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Proc. n.º 745/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A A., ora recorrente, requereu a falência da sociedade B., vindo na sequência de tal processo a ser reclamados os créditos pelos credores daquela sociedade.
Doze credores da sociedade – a seguir identificados como C. e Outros
– reclamaram a quantia global de 136.956.890$00, invocando que eram titulares de créditos provenientes do incumprimento pela requerida B. de um contrato-promessa, celebrado em 1 de Maio de 1995, de compra e venda de um imóvel composto por terreno e um edifício em construção, sito na freguesia de
----------------, e, bem assim, que gozavam do direito de retenção sobre o mesmo imóvel.
Já no decurso do processo falimentar, em 1 de Março de 1999, D. e mulher propuseram uma acção, ao abrigo do disposto no artigo 205º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, para o reconhecimento de um crédito, no valor de 23.000.000$00, resultante, tal como o dos reclamantes acima indicados, do incumprimento pela sociedade falida de um contrato-promessa de compra e venda de um prédio urbano identificado nos autos, sito na ------------------, freguesia de ---------------------.
A A. impugnou os privilégios indicados pelos reclamantes, com fundamento em que os créditos reclamados não gozavam do direito de retenção e que o seu crédito tinha prioridade sobre aqueles, por resultar de hipoteca constituída anteriormente à celebração dos contratos-promessa.
Na referida impugnação a A. arguiu:
– a nulidade dos contratos-promessa invocados por preterição das formalidades legais;
– a nulidade da transacção efectuada entre a falida e os primeiros doze reclamantes quanto ao reconhecimento da existência do direito de retenção;
– a inconstitucionalidade material das normas constantes dos artigos
442º, n.º 2, e 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, que estabelecem o direito de retenção a favor do promitente-comprador de prédio urbano ou de sua fracção autónoma;
– a inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de
18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro.
Proferida sentença em 1ª Instância no processo de verificação e graduação de créditos, foram graduados, em primeiro lugar, os créditos reclamados acima indicados e, em segundo lugar, o crédito da A..
Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 2 de Dezembro de 1999 (fls. 420 a 434), negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2. A A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado nas alegações que então produziu (fls. 448 a 472), entre outras, as seguintes conclusões:
“[...]
X – Não reconhecendo legitimidade à recorrente para arguir a nulidade, como o fez o Senhor Juiz “a quo” na sentença recorrida, foi-lhe negado o direito à tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, direito fundamental constitucionalmente consagrado no n.º
1 do artigo 20º da C.R.P.
XI – Enferma de inconstitucionalidade em concreto a sentença recorrida por violação do n.º 1 do artigo 20º da C.R.P.
XII – Padece, também, de inconstitucionalidade, em concreto, a aplicação aos presentes autos do entendimento vertido no Assento do S.T.J. de 28 de Junho de 1994, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 20º da C.R.P.
[...]
XXIV – Os diplomas legislativos – Decretos-Leis 236/80, de 18 de Julho e 379/86, de 11 de Novembro – que vieram conceder o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de sua fracção autónoma, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa são inconstitucionais por tal direito ofender os interesses patrimoniais legitimamente constituídos, no caso presente o direito de hipoteca constituída e registada em data anterior à invocação de tal direito de retenção.
XXV – A preferência resultante do direito de retenção sobrepõe-se de forma atentatória à hipoteca, e, no caso dos presentes autos, causa elevados prejuízos à recorrente face ao valor dos créditos e ao valor de venda do imóvel, ainda não concluído e muito degradado, reduzindo ou eliminando na prática para a recorrente a sua garantia patrimonial.
XXVI – É assim violado, em concreto, no caso dos presentes autos, o princípio de consagração constitucional da confiança do comércio jurídico, bem como o princípio constitucional ínsito no artigo 2º da C.R.P. (confiança).
XXVII – As normas constantes do n.º 2 do artigo 442º e alínea f) do artigo 755º, ambas do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei
379/86, de 11 de Novembro, são materialmente inconstitucionais, sendo inaplicáveis à situação concreta dos presentes autos.
[...]
XXXI – O artigo 442º do C. Civil sofreu duas alterações introduzidas por cada um dos referidos diplomas e a alínea f) do artigo 755º do mesmo Código foi introduzida pelo Dec-Lei de 1986, que criaram um direito na esfera jurídico-patrimonial do promitente-comprador.
XXXII – Trata-se de matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais que são da competência exclusiva da Assembleia da República e para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria carecia de autorização do ente legislador competente.
XXXIII – O Governo, ao fazer alterações e inovações sobre tal matéria, sem que estivesse legalmente autorizado para o fazer, invadiu uma área que lhe estava constitucionalmente vedada, violando a esfera da competência legislativa de outro órgão de soberania.
XXXIV – Verifica-se uma inconstitucionalidade orgânica por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da C.R.P. – actual artigo 165º, n.º 1, alínea b) –, pois é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre tal matéria, salvo autorização ao Governo (competência relativa), não constando tal autorização ao Governo nos relatórios de tais diplomas.
XXXV – O n.º 2 do artigo 442º e a alínea f) do artigo 755º, ambos do C. Civil, são normas inconstitucionais, bem como os próprios diplomas de onde emanam, não podendo ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial.
[...]
LII – No acórdão recorrido foram violados os artigos 2º e n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, os artigos 205º, n.º 1,
220º, 286º, 375º, n.º 3 do artigo 410º e artigo 1249º, todos do C. Civil, o n.º
1 do artigo 661º do C.P.C. e o n.º 1 do artigo 164º-A e artigo 192º, ambos do C.P.E.R.E.F..
[...].”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Outubro de 2000
(fls. 501 a 507), negou provimento à revista, confirmando o anteriormente decidido pela Relação.
Lê-se no texto desse acórdão, para o que aqui releva:
“[...]
No entender da recorrente a alteração introduzida pelo DL 379/86 de
11-11, com a modificação do art. 755 n.º 1 al. f), assim como o n.º 3 do art.
442, redacção do DL 236/80, sofrem de inconstitucionalidade orgânica. Aquelas alterações legislativas, consagrando em termos alargados a protecção do promitente-comprador e ao dar-lhe o direito de retenção sobre o prédio que lhe tenha sido entregue, com preterição dos outros credores com outras garantias já constituídas, designadamente o credor hipotecário, legislou em matéria de direitos e garantias patrimoniais. O Governo só o podia fazer com autorização da Assembleia da República, autorização que não dispunha quando legislou sobre tal matéria (art. 168 n.º 1 al. b) da CRP).
Com o devido respeito por opinião contrária, o título II da CRP, subordinado à epígrafe «direitos, liberdades e garantias», não abrange nos seus três capítulos qualquer matéria relacionada com a que vem tratada nos autos.
Entende o Tribunal Constitucional (Ac. 329/99 de 2-6-99, DR II série de 20-7-1999) que apesar de o «direito de propriedade privada ser de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver natureza análoga aos direitos liberdades e garantias». E como direito de dimensão análoga indica o caso da expropriação por utilidade pública.
Entendemos, por nossa parte, que não se inclui em tal matéria a concessão pelo legislador dum privilégio creditório, que apenas corrige a graduação dos direitos dos credores.
Soçobra a argumentação neste aspecto.
No que se reporta à inconstitucionalidade material também se não vê que ela exista.
[...]
[...] só as normas com que as partes não contavam e que afectem de forma inadmissível e arbitrária ou excessivamente onerosa as expectativas com que os cidadãos contavam, é que violam o princípio da confiança.
Não é esse o caso dos autos porque a A. recorrente já sabia da existência dos DL apodados de inconstitucionais e deveria contar com a possibilidade de surgirem os contratos-promessa e que, com a tradição dos andares, podiam ser constituídos direitos de retenção dos promitentes compradores.
Daí que se não veja que haja tal inconstitucionalidade.
[...]
Também se entende que a invocação dum assento não gera inconstitucionalidade. Só assim aconteceria se essa invocação tivesse o significado de vincular o tribunal à interpretação nele contida.
Não é isso que sucede. A invocação do assento não traduz mais do que a invocação duma orientação interpretativa que se baseia na disposição legal em causa e a que o julgador aderiu.
[...].”
3. É deste acórdão que a A. vem recorrer para o Tribunal Constitucional
(requerimento de fls. 511 e seguinte), ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a inconstitucionalidade das seguintes normas:
– da norma contida no n.º 3 do artigo 410º do Código Civil, por, na esteira da interpretação que é feita no Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Junho de 1994, negar ao credor hipotecário, com hipoteca registada anteriormente à celebração do contrato-promessa, legitimidade para arguir nulidades do contrato-promessa, violando o n.º 1 do artigo 20º da Constituição;
– das normas contidas no n.º 2 do artigo 442º e na alínea f) do n.º
1 do artigo 755º, ambas do Código Civil, por tais normas, ao concederem o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma, preterirem o credor hipotecário com hipoteca registada em data anterior à invocação do direito de retenção, ofendendo assim direitos patrimoniais legitimamente constituídos e violando o princípio da confiança que decorre do princípio do Estado de direito constante do artigo 2º da Constituição;
– do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, e do Decreto-Lei n.º
379/86, de 11 de Novembro, por terem sido emitidos pelo Governo sem autorização legislativa, invadindo a reserva de competência da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, em violação do disposto no artigo
168º, n.º 1, alínea b), da Constituição [actual artigo 165º, n.º 1, alínea b)].
O recurso foi admitido por despacho de fls. 513 v.º.
4. Nas alegações que apresentou neste Tribunal (fls. 517 a 533), a recorrente formulou as seguintes conclusões (considerada já a rectificação a que procedeu através do requerimento de fls. 535 e 536):
“I - A norma contida no n.º 3 do artigo 410º do Código Civil, com a interpretação que lhe foi dada no Acórdão recorrido, que vai no sentido de que o credor hipotecário não pode invocar a inobservância de formalidades legais do contrato-promessa de compra e venda relativamente a um bem imóvel, que lhe esteja hipotecado para garantia do seu crédito, cuja hipoteca foi constituída em data anterior à da celebração do referido contrato, é materialmente inconstitucional por violadora dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do acesso ao direito e aos tribunais consagrados no n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa; II - Pelo que, pelas razões aduzidas na conclusão anterior, é inconstitucional o Assento n.º 15/94 do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Junho de 1994, invocado no acórdão recorrido, no qual se expendeu o entendimento de que o credor hipotecário não podia invocar a nulidade do contrato-promessa de compra e venda, ferido de vícios de ordem formal, e veio a consagrar uniformização jurisprudencial nesse sentido; III - A garantia constitucional do direito de defender o seu património implica e acarreta necessariamente consigo a garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito e, consequentemente, o recurso a todos os meios de defesa em direito permitidos;
[...] IV - As normas contidas no n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, e a alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do mesmo diploma legal, ao abrigo das quais foi concedido o direito de retenção aos promitentes compradores reclamantes nos autos, quando invocadas perante o credor hipotecário, que tem a seu favor um direito de hipoteca, devidamente registado em data anterior à constituição daquele direito, criou uma situação injustificada e de privilégio, com o consequente prejuízo da ora recorrente credora hipotecária, são materialmente inconstitucionais por violarem os princípios da proporcionalidade, protecção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário, ínsitos no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa; V - Os Decretos-Lei n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, criados por acto legislativo do Governo, sem que tivesse sido precedido da competente autorização legislativa da Assembleia da República, por ser da exclusiva competência desta legislar sobre tal matéria, pois que estava em causa a criação de direitos análogos aos direitos de propriedade, são inconstitucionais (inconstitucionalidade orgânica), por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP; [...] donde resulta que as referidas normas estão feridas de inconstitucionalidade por violação do princípio do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2º da CRP; VI - Face à inconstitucionalidade de tais normas, que deveria ter sido decretada no acórdão recorrido, os créditos da recorrente deveriam ter sido graduados em primeiro lugar logo imediatamente às custas, que saem precípuas do produto da venda; VII - Donde resulta que as aludidas normas estão feridas de inconstitucionalidade por violação do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da CRP, não podiam as mesmas ter sido invocadas e aplicadas no acórdão recorrido; VIII - Encontram-se, pois, violados os preceitos constitucionais contidos nos artigos 2º, 20º e 165º, n.º 1, alínea b), da CRP.”
Também os recorridos alegaram (fls. 565 a 589), tendo apresentado extensas conclusões onde sustentaram a não inconstitucionalidade do artigo 410º, n.º 3, bem como do artigo 442º, n.º 2, e do artigo 755º, n.º 1, alínea f), todos do Código Civil. Os recorridos concluíram ainda que não existe qualquer inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e
379/86, de 11 de Novembro.
Antes dessas conclusões, porém, os recorridos suscitaram uma questão prévia de não conhecimento do recurso, quanto à norma constante do artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, nos seguintes termos:
“1. A recorrente diz que o Supremo Tribunal de Justiça interpretou tal norma no sentido de que só o promitente-comprador goza do direito de invocar vício de ordem formal de que se encontrem feridos tais contratos (de promessa de compra e venda), ou da inobservância de formalidades legais ou de formalidades essenciais
à validade do contrato.
2. O STJ, contudo, interpreta tal norma em sentido bem diverso, que é o seguinte: o A., enquanto credor hipotecário e terceiro relativamente ao contrato-promessa de compra e venda, não pode invocar a nulidade decorrente dos vícios formais indicados no artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, não se tendo pronunciado quanto a quaisquer outros vícios formais nomeadamente quanto a formalidades essenciais à validade do contrato.
3. Não sendo a interpretação do Supremo Tribunal de Justiça aquela que a recorrente diz e que constitui objecto do presente recurso, não há que conhecer de tal pretensa inconstitucionalidade do referido art. 410º, n.º 3 do Código Civil.”
Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada, a recorrente respondeu (fls. 629 a 630):
“1. No acórdão recorrido é decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça «... que a A. recorrente pode defender os seus interesses, invocando direitos próprios, mas não a nulidade do contrato (ou contratos) pelo vício de forma invocado, de acordo com a orientação que foi perfilhada no assento de 28-6-1994, BMJ 444-109) e que correspondia já ao entendimento deste Tribunal (ver, v. g., Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 11-6-1992, BMJ 418-744). Esses interesses conflituantes não têm nem podem abranger o direito a obter a nulidade do negócio pelos vícios formais indicados no art. 410º n.º 3 do C. Civil, matéria que está na disponibilidade do próprio promitente-comprador e não de terceiro».
2. No acórdão recorrido é vedado à recorrente defender os seus interesses através da arguição da nulidade do contrato por vício de forma.
3. Por força do acórdão a recorrente é excluída, por tal matéria não estar na disponibilidade de terceiro.
4. A recorrente é terceiro interessado e com um direito forte registado a seu favor, a hipoteca.
5. E o que a ora respondente diz na sua conclusão I, como o disse ipsis verbis no seu recurso antes da formulação das conclusões, é que o acórdão recorrido
«... vai no sentido de que o credor hipotecário não pode invocar a inobservância de formalidades legais do contrato-promessa de compra e venda relativamente a um bem imóvel que lhe esteja hipotecado para garantia do seu crédito, cuja hipoteca foi constituída em data muito anterior à celebração do aludido contrato...».
[...]
7. A inconstitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que a ora respondente argui e que parece ser essa a tónica que quis dar e fazer ressaltar no seu recurso, no que ao contrato-promessa tange, é a de ser vedado, de ser impedido, à A., terceiro interessado com um direito forte registado a seu favor, arguir a inobservância de formalidades essenciais desse contrato. À recorrente
é-lhe retirada tal possibilidade, é afastada de tal via para defender os seus legítimos interesses, e com isso não se conforma. Termos em que, no entender da ora respondente, nas suas conclusões I e II é claramente delimitado o âmbito e os limites do recurso, relativamente à inconstitucionalidade verificada, no caso dos autos, em concreto, que se traduz em ser-lhe negada no acórdão recorrido a possibilidade de arguição da omissão das formalidades legais impostas pelo n.º 3 do artigo 410º do C. Civil por, no mesmo acórdão, ter sido feita uma interpretação e aplicação de tal preceito em desconformidade com princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa, devendo, por essa razão, tal inconstitucionalidade verificada e por si suscitada ser apreciada pelo Tribunal Constitucional.”
Tendo o relator cessado funções no Tribunal Constitucional, foram os autos redistribuídos (fls. 696 v.º).
Cumpre agora apreciar e decidir.
II
5. A recorrente A. pretende que o Tribunal Constitucional aprecie as seguintes questões de inconstitucionalidade:
A) a inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro – diplomas que introduziram alterações ao regime do contrato-promessa constante do Código Civil –, por disporem, sem autorização da Assembleia da República, sobre direitos e garantias patrimoniais, em violação do artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição (actual artigo
165º, n.º 1, alínea b));
B) a inconstitucionalidade do artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, se interpretado como não reconhecendo legitimidade ao titular de uma hipoteca com registo anterior à celebração de um contrato-promessa de venda do imóvel sobre que recai aquela garantia para invocar a nulidade decorrente dos vícios formais daquele contrato, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do acesso ao direito e aos tribunais consagrados no n.º 1 do artigo
20º da Constituição;
C) a inconstitucionalidade dos artigos 442º, n.º 2, e 755º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Civil, se interpretados como concedendo ao promitente-comprador de imóvel ou fracção autónoma, com tradição da coisa objecto do contrato, o direito de retenção, com preterição do titular de hipoteca constituída e registada em data anterior à invocação do direito de retenção, por violação dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário, ínsitos no artigo 2º da Constituição.
Nas conclusões das alegações apresentadas neste Tribunal, a recorrente inclui ainda, como objecto autónomo do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, a apreciação do Assento n.º 15/94 do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Junho de 1994 (supra, 4., conclusão II).
Ora, o objecto do recurso é delimitado pelo respectivo requerimento de interposição (artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ao recurso de constitucionalidade por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 20/97, Diário da República, II Série, n.º 51, de 1 de Março de 1997, p. 2640 ss, e jurisprudência aí citada). Nos termos gerais, nas alegações apenas é permitido ao recorrente
“restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso” (cfr. artigo
684º, n.º 3, do mesmo Código de Processo Civil).
Não tendo sido pedida no requerimento de interposição do presente recurso (cfr. requerimento de fls. 511 e seguinte, supra, 3.) a apreciação da inconstitucionalidade do mencionado Assento, não pode este Tribunal conhecer de tal questão, suscitada nas alegações.
Por outro lado, tendo o recurso sido interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o julgamento deste Tribunal só pode obviamente incidir sobre normas que tenham sido aplicadas na decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelos recorrentes, de modo processualmente adequado, perante o tribunal a quo. A delimitação do objecto do presente recurso a que neste processo tem de proceder-se para dar cumprimento a estas exigências será feita a propósito de cada uma das questões suscitadas.
6. Os preceitos do Código Civil cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada têm o seguinte teor, na versão em vigor ao tempo da decisão proferida nos autos, e cuja redacção resulta das alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro:
Artigo 410º
(Regime aplicável)
[...]
3. No caso de promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou promitentes e a certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.
Artigo 442º
(Sinal)
[..]
2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houver tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
[...]
Artigo 755º
(Casos especiais)
1. Gozam ainda do direito de retenção:
[...] f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.
[...]
A. A questão da inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.ºs 236/80 e
379/86, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República
7. Comecemos por indagar se os Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, que foram editados pelo Governo, no uso da sua competência própria, invadiram a reserva legislativa da Assembleia da República.
A recorrente considera que tais diplomas estão afectados de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que vieram permitir ao promitente-comprador de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma, desde que tenha havido tradição da coisa objecto do contrato prometido, invocar o direito de retenção, mesmo perante o credor hipotecário, com direito anteriormente inscrito no registo. No entender da recorrente, as alterações legislativas introduzidas pelos diplomas questionados foram completamente inovadoras e respeitam a direitos e garantias patrimoniais incluídas na reserva de competência legislativa do Parlamento, pelo que, tendo tais diplomas sido editados pelo Governo, sem autorização parlamentar, violariam o artigo 168º, n.º
1, alínea b), da Constituição [hoje, o artigo 165º, n.º 1, alínea b)].
Torna-se necessário analisar sucintamente o conteúdo dos diplomas e das alterações introduzidas no regime jurídico do contrato-promessa.
7.1. O Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, alterou os artigos 410º,
442º e 830º do Código Civil, relativos ao contrato-promessa.
Relativamente ao artigo 410º do Código Civil, o diploma em apreço acrescentou um n.º 3 respeitante às exigências formais do contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano, ou de sua fracção autónoma, já construído, em construção ou a construir (reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes e certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção).
A alteração do artigo 442º do Código Civil consistiu no aditamento de dois números (n.ºs 2 e 3): quanto ao n.º 2, a inovação consistiu em estabelecer a favor de quem constitui o sinal e contra aquele que o recebeu uma dupla sanção como alternativa à restituição em dobro, se tiver havido entrega antecipada do objecto do contrato prometido: o pagamento do valor da coisa ao tempo do incumprimento ou a execução especifica do contrato; quanto ao n.º 3, dispôs-se então que, em caso de incumprimento, e tendo havido tradição da coisa objecto do contrato prometido, o promitente-comprador goza do direito de retenção sobre ela pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.
Foram ainda introduzidas diversas alterações no artigo 830º do Código Civil, que regula a execução específica, sem directo relevo para a questão agora em apreço.
7.2. O Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, por sua vez, veio alterar a redacção dos artigos 410º, 412º, 413º, 421º, 442º, 755º e 830º, todos do Código Civil.
Nos pontos 2 e 3 do preâmbulo do diploma dá-se conta das alterações introduzidas no regime do contrato-promessa, quer no seu contexto geral, quer quanto à execução específica.
No ponto 4 do mesmo preâmbulo, justificam-se as modificações introduzidas relativamente ao direito de retenção atribuído ao promitente-comprador. É este o aspecto que aqui interessa sobretudo considerar, pelo que se transcreve a parte relevante:
“O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442º, n.º 3). Pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites. A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua índole. Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755º, n.º 1, do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754º pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão conduziu a uma resposta afirmativa. Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança. O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759º, n. º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras. Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar mais adequado, incluindo-a entre os restantes casos de direito de retenção
[artigo 755º, n.º 1, alínea f)].”
A alteração essencial decorrente deste diploma, para o que aqui releva, foi a inclusão do direito de retenção, criado pelo Decreto-Lei n.º
236/80, como nova alínea f), no elenco constante do artigo 755º, n.º 1, do Código Civil.
8. No que diz respeito à questão de constitucionalidade suscitada no processo a propósito dos diplomas mencionados, sublinhe-se que apenas podem ser apreciadas no âmbito do presente recurso as normas neles contidas que alteraram o regime do Código Civil, consagrando o direito de retenção em favor do beneficiário da promessa que tenha obtido a tradição do imóvel objecto do contrato a realizar, pois só essas normas foram aplicadas na decisão recorrida e só quanto a elas pode ser entendida a censura de desconformidade constitucional formulada pela recorrente.
A inconstitucionalidade apontada pela recorrente resultaria de em tais diplomas se dispor, sem credencial parlamentar, sobre direitos e garantias patrimoniais, matéria incluída na reserva legislativa da Assembleia da República
(artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição; actualmente, artigo 165º, n.º
1, alínea b)).
Para fundamentar a inclusão da matéria em análise no âmbito dos direitos, liberdades e garantias e, por isso, no domínio da reserva legislativa da Assembleia da República, a recorrente alega que os diplomas em questão procederam à criação de “um direito de crédito” que é “análogo ao direito de propriedade” (cfr. texto das alegações, a fls. 530).
Cumpre, portanto, analisar se o direito instituído pelos diplomas questionados se inscreve no âmbito dos direitos, liberdades e garantias a que se reporta a alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na versão anterior
à actual.
“O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 1987, anotação ao artigo
754º, p. 772).
O direito de retenção a favor do promitente-comprador não constava do Código Civil de 1966. Tal direito foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º
236/80, com vista a estabelecer um “verdadeiro equilíbrio entre os outorgantes
(o que passa pela mais eficiente tutela do promitente-comprador)” (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 236/80, ponto 1).
O direito de retenção foi reconhecido no caso de ter havido tradição da coisa, e respeitando ao crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor (artigo 442º, n.º 3, do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 236/80).
Com o Decreto-Lei n.º 379/86, manteve-se o direito de retenção conferido ao promitente-comprador, tendo o mesmo sido inserido no local próprio
– o artigo 755º do Código Civil – através do aditamento ao n.º 1 de uma nova alínea, a alínea f), que veio acrescentar a hipótese em questão aos outros casos, já ali elencados, de titulares do direito de retenção.
O Código não utilizou, nas diversas situações em que reconhece a existência de um direito de retenção, o mesmo critério: com efeito, ao reconhecer o direito de retenção, com carácter genérico, no artigo 754º do Código Civil, a lei liga o crédito do detentor da coisa a despesas feitas por causa dela ou em resultado de danos por ela causados. Nos casos especiais do artigo 755º do Código Civil (versão primitiva), não pode afirmar-se inteiramente tal conexão, embora existam outros tipos de conexão, como decorre das diferentes alíneas incluídas no artigo 755º.
Segundo Antunes Varela (“Emendas ao regime do contrato-promessa”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 119º, n.ºs 3749 ss, p. 226 ss; Ano 120º, n.ºs 3755 ss, p. 35 ss), “o direito de retenção deixou declaradamente de ser, com o Código Civil de 1966, um puro meio de coerção (ou uma simples causa de preferência especial indirecta, para usar a terminologia expressiva de Paulo Cunha) e passou abertamente a revestir a natureza jurídica de um perfeito direito real de garantia, dotado até de eficácia excepcional, mercê das especiais raízes em que mergulha a sua origem” (loc. cit., n.º 3763, p. 290 s).
O direito de retenção, tal como está configurado na nossa lei, reveste uma forma especial de auto-tutela dos interesses da pessoa a favor de quem é conferido, permitindo ao seu titular não abrir mão da coisa retida enquanto não obtiver satisfação do seu direito.
Coloca-se então a questão de saber se, tendo o direito de retenção a natureza de direito real de garantia, deve o mesmo inscrever-se dentro do âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por se tratar de um direito que se inclui no direito de propriedade, e, por conseguinte, susceptível de ser tratado como direito análogo ao direito de propriedade e abrangido pelo regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias.
O artigo 62º da Constituição garante a todos o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida e por morte, “nos termos da Constituição”, isto é, dentro dos limites e nos termos definidos noutras normas da Lei Fundamental, competindo ao legislador infra-constitucional definir o conteúdo e limites do direito de propriedade privada.
Como se escreveu no Acórdão n.º 329/99 deste Tribunal (publicado no Diário da República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, p. 6 ss):
“[...] apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esse direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.”
Pode, assim, afirmar-se que cabem na reserva legislativa parlamentar relativa as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos direitos análogos, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias.
Ora, no que diz respeito ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, faz, indubitavelmente, parte o direito de cada um a não ser arbitrariamente privado da sua propriedade, e, na hipótese de expropriação por utilidade pública, a receber uma justa indemnização (cfr. artigo 62º, n.ºs 1 e 2, da Constituição).
Já quanto ao direito de retenção, entendido como direito real de garantia das obrigações (tal como a hipoteca – artigo 686º do Código Civil), isto é, como “direito sobre um direito”, ele não integra o núcleo essencial do direito de propriedade.
Com efeito, tal direito – ainda que esteja em causa a transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele e, portanto, estreitamente relacionado com o direito de propriedade privada – apenas confere ao seu titular, por um lado, a faculdade de não cumprir enquanto não vir satisfeito o seu crédito, e, por outro lado, a garantia de realização preferencial do seu crédito.
Assim sendo, não pode dizer-se que estejam em causa faculdades inerentes ao direito de propriedade, isto é, faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição.
Não integrando o direito de retenção o âmbito da reserva legislativa parlamentar dos direitos, liberdades e garantias, podia o Governo legislar sobre a matéria sem necessidade de autorização parlamentar, pelo que as normas que estabelecem tal direito, constantes dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, não estão afectadas de inconstitucionalidade orgânica.
Neste sentido decidiu entretanto o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 374/03 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 254, de 3 de Novembro de 2003, p. 16552 ss), em que era igualmente recorrente a ora recorrente.
B. A questão da inconstitucionalidade do artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais
9. Pretende a recorrente A. que este Tribunal aprecie a inconstitucionalidade do artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, se interpretado como não reconhecendo legitimidade ao titular de uma hipoteca com registo anterior à celebração de um contrato-promessa de venda do imóvel sobre que recai aquela garantia para invocar a nulidade decorrente dos vícios formais do contrato-promessa, por entender que tal interpretação normativa viola os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do acesso ao direito e aos tribunais, consagrados no n.º 1 do artigo 20º da Constituição.
Nas instâncias, a recorrente invocou a nulidade do contrato-promessa celebrado entre a falida B. e os promitentes-compradores, por tal contrato não conter o reconhecimento presencial das assinaturas, por não estar certificada pelo notário a existência de licença de utilização ou construção e por não estar também certificado pelo notário que o contrato foi assinado pelo representante da sociedade com poderes de representação para o acto. As duas primeiras questões foram decididas, pela 1ª Instância, desfavoravelmente à pretensão da A. e a terceira questão suscitada (falta de certificação pelo notário dos poderes de representação da pessoa que interveio em nome da promitente-vendedora) – correspondente a exigência que não consta dos requisitos previstos no artigo
410º, n.º 3, do Código Civil – foi julgada improcedente, por falta de
“fundamento fáctico”. A Relação e o Supremo confirmaram a decisão da 1ª Instância quanto a estes pontos.
Alegou a recorrente que, por força do artigo 286º do Código Civil, tem legitimidade para arguir a nulidade: por isso, em sua opinião, a decisão recorrida, ao seguir o entendimento fixado no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 15/94, de 28 de Junho de 1994, fez uma interpretação inconstitucional do artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, por violação do artigo
20, n.º 1, da Constituição.
9.1. Antes de mais, há que apreciar a questão prévia suscitada pelos recorridos, no sentido do não conhecimento do recurso, quanto a esta parte.
Disseram os recorridos nas suas alegações que o STJ interpretou a norma do artigo 410º, n.º 3, do Código Civil em sentido diverso daquele que é questionado pela recorrente. Consideram os recorridos que o Supremo entendeu apenas que a A., enquanto credor hipotecário e terceiro relativamente ao contrato-promessa de compra e venda, não pode invocar a nulidade decorrente dos vícios formais indicados no artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, não se tendo pronunciado quanto a qualquer outros vícios formais nomeadamente quanto à omissão de outras formalidades essenciais à validade do contrato. Assim, não sendo a interpretação do Supremo Tribunal de Justiça aquela que a recorrida indica como objecto do recurso, não haveria que conhecer da pretensa inconstitucionalidade do referido artigo 410º, n.º 3 do Código Civil.
Por sua vez, a recorrente A. sustenta que a questão prévia, assim suscitada, deve ser julgada improcedente, uma vez que resulta da decisão recorrida claramente que a norma em questão foi aplicada com o sentido por si enunciado no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, em termos tais que o credor hipotecário está impedido de arguir a nulidade de um contrato-promessa por omissão das formalidades legais impostas pelo artigo 410º, n.º 3, do Código Civil.
Sobre esta questão, escreveu-se no acórdão recorrido:
“Entendemos, com base no art. 192º do CPEREF, que a A. recorrente pode defender os seus interesses, invocando direitos próprios, mas não a nulidade do contrato
(ou contratos) de promessa pelo vício de forma invocado, de acordo com a orientação que foi perfilhada no assento de 28-6-1994 [...] e que correspondia já ao entendimento deste Tribunal [...]. Esses interesses conflituantes não têm nem podem abranger o direito a obter a nulidade do negócio pelos vícios formais indicados no art. 410 n.º 3 do C. Civil, matéria que está na disponibilidade do próprio interessado promitente-comprador e não em terceiro.
O seguimento pelo Tribunal da orientação prevalecente do art. 410º n.º 3 do C. Civil, como consagrando uma nulidade atípica, não ofende o art. 20º da CRP, que visa garantir o acesso ao direito e tutela jurisdicional. Nem a interpretação seguida pelo Supremo, pelo facto de ter havido assento sobre a matéria, significa vinculação a essa jurisprudência, mas o seu acolhimento por ser considerada a mais correcta.
[...]”.
Resulta do teor do acórdão recorrido que a interpretação da norma do artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, questionada pela recorrente, constituiu efectivamente o fundamento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça quanto ao aspecto em discussão. Na verdade, foi com base nessa interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que a recorrente A. não tinha legitimidade para arguir a invalidade de um contrato-promessa por omissão das formalidades legais impostas pelo artigo 410º, n.º 3, do Código Civil.
Improcede, assim, a questão prévia suscitada pelos recorridos.
9.2. Está portanto em causa no presente processo apreciar a conformidade constitucional, face ao princípio do acesso ao direito e aos tribunais, da interpretação atribuída na decisão recorrida à norma do n.º 3 do artigo 410º do Código Civil, nos termos da qual o credor hipotecário não pode arguir a nulidade do contrato-promessa por omissão dos requisitos exigidos por aquela norma para a validade do contrato-promessa celebrado entre o promitente-vendedor e o promitente-comprador do imóvel hipotecado (interpretação que corresponde à doutrina do Assento n.º 15/94, de 28 de Junho de 1994, do Supremo Tribunal de Justiça).
A este respeito, sublinhe-se, desde já, que as alterações introduzidas no regime do contrato-promessa pelos Decretos-Leis n.ºs 236/80 e
379/86 visaram, no essencial, e no âmbito da liberdade de conformação normativa do legislador, reforçar a defesa dos interesses e da posição do promitente-comprador – em geral a parte institucionalmente mais débil nesta categoria contratual – quando o contrato tenha como objecto a aquisição de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação própria (veja-se o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 379/86, parcialmente transcrito supra, 7.2.).
É indiscutível que o legislador, perante a conjuntura económica e financeira do país e tendo em conta a prática negocial seguida sobretudo no domínio da compra e venda de imóveis, pretendeu estabelecer um regime de protecção dos promitentes-compradores de edifícios ou suas fracções autónomas, porventura por considerar tais contraentes menos preparados para defenderem convenientemente os seus interesses.
O STJ, na decisão recorrida, limitou-se a seguir o entendimento mais generalizado: considerou estar em causa uma invalidade não invocável por terceiros nem oficiosamente pelo tribunal, atenta a natureza e a finalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 410º – norma de protecção do promitente-comprador.
Com efeito, tem-se entendido que a natureza da invalidade correspondente à omissão dos requisitos formais prescritos pela lei deve ser a que melhor realize o escopo do preceito que a estabelece. Ora, no caso, a arguição da invalidade por terceiros seria susceptível de subverter a finalidade
última do regime de protecção que se pretende adoptar (cfr., neste sentido, Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa (Do Decreto-Lei n.º 236/80 ao Decreto-Lei n.º 376/86), 4ª ed., Coimbra, 1995, p. 58; Antunes Varela, “Emendas ao regime do contrato-promessa”, cit., n.º 3753, p. 360).
Trata-se portanto de uma invalidade atípica (“nulidade atípica”, na expressão de Calvão da Silva, loc. cit., p. 60), cujo regime foi concebido e se justifica em função da protecção do contraente débil, o promitente-comprador.
Ao estabelecer a norma do n.º 3 do artigo 410º do Código Civil, o legislador teve em vista a defesa do interesse particular do promitente-comprador e não a defesa de um qualquer interesse público ou dos interesses gerais da sociedade nem mesmo a defesa de um difuso interesse quer do promitente-vendedor, quer do mutuante, enquanto credor hipotecário, que não é sujeito da relação jurídica estabelecida entre o promitente-vendedor e o promitente-comprador.
9.3. Definida a finalidade da norma que vem questionada, importa analisar se a interpretação que dela se fez nos autos é violadora do direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20, n.º 1, da Constituição.
Este preceito constitucional consagra um complexo conjunto de direitos decorrentes do acesso ao direito: desde logo, um direito de acção judicial para defesa de todas as situações juridicamente relevantes, aqui entroncando também os princípios que devem orientar o desenvolvimento desse direito de acção, o contraditório e a igualdade de armas; depois, o direito ao recurso e a exigência de um processo equitativo.
Entende a recorrente que, sendo titular de uma hipoteca sobre o imóvel que é objecto do contrato prometido, uma interpretação da norma do artigo
410º, n.º 3, do Código Civil que não lhe permita invocar a invalidade do contrato-promessa em que não interveio viola o artigo 20º da Constituição.
Ora, deste preceito da Constituição não decorre que ao credor hipotecário seja atribuída legitimidade para arguir a omissão de cumprimento dos requisitos formais do contrato celebrado entre promitente-vendedor e promitente-comprador. Aliás, a solução que consistisse em atribuir ao credor hipotecário essa legitimidade seria algo que não se compreenderia face ao fundamento da intervenção legislativa e que não corresponderia à finalidade da norma, tal como ficou definida.
Reconhecer ou não ao credor hipotecário a possibilidade de invocar a invalidade do contrato celebrado entre o promitente-comprador e o promitente-vendedor é algo que se insere na margem de discricionariedade do legislador, sendo certo que existem razões válidas para a não admitir.
Desde logo, existem razões jurídicas: a natureza da invalidade e o respectivo regime.
Na verdade, tendo em conta a caracterização da disposição do artigo
410º, n.º 3, do Código Civil como norma de protecção do contraente débil – o promitente-comprador –, compreende-se que não seja atribuída ao promitente-vendedor a legitimidade para invocar a invalidade do contrato-promessa por omissão dos requisitos exigidos por aquela norma. Do mesmo modo se compreende a inviabilização da intervenção do credor hipotecário para invocar a invalidade do contrato-promessa por omissão de tais requisitos. Trata-se afinal de um afloramento do princípio segundo o qual a legitimidade reconhecida aos credores para impugnarem os actos dos seus devedores – quer se trate de credores hipotecários quer não – está sujeita às mesmas limitações que são estabelecidas em relação aos próprios devedores. Ora, tal princípio não se afigura, em geral, desrazoável nem desproporcionado, pois não traduz qualquer excesso ou limitação intolerável do exercício dos direitos de terceiros.
É certo que a ordem jurídica não pode deixar de ter em conta os interesses e as posições juridicamente protegidas de terceiros.
Todavia, a norma do n.º 3 do artigo 410º não veio limitar nem afectar os direitos do credor hipotecário, enquanto tal. A consistência jurídica do direito real de garantia – hipoteca – mantém-se intocada e não sofre qualquer limitação o credor hipotecário que, pelos meios próprios, pretenda fazer valer os seus direitos.
A interpretação da norma questionada no sentido de considerar que o credor hipotecário não é titular dos interesses que a lei quis expressa e especialmente proteger com o regime em causa, não reconhecendo àquele credor legitimidade ou interesse particular para arguir a omissão das formalidades do contrato-promessa celebrado, não tem, assim, o significado de impedir o credor hipotecário de aceder ao direito e aos tribunais.
Tal interpretação não viola pois o princípio constitucional do direito de acção ou de recurso contido no artigo 20º da Constituição.
C. A questão da inconstitucionalidade dos artigos 442º, n.º 2, e 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, por violação dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança
10. Segundo a recorrente, são inconstitucionais, por violação dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança e segurança jurídica, consagrados na Constituição, as normas constantes do n.º 2 do artigo
442º do Código Civil e da alínea f) do n.º 1 do artigo 755º também do Código Civil, ao abrigo das quais é concedido ao promitente-comprador de um edifício ou de uma sua fracção autónoma, em construção, construído ou a construir, e que obteve a tradição da coisa, o direito de retenção sobre a mesma coisa.
10.1. Importa sublinhar, em primeiro lugar, que a recorrente questiona unicamente as normas que ficam indicadas e que concedem ao promitente-comprador, caso tenha havido tradição da coisa, o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do incumprimento.
Na verdade, embora a recorrente, nas suas alegações se refira à situação jurídica que para o promitente-comprador resulta da concessão do direito de retenção, o certo é que ela não pede ao Tribunal a apreciação da conformidade constitucional das normas que definem essa situação jurídica. Ora, são as normas contidas no artigo 759º do Código Civil que estabelecem que o titular do direito de retenção sobre coisa imóvel, enquanto a não entregar, “tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor” (n.º
1) e que, neste caso, “o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente” (n.º 2).
Assim, no âmbito do presente processo apenas pode ser apreciada a conformidade constitucional da norma que outorga ao promitente-comprador o direito de retenção sobre a coisa, se tiver havido tradição, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte e já não a conformidade constitucional das normas que estabelecem a preferência no pagamento do titular do direito de retenção sobre coisas imóveis em relação aos demais credores do devedor e a prevalência do direito de retenção sobre coisas imóveis relativamente à hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente.
As apontadas consequências de “preferência no pagamento do titular do direito de retenção sobre coisas imóveis em relação aos demais credores do devedor” e de “prevalência do direito de retenção sobre coisas imóveis relativamente à hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente” não poderiam em caso algum ser reportadas às normas questionadas pela recorrente – as normas constantes do artigo 442º, n.º 2, e do artigo 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, em si mesmas consideradas, sem serem conjugadas com a estatuição fixada noutros preceitos, concretamente, com o artigo 759º do mesmo Código.
Por outras palavras, não constituem objecto deste recurso as normas que estabelecem a preferência no pagamento do titular do direito de retenção sobre coisas imóveis em relação aos demais credores do devedor e a prevalência do direito de retenção sobre coisas imóveis relativamente à hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente, uma vez que tais normas não foram identificadas pela recorrente no pedido de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
10.2. Em segundo lugar, há que esclarecer que o n.º 2 do artigo 442º do Código Civil não confere o direito de retenção ao promitente-comprador, nem na sua versão actual, nem na versão que resultou da alteração operada pelo Decreto-Lei n.º 236/80.
Como resulta da análise precedente (supra, 7.), a alteração legislativa que introduziu o direito de retenção na legislação civil em favor do promitente-comprador, no caso de haver tradição da coisa, ocorreu em 1980, através do aditamento, pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de um n.º 3 ao artigo 442º do Código Civil, e foi reafirmada pela colocação do preceito em lugar considerado mais adequado, em 1986, através da inclusão, pelo Decreto-Lei n.º
379/86, de uma alínea f) no n.º 1 do artigo 755º do mesmo Código.
Tendo em conta as datas em que ocorreram os factos que deram origem ao processo em que se insere o presente recurso de constitucionalidade, na decisão recorrida apenas foi aplicada a norma contida na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil, na sua versão actual (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 379/86), e não a norma correspondente na versão anterior (que, de todo o modo, não seria a do n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, mas sim a do n.º 3 do mesmo artigo, aditada pelo Decreto-Lei n.º 236/80).
Consequentemente, só a constitucionalidade da norma contida na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil, na sua versão actual
(introduzida pelo Decreto-Lei n.º 379/86), pode ser apreciada no âmbito do presente recurso.
11. São conhecidas as circunstâncias que justificaram as alterações legislativas no domínio do contrato-promessa e as opiniões doutrinais não inteiramente convergentes que surgiram a propósito das modificações introduzidas no regime constante da versão inicial do Código Civil.
Como já antes se referiu, o legislador de 1980, face à situação económica e social então vigente – caracterizada pela forte inflação e pelo peso da construção clandestina –, com a preocupação de proteger os interesses das pessoas que procuravam adquirir habitação própria, entendeu dever intervir em auxílio de inúmeras pessoas que se viam constrangidas a recorrer ao contrato-promessa e que, por falta de preparação, vieram a ser vítimas de abusos.
O legislador veio, assim, em 1980 e depois em 1986, invocando a
“lógica da defesa do consumidor”, atribuir ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte.
Será esta uma norma desproporcionada e violadora do princípio da confiança e segurança jurídica ?
11.1. Analisemos antes de mais a questão da eventual violação do princípio da proporcionalidade.
Sobre a actuação do princípio da proporcionalidade no domínio das relações jurídico-privadas e sobre o papel que este princípio pode assumir como inspirador de soluções adoptadas pela lei no âmbito do direito privado, disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 302/01 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 257, de 6 de Novembro de 2001, p. 18309 ss):
“[...] Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 153), “o princípio da proporcionalidade
(também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos”. Entre nós, a consagração constitucional do princípio da proporcionalidade não merece contestação, pelo menos desde 1982. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa, desde a primeira revisão constitucional, consagra no seu artigo 2º o Estado de direito democrático, sendo certo que o princípio da proporcionalidade se encontra ínsito nesse conceito político-jurídico, do qual constitui uma necessária decorrência. O mesmo princípio da proporcionalidade aflora, aliás, em várias disposições constitucionais relevantes: no artigo 18º, n.º 2, relativo às restrições aos direitos, liberdades e garantias; no artigo 19º, n.º 4, impondo expressamente o respeito pelo princípio da proporcionalidade na opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como nas respectivas declaração e execução; no artigo 19º, n.º 8, no que concerne às providências a tomar pelas autoridades com vista ao restabelecimento da normalidade constitucional; no artigo 28º, n.º 2, relativo à prisão preventiva; no artigo 30º, n.º 5, prevendo as limitações a direitos fundamentais que decorram das exigências próprias da execução de penas ou medidas de segurança ou inerentes ao sentido da condenação; no artigo 266º, n.º 2, que consagra expressamente a subordinação dos órgãos e agentes administrativos ao princípio da proporcionalidade; no artigo 270º, relativo às restrições ao exercício de direitos dos militares e agentes militarizados, bem como dos agentes dos serviços e forças de segurança; no artigo 272º, n.º 2, referente às medidas de polícia. De resto, o Tribunal Constitucional tem sucessivamente reconhecido o valor constitucional do princípio da proporcionalidade (cfr., entre muitos outros: Acórdão n.º 25/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., p. 7; Acórdão n.º 85/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 245: Acórdão n.º
64/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., p. 319; Acórdão n.º
349/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 507; Acórdão n.º
363/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 79; Acórdão n.º
152/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., p. 323; Acórdão n.º
634/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., p. 205; Acórdão n.º
370/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994; Acórdão n.º
494/94, Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1994; Acórdão n.º
59/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 79; Acórdão n.º 572/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 381; Acórdão n.º 758/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 803; Acórdão n.º 958/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., p. 397; Acórdão n.º 1182/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., p. 447).
É assim possível encarar o princípio da proporcionalidade como um princípio objectivo da ordem jurídica. E, se é certo que a aplicação do princípio da proporcionalidade se viu inicialmente restrita à conformação dos actos dos poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, há que reconhecer que foi admitido o posterior e progressivo alargamento da relevância de tal princípio a outras realidades jurídicas, não se detectando verdadeiros obstáculos à sua actuação no domínio das relações jurídico-privadas. Não se contesta portanto que o princípio da proporcionalidade seja princípio geral de direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado.
[...].”
A ideia geral unificadora do princípio da proporcionalidade é a de que o meio utilizado para atingir certo objectivo deve estar numa determinada relação com esse objectivo. A avaliação a que há que proceder para aferir da proporcionalidade incide sobre um meio, que é dirigido a um certo fim, e implica a apreciação da respectiva idoneidade, necessidade e racionalidade à prossecução do fim em vista.
No caso dos autos, trata-se de saber se é desproporcionada ou excessiva a norma que consagra o direito de retenção em favor do promitente-comprador, que obtém a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, pelo crédito do incumprimento imputável à outra parte.
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Como antes se referiu, o reconhecimento do direito de retenção surgiu como uma medida de defesa do promitente-comprador considerado na circunstância como parte mais débil do contrato e como parte que geralmente ficava prejudicada, uma vez que não dispunha de meio eficaz para fazer cumprir a promessa.
A atribuição do direito de retenção, sempre que exista tradição da coisa objecto do contrato prometido, permitiu um reequilíbrio da situação desigual, ainda que – não pode deixar de se reconhecer – a lei tenha sido generosa na sua concessão.
Assim, existindo uma situação de desigualdade de tratamento que se pretendeu equilibrar através deste regime, não pode considerar-se que tal medida legislativa dê origem a uma desproporção intolerável ou arbitrária dos direitos ou interesses em jogo – e só a este tipo de desproporção o Tribunal tem reconhecido relevância para concluir no sentido da inconstitucionalidade.
11.2. Vejamos agora se a norma questionada, enquanto concede o direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, viola o princípio da confiança e segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, constante do artigo 2º da Constituição.
Na sua vertente de Estado de direito, o princípio do Estado de direito democrático – nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 63) – “mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo englobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia da sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança”.
De acordo com a jurisprudência da Comissão Constitucional, o princípio do Estado de direito democrático “garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica” (Parecer n.º 14/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., p.
183 ss).
Por sua vez, o princípio da segurança jurídica, implicado no princípio do Estado de direito democrático, abrange duas ideias nucleares (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, p. 380): a de estabilidade, no sentido de que as decisões estaduais, incluindo as leis, “não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes”; e a de previsibilidade, “que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos”.
A realização do princípio do Estado de direito, no quadro da Constituição, exige portanto que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, exige a garantia da confiança na actuação dos entes públicos.
Assim, o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de modo que cada pessoa possa ver garantida a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica. Nestes termos, e em regra, as pessoas têm o direito de poder confiar que as decisões sobre os seus direitos ou relações jurídicas tenham os efeitos previstos nas normas que os regulam.
No caso em apreço, a norma questionada não contende com tais princípios.
A solução adoptada na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil não pode surpreender, na medida em que corresponde apenas a uma mais correcta localização da matéria na orgânica da sistematização legislativa. A atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador que tivesse obtido a tradição da coisa objecto do contrato prometido foi aprovada e estava em vigor há muito tempo: como se viu, o regime legal em questão existia desde 1980, tendo sido reafirmado em 1986, através de mera alteração na inserção sistemática da norma (que passou do artigo 442º, n.º 3, do Código Civil para o artigo 755º, n.º
1, alínea f), do mesmo Código).
De todo o modo, a norma que define, em abstracto, um novo caso de direito de retenção não pode ser vista, em si mesma, como ofensiva dos direitos de outros credores do devedor. Uma eventual ofensa de tais direitos – a existir
– decorreria da norma que estabelece a hierarquia entre os direitos dos diversos credores.
12. Conclui-se, assim, que não existe qualquer violação, quer do princípio da proporcionalidade explicitado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição, quer do princípio da confiança e segurança jurídica, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.
III
13. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere às questões de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2003
Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida (vencido, em parte, nos mesmos termos que o Exmº Conselheiro Rui Moura Ramos)
Declaração de voto
Votei vencido quanto à questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 410º, nº 3, do Código Civil, na interpretação segundo a qual o credor hipotecário está impedido de arguir a nulidade de um contrato-promessa por omissão das formalidades legais impostas por aquela norma.
O acórdão considera que «as alterações introduzidas no regime do contrato-promessa pelos Decretos-leis nºs 236/80 e 379/86 visaram, no essencial, e no âmbito da liberdade de conformação normativa do legislador, reforçar a defesa dos interesses e da posição do promitente-comprador». Entendo que a defesa da posição de uma das partes do contrato-promessa, em si mesma legítima e cujos contornos não cabe ao Tribunal apurar, não pode, em todo o caso, implicar que um terceiro deixe de poder impugnar a validade daquele contrato quando essa seja a única forma de proteger a consistência da sua posição jurídica, susceptível de ser afectada pela intangibilidade da transacção alegadamente ferida de nulidade. Afigura-se-me, ao contrário, que a tutela dos interesses de uma parte num contrato, ainda que se trate de um «contraente débil», se pode justificar limitações à posição contratual do seu contraente, já não poderá impedir terceiros, em relação aos quais aquela se não encontre numa situação de desigualdade jurídica que o direito visa corrigir, de defender por via judicial os seus interesses.
O princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais opõe-se assim em meu entender a que, a pretexto da garantia da posição de uma das partes num contrato, a validade deste não possa ser judicialmente impugnada por terceiros que nisso tenham interesse legítimo, na circunstância por serem titulares de um crédito hipotecário sobre o imóvel objecto da transacção. Este princípio não é, nem pode ser, postergado à luz da ideia de que o mutuante, enquanto credor hipotecário, não é sujeito da relação jurídica estabelecida entre promitente-vendedor e promitente-comprador, ou da ideia de que a invalidade resultante da omissão dos requisitos formais do contrato-promessa é uma
«invalidade atípica». Nenhuma destas ideias põe em causa algo que para mim se afigura essencial: o credor hipotecário possui um interesse jurídico digno de tutela na arguição da nulidade do contrato-promessa e, nessa medida, tal interesse deve ser garantido também pela via do acesso aos tribunais, tal como resulta do artigo 20º da Constituição da República.
Rui Manuel Moura Ramos