdão de 5 de Junho de 2002, processo n.º 457/02) da inexistência de violação de caso julgado formal, pois a decisão da 1.ª instância que deferiu o pedido de gravação da prova produzida em audiência esgotou os seus efeitos com a efectivação da gravação, não resultando daí a vinculação da Relação a reapreciar a prova gravada, sob pena de o tribunal inferior se intrometer no campo funcional de um tribunal hierarquicamente superior, ditando-lhe o que tinha de conhecer, com total subversão das regras que procedem à definição da competência dos tribunais em razão da hierarquia, sendo, aliás, certo que o réu A. não questionou o decidido na parte em que se julgou que não havia lugar à gravação da prova, por não consentida pelo CPT de 1981, aqui aplicável.
Só na arguição de nulidade e pedido de reforma do acórdão recorrido é que, pela primeira vez, o réu A. veio arguir a inconstitucionalidade da interpretação nele acolhida quanto aos artigos 515.º,
522.º-B, 522.º-C e 698.º do Código de Processo Civil (CPC).
Na decisão sumária ora reclamada entendeu-se que tal arguição “respeita a interpretação normativa – a não vinculação da Relação a reapreciar a prova gravada pela circunstância de o tribunal de 1.ª instância ter a ela procedido – que já havia sido acolhida no acórdão da Relação”, pelo que “se o recorrente entendia que essa interpretação era inconstitucional podia e devia ter suscitado tal questão na alegação para o Supremo Tribunal de Justiça, antes de este ter proferido o acórdão ora recorrido, não podendo considerar-se meio nem momento adequado para o efeito a suscitação da questão apenas no pedido de reforma deste acórdão”.
Na sua reclamação, o réu A. reconhece que tal questão
“poderia ter sido suscitada anteriormente ao pedido de reforma e só não o foi por não se ter, sequer, equacionado, aquando das contra-alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, a hipótese de não vir a ser respeitado no processo o princípio do caso julgado”.
Surge como incompreensível este último argumento, atendendo a que o próprio acórdão da Relação, então recorrido, já teria, na tese do recorrente, desrespeitado o princípio do caso julgado. Neste contexto, o acórdão do STJ, ora recorrido, que confirmou o decidido pela Relação, jamais poderia ser considerado como encerrando uma decisão inesperada ou insólita, que dispensasse o recorrente de suscitar a questão de constitucionalidade antes da sua prolação.
Neste ponto, é, pois, de manter a decisão sumária reclamada.
2.2. Antes de se entrar na apreciação das restantes questões, interessará que, embora sinteticamente, se rememorem as principais vicissitudes do caso sub judicio.
Nos presentes autos está em causa um acidente de trabalho, de que foi vítima C., trabalhador da empresa de trabalho temporário B.
(que havia transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho para a companhia de seguros D.), que o havia cedido ao consórcio A., para prestar o seu trabalho nas obras de construção civil d-- -----------------------, que ocorriam n-- ----------------, obras a cargo do referido consórcio. As instâncias deram como assente que, à data do acidente (consistente na dilaceração e esmagamento das pernas do autor pelos dentes de uma fresa montada no braço articulado de uma máquina escavadora), o autor trabalhava sob as ordens e direcção do réu A. e seus representantes, que o acidente se deveu a violação de regras de segurança imputáveis a este réu e que existe nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas pelo autor e respectivas sequelas (incapacidade temporária absoluta desde 1 de Novembro de 1995 até 30 de Novembro de 1996 e incapacidade permanente parcial de 79,955%).
O autor inicialmente propusera a acção apenas contra a B. e a seguradora (cf. fls. 101 a 117), mas esta, na sua contestação (cf. fls.
157 a 172), para além de questionar a validade do contrato de seguro (por falta de pagamento de prémios), veio sustentar que, à data do acidente, a verdadeira entidade patronal do sinistrado era o consórcio A., sob cujas ordens, fiscalização e direcção se encontrava e para cujo proveito económico revertia o seu trabalho, executando tarefa sob as ordens directas de um encarregado que pertencia aos quadros do A., reduzindo-se a sua ligação à ré B. ao facto de ser esta que lhe pagava a retribuição, tendo o acidente ocorrido devido à violação, imputável exclusivamente ao A., das mais elementares regras de segurança no trabalho, pelo que requereu a sua intervenção no processo, nos termos do artigo
132.º do CPT, ex vi artigos 325.º e seguintes do CPC.
A intervenção do A. foi deferida por despacho de 14 de Outubro de 1998 (fls. 274 a 276). Chamado, o interveniente A. contestou (fls.
279 a 292), excepcionando a sua ilegitimidade e impugnando a sua responsabilidade.
Por sentença de 16 de Junho de 2000 (fls. 622 a 663), foi entendido que o contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre a B. e o A. era nulo, designadamente por falta de indicação dos motivos do recurso a essa espécie de trabalho por parte do utilizador, o que, nos termos do n.º 4 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro, implicava que se considerasse “que o trabalho [era] prestado ao utilizador com base em contrato de trabalho sem termo, celebrado entre este e o utilizador”, pelo que condenou o consórcio nas quantias que indicou, correspondentes a indemnizações e pensões agravadas por o acidente ter resultado de culpa grave e exclusiva desse réu, absolvendo as rés B. e seguradora.
Contra esta sentença apelou o A. para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando nas respectivas alegações (fls. 678 a 836), além do mais, a validade do contrato de utilização de trabalho temporário e a sua ilegitimidade e impugnando as circunstâncias da ocorrência do sinistro, as violações das regras de segurança, o nexo de causalidade entre esta violação e o acidente e entre este e as lesões, e os montantes das prestações em que fora condenado.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 10 de Outubro de 2001 (fls. 1402 a 1427), considerou válido o contrato de utilização de trabalho temporário, assim afastando a aplicação do regime do artigo 11.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 358/89, e, por outro lado, entendeu ser a empresa de trabalho temporário, que continua a ser a entidade patronal dos trabalhadores cedidos, a responsável pela reparação dos acidentes de trabalho por este sofridos (sem prejuízo da transferência da sua responsabilidade para uma seguradora). Concluiu pela procedência da apelação, revogando a sentença na parte recorrida e absolvendo o réu A. do pedido, sem nada dizer quanto à responsabilidade das restantes rés. No entanto, em voto de vencido aposto a esse acórdão, consignou-se que, concordando com a absolvição do A., se deveria condenar as rés B. e seguradora, na medida da responsabilidade de cada uma,
“considerando que a Relação faz uma reapreciação global do recurso e que, atentos os interesses de ordem pública subjacentes às normas que regulam os acidentes de trabalho, não consideraria transitada a decisão da 1.ª instância que absolveu essas rés”.
Contra este acórdão recorreu o autor para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando a manutenção do decidido na 1.ª instância (por reputar nulo o contrato de utilização de trabalho temporário); mesmo que assim não se entendesse, e uma vez que na apelação fora posta em causa a responsabilidade das restantes rés, deveria a Relação ter conhecido dessa responsabilidade, incorrendo em omissão de pronúncia por não o ter feito; pelo que propugna que o Supremo Tribunal de Justiça, em primeira linha, condene o A. como na 1.ª instância, ou, se assim o não entender, condene solidariamente o A. e a B., ou, se assim ainda o não entender, condene a seguradora e a B., na medida da responsabilidade de cada uma.
Nas suas contra-alegações (fls. 1536 a 1587), o réu A. sustentou, além do mais, a validade do contrato de utilização de trabalho temporário, a sua irresponsabilidade pela reparação das consequências do acidente, por ser de considerar “terceiro” relativamente à única relação laboral existente (a que liga o trabalhador à empresa de trabalho temporário), e a inexistência de omissão de pronúncia no acórdão da Relação, por a decisão da 1.ª instância que absolveu as restantes rés ter transitado em julgado, devido à sua não impugnação pelo autor.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Novembro de 2002 (fls. 1645 a 1664), ora recorrido, entendeu, sucessivamente, que: (i) era válido o contrato de utilização de trabalho temporário, pelo que não era de manter o decidido na 1.ª instância, que considerara o réu A. único responsável, confirmando-se, neste ponto, o decidido pela Relação; (ii) no entanto, não se pode considerar que se haja formado caso julgado sobre a absolvição das restantes rés na sentença da 1.ª instância, que se fundara no reconhecimento do A. como entidade patronal do autor, reconhecimento este justamente impugnado no recurso de apelação, pelo que a Relação devia ter conhecido da responsabilidade dessas rés; (iii) esse conhecimento pode ser feito no âmbito do recurso de revista, atentos os pedidos formulados pelo autor nas respectivas alegações; (iv) a validade do contrato de utilização de trabalho temporário não exclui, sem mais, a responsabilidade do réu A., pois, estando provado que o acidente é imputável, culposa e causalmente, a este réu, e atenta a relação triangular estabelecida, em que o empregador real do trabalhador é o utilizador e a empresa de trabalho temporário é mero empregador formal, deve o utilizador A. ser condenado a título principal pela totalidade das pensões e indemnizações, respondendo subsidiariamente (excepto quanto à indemnização por danos não patrimoniais) a empresa de trabalho temporário e a seguradora (aquela pelos montantes correspondentes ao valor do salário que excede aquele que foi declarado à seguradora).
2.3. Relativamente à questão concernente à responsabilidade pela reparação das consequências do acidente de trabalho, conexionada com a interpretação que o acórdão recorrido teria dado às normas do artigo 22.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 358/89 (“A empresa de trabalho temporário garantirá aos trabalhadores temporários seguro contra acidentes de trabalho”), e da Base XVII, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 2127 (“2 – Se o acidente tiver resultado de culpa da entidade patronal ou do seu representante, as pensões e indemnizações serão agravadas segundo o prudente arbítrio do juiz, até aos limites previstos no número anterior. 3 – O disposto nos números anteriores não prejudica a responsabilidade civil por danos morais nem a responsabilidade criminal em que a entidade patronal, ou o seu representante, tenha incorrido.”), o recorrente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, referiu tão-só que tal interpretação violava “o princípio da legalidade, consagrado no artigo 203.º da CRP”, questão que teria suscitado no pedido de reforma do acórdão ora recorrido por só ter sido colocada, pela primeira vez, nesse acórdão.
A decisão sumária ora reclamada, atendendo à parte do pedido de reforma do acórdão recorrido em que a questão da violação do princípio da legalidade pela interpretação dada às referidas normas havia sido suscitada (parte IV, n.ºs 23 a 31), considerou-a manifestamente infundada, por se afigurar indefensável que o mero entendimento, sustentado pela parte vencida, de que a decisão judicial interpretara e aplicara erradamente uma norma legal, bastava para abrir via a recurso para o Tribunal Constitucional por pretensa violação do princípio constitucional da legalidade.
Na presente reclamação, o reclamante contesta este juízo e chama a atenção para a suscitação, no referido pedido de reforma do acórdão recorrido, da inconstitucionalidade da mesma interpretação normativa, agora por violação do princípio da igualdade.
Aquela contestação surge como claramente improcedente. Ao referir, na reclamação, que “a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez dos preceitos normativos supra referidos contrariou frontalmente esse princípio constitucional [da legalidade], já que ao decidir contra a Lei a ela se não sujeitou, como devia”, o reclamante está a confirmar a leitura feita na decisão sumária reclamada de que, na sua tese, qualquer decisão judicial apodada de ilegal seria simultaneamente inconstitucional, pois violaria sempre o princípio constitucional da legalidade, o que, como se anotou, é obviamente absurdo e torna manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade nesses termos suscitada.
Já assiste razão ao reclamante no segundo reparo feito. Na verdade, a decisão sumária ora reclamada não atentou na imputação, à mesma interpretação normativa, da violação do princípio da igualdade, constante dos n.ºs 32 a 35 do pedido de reforma do acórdão recorrido, lapso esse em parte explicável pela circunstância de, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o recorrente apenas fazer alusão à questão da violação do princípio da legalidade, que não à da violação do princípio da igualdade.
A questão de inconstitucionalidade que a este último respeito o recorrente suscita radica na tese de que, tendo o acórdão recorrido entendido que a posição de entidade empregadora era “partilhada” pela empresa de trabalho temporário (B.) e pelo utilizador desse trabalho (A.), violaria o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, a interpretação das citadas normas no sentido de que elas acarretam um tratamento diferente dessas entidades, “entre as quais se desdobra a mesma posição de entidade patronal”, responsabilizando o A. a título principal e a B. a título meramente subsidiário.
Mas também sob esta perspectiva, o recurso, quanto a este ponto, sempre seria inadmissível. Desde logo, porque a responsabilização do reclamante a título não subsidiário já fora sustentada nos autos, quer na contestação da seguradora, onde requerera a intervenção do A., então apontado como exclusivo responsável pela reparação dos danos emergentes do acidente, quer nas alegações do autor no recurso de revista, pelo que o entendimento acolhido no acórdão recorrido nunca poderia ser considerado “decisão surpresa”, que dispensasse o reclamante de suscitar a questão da inconstitucionalidade desse entendimento antes de prolatado tal acórdão.
Depois, e decisivamente, porque, ao contrário do que agora refere o reclamante, nunca o acórdão recorrido admitiu que o utilizador e a empresa de trabalho temporário se encontrassem “na mesma posição substancial”, o que tornaria violador do princípio da igualdade o tratamento diferenciado dessas entidades. Pelo contrário, o que o acórdão recorrido sustentou foi que essas entidades estavam em posições substancialmente distintas, sendo o utilizador o empregador real e a empresa de trabalho temporário o empregador meramente formal, o que justificava a responsabilização daquele a título principal e a responsabilização desta a título meramente subsidiário.
Para que não restem dúvidas quanto à correcção desta leitura, a seguir se transcreve, na íntegra, apesar da sua extensão, a parte correspondente da fundamentação do acórdão recorrido. Neste, após se concluir pela validade do contrato de seguro celebrado pela B., afirmou-se:
“Mas será que a validade do apreciado contrato, que se confirma, é razão bastante para fazer improceder o pedido contra o réu A., como julgou o acórdão recorrido?
Respondemos, decisivamente, que não.
Ficou amplamente demonstrado nos autos que o acidente é de imputar, culposa e causalmente, ao réu A., conclusão que dispensa grandes considerações, tão manifesta foi a actuação, grosseiramente violadora das mais elementares regras de prudência e segurança, que levou ao acidente e suas consequências – improvisar numa fresa montada no braço de uma escavadora para ali colocar um trabalhador, nela empoleirado, que manuseava um martelo, um instrumento sabidamente pesado, quando se sabia ainda que, a pôr-se em movimento, a fresa tornava-se num maquinismo assaz perigoso, do mesmo passo que revela um improviso rápido e fácil para solucionar uma situação, revela igualmente um total desprezo pelas regras de segurança, ainda que mínimas.
Se é princípio geral aquele que obriga quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação (n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil), no caso a responsabilização do réu A. encontra apoio na lei laboral, o que não foi considerado no acórdão recorrido.
Pese embora o facto de o autor não ter sido contratado pelo A., mas cedido a este pela B., a verdade é que o A. não é, face ao trabalhador, uma entidade estranha, um simples terceiro; e não é porque a relação triangular em que se desenvolve a prestação de trabalho temporário, assim como faz sujeitar o trabalhador ao poder disciplinar da entidade que o contratou e cedeu, e que é quem o remunera (ver artigos 2.º, alínea a), 20.º, n.º 2, 21.º e 24.º, todos do Decreto-Lei n.º 358/89, diploma que regula o exercício da actividade das empresas de trabalho temporário, as suas relações contratuais com os trabalhadores temporários e com os utilizadores, bem como o regime de cedência ocasional de trabalhadores – artigo 1.º), também o sujeita à autoridade e direcção da empresa que o utiliza, a dadora do trabalho que ocupa o trabalhador e imediata beneficiária da actividade por ele desenvolvida (artigos 2.º, alínea c), e 20.º, n.º 1, daquele Decreto-Lei). Como se diz no preâmbulo do citado Decreto-Lei, reconhece-se «que a especialidade que apresenta o trabalho temporário – contrato de trabalho
“triangular” em que a posição contratual da entidade empregadora é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário (que contrata, remunera e exerce poder disciplinar) e o utilizador (que recebe nas suas instalações um trabalhador que não integra os seus quadros e exerce, em relação a ele, por delegação da empresa de trabalho temporário, os poderes de autoridade e direcção próprios da entidade empregadora) – foge à pureza dos conceitos do direito do trabalho e não se reconduz ao regime de contrato a termo nem se confunde com o regime da empreitada». Por isso, acompanha-se António José Moreira quando, em Trabalho Temporário, Regime Jurídico Anotado, escreve a págs. 48, na anotação 3.ª ao artigo 20.º, o seguinte:
«As duas anotações anteriores partem duma ideia incontestável: o empregador real é o utilizador; a ETT é empregadora formal e aparente. E é esta ideia que suporta as soluções, inter alia, dos artigos 10.º, 11.º, n.º 2, e 16.º, n.º 3. Quem tem realmente trabalho é o utilizador; a ETT é uma gestora qualificada de recursos humanos e que estabelece o ponto de encontro entre a procura e a oferta de trabalho, sem grandes burocracias e com rapidez.» Deste modo, e ainda que o trabalhador temporário não integre os quadros do utilizador para os efeitos apontados no n.º 1 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º
358/89, diploma a que pertencem os preceitos que sejam citados sem outra menção, não podemos deixar de concluir, para os efeitos reparatórios que apreciamos, que a ligação de um ao outro se processava através de uma figura que integra o contrato de trabalho, ou que a ele é de equiparar, em termos de se poder afirmar que o autor era trabalhador por conta do A., nessa medida tendo direito a ser por ele reparado dos danos emergentes do acidente que sofreu – Bases I, n.º 1, e II da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na dimensão reconhecida no n.º 2 da Base XVII da mesma Lei. Esta é, de resto, a solução que melhor se harmoniza com os interesses em confronto, face à realidade que se apurou, pois não vislumbramos como, nas circunstâncias, poderia ser responsabilizada a ré B., a título principal, pela reparação das consequências de um acidente ocorrido com culpa, e culpa grave, acrescente-se, quando é certo que em nada contribuiu para ele; ou responderia apenas pelas prestações normais, por actuação da responsabilidade objectiva que se considerou contida no n.º 2 do artigo 22.º – a empresa de trabalho temporário garantirá aos trabalhadores seguro contra acidentes de trabalho –, mas neste caso seria atingido o direito do sinistrado, pois ficariam por reparar o agravamento previsto no n.º 2 da citada Base II da Lei n.º 2127 e o dano não patrimonial, o que não podia ser.
Resulta de todo e exposto que, ainda que com fundamentação diversa, há que condenar o réu A. nos termos constantes da decisão da 1.ª instância, uma vez que o recorrido não trouxe à contra-alegação, para efeitos do disposto no artigo 684.º-A do Código de Processo Civil, várias questões que constituíram objecto de apelação, no concernente à medida do direito do autor e montantes que foi condenado a pagar. Mas será que a condenação do réu A. esgota as questões de que o Tribunal deve conhecer? Julgamos que não, pois há que ver em que medida a obrigação da ré B. de contratar o seguro de acidentes de trabalho, citado artigo 22.º, n.º 2, se reflecte no caso.
Visa tal seguro garantir ao trabalhador temporário, antes da cedência, a cobertura dos riscos de acidente de trabalho que possa sofrer ao serviço do utilizador; trata-se de uma garantia que a lei exige que fique assegurada à partida, prevenindo descuidos ou desinteresse do utilizador se fosse ele a contratar, o que demonstra que é uma obrigação de quem contrata o trabalhador, o empregador formal usando a atrás referida expressão de António J. Moreira.
Claro que uma tal garantia cobre a responsabilidade objectiva, portanto as situações reparatórias provenientes de acidentes que não ocorram por culpa de utilizador como é normal por ser sob a autoridade e direcção dele que a actividade do trabalhador temporário é levada a cabo.
Mas a existência do seguro, se responsabiliza a seguradora pelos acidentes ocorridos sem culpa, não deixa de valer, de produzir efeitos – seria uma incongruência se tal não acontecesse – naqueles casos em que, resultando o acidente de culpa da entidade patronal ou seu representante, a responsabilidade da seguradora é apenas subsidiária e limitada às prestações previstas na lei – é o que dispõe o n.º 4 da Base XLIII da citada Lei n.º 2127.
Aliás, não fazia sentido libertar a seguradora dos riscos que contratualmente assumiu e impor ao FAT – Fundo de Acidentes de Trabalho o pagamento das prestações que o obrigado à reparação não pudesse satisfazer por razões económicas ou outras (veja-se o artigo 1.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril).
Mas a responsabilidade da seguradora, assim entendida, só tem razão de ser na medida em que significa a assunção por ela de uma responsabilidade que
é do tomador de seguro, que lha transmite através do contrato de seguro, o que vale dizer que, em caso de ausência de culpa, a entidade contratante do trabalhador temporário, a dita empregadora formal, suportaria o que fosse devido para além do salário declarado, quando este fosse inferior ao real, conforme resulta do disposto na Base L da Lei n.º 2127. Respondendo o réu A. em via principal pela totalidade das pensões e indemnizações, há que fazer aplicação dos princípios afirmados e condenar subsidiariamente a ré B. nas diferenças de pensões, despesas com assistência clínica, hospitalizações e transportes e demais prestações, subsidiariedade que não se estende à indemnização pelo dano não patrimonial, correspondentes ao valor do salário que excede aquele que foi declarado à seguradora, pois nesta medida, como se deixou dito, a responsabilidade subsidiária é da ré D..”
Nestas passagens, o acórdão recorrido distingue, de modo claro, a diversa situação do empregador real e do empregador formal, sendo assacável apenas àquele a culpa, no caso culpa grave, pela verificação do acidente, por violação grosseira das regras de segurança, a justificar diferenciada responsabilização, pelo que não foi acolhida a interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo reclamante.
2.4. Finalmente, quanto às questões respeitantes aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça e exercício do contraditório pelo recorrido, invoca o ora reclamante os artigos 731.º, n.º 2 (inserido na secção dedicada ao recurso de revista e que dispõe: “Se proceder alguma das restantes nulidades do acórdão [da Relação, designadamente a de omissão de pronúncia], mandar-se-á baixar o processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, pelos mesmos juízes quando possível”), 715.º, n.ºs 2 e 3
(inserido na secção dedicada ao recurso de apelação e que dispõe: “2 – Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer de certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhecerá no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários. 3 – O relator, antes de ser proferida decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 120 dias”), 726.º (inserido na secção dedicada ao recurso de revista e que dispõe: “São aplicáveis ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação interposta para a Relação, com excepção do que se estabelece no artigo 712.º e no n.º 1 do artigo 715.º e salvo ainda o que vai prescrito nos artigos seguintes”) e
684.º-A, n.º 1 (inserido na secção dedicada às disposições gerais sobre recursos e que dispõe: “No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a possibilidade da sua apreciação”), do CPC.
O acórdão recorrido, após julgar improcedente a tese do autor, recorrente do recurso de revista, da nulidade do contrato de cedência de trabalho temporário (de que derivaria a directa responsabilização do A. por passar a ser considerado única entidade patronal do trabalhador), enunciou a segunda questão pelo mesmo suscitada, relativa a pretensa nulidade por omissão de pronúncia do acórdão da Relação quanto à responsabilidade da B. e da sua seguradora, mas não chegou a decidi-la, isto é, não chegou a julgar o acórdão da Relação nulo por omissão de pronúncia, uma vez que entendeu que, constituindo objecto directo do recurso de revista a responsabilização dessas rés e também do réu A., mesmo na hipótese de se julgar válido o contrato de cedência de trabalho temporário, haveria primeiro que apreciar essas questões, por a respectiva decisão ser susceptível de prejudicar ou de colocar noutros termos a questão da nulidade do acórdão da Relação por omissão de pronúncia. Vale a pena reproduzir as pertinentes passagens do acórdão recorrido:
“Definido este ponto, vejamos se o acórdão em vista padece da nulidade arguida pelo recorrente, concretizada no facto de ter omitido a apreciação da eventual responsabilidade das rés B. e D., por efeito da absolvição do co-réu A..
Começaremos por registar, com o devido respeito, que não se compreende bem que, levantada por um dos Srs. Desembargadores Adjuntos a questão da eventual responsabilidade das referidas rés – é prova disso o voto de vencido –, o acórdão haja de todo omitido pronúncia sobre o ponto, nada dizendo sobre as razões por que não apreciava o pormenor focado naquele voto.
Tratando-se de uma questão que foi suscitada, e com toda a pertinência, adiante-se, o normal era que o acórdão se lhe referisse, conhecendo dela ou dizendo por que o não fazia.
E efectivamente devia tê-lo feito, como defende o recorrente e opina o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no douto parecer de fls. 1628-1635, uma vez que a improcedência da acção quanto ao réu A. deixou intocada a responsabilidade que fosse de assacar às co-rés.
É que o litígio não se limita a contrapor o titular do direito aos demandados enquanto responsáveis pela satisfação dele; oferece uma outra dimensão, comportando o que podemos chamar de sub-litígio envolvendo os demandados, em que cada um, não questionando, ou não questionando decisivamente o direito do autor, defende que não responde pela satisfação dele, por essa responsabilidade caber a outro ou aos outros demandados.
Semelhantemente ao que acontece na hipótese considerada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de Outubro de 2000, na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano 2000, tomo III, pág. 274, de que se transcreve um passo na alegação do recorrente, a fls. 1491, em que a absolvição da entidade patronal na 1.ª instância não ficou coberta pelo caso julgado se a seguradora recorreu da decisão, rejeitando a sua responsabilidade «com a consequente e necessária responsabilização da empregadora, o que logo significa que a questão da responsabilidade da empregadora foi também posta no recurso, impedindo a formação do caso julgado», também no caso dos autos a absolvição das rés B. e D. ocorreu por se haver concluído que o demandado Consórcio era a entidade patronal do trabalhador acidentado, nessa medida responsável único pela reparação das consequências do acidente; se no recurso por ele interposto é rejeitada essa conclusão e se afirma ser a A. a entidade patronal do autor, se o recurso procede e o recorrente é absolvido do pedido por se ter considerado válido o contrato de utilização de trabalho temporário, deixando o réu A. de ser tido como empregador do acidentado, ficou de pé a questão de saber quem responde, ou seja, retoma-se o litígio quanto à empregadora B. e quanto à seguradora.
Portanto, a absolvição do réu A. obrigava a Relação a conhecer da responsabilidade dos co-demandados se acaso não considerasse transitada em julgado a decisão que as absolveu do pedido, pormenor que omitiu.
Mas como o autor, na revista, pede a revogação do acórdão para que subsista o julgado em 1.ª instância, não há que ordenar o envio dos autos à Relação porquanto, a ser concedida a revista, o conhecimento daquela questão ou ficará prejudicado ou colocar-se-á noutros moldes.
Por isso, há que entrar na apreciação do mérito da revista, conhecendo-se depois, se e como for caso, da questão da nulidade.” (sublinhado acrescentado).
No pedido de reforma do acórdão recorrido, o ora reclamante, a propósito da norma do artigo 731.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, referiu que o Supremo Tribunal de Justiça havia entendido que o acórdão da Relação estava ferido de nulidade por omissão de pronúncia quanto à questão da responsabilidade das rés B. e D. – o que, como se viu, não corresponde à realidade –, mas que não ordenou o envio dos autos à Relação para suprimento dessa omissão, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça violou aquele preceito legal, cometeu excesso de pronúncia e “violou ainda o direito fundamental de defesa do réu A., na vertente da violação da garantia do duplo grau de jurisdição que ficou, por esse meio, totalmente e ilegalmente frustrada (artigo
20.º da CRP)”.
Como se assinalou na decisão sumária ora reclamada, este não é um meio processualmente adequado de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa em termos de o tribunal recorrido ficar constituído na obrigação de dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), sendo a violação da Constituição imputada directamente a decisão ou procedimento judiciais, em si mesmos considerados, que não a qualquer norma ou interpretação normativa, devidamente identificadas. Para além de que, como se viu, o acórdão recorrido não anulou o acórdão da Relação por omissão de pronúncia, pelo que não se colocava sequer a questão da aplicação da norma do n.º 2 do artigo 731.º do CPC, para além de que eram as rés B. e D., que não o réu A., ora reclamante, as eventuais afectadas com esse procedimento do Supremo Tribunal de Justiça.
É, assim, inadmissível o recurso na parte relativa ao artigo 731.º, n.º 2, do CPC.
Quanto às normas dos artigos 715.º, n.ºs 2 e 3, 726.º e
684.º-A, n.º 1, do CPC, constata-se de novo que, no pedido de reforma do acórdão recorrido (local onde – segundo o reclamante – teriam sido suscitadas as questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas por este Tribunal Constitucional, por as mesmas só haverem surgido com a prolação do acórdão recorrido), o reclamante imputa directamente à decisão judicial recorrida, em si mesma considerada, a violação dessas normas legais, de que derivaria nulidade dessa decisão por omissão de pronúncia, concluindo deste jeito: “interpretou a referida norma de forma inconstitucional, ao recusar com base na mesma o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º da CRP”.
Como se assinalou na decisão sumária reclamada, este não constitui modo processualmente adequado de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa em termos de o tribunal recorrido ficar obrigado a dela conhecer, para além de que o reclamante nem sequer identificou, em termos claros e precisos, qual a interpretação normativa que reputava inconstitucional, constituindo jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional a de que não satisfaz esse ónus de identificação da interpretação normativa arguida de inconstitucional a mera menção à
“interpretação feita pela decisão recorrida”, endossando ao Tribunal Constitucional o ónus – que não lhe compete – de determinar qual a interpretação que o recorrente pretenderia impugnar.
Acresce que, como resulta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu o pedido de reforma do acórdão ora recorrido, as interpretações e aplicações legais a que procedeu nada têm de imprevistas ou insólitas. Como aí se escreveu:
“Finalmente, assaca o requerente ao acórdão a nulidade por omissão de pronúncia decorrente da não observância do disposto no artigo 715.º do CPC
(fls. 1809-1812), uma vez que considera que o Tribunal devia ter conhecido das questões relacionadas com os montantes que o réu foi condenado a pagar ao autor, não sendo de aplicar o disposto no artigo 684.º-A daquele Código.
Acontece que o acórdão abordou expressamente a questão, ficando escrito a fls. 1662 verso o que passamos a reproduzir, de resto relatado pelo requerente:
«Resulta de todo o exposto que, ainda que com fundamentação diversa, há que condenar o réu A. nos termos constantes da decisão da 1.ª instância, uma vez que o recorrido não trouxe à contra-alegação, para efeitos do disposto no artigo 684.º-A do Código de Processo Civil, várias questões que constituíram objecto da apelação, no concernente à medida do direito do autor e montantes que foi condenado a pagar.»
Deste modo, não ocorreu omissão de pronúncia, mas afastamento da necessidade de pronúncia por efeito da interpretação que no acórdão se fez do facto de o recorrente não ter lançado mão do disposto no citado artigo 684.º-A, suscitando em sede de revista questões que levara ao recurso de apelação.”
2.5. Conclui-se, assim, que o presente recurso é, em toda a sua extensão, inadmissível:
– quanto às normas relativas à reapreciação pela Relação da prova objecto de gravação pela 1.ª instância, por a questão de inconstitucionalidade não ter sido – podendo sê-lo – suscitada antes de proferida a decisão recorrida;
– quanto às normas relativas à definição da responsabilidade por acidentes de trabalho verificados no decurso da utilização de trabalho temporário, por ser manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade e por, quanto a pretensa violação do princípio da igualdade, o acórdão recorrido não ter adoptado a interpretação arguida de inconstitucionalidade e por a interpretação acolhida não constituir “decisão surpresa” que dispensasse o recorrente de suscitar a sua desconformidade constitucional antes de proferido o acórdão recorrido; e
– quanto às normas relativas aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça e exercício do contraditório pelo recorrido, por as questões de constitucionalidade não terem sido suscitadas em termos de o tribunal recorrido ficar obrigado a delas conhecer, quer por a violação da Constituição ser imputada directamente a decisões ou procedimentos judiciais, em si mesmos considerados, quer por falta de identificação, em termos claros e precisos, da interpretação normativa arguida de inconstitucional, e ainda por não aplicação, pelo acórdão recorrido, da dimensão normativa impugnada.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos