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Proc. n.º 549/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 2757 e seguintes, proferido despacho pelo Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça, indeferindo dois requerimentos de declaração de extinção do procedimento criminal por prescrição, nos seguintes termos:
“Os R.R. A. e B. vieram requerer se declare extinto o procedimento criminal contra eles movido, por efeito da prescrição. Para tanto, partem do pressuposto de que o prazo normal da prescrição, no presente caso, tem como limite máximo 18 anos, por força do disposto nos arts.
36º, nº 2, do Dec-Lei nº 28/84, de 20-1, 117º, nº 1, al. b), 118º, nº 1, 119º, nºs 1, al. b), e 2, e 120º, nº 3 do Cód. Penal de 1982 ou 118º, nº 1, al. b),
119º, nº 1, 120º, nºs 1, al. b), e 2 e 121º, nº 3, do Cód. Penal de 1995 (10+5+3 anos), prazo esse que já teria transcorrido, pelo menos às 24 horas do dia 28 de Fevereiro de 2003 (esta última referência quanto à data é apenas feita pelo Réu A.), não tendo transitado a decisão final. Ouvida a Exmª Procuradora-Geral da República sobre o requerido, veio pronunciar-se pelo indeferimento da pretensão dos R.R. Ora, antes de mais, há que dizer que, de acordo com o disposto nos arts. 140º e
155º do Cód. de Proc. Penal de 1929 – que é o que se aplica ao presente processo, como está assente e aceite pelos R.R. –, a prescrição do procedimento criminal terá de ser deduzida ou conhecida oficiosamente – v. o art. 139º daquele Código – em qualquer altura do processo até decisão final. Portanto, este «terminus ad quem» daquela dedução ou daquele conhecimento não se confunde com o pretendido pelos R.R. – até ao trânsito em julgado da decisão final. Obviamente, são momentos processuais distintos, que não admitem qualquer confusão. A lei é bem clara a este respeito, pelo que não é admissível qualquer interpretação de acordo com o pretendido pelos R.R.
«In casu», a decisão final do processo, na melhor das hipóteses para os R.R., foi o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Abril de 2002 – v. fls. 2308 –, que confirmou o decidido pela Relação de Lisboa. Nessa data, face à consumação do crime em Fevereiro de 1985 (v. o parecer do relator de fls. 2300 e segs. que aquele acórdão integrou) nem sequer estavam completados os 18 anos do prazo prescricional invocado pelos R.R. De qualquer forma, passou o momento processual até ao qual podia ser deduzida ou conhecida a excepção de prescrição do procedimento criminal, pelo que tem de ser indeferida tal dedução feita pelos R.R. De todo o modo, ainda que pudesse ser tempestiva esta dedução, que não é, também não poderia a mesma ser atendida, na medida em que aos três anos de suspensão da prescrição do procedimento criminal, nos termos do art. 119º, nºs 1, al. b), e
2, do Cód. Penal de 1982 (pendência daquele procedimento desde a notificação do despacho de pronúncia), haveria que acrescer o período de pendência do processo no Tribunal Constitucional por efeito de três recursos para aí interpostos – dois pelo Réu A. e um pelo Réu B. –, nos termos do art. 119º, nº 1, al. a), do Cód. Penal de 1982 ou art. 120º, nº 1, al. a), do Cód. Penal de 1995 (suspensão da prescrição do procedimento criminal durante o tempo em que tal procedimento não possa continuar por efeito da devolução de uma questão prejudicial para juízo não penal). O referido período de pendência do processo no Tribunal Constitucional decorreu desde as datas em que este Supremo Tribunal devolveu àquele Tribunal, através da admissão dos respectivos recursos, a apreciação de questões prejudiciais, relativas à inconstitucionalidade de normas aplicadas pelos acórdãos recorridos, até aos dias anteriores ao trânsito em julgado dos correspondentes acórdãos do Tribunal Constitucional – v. no sentido do que vai exposto os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 16-9-1993, in Col. Jur. S.T.J. I-III-203 e de 21-3-2001, in Col. Jur. S.T.J. IX-I-251, e da Relação de Lisboa, de 26-2-1997, in Col. Jur. XXII-I-169. No presente caso, as datas pertinentes ao que vai dito são as seguintes:
1- recurso interposto pelo Réu A., admitido em 3-6-1998 (fls.1939), com pendência no T. Constitucional até 25-5-1999 (fls. 2004 vº);
2- recurso interposto pelo Réu B., admitido em 25-12-1999, com pendência no T. Constitucional até 11-4-2000 (fls. 2095 vº) – v. a referida admissão pelo Réu A., admitido em 11-5-2001 (fls. 2197), com pendência no T. Constitucional até
19-12-2001 (fls. 2294 vº). A totalidade destes períodos de pendência do processo no Tribunal Constitucional atinge quase dois anos, o que, se tal fosse possível, atiraria o termo do prazo prescricional para além das datas em que se operou o trânsito em julgado do acórdão recorrido em relação a cada um dos R.R. – 7 de Março de 2003 quanto ao Réu A. e 20 de Março de 2003 quanto ao Réu B., como se diz no expediente do Tribunal Constitucional de fls. 2755 e 2756 –, considerando como correcto o prazo prescricional já indicado pelos R.R. (isto, face às disposições legais invocadas). Portanto, face às datas do trânsito em julgado do acórdão recorrido, que se operou com o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional que, indeferindo as reclamações dos R.R., não admitiu os recursos que estes interpuseram para aquele Tribunal – art. 80º, nº 4 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro –, é óbvio que, «in casu», não se teria verificado a prescrição do procedimento criminal movido contra aqueles 2 R.R. Pelo exposto, indefiro os requerimentos dos R.R. A. e B..
[...]”.
2. Deste despacho reclamou B. para a conferência, alegando, entre o mais, que tal despacho havia interpretado os artigos 119º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, e 120º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1995, em manifesta violação do artigo 280º da Constituição (fls. 2763 e seguintes).
Também A. reclamou desse despacho para a conferência, tendo nomeadamente sustentado que “a interpretação que foi dada à norma da alínea a) do n.º 1 do art.º 120º (ou 119º no CP 82) do Código Penal de 95, interpretação essa de acordo com a qual a suspensão do prazo prescricional ali prevista se há-de ter como verificada durante a pendência destes autos no Tribunal Constitucional, é conflituante com normas e princípios constantes da Constituição” (fls. 2771 e seguintes).
3. Foi então, em 5 de Junho de 2003, proferido o seguinte acórdão, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça (fls. 2794 e v.º):
“Os RR. B. e A. vieram, separadamente, reclamar para a conferência do despacho do relator de fls. 2757 a 2759 vº, que indeferiu os requerimentos de ambos, pedindo se declarasse extinto o procedimento criminal por efeito da prescrição, mantendo que, no seu entender, tal procedimento se encontra, efectivamente, prescrito quanto a ambos, não procedendo os dois fundamentos invocados no despacho reclamado – intempestividade da dedução da prescrição e aumento do prazo de suspensão da prescrição correspondente ao período de pendência do processo no Tribunal Constitucional por efeito de três recursos para aí interpostos (dois pelo Réu A. e um pelo Réu B.) – para negar a invocada prescrição. Ouvido o Ministério Público, nada veio dizer. Tendo em conta os argumentos invocados pelos reclamantes, acorda-se em manter o despacho apenas no que concerne ao segundo fundamento – aumento do prazo de suspensão da prescrição correspondente ao período de pendência do processo no Tribunal Constitucional por efeito de três recursos para aí interpostos – dando-se por reproduzidas as razões a tal respeito aduzidas naquele despacho e que conduzem a que não se tenha verificado a prescrição do procedimento criminal movido contra os dois reclamantes, sendo certo que estes foram incapazes de concretizar, a este respeito, em que é que se traduziu a violação dos arts. 280º
(Réu B.), 2º, 18º, nº 2, 27º, 29º, nº 1 e 3 e 32º da Constituição (Réu A.). Neste particular – tão-só, pois, quanto ao apontado segundo fundamento invocado no despacho reclamado – indeferem-se as reclamações dos dois referidos R.R.
[...].”
4. Deste acórdão da conferência do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2003, interpôs A. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo que este Tribunal aprecie a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 120º do Código Penal de 1995 (ou 119º, no Código Penal de 1982), “na interpretação, e consequente aplicação, que dela foi feita pelo Tribunal a quo”, por violação dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 27º, 29º e 32º da Constituição (fls. 2797 e seguintes).
Também B. interpôs recurso do mesmo acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do art. 119º, n.º
1, alínea a), do Código Penal de 1982, e do art. 120º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1995, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, segundo a qual na devolução de questão prejudicial para juízo não penal, prevista naquelas normas, compreende-se o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal Constitucional, em processo crime, para apreciação de uma questão de inconstitucionalidade nele suscitada, tendo, assim, como efeito a suspensão [da prescrição] do procedimento criminal nas mesmas normas estatuída”, por violação dos princípios consagrados nos artigos 20º, n.º s 4 e 5, 32º, 210º, n.º 1, 221º e 280º da Constituição (fls. 2807 e seguinte).
Os recursos para o Tribunal Constitucional foram admitidos por despacho de fls.
2809.
5. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls.
2822 e seguintes), concluiu assim o recorrente B.:
“I. Pretende-se ver julgada inconstitucional a norma extraída do art. 119°, nº
1, a), do CP82, e do art. 120°, nº 1, a), do CP95, aplicada na decisão recorrida, segundo a qual na devolução de questão prejudicial para juízo não penal, prevista naqueles preceitos, compreende-se o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal Constitucional, em processo crime, para apreciação de uma questão de inconstitucionalidade nele suscitada, tendo, assim, como efeito a suspensão [da prescrição] do procedimento criminal na mesma norma estatuída. II. Tal interpretação viola os princípios constitucionais consagrados nos artigos 20°, nºs 4 e 5, 32°, 210°, nº 1, 221° e 280° da CRP, porquanto se entende que o TC é um tribunal penal e que o recurso para ele interposto em nada se confunde com a devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal. III. A fiscalização concreta da constitucionalidade pelo TC é objecto de um recurso verdadeiro e próprio. IV. O TC é uma jurisdição penal e, na fiscalização concreta, não está em causa a decisão de questão prejudicial. V. O TC, quando, em sede de fiscalização concreta, decide recursos em processo penal, apreciando a conformidade com a Constituição, maxime, a penal, é uma jurisdição penal, que aquela instância partilha com os tribunais judiciais e com os tribunais militares. VI. A fiscalização concreta da constitucionalidade, prevista pelo art. 280° da CRP, é objecto de um recurso judicial verdadeiro e próprio, consagrando-se, neste preceito, o direito de recurso para o TC. VII. A interpretação aplicada na decisão recorrida, na medida em que entende o recurso para o TC como mera devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal, desqualifica aquele Tribunal enquanto verdadeira instância de recurso. VIII. Entender a fiscalização concreta concentrada da constitucionalidade como uma devolução de questão prejudicial é recusar a função fiscalizadora de todo e qualquer tribunal e negar que o TC administre especificamente a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (art. 221º). IX. Este entendimento é, igualmente, postergador do princípio segundo o qual, nos feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (art.
204°). X. O recurso para o TC é, assim, uma garantia de defesa em processo criminal, configurando-se como um direito processual penal do arguido, atenta a competência própria e específica do TC. XI. Negar a fiscalização concreta difusa e a fiscalização concreta concentrada, em sede de recurso, é violar o disposto no art. 32° da CRP que consagra as garantias de processo criminal, nomeadamente o direito ao recurso. XII. É à suspensão prevista no art. 7°, nº 2, do CPP que os arts. 119°, nº 1, a), CP82, e 120°, nº 1, a), CP95 se referem – em nada se confundindo com a obrigação que o tribunal penal tem de julgar as questões de constitucionalidade que perante ele sejam suscitadas e com o recurso que dessa decisão sobre constitucionalidade cabe para o TC. XIII. O recurso para o TC é um direito integrador do direito à tutela jurisdicional efectiva e do acesso ao Direito (art. 20° CRP), que não se coaduna com a afirmação ínsita de que sobre certas questões de constitucionalidade pode o tribunal penal não se pronunciar e de que o Tribunal Constitucional é um tribunal não penal. XIV. Entender o recurso previsto no art. 280° da CRP para o Tribunal Constitucional – em processo crime, para apreciação de uma questão de inconstitucionalidade nele suscitada – como uma devolução de questão prejudicial para juízo não penal [...] é um entendimento que o sistema jurídico-constitucional nacional não comporta e nem sequer tolera.”
Por seu lado, o recorrente A. formulou as seguintes conclusões nas alegações respectivas (fls. 2832 e seguintes):
“1. No âmbito destes autos criminais, na Reclamação para a Conferência do despacho do Senhor Conselheiro Relator de 4 de Abril de 2003, pelo ora Recorrente foi suscitada expressamente a questão de que o mesmo, na respectiva decisão, aplicou norma inconstitucional, e/ou interpretada em sentido desconforme à Lei Fundamental, a saber a da alínea a) do nº 1 do art. 119º do CP
82 (artº 120º no CP 95).
2. Sustentou, designadamente, que a remessa dos presentes autos ao Tribunal Constitucional, no que ao arguido A. diz respeito, para aí serem apreciados dois recursos, se inscreveu na pendência normal do procedimento criminal, dentro do sistema penal, que deve subsumir-se na previsão da alínea b) do nº 1 do art.
119º nº 1 do CP 82 (120º no CP 95).
3. E que não se tratou de devolução de uma questão prejudicial para juízo não penal, nos termos da al. a) do mesmo nº 1, que deva escapar ao limite máximo de duração da suspensão previsto no nº 2 do artigo em causa.
4. O instituto da prescrição está sedimentado no nosso ordenamento jurídico e a CRP não é indiferente à política criminal e à dogmática que lhe estão subjacentes, no que toca à repercussão que o decurso do tempo tem quanto à não efectivação do poder punitivo do Estado;
5. As normas constitucionais violadas pela interpretação e aplicação adoptadas da referida norma da alínea a) do nº 1 do art. 120º (ou 119º no CP 82) do Código Penal de 95 são as que propugnam as ideias e os princípios de certeza e de paz jurídica – arts. 2º, 18º nº 2, 27º e 29º nº 2 e 3 –, do estado de direito democrático – art. 2º – e do progressivo esbatimento da necessidade de perseguição penal com o decurso do tempo, à luz dos fins que tal perseguição serve – art. 32º –, bem como as próprias garantias de defesa dos arguidos – art. 32º –, que levam à consagração de um instituto como aquele;
6. É insofismável que estes valores têm o assento constitucional nos termos apontados pelo ora Recorrente e reclamam, por si, que o citado instituto da prescrição tenha de ser visto com um próprio valor constitucional para o comum dos ilícitos, e designadamente o crime como aquele cujo cometimento é assacado ao ora arguido;
7. Sendo razoável que a sociedade, objectivamente considerada, possa entender – ao menos enquanto se mantiverem em vigor na sua essencialidade os preceitos que instituem a prescrição e regem os respectivos prazos, modos de ocorrência e contagem que, uma vez decorrido o tempo previsto nesses preceitos, não reclamam perseguição criminal os agentes de factos delituosos cuja prática de há muito ocorreu, o que inculca que também é razoável que aquela sociedade conte com que aquela perseguição não opere mediante normas ou processos interpretativos de onde resulte, na realidade prática, a ineficácia da actuação do instituto da prescrição.
8. E um valor constitucional assim delineado deve, inequivocamente, ser atendido, e daí dever-se-ão retirar as necessárias consequências quanto à interpretação e aplicação das normas que regem o instituto em análise.
9. Para efeitos da segunda parte da alínea a) do nº 1 do art. 119º do CP 82
(120º no CP 95), por questões prejudiciais, deve entender-se apenas aquelas que não possam ou não devam ser primacialmente resolvidas dentro do sistema penal normal, por estarem necessariamente deferidas a jurisdições de competência material própria e diversa da penal; e não já de questões que podem e devem ser suscitadas no sistema penal normal, no âmbito do processo crime, e que apenas transitam ao Tribunal Constitucional em sede de recurso, atenta a dignidade fundamental das normas postas em causa.
10. E assim é também porque ao Tribunal Constitucional não pode, pelo menos em sede da sua competência de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade, ser retirada de forma redutora a sua qualidade, entre muitas outras, de verdadeiro juízo penal, já que enquanto guardião da Constituição, trata-se de um tribunal materialmente de competência genérica, e por isso, também penal; que foi exactamente como funcionou no âmbito dos presentes autos.
11. Ao interpretar e aplicar a norma da segunda parte da alínea a) do nº 1 do artº 119º do CP 82 (ou 120º do CP 95) no sentido de que a interposição pelo Arguido para o Tribunal Constitucional de dois recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas aplicadas no âmbito do processo penal, na apreciação de questões que afectam directamente os seus direitos e garantias enquanto Arguido, e cuja inconstitucionalidade foi anteriormente por si suscitada e decidida em primeira instância no próprio tribunal que a aplicou, constitui causa impossibilitante da continuação do procedimento criminal por efeito da devolução de uma questão prejudicial para juízo não penal, determinante da suspensão da prescrição, o Tribunal recorrido fê-lo violando em bloco as referidas normas dos arts. 204º, 209º, 211º, 221º, 223º, 224º, 277º e
280º da CRP e do art. 70º da LTC.
12. E, ainda, em colisão com as normas dos arts. 2º, 18º nº 2, 27º, 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa, e princípios nas mesmas vertidos.”
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional formulou, nas contra-alegações que produziu (fls. 2889 e seguintes), as seguintes conclusões:
“1º- O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, ao interpretar a norma que regula as causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal (artigo
119°, n° 1, alínea a) do Código Penal de 1982 e 120°, n° 1, alínea a) do Código Penal de 1995) ampliou inovatoriamente a tipologia das causas de suspensão ali previstas, nelas incluindo a interposição de recursos de fiscalização concreta para o Tribunal Constitucional, para este efeito equiparada à suspensão por prejudicialidade, decorrente do mecanismo instituído pelo artigo 7° do Código de Processo Penal.
2º- Segundo orientação do Plenário deste Tribunal Constitucional, não constitui, porém, questão de constitucionalidade normativa a invocada violação dos princípios da legalidade e da tipicidade por tal processo de integração de
«lacunas», seguido no acórdão recorrido.
3º- É materialmente inconstitucional, por ofensa aos princípios da proporcionalidade e das garantias de defesa, a interpretação normativa que – sem qualquer limite temporal – amplie os prazos de prescrição do procedimento criminal, como consequência de os mesmos se suspenderem enquanto estiverem pendentes perante o Tribunal Constitucional recursos de constitucionalidade.
4º- É incompatível com o artigo 280° da Constituição a expressa qualificação dos mecanismos da fiscalização concreta como traduzindo a devolução ao Tribunal Constitucional de uma questão prejudicial relativa à inconstitucionalidade das normas que integram o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
6. No requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente A. indicou que pretendia a apreciação da conformidade constitucional da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 120º do Código Penal, na redacção emergente da revisão de 1995 (ou 119º, na versão de
1982 do Código Penal), numa interpretação que não chegou a concretizar (supra,
4.).
Tal concretização foi porém efectuada pelo recorrente B., no correspondente requerimento (supra, 4.): tratar-se-ia da interpretação segundo a qual na devolução de questão prejudicial para juízo não penal, prevista naquelas normas [o artigo 119º, n.º 1, alínea a), na versão de 1982 do Código Penal, e o artigo 120º, n.º 1, alínea a), na versão de 1995 do Código Penal], compreende-se o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal Constitucional, em processo crime, para apreciação de uma questão de inconstitucionalidade nele suscitada, tendo, assim, como efeito a suspensão da prescrição do procedimento criminal nas mesmas normas estatuída.
É este, pois, o objecto do presente recurso, até porque o recorrente A., nas alegações que posteriormente produziu (supra, 4.), indicou uma interpretação substancialmente coincidente com aquela que ficou assinalada
(cfr., sobretudo, a conclusão 11ª das suas alegações).
O artigo 120º do Código Penal, na versão de 1995 (e com a redacção emergente da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro), dispõe como segue, na parte que agora interessa considerar:
“Artigo 120º
(Suspensão da prescrição)
1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal; b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo:
[...]
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
[...].”
7. Entendeu o tribunal recorrido (supra, 3. e 1.) que a pendência de um processo no Tribunal Constitucional, decorrente da interposição de um recurso para este Tribunal, consubstanciaria devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal e, como tal, suspender-se-ia a prescrição do procedimento criminal durante tal período de pendência nos termos do artigo 120º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Esta orientação tem como consequência a não aplicação, ao recurso para o Tribunal Constitucional, da regra constante do artigo 120º, n.º 2, do Código Penal – a de que a suspensão da prescrição não pode ultrapassar 3 anos –, pois que esta regra só é aplicável aos casos definidos na alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito.
Assim, a interposição de um recurso para o Tribunal Constitucional teria efeitos diversos, no que ao prazo de duração da suspensão diz respeito, dos da interposição de um outro qualquer recurso em processo penal. Com efeito, neste
último caso, aplicar-se-ia a mencionada regra do artigo 120º, n.º 2, dado que a situação seria subsumível na alínea b) do n.º 1.
Será inconstitucional tal interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido?
8. Antes de mais, cumpre assinalar que o Tribunal Constitucional não tem competência para proceder à interpretação autêntica da norma da alínea a) – ou da alínea b) – do n.º 1 do artigo 120º do Código Penal nem, consequentemente, para definir autoritariamente se os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional se incluem na previsão do primeiro ou do segundo dos preceitos. Assim sendo, não pode também o Tribunal Constitucional criticar ao tribunal recorrido a adopção de uma interpretação que porventura extravase o sentido possível das palavras utilizadas na lei.
Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar se a interpretação normativa perfilhada na decisão recorrida é ou não compatível com a Constituição.
9. Ora, no caso dos autos, ao interpretar a referência às questões prejudiciais constante do artigo 120º, n.º 1, alínea a), do Código Penal como abrangendo as questões de constitucionalidade, adoptou o tribunal recorrido um entendimento acerca das competências do Tribunal Constitucional manifestamente incompatível com o disposto na Lei Fundamental.
Na verdade, o artigo 280º da Constituição prevê com clareza, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, a existência de um recurso para o Tribunal Constitucional e não de uma espécie de mecanismo de reenvio a título prejudicial para este Tribunal, para resolução de questões de constitucionalidade que surjam na pendência de processos judiciais.
O mecanismo de reenvio (mais propriamente designado como sistema de fiscalização por via incidental) é, como refere Carlos Blanco de Morais (Justiça constitucional, Tomo I - Garantia da Constituição e controlo da constitucionalidade, Coimbra, 2002, p. 312), característico das ordens constitucionais alemã, italiana e espanhola, traduzindo-se na “regra segundo a qual, se em qualquer tribunal o juiz estimar oficiosamente, ou a requerimento das partes, que a norma a aplicar é inconstitucional, suspenderá o processo e a questão de constitucionalidade será remetida ao Tribunal Constitucional para decisão. Depois do julgamento do incidente de inconstitucionalidade o processo será retomado no tribunal “a quo”, que não aplicará a norma sindicada se o Tribunal Constitucional a tiver julgado desconforme com a Constituição”.
Mas, na nossa ordem jurídica, não vigora um sistema de fiscalização por via incidental desse teor. São, aliás, vastas as referências da doutrina portuguesa à existência de um recurso para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Assim, e a título meramente exemplificativo, mencione-se, em primeiro lugar, José Manuel M. Cardoso da Costa (A jurisdição constitucional em Portugal, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra, 1992, p. 48), que afirma: “[...] no domínio da fiscalização concreta a competência do Tribunal Constitucional consiste na faculdade de revisão, em via de recurso, das decisões judiciais que hajam conhecido da questão da constitucionalidade (ou legalidade qualificada) duma norma. Está-se, pois, em face de um verdadeiro e próprio recurso judicial, o qual é naturalmente objecto de disciplina processual correspondente”.
Também Armindo Ribeiro Mendes (“Relatório de Portugal”, in I Conferência da Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha, separata do Boletim Documentação e Direito Comparado, n.º duplo 71/72, 1997, p. 741-742) assinala o seguinte: “[...] o sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade é um sistema misto: difuso, na medida em que todos os tribunais são órgãos de fiscalização de constitucionalidade [...]; concentrado, na medida em que o Tribunal Constitucional é o supremo tribunal em questões de constitucionalidade, cabendo-lhe conhecer dos recursos para ele interpostos de decisões de aplicação ou de desaplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade [...], proferidas pelos restantes tribunais das diferentes ordens ou espécies [...].
[...] Não foi, assim, acolhido um tipo de reenvio, a título incidental, da questão de constitucionalidade ao Tribunal Constitucional, com suspensão da instância no tribunal a quo”.
Por seu lado, salienta Miguel Galvão Teles (“A competência da competência do Tribunal Constitucional”, in Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra, 1995, p. 105 ss (p.112-113): “[...] o que há de característico – e julgo que único relativamente a tribunais constitucionais propriamente ditos – consiste na circunstância de, entre nós, o acesso ao Tribunal Constitucional se efectuar por via de recurso, e não por via de incidente (em sentido estrito).
[...] À essência do sistema de recurso pertence a possibilidade de iniciativa, pelas partes ou eventualmente também por quem assegure o interesse público, da submissão da questão de inconstitucionalidade ao Tribunal Constitucional”.
É, assim, inconstitucional, por violação do disposto no artigo 280º da Constituição, a interpretação que constitui o objecto do presente recurso.
10. Atingida esta conclusão, torna-se desnecessário averiguar se tal interpretação também viola outros princípios ou normas constitucionais invocados no processo, quer pelos recorrentes, quer pelo Ministério Público, a saber: o direito do arguido ao recurso (de fiscalização concreta de constitucionalidade), a que alude o artigo 32º, n.º 1; o direito de acção, a que se refere o artigo
20º; as atribuições do Tribunal Constitucional, mencionadas no artigo 221º; a proibição de os tribunais aplicarem normas inconstitucionais, constante do artigo 204º; e ainda as garantias da defesa e o princípio da proporcionalidade, consagrados nos artigos 32º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição, por ampliar, sem qualquer limite temporal, os prazos de prescrição do procedimento criminal.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 280º da Constituição quanto à competência do Tribunal Constitucional, a norma contida no artigo 120º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de
1995 (actualmente com a redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro), ou no artigo 119º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1982, na interpretação segundo a qual, na devolução de questão prejudicial para juízo não penal, aí prevista, se compreende o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal Constitucional, em processo crime, para apreciação de uma questão de inconstitucionalidade nele suscitada;
b) Consequentemente, conceder provimento ao presente recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o aqui decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida