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Processo n.º 357/02
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1.A. e mulher intentaram acção de impugnação judicial, nos termos dos artigos
120º e seguintes do Código de Processo Tributário, contra a Fazenda Pública, pela liquidação de imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares referente ao ano de 1996, concluindo pelo pedido de anulação daquela liquidação e alegando para tanto que:
“(...)
43º Nos termos do art. 106º, n.º 2, da CRP, cuja epígrafe é ‘Sistema Fiscal’, ‘os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes’.
44º A nossa Lei Fundamental deu guarida e consagrou, pois, claramente, a reserva de lei em matéria de benefícios fiscais.
45º Por outro lado, nos termos do art. 168º, n.º 1, al. i) e n.º 2, da CRP, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, em matéria de criação de impostos e sistema fiscal.
46º Esta matéria tem, pois, de ser regulada, em princípio, por lei da Assembleia da República.
47º Só não o será, isto é, a matéria só será objecto de Decreto-Lei do Governo se houver autorização legislativa que lhe seja concedida, nos termos do n.º 2 daquela disposição constitucional.
48º Sempre ressalvado o devido respeito, não podem as normas respeitantes a benefícios fiscais ficar ao sabor de circulares interpretativas – sejam elas da Direcção-Geral de Saúde, sejam elas da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos – que em cada momento, mais do que interpretar, façam a aplicação às situações concretas da vida da lei em vigor, por forma a que, estabelecendo o entendimento que melhor convém à Administração Fiscal, extingam benefícios que entraram e se consolidaram na esfera jurídica de cada um por força de uma lei e postergam a protecção de direitos constituídos dos cidadãos.
(...)
117º A posição que a AF tomou para o ano de 1996 relativamente a toda esta questão, com a operação de cosmética a que se submeteu o despacho proferido no ano de
1995 relativo à mesma matéria, com o único fim (embora dissimulado) de obrigar os contribuintes a submeterem-se a novas avaliações, contra o que dispõe o art.
7º, n.º 2, do DL. n.º 202/96, de 23.10, e de tentar justificar essa pretensa obrigatoriedade, com vista à apresentação de novos atestados e à ‘prova da manutenção da incapacidade permanente...’ não tem, pois, qualquer justificação,
é ilegal, incongruente, desproporcionado e inconstitucional, constituindo, igualmente, um manifesto ‘venire contra factum proprium’ violando, de forma grave, os princípios a que a administração está obrigada nas suas relações com os particulares, ou seja, dos princípios da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da justiça, da proporcionalidade e da boa fé, da segurança jurídica e da confiança legítima. – arts. 266º e 268º da CRP e 4º, 5º, n.º 2, 6º e 6º-A do CPA.” Por sentença de 8 de Julho de 1999, o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Viana do Castelo decidiu julgar a acção improcedente por não provada, absolvendo a ré do pedido.
2.Inconformados, os impugnantes recorreram para o Tribunal Central Administrativo, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
“I. A douta sentença impugnada deixou de apreciar os mais variados vícios pelo recorrente apontados ao acto impugnado no seu articulado e que eram susceptíveis de conduzir à sua anulação, pelo que é nula, por omissão de pronúncia. II. As circulares 22/DSO, de 15.12.95, e 1/96, de 31.01.96, da DGS, não constituíram qualquer consequência do DL. 202/96, de 23.10, já que elas são muito anteriores a este. III. O vazio legal existente anteriormente à publicação do DL n.º 202/96 tinha sido preenchido pela própria AF [Administração Fiscal] que, através de circular n.º 28/90, de 22.06, da DGCI, havia estabelecido, ela própria, a forma como a prova da incapacidade devia ser feita perante si própria, pelo que, tendo sido ela a estabelecer as regras, o recorrente nada mais fez do que cumprir essas regras. IV. A AF não adoptou um procedimento generalizado em relação à totalidade dos contribuintes, antes tendo investido apenas em relação aos contribuintes de Viana do Castelo e de Braga e, mesmo assim, apenas em relação àqueles que adquiriram o benefício fiscal referido nos autos posteriormente a 1994, alheando-se do resto do país e dos contribuintes que adquiriram o mesmo benefício anteriormente a 1994, o que constitui manifesta violação do princípio da igualdade. V. Em matéria de benefícios fiscais vigora o princípio da reserva de lei formal, o que implica necessariamente que, nessa matéria, a competência para a definição dos respectivos pressupostos cabe à Assembleia da República ou ao Governo mediante a respectiva autorização legislativa. VI. As circulares não constituem lei nem têm força vinculativa externa, sendo simples regulamentos interpretativos internos que apenas vinculam na cadeia hierárquica de que dimanam. VII. Tanto a TNI aprovada pelo DL 341/93, de 30.09, como o DL 202/96, de 23.10, mandavam atender às disfunções residuais após a aplicação dos meios de correcção ou de compensação adequados, residindo a diferença entre os dois diplomas em que o primeiro previa um limite máximo de 15% para a redução e o segundo eliminou esse limite. VIII. O DL 202/96 não é um mero diploma interpretativo, já que veio inovar e criar normas de adaptação do critério legal de avaliação de incapacidade constante da TNI, na perspectiva da Lei n.º 9/89, de 05.02, não podendo, por isso, ser aplicado retroactivamente. IX. Mesmo que se entendesse que o diploma tem natureza interpretativa, sempre a solução seria a mesma, pois que haveria que respeitar a regra que o próprio diploma contém quanto à sua aplicação no tempo (art. 7º/1 e 2). X. Tal diploma não era aplicável ao recorrente, pois que o seu processo de avaliação já tinha sido concluído em 1995, tendo culminado com a emissão do respectivo atestado de incapacidades junto aos autos. XI. À data em que entrou em vigor o D.L. n.º 202/96, já havia nascido na esfera jurídica do recorrente o direito ao referido benefício fiscal em causa nos autos, porque já se encontrava comprovada a factualidade descrita na hipótese legal (a incapacidade igual ou superior a 60%) pelo atestado médico respectivo, passado pela entidade competente, no domínio da lei anterior e de acordo com esta.
(...) XV. A AF está sujeita ao princípio da legalidade, devendo inteira obediência à Constituição e à lei, não podendo desconhecer e desrespeitar o valor e limites do caso decidido ou caso resolvido, pondo em causa, em qualquer momento, a estabilidade dos actos administrativos e valores fundamentais do Direito como são a Certeza e a Segurança. XVI. O exame e atestação de uma certa incapacidade permanente, em face do acto tributário subsequente praticado pela Administração Fiscal, constitui um acto autónomo que, em direito tributário, é um acto prejudicial em sentido técnico. XVII. A Administração Fiscal não tem competência em matéria de saúde, não estando o atestado médico passado pela entidade competente sujeito à livre apreciação da Administração Fiscal. XVIII. Com o requerimento feito pelo interessado à autoridade de saúde inicia-se um procedimento administrativo, no qual tem lugar uma prova pericial e que culmina com um acto administrativo praticado pela autoridade de saúde, de posse do qual o contribuinte vai reivindicar o seu direito junto da AF. XIX. O acto da autoridade de saúde, como acto prejudicial que é, pertencendo a outra autoridade diferente da autoridade fiscal, precedendo o acto tributário, implica que quem pratica este deve conformar-se com a decisão dada pela autoridade de saúde, dado o carácter técnico das questões ou interesses em causa, devendo impugná-lo contenciosamente, no caso de entender que o mesmo padece de invalidade, por se tratar de acto susceptível de impugnação judicial directa, independente do acto prejudicado, sob pena de preclusão do respectivo conhecimento. XX. Se o acto prejudicial é estranho à Administração Fiscal, cabe recurso contencioso do mesmo para os Tribunais administrativos. XXI. No caso, nem a AF nem ninguém impugnou contenciosamente o referido acto prejudicial no prazo legal, nem ninguém o revogou ou arguiu de falso, pelo que o mesmo se firmou na ordem jurídica como um caso decidido ou caso resolvido, com valor de caso julgado, estando a AF legalmente obrigada a respeitá-lo integralmente. XXII. O acto da entidade de saúde, como acto administrativo que é, goza da presunção de verdade e de legalidade, sendo obrigatórios, quer para os particulares, quer para a Administração, pelo que de modo algum poderia a AF, sem sindicar o acto pela via contenciosa, destruir essa presunção. XXIII. No sentido defendido no presente recurso se pronunciou já a Secção do Contencioso Tributário, em Pleno, do venerando Supremo Tribunal Administrativo, no rec.º n.º 24.305, em caso precisamente igual ao dos presentes autos. XXIV. Salvo o devido respeito foram violadas, entre outras, as disposições dos arts. 660º/2 e 668º/1/d) do CPC, 10º/1, 11º, 12º/4 e 44º do EBF [Estatuto dos Benefícios Fiscais], 13º, 106º/2, 168º/1, i) e 2 da CRP, 16º, 17º/a) e b) e
144º/1 do CPT, 7º/1 e 2 do DL 202/96, de 23.10.”
Por acórdão de 21 de Novembro de 2000, o Tribunal Central Administrativo negou provimento ao recurso, baseado nos seguintes fundamentos:
“O benefício fiscal em causa, em nosso entender, (elevação em 50% das deduções referidas nos art.ºs 25º e 80º do CIRS e 44º do EBF), não depende do seu reconhecimento pela AF, antes resulta automaticamente da Lei, comprovada que esteja, pela entidade competente, o grau de incapacidade que a lei considera relevante para efeitos fiscais, no caso ‘um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60%’ (cfr. n.º 3 do citado art.º 25º e n.º 6 do art.º 80º do CIRS e ainda o n.º 5 do art.º 44º do EBF).
(...)
4.3. Outra questão também invocada pelos impugnantes para a procedência da impugnação é de ser inconstitucional o despacho que deu causa à liquidação – solicitação de novo atestado médico, nos termos referidos – por ofender o princípio da igualdade, na vertente de apenas no âmbito das DDFs de Viana do Castelo e Braga a AF ter adoptado o comportamento referido para com os cidadãos portadores de deficiência – art.º 61º e segs. da petição. Em primeiro lugar, a inconstitucionalidade apenas se pode reportar a normas, que não a qualquer outro tipo de actos, sendo a inconstitucionalidade um vício próprio de actos normativos, que não de despachos, que, directa e imediatamente, podem violar a lei ao abrigo da qual são emitidos, e por isso neste caso, serão ilegais. Se essa lei ao abrigo da qual são emitidos é ela própria ilegal por ofender norma constitucional, não se pode dizer que o acto administrativo seja inconstitucional, mas sim ilegal, havendo então de não aplicar a lei, por inconstitucional, ficando o despacho sem arrimo legal e, daí a sua ilegalidade.
(...) E a alteração do critério, de comprovação da incapacidade, por banda da AF, também não viola quaisquer legítimas expectativas, no caso, por a mesma, como qualquer outro aplicador do direito, ter de interpretar as normas aplicáveis, e, quando verifica que a interpretação seguida não é a mais adequada, não deve persistir no erro. É evidente, que nesta sua ‘nova’ interpretação a AF se encontra sujeita a observar, para além das boas regras de interpretação, a não violar os direitos e legítimos interesses dos particulares, como aconteceria com qualquer outra interpretação e aplicação da lei, em qualquer outro caso.
(...) Note-se que, ao entender que o critério relevante para determinação de incapacidades é diferente do que foi seguido ao emitir-se o atestado referido nos autos, a Administração fiscal não está a retirar valor probatório àquele atestado, pois nem está a pôr em dúvida o que nele se declara. Com efeito, em nenhum ponto da matéria de facto ou no texto da referida Circular da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos se afirma que a impugnante não tenha o grau de incapacidade que se refere no atestado, à face dos critérios de avaliação que na sua elaboração foram utilizados. Na verdade, segundo transparece da Circular da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos referida, o que a Administração Fiscal entendeu, ao exigir o novo atestado, é que o critério que, até 20.12.95, presidira à elaboração dos atestados referentes a deficiências de hipovisão (avaliação sem ter em conta as possibilidades de correcção destas deficiências) não era o que deveria ser utilizado para avaliação de incapacidades relevantes para efeitos de aplicação do regime de IRS dos deficientes, que era o da avaliação das ‘consequências funcionais que persistirem mesmo após a melhor correcção óptica conseguida, designadamente com recurso a óculos e lentes de contacto’. O atestado referido, assim, mantém intacto o seu valor, mas prova aquilo que nele se diz (o grau de incapacidade sem ter em conta possibilidades de correcção) e não o que nele se não diz (o grau de incapacidade residual, após esgotamento das possibilidades de correcção).
(...) Não se encontra, assim, a liquidação em causa afectada de qualquer vício que a inquine, designadamente, de erro nos pressupostos, de acordo com os factos provados, não podendo a impugnação deixar de improceder, sendo de negar provimento ao recurso e de confirmar a sentença recorrida que também assim decidiu.”
3.Os impugnantes recorreram desta decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando que “entre o Douto acórdão proferido no presente processo a fls... e o douto Acórdão desta mesma Secção proferido no processo n.º
1.874/99 (recurso jurisdicional), cuja certidão se juntou com o requerimento de interposição do recurso, existe a oposição exigida pela lei.”
O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 27 de Junho de 2002, decidiu pela oposição de julgados, ordenando o prosseguimento dos termos do recurso.
Em sede de recurso por oposição de julgados, os recorrentes concluíram assim as suas alegações:
“I. Na solução dos caso dos autos haverá de ter-se em conta que se está perante normas (arts. 25º/3 e 80º/6 do CIRS e 44º do EBF) sujeitas ao princípio constitucional da legalidade tributária de reserva de lei formal, o que implica que nesta matéria a competência para a definição dos pressupostos dos benefícios fiscais cabe à Assembleia da República ou ao Governo mediante a respectiva autorização legislativa – arts. 106º/2, 168º/1, i) e 2 da CRP, sendo que, por isso, todo o critério de decisão tem, necessariamente, de constar de lei fiscal, não sendo admissível que seja a Administração a definir quaisquer dos seus elementos caracterizadores, sob pena de inconstitucionalidade material;
(...) VI. Actuando como actuou, a AF agiu como se lhe coubesse, a ela própria, definir o critério legal de verificação de incapacidade, impondo-o à própria autoridade de saúde competente, extravasando, manifestamente, dos poderes e competências que tem; VII. A entrada em vigor do DL. 202/96, de 23.10, em nada alterou este estado de coisas; VIII. Este diploma é inovador e não meramente interpretativo, entrou em vigor em
30 de Novembro de 1996 e o próprio legislador logo tratou de fixar o âmbito e grau da sua retroactividade no seu art. 7º, pelo que, tudo quanto vá para além desse grau – aplicação aos processos de avaliação de incapacidade (e não quaisquer outros) pendentes –, é ilegal, por violação manifesta do princípio geral do tempus regit actum consagrado no art. 12º do C. Civil;
(...) XI. À data em que entrou em vigor o DL. n.º 202/96, já havia nascido na esfera jurídica dos recorrentes o direito ao benefício fiscal em causa nos autos, porque já se encontrava comprovada a factualidade descrita na hipótese legal (a incapacidade permanente igual ou superior a 60%) pelo atestado médico respectivo, passado pela entidade competente, no domínio da lei vigente e de acordo com esta; XII. A aplicação dos critérios do DL. n.º 202/96 ao caso dos autos implicaria, pois, a aplicação retroactiva do mesmo, como tal, de forma ilegal; XIII. A exigência de novos atestados médicos resultaria na revogação ou anulação de um direito já adquirido pelos recorrentes;
(...) XVI. A AF está sujeita ao princípio da legalidade, devendo inteira obediência à Constituição e à lei, não podendo desconhecer e desrespeitar o valor e limites do caso decidido ou caso resolvido, pondo em causa, em qualquer momento, a estabilidade dos actos administrativos e valores fundamentais do Direito como são a Certeza e a Segurança; XVII. O exame e atestação de uma certa incapacidade permanente concreta, em face do acto tributário subsequente praticado pela Administração Fiscal constitui um acto autónomo que, em direito tributário, é um acto prejudicial em sentido técnico;
(...) XXI. Se o acto prejudicial é estranho à Administração Fiscal, cabe recurso contencioso do mesmo para os Tribunais Administrativos; XXII. No caso, nem a AF nem ninguém impugnou contenciosamente o referido acto prejudicial no prazo legal, nem ninguém o revogou ou arguiu de falso, pelo que o mesmo se firmou na ordem jurídica como um caso decidido ou caso resolvido, com valor de caso julgado, estando a AF legalmente obrigada a respeitá-lo integralmente; XXIII. O acto da entidade de saúde, como acto administrativo que é, goza da presunção de verdade e de legalidade, sendo obrigatório, quer para os particulares, quer para a Administração, pelo que de modo algum poderia a AF, sem sindicar o acto pela via contenciosa, destruir essa presunção;
(...) XXXVII. A AF não adoptou um procedimento generalizado, uniforme e igual em relação à totalidade dos contribuintes, antes tendo investido apenas em relação aos contribuintes de Viana do Castelo e de Braga e, mesmo assim, apenas em relação aqueles que adquiriram o benefício fiscal referido nos autos posteriormente a 1994, alheando-se do resto do País e dos contribuintes que adquiriram o mesmo benefício anteriormente a 1994, o que constitui manifesta violação do princípio da igualdade. XXXVIII. O acto impugnado, com o sentido e alcance que lhe é dado no douto Acórdão recorrido, constitui flagrante violação do princípio da confiança e da protecção das expectativas dos cidadãos. XL. Salvo o devido respeito foram violadas, entre outras, as disposições dos arts. 10º/1, 11º, 12º/4 e 44º do EBF, 14º/1, 2, 3, 4, 5 e 7, 25º e 80º do CIRS,
13º, 106º/2, 168º/1, i) e 266º/2 da CRP, 16º, 17º/a) e b) e 144º/1 do CPT e 7º/1 e 2 do DL 202/96, de 23.10.”
Por acórdão de 6 de Março de 2002, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu negar provimento ao recurso, baseado nos seguintes fundamentos:
“A questão decidenda é a de saber se, relativamente à liquidação do IRS do ano de 1996 e para efeitos do benefício fiscal previsto nos arts. 25º e 80º do CIRS e 44º do EBF, podia ou não a Administração Fiscal (AF) deixar de considerar os atestados médicos emitidos pela autoridade de saúde concelhia donde resulta terem os recorrentes um grau de incapacidade de carácter permanente superior a
60%, sendo tais atestados emitidos anteriormente ao novo critério de avaliação constante da circular normativa n.º 22/DSO, de 15.12.95, da DGS e anteriormente
à entrada em vigor do DL 202/96, de 23.10, e, consequentemente, se a liquidação do referido imposto feita pela AF sem ter em consideração o grau de eficiência constante dos referidos atestados enfermava, ou não, de ilegalidade.
(...) Exposto o quadro factual disponível, cabe notar que problemática absolutamente idêntica à colocada no presente recurso foi enfrentada por esta formação no acórdão tirado no processo n.º 25 801, em 26 de Setembro último, nele se concluindo pela legalidade da recusa, por banda da Administração Fiscal, de atestado médico em data anterior à vigência do DL n.º 202/96, de 23.X, por isso que o mesmo não revela o grau de deficiência oftalmológica após aplicação de meios de correcção ou compensação. Assentou tal decisão nos seguintes argumentos:
‘Nos termos do art. 13º, n.º 7, do C.I.R.S., a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeita. Por sua vez, o D.L. 202/96, de 23/10, entrou em vigor em 30/11/96 (art. 7º n.º
1), nele se estabelecendo o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência, tal como definida no art. 2º da Lei 9/89, de 2/Maio, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua plena participação na comunidade, desiderato, aliás, em consonância com o que dispõe no art.º 71º da C.R.P.. Por outro lado, segundo o art. 119º, n.º 1, do CIRS, a A.F. pode exigir aos sujeitos passivos a apresentação de documentos comprovativos dos factos ou situações mencionados na respectiva declaração. Ora, nos termos do anexo I, relativo a instruções gerais, do D.L. 202/96,
‘sempre que a disfunção possa ser atenuada, no todo ou em parte, pela aplicação de meios de correcção ou compensação (prótese, ortóteses ou outros), o coeficiente da capacidade arbitrado deve ser correspondente à disfunção residual após a aplicação de tais meios... (v. n.º 5 al. e)). Do atrás exposto decorre que, quanto aos rendimentos de 1996, a deficiência fiscalmente relevante deve ser comprovada através de atestado médico donde conste, após avaliação do défice funcional, um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, após aplicação de meios de correcção ou compensação, podendo a A.F. exigir tal documento, não para o avaliar enquanto acto de perícia médica, mas sim para o apreciar enquanto suporte do benefício pretendido face às exigências constantes do D.L. 202/96, por lhe caber o poder-dever de comprovar a situação ou o estado de deficiência mencionado na respectiva declaração. Assim sendo, para efeitos de IRS/1996 e seguintes, é, necessariamente, imprestável o atestado médico que não leva em conta o que agora se dispõe no D.L. 202/96, como é o caso daquele em que o recorrente se estriba para afirmar o seu direito ao benefício pretendido. Daí que a não apresentação de tal documento, conforme ao regime legal em vigor, impeça a obtenção da dedução pretendida, por não se mostrar comprovada a incapacidade que a propiciara. Com o que acaba de se dizer não é posto em causa o princípio da irrevogabilidade dos actos administrativos válidos, consagrado no art. 141º do C.P.A., pois nada impede que o legislador altere ou revogue a lei ao abrigo da qual foram praticados, assim destruindo para o futuro os seus efeitos. E também não é posta em causa a força probatória do atestado médico apresentado pelo contribuinte pois que mantém intacto o seu valor, provando, em certo momento, um determinado grau de incapacidade à luz do quadro legal então vigente; não demonstra, contudo, face aos parâmetros introduzidos pelo D.L.
202/96, que o grau de incapacidade é igual ou superior a 60% após a aplicação de meios de correcção ou compensação, só esse conferindo a dedução reclamada.
(...) Refira-se, por último, que a afirmação contida na conclusão XXVII, segundo a qual os contribuintes de Viana do Castelo e Braga foram discriminados negativamente, não carece de outra pronúncia que não seja a de afirmar que, a esse propósito, nada consta do probatório da peça recorrida nem ocorre a antinomia legitimadora do presente recurso por oposição de julgados.’ Não tendo, entrementes, surgido argumentação susceptível de contrariar tal reafirmação (há menos de meio ano) do entendimento deste Pleno na matéria sub judicio, mantemo-lo, tendo sobremaneira em mente o estatuído no artigo 8º do Código Civil.”
4.Desta decisão, “que aplicou quer a norma estatuída no n.º 2 do art. 7º do Dec.-Lei n.º 202/96, de 23.10, quer a norma estatuída na alínea e) do ponto 5. do anexo I do mesmo Dec.-Lei n.º 202/96, de 23.10”, interpuseram os recorrentes o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, por violação dos “princípios constitucionais da competência legislativa do Governo (...), bem como [d]os princípios constitucionais previstos no art. 106º da CRP, versão de 1982, agora art. 103º, da CRP, versão de 1997.”
Notificados, os recorrentes concluíram as suas alegações nos seguintes termos:
“1ª O presente recurso deve ser admitido porquanto os recorridos suscitaram a inconstitucionalidade das normas do D.L. n.º 202/96, de 23.10, no decurso dos autos; mas, porém, o S.T.A. entendeu que as mesmas não são inconstitucionais e procedeu à sua aplicação na decisão de que se recorre.
2ª As normas cuja inconstitucionalidade os recorrentes arguiram são as do n.º 2 do art.º 7º e a al. e) do ponto 5 do Anexo I, ambas daquele diploma legal.
3ª O S.T.A. entendeu que aquelas normas tornaram ‘imprestáveis’ todos os atestados médicos de incapacidade emitidos pelas entidades competentes até
30/11/1996 (data da entrada em vigor das referidas normas), e que atestavam a existência de deficiências superiores a 60%, pelo que as pessoas referidas em tais atestados eram legalmente classificadas e tratadas como deficientes.
4ª Esta actuação do S.T.A., no seguimento do comportamento da Administração Fiscal, resulta do facto de terem interpretado, um e outra, a norma do n.º 2 do art.º 7º do D.L. n.º 202/96, de 23.10, como aplicável a todos os processos fiscais, anuais, e a todos os processos de avaliação de incapacidades, mais entendendo que ainda fazia extinguir a validade de todas as classificações anteriores de deficientes.
5ª E resulta, ainda, da interpretação, quer do S.T.A, quer da A.F., de que deficiente passa a ser apenas aquele que apresenta uma incapacidade igual ou superior a 60% depois de essa incapacidade ser medida após a aplicação de um qualquer meio de compensação ou correcção (al. e) do ponto 5 do Anexo I).
6ª O S.T.A. (e a A.F.) interpretou e aplicou o art.º 7º, n.º 2, em apreço, como uma norma que impõe novas regras de avaliação de incapacidades e determinação de deficiências a todos os deficientes, mesmo àqueles que já anteriormente haviam sido declarados deficientes.
7ª Deixando de ser deficientes os que haviam sido anteriormente declarados como... deficientes, mas que não se sujeitaram a novos exames nos termos do D.L. n.º 202/96.
8ª Retirando-lhes, assim, os benefícios fiscais que, até então, gozavam nos termos da lei (art.º 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais).
9ª Ora, a aplicação, por força da conclusão 4ª supra, do D.L. 202/96, de 23.10 a todos os deficientes, mesmo àqueles que já tinham sido considerados deficientes anteriormente a 30/11/1996, significa que o Governo alterou, pela via legislativa, matéria relativa aos direitos e garantias fundamentais dos deficientes, pois que aqueles que estavam legalmente reconhecidos como tais deixaram de o estar, deixaram de ser reconhecidos e tratados como deficientes.
10ª A salvaguarda dos direitos dos deficientes é matéria de direitos e garantias fundamentais, prevista no art.º 71° da CRP de 1992 (aqui aplicável atendendo às datas de publicação e entrada em vigor das normas em questão), pelo que compete
à Assembleia da República legislar sobre estas matérias, salvo autorização ao Governo, pois trata-se de matérias que afectam direitos, liberdades e garantias e ainda o estado e capacidade das pessoas. Cfr. artº 168º, n.º 1, als. a) e b), da CRP de 1992.
11ª Assim, porque o Governo não pode legislar sobre matérias de direitos e garantias fundamentais sem autorização legislativa da A.R.; e porque o fez no n.º 2 do art.º 7º do D.L. n.º 202/96, segundo a interpretação e aplicação do S.T.A. (e da A.F.), esta norma é organicamente inconstitucional.
12ª Por outro lado, e em consequência das conclusões anteriores, o S.T.A. interpretou e aplicou a al. e) do ponto 5 do Anexo I daquele D.L., como uma nova definição do que é um deficiente, em clara violação da definição de deficiente resultante da interpretação do art.º 71°, da CRP de 1992.
13ª E para o S.T.A. (e para a A.F.), aquela norma aplica-se a todos os deficientes, mesmo àqueles que já o tinham sido declarados antes de 30/11/1996, porque a partir dessa data (segundo o S.T.A. e a A.F.) deixaram de o ser, até que se submetam a novos exames e juntas médicas, nos termos daquele D.L. 202/96.
14ª Pois que, agora, na interpretação/aplicação daquela norma segundo o S.T.A e a A.F., só são deficientes aqueles que forem portadores de uma incapacidade igual ou superior a 60%, mas medida após a aplicação de um qualquer meio de correcção ou compensação da deficiência.
15ª Desta interpretação da norma resulta que o Governo alterou o conteúdo e a substância do conceito e princípio constitucional do deficiente e da salvaguarda dos seus direitos, o que repete os vícios aludidos na conclusão 10ª supra, pelo que tal normativo é, por isso, organicamente inconstitucional.
16ª Mas é também materialmente inconstitucional por violação do princípio da salvaguarda dos direitos e garantias do deficiente (art.º 71º da CRP de 1992) e do princípio da igualdade (art.º 13º, n.º 1, da CRP de 1992).
17ª E quanto mais não fosse, sempre aquela interpretação seria, pelo menos materialmente inconstitucional quanto ao ano fiscal de 1996 e anteriores, por violação do princípio da não retroactividade dos preceitos restritivos dos direitos e garantias dos cidadãos (art.º 18º, n.º 3, da CRP de 1992).
18ª Pois que o conceito materialmente constitucional de deficiente refere-se a deficiências naturais e ao seu impacto enquanto tais na diminuição da capacidade de desempenhar uma actividade considerada normal; não desaparecendo, nem se curando, essas deficiências com o uso e aplicação de um qualquer meio de correcção ou compensação, meios estes que se integram, isso sim, na concretização do direito fundamental de salvaguarda dos direitos e garantias do deficiente, sendo, inclusivé, obrigação do Estado assegurar o acesso a tais meios na concretização desse mesmo direito e princípio constitucional.
19ª Ao não considerar assim, e ao aplicar aquelas normas aos presentes autos, os recorrentes consideram que a decisão do S.T.A. violou o disposto nos art.ºs
168º, n.º 1, als. a) e b), 13º, n.º 1, 18º, n.º 3, e 71º, todos da CRP de 1992.” Notificada para contra-alegar, a Fazenda Pública pugnou pela manutenção do acórdão recorrido.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
5.As únicas normas impugnadas no presente recurso são o artigo 7º, n.º 2, e o anexo I, n.º 5, alínea e), do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, desde logo, por terem sido as únicas indicadas no requerimento de interposição do recurso, e ser neste que se delimita o seu objecto – cfr., por exemplo, acórdãos n.ºs 634/94, 20/97 e 243/97, publicados, respectivamente, no Diário da República
(DR), II Série, de 31 de Janeiro de 1995, de 1 de Março de 1997 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., pp. 609-614. É a seguinte a sua redacção:
“Artigo 7º Entrada em vigor
1. ...
2. O presente diploma aplica-se com as devidas adaptações aos processos em curso.”
“Anexo I
1. ...
2. ...
3. ...
4. ...
5. Na determinação do valor final da incapacidade, devem ser observadas as seguintes normas gerais, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número, desde que não contraditórias destas:
a)...
b)...
c)...
d)...
e) Sempre que a disfunção possa ser atenuada, no todo ou em parte, pela aplicação de meios de correcção ou compensação (próteses, ortóteses ou outros), o coeficiente de capacidade arbitrado deve ser correspondente à disfunção residual após aplicação de tais meios, sem limites máximos de redução dos coeficientes previstos na Tabela.”
Ambas as normas vêm impugnadas por inconstitucionalidade orgânica e também por inconstitucionalidade material: a primeira norma por implicar “violação do princípio da não retroactividade dos preceitos restritivos dos direitos e garantias dos cidadãos (art. 18º, n.º 3, da CRP de 1992)”, a segunda por
“violação do princípio da salvaguarda dos direitos e garantias do deficiente
(art. 71º da CRP de 1992) e do princípio da igualdade (art. 13º, n.º 1, da CRP de 1982).”
6.Sobre a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 202/96 já se pronunciou este Tribunal, no seu Acórdão n.º 173/03 (publicado no DR, II Série, de 22 de Maio de 2003), escrevendo-se aí o seguinte:
“(…)
7. A verdade é que em qualquer das duas vias argumentativas se tem como adquirido aquilo que justamente haveria que demonstrar, ou seja, que a definição de deficiente acolhida no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e no Estatuto dos Benefícios Fiscais como ‘aquele que apresente um grau de invalidez permanente, devidamente comprovado pela entidade competente, igual ou superior a 60%’, se apresenta como indissociável dos critérios e procedimentos que permitem concluir pela verificação do grau de invalidez em causa. Seria esta indissociabilidade que tornaria extensível às instruções gerais e específicas, contidas na Tabela Nacional de Incapacidades, de acordo com as quais se determina o valor da incapacidade, expresso em percentagem, a reserva de competência legislativa sobre tais matérias à Assembleia da República. O argumento não procede, no entanto, por várias razões. Em primeiro lugar, a afirmação dos recorrentes, aliás indemonstrada, segundo a qual a definição de deficiente, para efeitos fiscais, como todo aquele que apresente um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60% teve em atenção o que no sistema jurídico vigente se traduzia num grau de invalidez permanente com essa percentagem, não permite concluir que a alteração do sistema jurídico vigente quanto a este aspecto implique, só por si, uma alteração daquela definição. Essa conclusão não seria sequer logicamente necessária ainda que se adoptasse na interpretação das normas onde se contém aquela definição (à data dos factos, os artigos 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, e 25º e 80º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
442-A/88, de 30 de Dezembro) uma orientação subjectivista e historicista, dificilmente defensável. Ora, a argumentação dos recorrentes quanto à inconstitucionalidade orgânica só poderia, eventualmente, proceder, caso se demonstrasse que estas implicam uma alteração da definição de deficiente para efeitos fiscais, o que justamente não sucede. As regras relativas à avaliação da incapacidade, objecto das normas impugnadas, respeitam a uma matéria completamente distinta dos benefícios fiscais a que se referem os artigos 27º da Lei n.º 106/88, de 17 de Dezembro, 25º e 80º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Dezembro, e autorizados pela referida Lei n.º 106/88) ou
44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de
1 de Julho, emitido ao abrigo da Lei n.º 8/89, de 22 de Abril). Enquanto estas normas contêm conceitos necessariamente genéricos tendo em vista, designadamente, a sua aplicação num horizonte temporal longo, as normas impugnadas, bem como as instruções contidas na Tabela Nacional de Incapacidades, têm um carácter eminentemente técnico, o que determina, desde logo, que a sua alteração não dependa essencialmente de decisões valorativas do legislador, mas de considerações provindas de ciências alheias ao direito. O que poderia suceder, no limite, é que essas considerações aconselhassem uma alteração da definição legal de deficiente para efeitos de atribuição de benefícios fiscais e, nesse caso, mas só nesse caso, seria necessária uma intervenção legislativa da Assembleia da República, a coberto do disposto nos actuais artigos 103º, n.º
2, e 165º, n.º 1, alínea i), da Constituição.
8. Em segundo lugar, na sequência do que acaba de ser dito e de modo ainda mais decisivo a argumentação dos recorrentes quanto à inconstitucionalidade orgânica esquece o objecto próprio das mesmas. Estas como se sabe versam sobre o regime de avaliação de incapacidades das pessoas com deficiência alterando no seu
âmbito de aplicação as instruções gerais constantes da Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro. Tais normas revestem um indubitável carácter técnico como resulta da simples leitura das instruções gerais constantes do Anexo I ao diploma onde se contêm.”
E depois de se invocar a semelhança da questão de constitucionalidade orgânica, então em apreciação, com outras já antes apreciadas pelo Tribunal Constitucional, e de se transcrever parte da fundamentação do Acórdão n.º 236/01
(publicado no DR, II Série, de 18 de Julho de 2001), escreveu-se no aresto que se vem citando:
“Também aqui está em causa ‘a definição de determinados aspectos técnicos de regime que exprimem apenas um saber no qual o Direito se apoia e que não exige qualquer decisão valorativa.’ Isto mesmo se reconhece na sentença do Tribunal Tributário de Viana do Castelo confirmada pelo acórdão recorrido quando nela se afirma que caso se aceitasse a tese dos recorrentes ‘tudo se passaria como se a ciência médica não sofresse avanços como se aquilo para que hoje não se conhece a possibilidade de cura assim viesse a continuar para todo o sempre.’ Não procede assim a invocada inconstitucionalidade orgânica das normas impugnadas.”
No presente caso, há apenas que reiterar este juízo de inexistência de inconstitucionalidade orgânica, remetendo para a fundamentação transcrita.
7.Restam, pois, as questões de inconstitucionalidade material, referidas às normas constitucionais já invocadas no caso do referido Acórdão n.º 173/03
(artigos 18º e 71º da Constituição), mas que não chegaram a ser aí convocadas para a análise, por então apenas se ter posto “ao Tribunal Constitucional uma questão de inconstitucionalidade orgânica” – questões, essas, que também não chegaram a ser abordadas nos Acórdãos n.ºs 31/01 e 293/02 (não publicados, mas disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt; cfr. também o Acórdão n.º
173/2003).
Quanto à suposta retroactividade do regime do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro – em vigor a partir do dia 30 de Novembro de 1996, por força do disposto no n.º 1 do seu artigo 7º (“O presente diploma entra em vigor no último dia do mês seguinte ao da sua publicação”) –, quando aplicado ao ano fiscal de 1996, decidiu o acórdão recorrido que não existia tal retroactividade, desde logo, porque, nos termos do disposto no artigo 13º, n.º 7, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares,
“a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeita.
(...) aferindo-se a situação pessoal dos sujeitos passivos de IRS, no caso, a incapacidade fiscalmente relevante, a 31/12 do ano a que disser respeito, forçoso é concluir não se mostrar retroactiva a aplicação do D.L. 202/96, pois que, naquela data, já este se encontrava em vigor, com o que se mostram respeitados os princípios da legalidade tributária, certeza, confiança, segurança e protecção das expectativas dos cidadãos, uma vez que estes não podem legitimamente esperar a imutabilidade das leis, havendo antes que contar com a sua alteração pois que são instrumentos dinâmicos que visam moldar e regular situações de vida real, também estas em constante mutação.”
A decisão recorrida afastou, pois, expressamente, qualquer aplicação retroactiva da norma em questão.
Ora, não existindo, segundo o juízo do Tribunal a quo, aplicação retroactiva das normas impugnadas, é óbvio que a eventual inconstitucionalidade resultante de uma dimensão normativa que incluísse tal aplicação retroactiva não pode ser apreciada no âmbito do presente recurso: por um lado, porque o sentido julgado inconstitucional não obteve expressão na decisão recorrida, falhando logo um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto; por outro lado, porque uma eventual pronúncia de inconstitucionalidade em relação a essa dimensão normativa seria de todo irrelevante, na medida em que se não poderia projectar na decisão recorrida – o que, à luz da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade (cfr. Acórdãos n.ºs 208/86 e 275/86, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 3 de Novembro e de 17 de Dezembro de 1986) se não pode admitir.
Pode, por outro lado, deixar-se em aberto a questão de precisar os exactos termos em que a proibição de retroactividade é de aplicar a normas que afectam apenas benefícios fiscais do tipo dos que estão em causa no presente recurso, atendendo à sua específica natureza. Na verdade, ainda que se entenda que as normas em causa vêm impugnadas em si mesmas, e não numa sua dimensão interpretativa que conduza a uma aplicação retroactiva, é claro que, como decidiu o tribunal a quo, não se verifica no presente caso qualquer verdadeira retroactividade, uma vez que, segundo o citado artigo 13º, n.º 7, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é apenas “aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeita”, encontrando-se nesta data já em vigor a norma em questão. Ou seja: por força da norma em questão, os recorrentes sabiam, ou deviam saber, de antemão, que, antes do último dia do ano fiscal em causa, não podiam formar uma confiança legítima na manutenção do quadro legal vigente quanto ao apuramento do grau de incapacidade a considerar para efeitos fiscais – designadamente, quanto à consideração ou não dos meios de correcção ou compensação da disfunção. Por virtude dessa norma, que os deveria deixar de sobreaviso quanto à eventualidade de alteração do quadro legal, a frustração de qualquer eventual expectativa que hajam formado na imutabilidade das leis e com base em certificações médicas obtidas não pode ser considerada como resultante de uma qualquer aplicação retroactiva da lei constitucionalmente censurável.
8.Finalmente, importa apreciar a alegada “violação do princípio da salvaguarda dos direitos e garantias do deficiente (art. 71º da CRP de 1992) e do princípio da igualdade (art. 13º, n.º 1, da CRP de 1992).”
Quanto a este último, tem de ser liminarmente afastado, nos termos em que foi invocado, em sede de apreciação da conformidade constitucional de normas, as quais se aplicam, evidentemente, sem excepções ou restrições: na verdade não pode estar nesta apreciação em causa o controlo da actuação da Administração Fiscal, alegadamente selectiva segundo circunstâncias de tempo e lugar, ainda que, como se referiu na decisão recorrida, “a esse propósito, nada const[e] do probatório da peça recorrida”. Integrando essas normas, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 202/96, “o regime de avaliação de incapacidade dos deficientes tal como definidos no artigo 2º da Lei n.º 9/89, de 2 de Maio, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua plena participação na comunidade”, não há, na sua previsão, dois universos distintos que se possam contrastar para efeito de emitir um juízo de desigualdade.
Quanto à “salvaguarda dos direitos e garantias do deficiente”, mesmo entendendo resultar do artigo 71º da Constituição (quer na redacção invocada, quer na actual) que lhes é devido um tratamento favorável especificamente a nível fiscal
– questão que pode deixar-se em aberto –, é certo que tal não implica a inconstitucionalidade de qualquer alteração no regime de acesso a esse tratamento, e, designadamente, das alterações em causa, que se reportaram ao cálculo da deficiência relevante. Afigura-se, antes, que o que se previu nessa matéria, pelas normas em causa, integra a vertente positiva dos direitos reconhecidos constitucionalmente aos cidadãos portadores de deficiência – só nessa medida se tratando, aliás, “de um direito social propriamente dito” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra, 1993, p. 359, anotação I ao artigo 71º) – e está ao alcance da competência conformadora, por via legislativa, do Governo.
Assim, as alterações no “regime de avaliação de incapacidade” em nada ofendem aquele estatuto constitucional, não podendo, pois, as normas impugnadas padecer de inconstitucionalidade material por essa razão.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que às questões de constitucionalidade respeita, e condenar os recorrentes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2003
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos