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Processo n.º 640/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. vem recorrer para o Tribunal Constitucional, “ao abrigo da al. b) [do n.º
1] do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro”, do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de Maio de 2003, que negou provimento ao recurso que aquele havia interposto da sentença de 20 de Dezembro de 2000, do Tribunal Judicial de Braga, que o condenara pela prática de
“um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, do tipo previsto e punível pelo artigo 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias,
30º, n.º 2, e 79º do Cód. Penal, na pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de quatro anos e seis meses, subordinada à condição de pagar à Administração Fiscal, no mesmo prazo, a quantia global correspondente às prestações tributárias e acréscimos legais.” Segundo o requerimento de recurso, pretende obter-se a
“apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do art. 24º do DL n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro, bem como do art. 105º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, por violação do disposto nos arts. 8º, n.º 1, 27º, n.ºs 1 e 2, 18º, 63º e
204º, todos da Constituição da República Portuguesa, que o Recorrente suscitou no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães.”
2.Alegando neste Tribunal, concluiu assim o recorrente
«O CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL A. Todo o edifício de tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal “assenta no pressuposto (...) que o Estado: a. “Adquiriu o direito de propriedade sobre a coisa chamada dinheiro”; b. “Confiou essa coisa na mão do abusador, que assim se constituiu em possuidor precário ou detentor”; c. “E que este, invertendo o título de posse sobre essa coisa, a fez sua”; O REGIME PATRIMONIAL DAS RELAÇÕES DE IMPOSTO
1. AS RELAÇÕES TRIBUTÁRIAS DE IVA
1.1 - A constituição das relações tributárias de IVA B. O sujeito passivo de que o CIVA fala não é o devedor desse imposto. O devedor
é o consumidor. O sujeito passivo desempenha um duplo papel em favor do Estado: o de financiador, porque lhe adianta fundos monetários a título gratuito, e o de liquidatário e cobrador de impostos em favor do Estado, actividade que desempenha a titulo gratuito e sob coacção civil e penal; C. O objecto da relação tributária é a prestação de uma quantia de dinheiro que o Estado exige, a título de imposto sobre o consumo, mas cujo pagamento ou entrega não exige ao consumidor, mas aos agentes que intervêm no processo produtivo. O consumidor é que é o sacrificado com esse imposto, mas não é responsável pelo seu pagamento. Por isso, a prestação paga pelo sujeito passivo
é um adiantamento que o Estado lhe exige, por conta dum crédito futuro sobre, em regra, um sujeito indeterminado; D. O agente que pratica o acto tributário em epígrafe é mais do que agente putativo, pois para além de não ter celebrado qualquer acordo com o Estado para praticar o acto de liquidação do imposto e por isso não foi regularmente empossado, foi também coagido a exercer uma função estatal, que não quis mas a que não pôde furtar-se; E. O conteúdo – ou objecto imediato da relação jurídica – é o conjunto dos direitos e deveres das partes (os sujeitos) da relação jurídica, correspondendo a cada sujeito da relação um dever do outro sujeito; F. A relação tributária de IVA é uma relação jurídica continuada e duradoura que constitui e extingue através das declarações – em documento de formato oficial – de início, alteração ou cessação da actividade;
1.2 - O regime de pagamento dos tributos de IVA ao Estado. G. O regime de pagamento do IVA demonstra a impossibilidade prática e teórica do crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao não pagamento do IVA; H. A relação de IVA entre um qualquer agente económico e o Estado desenvolve-se através de operações de débito e crédito, de modo muito próximo do contrato de conta corrente: está aqui em causa o regime de pagamento dos saldos de IVA que o sujeito substituto deve ao Estado, bem como o regime de pagamento do Estado ao sujeito substituto, quando este é credor do Estado.. I. As operações de liquidação do IVA têm um regime formal especial: são obrigatoriamente feitas em documentos (facturas, ou equivalentes); os pagamentos dos saldos são descritos em formato oficial, emitidos previamente pela Administração Fiscal; os prazos de pagamento estão previstos na lei. J. São, ainda, obrigatoriamente registadas nos livros de comércio do agente económico, previstos no CIVA e no Plano Oficial de Contabilidade aprovado pelo Decreto-Lei n.º 410/89, de 21.11, e alterado pelos Decretos-Lei n.º 238/91, de
2.7, e n.º 127/95, de 1.6.
1.3 – A natureza patrimonial-obrigacional das relações jurídicas de IVA K. Quer aquando do pagamento a contado quer no pagamento a prazo, a análise das contas 2432, 711 e 11 do POC-Plano Oficial de Contabilidade mostra-nos que o Transmitente não é depositário de IVA: quando recebe o valor de IVA, adquire a propriedade sobre esse dinheiro.
2. A RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL POR SUBSTITUIÇÃO OU SUBSIDIÁRIA
2.1 - A constituição da responsabilidade patrimonial por substituição ou subsidiária. L. Os devedores substitutos e subsidiários são aqueles que respondem pelas dívidas do devedor originário, por razões expressas nas leis tributárias, e aqueles que o Estado sujeita à execução da liquidação, cobrança e entrega de tributos devidos por devedores originários;
2.2 – Incumprimento das obrigações dos devedores substitutos. Consequências patrimoniais. M. Quando a pessoa colectiva não paga aqueles tributos e a execução contra o seu património se frustrou, no todo ou em parte, por falta absoluta ou parcial de bens penhoráveis, a lei responsabiliza outras pessoas pelo pagamento dessas dívidas. N. São os administradores, gerentes ou directores os sujeitos que respondem subsidiariamente pelas dívidas contraídas pela pessoa colectiva e respondem, como devedores subsidiários, através de disposições do seu património. O. A responsabilidade do devedor subsidiário constituiu-se pela via da reversão, e funda-se na culpa do responsável (artºs 23º e 24º da L.G.T.): mas aquele não é o devedor principal ou directo, pois que a sua relação com a Administração Fiscal não é uma relação patrimonial-obrigacional; é uma relação de confiança. P. A responsabilidade subsidiária não decorre pois de incumprimento obrigacional mas da violação da confiança que o responsável mereceu. É por isso uma responsabilidade extra-contratual. Q. Assim sendo, o incumprimento do devedor não é imputável ao responsável subsidiário. A este só pode ser imputável a causa da insuficiência do património e a culpa pela ocorrência dessa causa; ou seja, ao responsável subsidiário só pode ser imputada a responsabilidade pela insuficiência do património da pessoa colectiva se tiver sido ele quem, intencional e conscientemente, provocou essa causa: mas esses factos não podem ser meras alusões aos efeitos, mas devem ser especificados, de modo a traduzirem ou integrarem as hipóteses do art.º 8º do C.P.E.R.E.F ou outros ilícitos criminais. R. A culpa que aqui se exige é uma culpa ética. É a confiança, sem a qual não é possível a vida em comunidade, que é violada. Não pode ser a culpa objectiva
(que é uma forma imprópria de falar de culpa, porque tem a natureza do pragmatismo ou utilitarismo), que assenta na ideia de que o responsável, objectivamente culpado, tem uma contrapartida por essa culpa. S. Dessa forma, e assentando neste conceito de culpa, a responsabilidade subsidiária, para ser exigida, não pode dispensar a Administração Pública do
ónus de alegar e provar os factos constitutivos da responsabilidade subsidiária, bem como a culpa do agente; em procedimento administrativo que deve decorrer com todas as garantias de defesa do responsável subsidiário. T. O art.º 24º, n.º 1, da LGT supõe três hipóteses de responsabilidade subsidiária das pessoas referidas no corpo desse n.º 1, por dívidas tributárias, quando o património do devedor principal seja insuficiente para pagar as dívidas deste. U. A lei supõe que os representantes e fiscalizadores das pessoas colectivas têm uma dupla tendência, no exercício dessa actividade:
- a de respeito pelos credores das pessoas colectivas que representam ou fiscalizam;
- o de desrespeito pelos créditos resultantes dos tributos devidos por essas pessoas colectivas. V. Verificando-se os factos de qualquer uma daquelas três hipóteses do art.º
24º, n.º 1, da LGT, mas antes do apuramento dos factos em juízo, os responsáveis são, simultaneamente, presuntivos inocentes perante uma categoria de credores e presuntivos culpados perante outra categoria. O que confirma que os aludidos responsáveis, ao assumirem as funções referidas, passam a ser classificados como uma categoria de pessoas que têm a tendência de praticar actos ilícitos para defraudar os credores tributários.
W. Mesmo na interpretação mais favorável à Administração Fiscal, o comportamento desta, quando denuncia criminalmente os devedores subsidiários, sem previamente desencadear o processo de reversão fiscal e aí provar a culpa desse devedor, é absolutamente incompreensível, porque ilícito. JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL X. “A privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual”.
1) A jurisprudência constitucional não faz uma exemplificação desses “outros factos” que “se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual” e que assim permitem ou legitimam a prisão por dívidas
2) O conceito de dívida está no centro do problema: a dívida é uma obrigação de prestar dinheiro, coisa ou facto que pertencem ao devedor, e que, na esfera jurídica do titular do correspectivo direito (o credor), apenas está inscrito no seu activo patrimonial a pretensão ou expectativa de que aquele lhe entregue o que ainda lhe não pertence, e que só pode entregar caso possua no seu património o que o credor pretende (mas ainda a este não pertence).
3) Não é a incapacidade de cumprimento da dívida que constitui o devedor insolvente em responsabilidade penal; o que o constitui nessa responsabilidade é a prática culposa dos factos tipificados que atentam contra os bens
ético-jurídicos do crédito e da confiança que o sustenta. A incapacidade de cumprir, desacompanhada desses elementos, releva apenas nos domínios do direito civil.
4) As normas de fonte internacional – o art.º 11.º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos e o art.º 1.º do Protocolo n.º 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – não consagram a prisão por dividas quando à incapacidade de incumprimento se junta outro facto. O que essas normas dizem é que o incumprimento por incapacidade patrimonial do devedor não é
“tábua-de-salvação” aos que não respeitam o próximo, com isso também não quis dizer que, com a sua inclusão, abriu o “dique” aos desvarios legislativos.
Y. “A tutela penal, no âmbito de um Estado de direito material, de natureza social e democrático, deve intervir com os instrumentos próprios da sua actuação apenas quando se verifiquem lesões insuportáveis ou intoleráveis da vida em comunidade, por forma a não se permitir o livre desenvolvimento da pessoa”.
1) O Estado apresenta-se como um produtor e prestador de serviços, e que, como tal, se coloca, no meio da actividade económica, cobrando os preços da prestação pela via dos impostos e taxas.
2) Em situações limite de “lesões insuportáveis ou intoleráveis da vida em comunidade”, o Estado não exerce qualquer tipo de acção penal.
3) Juridicamente a Administração Fiscal tem o que os credores comuns não têm: o acto tributário goza da (inconstitucional) presunção de legalidade; o Estado goza do (inconstitucional) beneficio da execução prévia; a Administração Fiscal executa e penhora sem ter de recorrer aos tribunais; tem as medidas preventivas do arresto ao seu dispor; tem as garantias patrimoniais comuns também ao seu dispor
4) Contudo, não usa tempestivamente esses instrumentos, deixando arrastar as situações de incumprimento e contribuindo, decisivamente, para a sua existência. Z. “(...) as razões aduzidas para a ‘proibição da prisão por dívidas’ não se aplicam quando a obrigação não deriva de contrato mas da lei”.
1) Todas as obrigações, pelo menos mediatamente, têm a sua causa ou fonte na lei, mesmo os contratos, a lei é que concede o efeito jurídico-obrigacional, e toda a obrigação concreta não dispensa a verificação de um facto jurídico. Por isso, a lei, só por si, não é fonte de uma obrigação jurídica, como também o contrato não o é.
2) A asserção da jurisprudência constitucional favorece outras confusões quando diz que a “obrigação não é meramente contratual, mas antes deriva da lei”. Essas confusões resultam essencialmente da introdução no texto do advérbio “meramente” e do advérbio “antes”. “Meramente” significa “simplesmente”, “unicamente”,
“puramente”; “antes” significa “em tempo ou lugar anterior”, “primeiramente”,
“mais cedo”, “pelo contrário”.
3) Se a obrigação não é “meramente contratual”, então quis-se dizer que também
é, porque o advérbio “não” retira-lhe a qualidade de “simples”, “único” e
“puro”. Ou seja, é uma obrigação não só não contratual, mas também contratual.
4) Mas se essa obrigação, que também é contratual, é “antes” derivada “da lei”, por também ser contratual, não é o contrário de contratual, mas primeiramente resultante da lei. AA. “(...) o que importa para a punibilidade do comportamento (...) é a apropriação dolosa da referida prestação”
1) Nas relações de IVA são as leis tributárias e o Plano Oficial de Contabilidade que dizem que o dinheiro recebido pelo devedor substituto é deste devedor.
2) A afirmação de que os devedores dos impostos, que o legislador configurou como de abuso de confiança, praticam a apropriação da prestação, é uma afirmação que não resiste à mais elementar análise crítica, porque se trata de uma impossibilidade prática e teórica. Do ponto de vista epistemológico, pela contradição que encerra, é um absurdo. EM RESUMO BB. Na construção do tipo de crime p. e p. pelo artº 24º do DL nº 20-A/90, de
15/1 – bem como do artigo 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias –, o legislador teve, essencialmente, em vista a tutela dos interesses patrimoniais do Estado, mais precisamente, o seu erário. CC. As disposições em causa são violadoras das normas do artigo 8º, nº 1, e por compreensão lógica, do artigo 27º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, bem como, e ainda, dos artºs 18º e 63º do mesmo diploma e ainda do art.º 11.º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos e do art.º
1.º, do Protocolo n.º 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que, como tal, não podem ser aplicadas pelos Tribunais, nos termos do seu artigo
204º.» Por sua vez, as alegações do Ministério Público concluem do seguinte modo:
“1 – No crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT e anteriormente pelo artigo 24º do RJIFNA, não é violado o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela impossibilidade de cumprimento de uma obrigação contratual, na medida em que o dever de pagar o imposto deriva fundamentalmente da lei, sendo tal dever essencial para a realização dos fins do Estado, não só para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, como também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, conforme constitucionalmente consagrado.
2 – O legislador ordinário goza de uma ampla margem de discricionariedade na criminalização de determinados comportamentos e só em situações limites se poderão considerar violados os princípios da necessidade e proporcionalidade estabelecidos no artigo 18º, n.º 2, da Lei Fundamental, não se apresentando a punição criminal da conduta integradora do abuso de confiança fiscal como manifestamente excessiva.
3 – Não deverá, assim, proceder o presente recurso.”. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visa, segundo o respectivo requerimento, a apreciação da conformidade constitucional do artigo 24º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro, e do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
É o seguinte o texto destes preceitos:
“Artigo 24.º Abuso de confiança fiscal
1 – Quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, e estando legalmente obrigado a entregar ao credor tributário a prestação tributária que nos termos da lei deduziu, não efectuar tal entrega total ou parcialmente será punido com pena de multa até 1000 dias.
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 – É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 – Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 50 000$00, a pena será a de multa até 180 dias, e se for superior a 1
000 000$00, a pena não será inferior a 700 dias de multa.
5 – Para instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
6 – Se a obrigação da entrega da prestação for de natureza periódica, haverá tantos crimes quantos os períodos a que respeita tal obrigação.”
“Artigo 105.º Abuso de confiança
1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 – É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
5 – Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de
240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 – Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder €
1 000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
7 – Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.” Ora, como resulta do seu artigo 2º, alínea b), esta Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, revogou o RJIFNA, no qual se continha a primeira das normas transcritas. Por outro lado, consultando os autos, verifica-se que, apesar de o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães recorrido se ter pronunciado sobre a conformidade constitucional de ambas as normas transcritas (rectius, dos seus n.ºs 1), na realidade apenas foi aplicado o artigo 105º do RGIT, pois foi com base nessa norma (mais precisamente, com base no seu n.º 1) que o ora recorrente havia sido condenado na 1.ª instância, tendo sido mantida tal condenação. Há, pois, que excluir do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da transcrita norma do RJIFNA, por ela não ter sido aplicada pela decisão recorrida. E, quanto ao artigo 105º do RGIT, há que delimitar o âmbito do presente recurso ao seu n.º 1, não só por ser essa a norma aplicada, que fundamentou a condenação do arguido, como por ser apenas a ela que o recorrente se refere – cfr., neste sentido, as transcrita conclusão BB) das alegações do recorrente. O presente recurso tem, assim, por objecto apenas a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 105º, n.º 1, do RGIT, na medida em que prevê o crime de abuso de confiança fiscal, e não já – importa notá-lo –, quaisquer normas sobre “responsabilidade patrimonial por substituição ou subsidiária” (como o artigo 24ºda Lei Geral Tributária), a que o recorrente também alude nas suas alegações. Segundo o recorrente, esta norma é inconstitucional por, no seu entendimento, consagrar um caso de “prisão por dívidas” – ou melhor, de prisão com fundamento na impossibilidade de cumprimento de uma obrigação contratual, parecendo defender, com base na interpretação de asserções de acórdãos do Tribunal Constitucional sobre a matéria, que a obrigação em causa seria, pelo menos, também contratual (e não apenas resultante da lei).
4.Como salientam correctamente o recorrente e o Ministério Público nas suas alegações, o Tribunal Constitucional teve já ocasião de se pronunciar por várias vezes sobre a conformidade constitucional da norma que previa o crime de abuso de confiança fiscal com a “proibição da prisão por dívidas” – embora apenas a propósito do citado artigo 24º, n.º 1, do RJIFNA. Assim, no Acórdão n.º 312/00 (publicado no DR, II série, de 17 de Outubro de
2000), depois de se analisar os elementos constitutivos deste crime, segundo o artigo 24º do RJIFNA e a proibição de privação da “liberdade pela única razão de
[se] não poder cumprir uma obrigação contratual”, nos termos do artigo 1º do Protocolo n.º 4 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Constituição da República – salientando-se, como se havia feito no Acórdão n.º
663/98 (in DR, II Série, de 15 de Janeiro de 1999), que “a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual” –, concluiu-se, depois da análise dos os valores e os bens jurídicos em causa na criminalização das infracções fiscais:
“(…) No caso em apreço, a obrigação em causa não é meramente contratual, mas antes deriva da lei – que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em questão. Por outro lado, nestas situações, o devedor tributário encontra-se instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário. Na verdade, no IVA e no imposto sobre os rendimentos singulares (IRS), os respectivos valores, são deduzidos nos termos legais, devendo depois o respectivo montante ser entregue ao credor tributário que é o Estado. Perante a norma em questão há assim que levar em conta este aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação contratual porque decorre da lei fiscal.” E concedeu-se ainda relevo à circunstância de que
“a impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança fiscal; a não entrega atempada da prestação, torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do artigo 24º, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação”. Concluiu-se, assim, que a norma constante do artigo 24º do RJIFNA não violava o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual. Esta decisão de não inconstitucionalidade, e respectiva fundamentação, foram retomadas pelo Acórdão n.º 389/01 – que confirmou decisão sumaria do relator nesse sentido – e ainda, quanto ao caso paralelo do artigo 27º-B do RJIFNA
(sobre o crime de abuso de confiança em relação à segurança social), pelo Acórdão n.º 516/00 (publicado no DR, II série, de 31 de Janeiro de 2001), onde se pode ler que
«(…) Não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados com dolo (artigo 13º do Código Penal); se não se provar o dolo mas apenas a negligência, pode existir a contra-ordenação prevista no artigo 29º, nº 2, do RJIFNA. A obrigação em causa não é meramente contratual, antes deriva da lei – que impõe a entrega pelas entidades empregadoras às instituições de segurança social do montante das contribuições que aquelas entidades tenham deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas. Nestas situações, as entidades empregadoras encontram-se instituídas 'em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário'. A mera impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança em relação à segurança social. A não entrega atempada da prestação torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do artigo 24º do RJIFNA, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação. A situação pode aproximar-se do crime de abuso de confiança previsto e punido pelo Código Penal (artigos 205º a 207º), que é um crime contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade.» Concluiu-se, pois, também, no sentido da não inconstitucionalidade (neste sentido, para o referido artigo 27º-B do RJIFNA, v. também o acórdão n.º 427/02)
5.As considerações que se contêm na fundamentação dos arestos citados mantêm-se aplicáveis mesmo em face da norma do artigo 105º, n.º 1, do RGIT, que prevê o abuso de confiança fiscal (e parafiscal, que não está agora em causa – cfr. o n.º 3 do citado artigo). Designadamente, continuam a ser elementos constitutivos deste crime a existência de uma obrigação de entrega à administração tributária de uma prestação tributária deduzida nos termos da lei e a falta dolosa dessa entrega – embora tenha desaparecido da redacção do tipo legal a exigência de “intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida” –, não se prevendo a punição por negligência. Por outro lado, é claro que, como resulta aliás logo da redacção do preceito, a obrigação em causa não tem por fonte qualquer contrato, e antes deriva da lei. Trata-se, aliás, de um dever que, como salienta o Ministério Público, é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado. Tem, pois, de tratar-se da falta dolosa de entrega à administração fiscal de uma prestação tributária deduzida nos termos da lei, podendo dizer-se, em casos como o presente (em que está em causa a falta de entrega de Imposto sobre o Valor Acrescentado cobrados) – tal como, para as contribuições para a segurança social, se disse no citado Acórdão n.º 516/00 –, que o obrigado se encontra instituído “em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário”. Assim, a mera impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança em relação à administração tributária. O não cumprimento da obrigação de entrega é elemento do tipo, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a falta dolosa de entrega da prestação, podendo a situação continuar a ser aproximada da do crime de abuso de confiança previsto e punido pelo Código Penal (artigos 205º a 207º) – um “crime contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade”.
6.Nestes termos, mesmo em face da nova redacção do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal (e da eliminação do elemento subjectivo que se traduzia na
“intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida”), cumpre reiterar a fundamentação dos citados arestos – designadamente, a dos citados Acórdãos n.ºs 312/00 e 516/00. E, uma vez que o recorrente não adianta argumentos novos, susceptíveis de infirmar tal fundamentação – sendo claudicante, designadamente, a tentativa de mostrar que a obrigação de entrega de quantias cobradas a título de IVA tem também por fonte um contrato, e não apenas a lei –, conclui-se no sentido da inexistência de violação, por parte do artigo 105º, n.º 1, do RGIT, do princípio de que ninguém pode ser privado da liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, devendo negar-se provimento ao presente recurso. II. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias; b) Por conseguinte, negar provimento do recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita; c) Condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 20 de Janeiro de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos