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Proc. 734/03 - 1ª Secção Relator: Cons. Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO
A. reclama, nos termos do n. 4 do artigo 76º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro
(LTC) contra o despacho proferido na Relação de Lisboa que lhe não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional de aresto daquele Tribunal. O despacho reclamado é do seguinte teor:
Compulsando as diversas peças processuais a que alude a recorrente a fls. 492, verifica-se que, salvo o devido respeito, em nenhuma delas a arguida suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos art. 50º e 58º do RGCO
(DL: 433/82 de 27/10 com as alterações decorrentes do DL 356/89 de 17/10 e
244/95 de 14/9) na interpretação que lhes foi dada na aplicação que dela fez este Tribunal, o que nos leva a concluir pela não verificação de um pressuposto de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional (precisamente o da questão de inconstitucionalidade normativa ter sido suscitada nos autos antes da prolação da decisão recorrida de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela). Pelo exposto indefiro o requerimento de fls. 491/492.
Na reclamação dirigida a este Tribunal, invoca o seguinte:
1 - No Douto despacho que rejeitou o recurso interposto sustenta-se a sua inadmissibilidade 'pela não invocação das normas contidas nos artigos 50º e 58º do R.G.C.O. - Dec-Lei n.º 433/82, de 27/10, com as alterações decorrentes dos Decretos-Lei n. 356/89, de 17/10 e 244/95, de 14/09, não tendo quando a estes sido suscitada a questão da inconstitucionalidade na interpretação e aplicação que lhes foi dada' .
'Tal questão não foi suscitada antes da prolação da decisão recorrida de modo a permitir ao Juiz a quo sobre ela se pronunciar' .
2 - Reproduz-se o texto dos referidos dispositivos:
Artigo 50º- R.G.C.O. Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções que incorre.
Artigo 58º do R.G.C.O. A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) A identificação dos arguidos; b) A descrição dos actos imputados com indicação das provas obtidas. c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) A coima e as sanções acessórias.
A interpretação e aplicação destes preceitos deve ser vista face ao disposto no artigo 32º da Lei Fundamental, em cujo n.º 10 se estabelece que :
'Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa' - vide Constituição da República Portuguesa'. Ao constatar-se a não presencialidade dos factos constantes no 'Auto de Notícia'
- aquele acto não reproduz a imputação característica de uma contra-ordenação enquanto tal considerada porque não lhe foi feita corresponder, nem para tanto foi comunicado à recorrente, forma adequada na lei para a tanto proceder. A acção inspectiva assentara num pretenso auto de notícia que, aparentemente, se justificava mediante a iniciativa da I. G. T . Ao invés, evidencia-se a falta de auto pela não verificação de qualquer facto nesse âmbito verificado pela I. G. T. ao contrário do que se fizera constar naquele acto.
À convolação que daquele acto foi feita na decisão recorrida, convertendo-o numa participação, falta-lhe o elemento jurídico e negocial próprio de aceitação de uma declaração de tal natureza; Pela sua natureza era aquele acto insusceptível de constituir prova da verificação dos pretensos factos/conclusões que se imputavam à recorrente. Em nenhum momento aquela forma totalmente irregular de proceder pela I.G. T., foi convalidada pela Recorrente, nem tão pouco foi suprida mediante a caracterização individual de cada uma das situações em apreço, e com que desde o início a Recorrente, disso se apercebendo veio a fls...57, do Maço I invocá-lo, suscitando a nulidade insanável do auto, face ao princípio contido no artigo
32.º da Lei Fundamental, o mesmo o vindo a questionar a fls. 61.0, referido à mesma peça processual, sob o n.º 15, 16, 18 e 19, onde escreveu: No ponto 18, disse ainda a Recorrente:
'Quer o auto, quer a comunicação que dele se pretendeu efectuar à arguida, por violação daqueles preceitos, não só atinge o direito de defesa do arguido, bem como viola o mais elementar princípio de defesa expressamente previsto no artigo
32.º, n.º 10 da C.R.P. e como tal inquina a decisão que com base nela se venha a proferir' . Conclui em 19.0, parágrafo 62: ' ... ser julgado totalmente nulo todo o processado desde a data em que foi elaborado o auto, inclusive'. Anteriormente e sob o nº15, a recorrente, através do seu mandatário, escreveu:
'Salvo o devido respeito, atento o disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º
433/82, de 27/10, em conjugação com o disposto no artigo 21.º da Lei n.º 116/99, de 4/8, não se mostra cumprido o princípio segundo o qual, nos termos consignados no artigo 32.º, n.º 10 da C.R.P ., não pode ser aplicada uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre o caso' . E no seu ponto 16 - no seguimento da sua linha argumentativa, parágrafo 62, aduziu : '...estende-se este princípio à fase instrutória de natureza administrativa, com a obrigação de dar conhecimento ao arguido dos concretos factos que contra aquele são imputados de modo a tomar percepção do quando, o onde, como e o porquê das imputações que lhe são feitas...”; O auto não continha os factos concretos enquanto tal elencados, determinados e imputados individualmente à Recorrente e a cada um dos sujeitos indicados, por modo a conceber as conclusões que nele se reproduziam. Era essencial que o tivesse individualmente caracterizado para cada uma das relações tidas em conta para concretamente a Recorrente sobre cada uma se pronunciar . Com o reconhecimento da falta de auto e, consequentemente, de falta de regularidade instrutória em ordem àquele apuramento, tão pouco a sua inobservância foi posteriormente colmatada , pela falta de elementos concretos enquanto tal elencados, reproduzindo a decisão administrativa o que já naquele acto constava, sem qualquer fundamento verificado ou presenciado pelo instrutor que o subscrevia. Não foram elencados autonomamente cada um dos factos conducentes àquelas conclusões, ao mesmo tempo que na forma em que o processo foi utilizado para o efeito pela I.G.T., baseou-se em depoimentos indirectos de cada um dos sujeitos, assentes sobre inquéritos-tipo sem a mínima circunstanciação do respectivo desenvolvimento . Simultaneamente, para a prova do nexo de dependência económica com que sob aqueles inquéritos se partira para a conclusão de imputação de natureza jurídica do comportamento da Recorrente face a cada um daqueles sujeitos, fora negada à recorrente a confirmação da sua veracidade, mediante informação certificada da Direcção de Finanças e Segurança Social, relativa à situação contributiva e contagem de tempo de cada um deles. A invocação feita de confidencialidade de dados não aproveita para a sustentação da negação da prova obtida com base naqueles depoimentos, tendo em conta que sob alínea especificada dos inquéritos-tipo e, perante a sua situação individual, houveram-no dado conhecer voluntariamente à I.G. T. de onde decorre que face ao artigo 13.º da Lei Fundamental, de igual faculdade assiste à Recorrente a ver esclarecida a verdade sobre tal situação. Para o âmbito porque se negava o acesso a esses dados estava implicitamente a reconhecer-se que a Recorrente não tinha a qualidade de empregador de cada um dos sujeitos; Não obstante, estes pela natureza voluntária com que vieram preencher aqueles inquéritos automaticamente acederam a relatar os seus dados e informações pessoais, e para o que era indispensável o elemento de verdade e fidedignidade dos factos que através deles se reproduziam; A resposta ao inquérito-tipo tem a natureza de depoimento indirecto e portanto não foi verificada pelo Senhor Instrutor . Conforme já referido, não tendo aquele processo qualquer facto concreto, elencado e verificado, tão pouco posteriormente veio figurar enquanto tal na decisão administrativa por modo a garantir em pleno o que sobre a Recorrente se imputava; Os factos eram ausentes enquanto tais, dando lugar a inúmeras conclusões não circunstanciadas o que revelava total discricionariedade na forma como aquelas se mostravam produzidas. Por outro lado, compulsando os autos, consta ainda a fls. 87, pedido e prorrogação do prazo de instrução deferida, assente sob o pressuposto de um
'auto' previamente levantado, onde as conclusões nele contidas se davam por verificadas pelo autuante. O despacho de prorrogação tinha por objecto um auto que se vem a revelar ser inexistente face à ordem jurídica e não uma participação. Tendo em conta que aquela prorrogação não aproveita à validade de um disposto Auto, e tão pouco pela sua nulidade é susceptível de se convolar sobre um objecto que declaradamente não tinha, não aproveita àquela forma de proceder o prazo inicial estabelecido a contar do conhecimento dos factos apurados. Decorridos mais de sessenta dias não fora deduzida Acusação, nem tão pouco esta veio revestir forma juridicamente relevante face ao Direito , por modo a permitir base de suporte válido do que se apreciava, o que equivale à falta de factos concretos imputados enquanto tais à recorrente - tal circunstância equivale à obrigatoriedade de arquivamento conforme o dispõe o Art., 25° da Lei n°.116/99 do R.J.C.O.L. Em nenhum momento a evidência de falta de factos concretos enunciados naquela peça, ou posteriormente na decisão administrativa, e em todas aquelas que a têm por suporte, foi convalidada por modo a conceber a repristinação de um acto cuja fundamentação assentou num auto inexistente, e, por isso, insusceptível de lhe conferir aquela eficácia. Tudo o que se diz, reflecte-se em manifesta desigualdade da recorrente, no exercício dos direitos e garantias mais elementares que a Lei lhe reconhece e concede para o exercício do seu direito de defesa. Decorre do exposto que ao converter-se aquele auto numa participação, no uso e interpretação que foi feito face ao disposto no artigo 50.º, 58.º do R.G.C.O., artigo 32.º e 13.º da Lei Fundamental, foi cometida uma ilegalidade que vicia materialmente todo o processo e que se pretende ver reconhecida, pois não se admite que alguém seja punido sem saber do que concretamente vem acusado, equivalendo essa mesma falta a uma instrução totalmente irregular onde nenhum facto concreto se mostra individual e subjectivamente imputado e caracterizado, por modo a consubstanciar a prática de uma contra-ordenação, e com esta das obrigações que se querem imputar à Recorrente. Requer assim que admitida a presente Reclamação, siga o recurso os demais termos do processo até final.
Neste Tribunal, o Representante do Ministério Público emitiu opinião contra o atendimento da reclamação nos seguintes termos:
A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que o reclamante não suscitou durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de suporte ao recurso de fiscalização concreta que interpôs e que foi justificadamente objecto de despacho de rejeição no Tribunal a quo.
Cumpre decidir.
No requerimento de interposição do seu recurso a requerente invocou a alínea b) do n.1 do artigo 70º da LTC e acrescentou:
A., notificada da decisão que indeferiu a nulidade invocada no seu requerimento de fls. , não se conformando com a mesma vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Tem o recurso por objecto a ilegalidade consistente na interpretação e aplicação que foi feita do disposto no Artº 50º bem como do Art. 58º do RGCO, face ao princípio consignado na Lei Fundamental, no Art.32°, n.º10 da C.R.P. Ao interpretar e aplicar aqueles dispositivos foi feito um mau uso do princípio ali consignado, quando na decisão recorrida e após a invocação da nulidade que se descreve, foi objecto de confirmação a circunstancia consistente no facto de que relativamente à apreciação da relação desenvolvida entre 14 prestadores de serviços e a recorrida se conclui: A decisão recorrida não fundamentou a decisão da matéria de facto no auto de notícia, mas apenas nos depoimentos testemunhais produzidos em audiência e nos documentos juntos aos autos. A decisão recorrida veio confirmar o que consta na decisão administrativa sobre o desenvolvimento dessa relação. A participação é idónea a desencadear o processo de contra-ordenação. O auto de notícia foi impropriamente designado, dado que as infracções não foram directa e pessoalmente presenciadas como o exige o n° 1 do Art. 20º da L 116/99 de 4/8, e nessa parte o documento em causa reveste apenas a forma de participação. Porém, Em nenhum momento consta ter sido corrigida essa forma de instrução por modo a dá-la a conhecer à arguida. Mais, para os factos sobre que foi feita assentar a verificação das conclusões reproduzidas na decisão administrativa fez-se crer, erroneamente, que as mesmas haviam sido verificadas na presença de quem o instruiu. Tal erro, por ser demasiado grosseiro, não pode passar despercebido a quem avalia o oferecimento das garantias de um qualquer cidadão. Para além disso, tão pouco se pode conceber que à falta de inquirição directa se admita meio substitutivo do depoimento não presenciado relativamente ao qual existe interesse manifesto de quem depõe sobre a matéria em causa.
É este contra-senso que em face do principio da igualdade - previsto no art. 13° se não explica quando e a propósito da aferição de dependência económica se admite a uma parte que use tudo quanto quer sem ser disso privada e já não se admita a quem tem o direito de se defender de sobre essa mesma matéria inquirir e até contrariar acerca da existência ou não dessa dependência. No caso, nenhum prestador se recusou a ser ouvido por modo a que sobre as contingências da relação estabelecida se colocasse o dever de sigilo quanto a si do seu desenvolvimento como sequer existe explicação para que uma vez admitido o depoimento aquele outro meio de prova fosse negado. Por último, admitir que os factos estão imbricados nas conclusões de direito é forma deficiente de dar a conhecer o que se aprecia para o exercício das garantias de defesa de qualquer cidadão, não bastando aqui juízos perfunctórios e conclusivos, aliás os quais têm vindo por este Tribunal a ser negados como meios de reconhecimento e de fundamento preventivo da caracterização jurídica da relação que se discute, conforme acórdãos proferidos por este Tribunal e Secção relativamente a oito destes 14 prestadores de serviços. As peças onde vêm sucessivamente colocando estas questões foram, na oposição deduzida a fls. , em sede de audição, no recurso de impugnação bem como na revista para este Colendo Tribunal interposta e ainda através da reclamação apresentada a fls. Estão em causa a violação dos princípios da igualdade, previstos no art. 13º da Lei Fundamental, do principio de audição e defesa consignado no n°10 do Art.
32° da Lei Fundamental. Estes princípios foram derrogados na aplicação e interpretação que deveriam ter e não tiveram quando se utilizaram as normas contidas no art. 50º e 58º da Lei Fundamental, que tomou essas normas inconstitucionais na aplicação e interpretação que delas foi feita. Funda-se o presente recurso no disposto no Art. 70º, n.º1 alínea b) da Lei Fundamental. Requer assim que admitido siga o presente recurso os demais termos até final.
Ora bem: o recurso em causa cabe das decisões judiciais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (alínea b) do n.1 do artigo 70º LTC). Esta expressão tem sido sempre entendida com o significado de requisito de oportuna dedução da questão de inconstitucionalidade normativa por forma a que o tribunal recorrido dela deva conhecer.
Todavia, do extenso requerimento de interposição de recurso não resulta que esteja em causa uma questão de constitucionalidade normativa.
Na verdade, a referência à desconformidade constitucional é apontada ao resultado decisório e não à norma aplicada. Depois, mas não menos importante, a questão não foi suscitada atempadamente no tribunal recorrido. Ora é precisamente a norma ou a interpretação normativa que o tribunal recorrido aplicou que deverá constituir o objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
E se do requerimento de interposição do recurso não constam tais menções, essenciais para a admissibilidade do recurso, também na reclamação não há elementos que permitam infirmar o julgamento oportunamente formulado, quanto a essa questão, pelo Tribunal recorrido.
Perante este quadro, é patente que o recurso não pode ser admitido.
Termos em que se desatende a reclamação, com custas pela reclamante. Taxa de justiça 15 UC.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2003
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos