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Processo n.º 718/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. O recorrente a. vem, ao abrigo do disposto no artigo
78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar para a conferência da decisão sumária, de 27 de Outubro de 2003, que decidiu, ao abrigo do n.º 1 desse artigo 78.º-A, não conhecer do recurso.
1.1. Essa decisão sumária tem a seguinte fundamentação:
“1. A. interpôs recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Outubro de 2003, que indeferiu, por manifesta falta de fundamento (artigo 223.º, n.º 6, do Código de Processo Penal – CPP), o pedido de habeas corpus por ele formulado.
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), pretendendo o recorrente ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 219.º do CPP, interpretada no sentido de que «... se os direitos de defesa ficarem sob ameaça por ter sido ultrapassado o prazo de 30 dias previsto no artigo 219.º do CPP, não há fundamento para se declarar a ilegalidade da medida coactiva, mas para o arguido requerer a aceleração do processo nos termos do artigo 108.º do CPP», por pretensa violação de «diversas normas constitucionais, a saber: o princípio da proibição da indefesa (artigo 32.º, n.º 1, e artigo 20.º, n.ºs 1 e 5), o princípio do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 5), o princípio do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1), o princípio do direito à celeridade das decisões das quais dependa uma situação de privação de liberdade inerente ao disposto no artigo 20.º, n.º 5, bem como da proibição da indeterminabilidade das medidas privativas de liberdade (artigo 30.º, n.º 1) e da imposição de um “due process of law” inerente ao princípio do acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1), do próprio direito à liberdade (artigo 27.º) e do princípio do Estado de Direito Democrático, todos previstos na Constituição da República Portuguesa», questões de inconstitucionalidade estas que teriam sido suscitadas no requerimento de habeas corpus.
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, decisão que, porém, não vincula este Tribunal Constitucional (artigo
76.º, n.º 3, da LTC).
E, de facto, entende-se que o presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2. Como se disse, o presente recurso vem interposto com invocação da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que pressupõe que o recorrente haja suscitada a questão da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s), como ratio decidendi, pela decisão recorrida «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de ele estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, lido o requerimento de habeas corpus, constata-se que nele a
única questão de constitucionalidade que eventualmente se poderia considerar como suscitada respeita a uma determinada interpretação do artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do CPP (e não da norma do seu artigo 219.º que, no n.º 2 do requerimento de interposição do recurso, vem indicada como a única que integra o seu objecto), que teria sido acolhida no acórdão recorrido e cujo sentido, aliás, o recorrente não especifica com o mínimo de concretização.
Conclui-se, assim, que nem o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de ele estar obrigado a dela conhecer»
– e tanto assim que o acórdão recorrido não sentiu necessidade de afrontar qualquer questão de inconstitucionalidade normativa –, nem a hipotética questão de inconstitucionalidade que, embora de modo inadequado, se poderia considerar suscitada no pedido de habeas corpus coincide com a questão de inconstitucionalidade que o recorrente indica, no respectivo requerimento de interposição, como integrando o objecto do presente recurso (aliás, com invocação de diversas normas e princípios constitucionais a que não fora feita a mínima alusão naquele pedido).
3. Em face do exposto, e sem necessidade de considerações suplementares (designadamente relativas ao carácter manifestamente infundado da questão de inconstitucionalidade suscitada), decide-se, ao abrigo do artigo
78.º-A, n.º 1, da LTC, não conhecer do recurso.”
1.2. A reclamação apresentada desenvolve a seguinte argumentação:
“1) Em 22 de Setembro de 2003, o ora reclamante interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça uma petição de habeas corpus por não ter sido cumprido pelo Tribunal da Relação de Lisboa o prazo imposto por lei para se pronunciar sobre a manutenção da prisão preventiva – 30 dias, nos termos do n.º
1 do artigo 219.º do CPP,
2) Que dispõe: «... da decisão que aplicar ou mantiver as medidas previstas no presente título, há recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos».
3) Por Acórdão de 1 de Outubro de 2003 (processo n.º 3308/03-5), que correu termos na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, foi proferida decisão de indeferimento da petição de habeas corpus com os seguintes fundamentos:
«... se os direitos de defesa ficarem sob ameaça por ter sido ultrapassado o prazo de 30 dias previsto no artigo 219.º do CPP, não há fundamento para se declarar a ilegalidade da medida coactiva, mas para o arguido requerer a aceleração do processo nos termos do artigo 108.º do CPP. (...) (cf. ponto 2, 11.º parágrafo.)
(...) O facto de em dada fase dos autos se ter excedido qualquer prazo processual, maxime o de 30 dias referido no artigo 219.º do citado Código, não interfere com a legalidade da prisão preventiva do arguido (...) (cf. ponto
2, 16.° parágrafo)
A violação do prazo referido (...) constitui uma mera irregularidade, que não pode enquadrar-se no fundamento do aludido artigo
222.º, n.º 2, alínea c), do CPP.» (cf. ponto 2, 16.° parágrafo)
4) Pretende o recorrente suscitar no Tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade do artigo 219.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretado naquele sentido, por tal interpretação dos artigos 219.º, n.º 1, e 222.º, ambos do Código de Processo Penal, ser claramente inconstitucional,
5) Pelo que interpôs recurso para este Tribunal em 10 de Outubro de
2003, tendo junto as respectivas alegações em 27 de Outubro de 2003.
6) Contudo, foi o ora reclamante notificado da não admissão do recurso, decidida ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, em 27 de Outubro de
2003,
7) A qual teve por base o seguinte fundamento:
«... lido o requerimento de habeas corpus, constata-se que nele a
única questão de constitucionalidade que eventualmente se poderia considerar como suscitada respeita a uma determinada interpretação do artigo 222.°, n.º 2, alínea c), do CPP (e não da norma do seu artigo 219.º, que, no n.º 2 do requerimento de interposição do recurso, vem indicada como a única que integra o seu objecto), que teria sido acolhida no acórdão recorrido e cujo sentido, aliás, o recorrente não especifica com um mínimo de concretização.
Conclui-se, assim, que nem o recorrente suscitou a questão inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de ele estar obrigado a dela conhecer”
– e tanto assim que o acórdão recorrido não sentiu necessidade de afrontar qualquer questão de inconstitucionalidade normativa –, nem a hipotética questão de inconstitucionalidade que, embora de modo inadequado, se poderia considerar suscitada no pedido de habeas corpus coincide com a que o recorrente indica, no respectivo requerimento de interposição, como integrando o objecto do presente recurso (aliás, com invocação de diversas normas e princípios constitucionais a que não fora feita a mínima alusão naquele pedido).»
8) Com efeito, a questão de constitucionalidade suscitada no requerimento de habeas corpus não coincide na íntegra, com aquela que é suscitada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, mas tal circunstância deve-se apenas ao facto de a tese por que optou o douto acórdão recorrido constituir, pelo seu conteúdo insólito e imprevisível, uma decisão inesperada que o arguido não podia previsível e razoavelmente antecipar.
9) Salvo o devido respeito, seria no mínimo um acto de excepcional criatividade e descrédito no poder jurisdicional, colocar antecipadamente à apreciação do Tribunal a questão da constitucionalidade de uma interpretação, do artigo 219.º do Código de Processo Penal, à data meramente hipotética, nos termos da qual a preterição do prazo de 30 dias aí previsto para o Tribunal se pronunciar relativamente ao recurso interposto da decisão que aplica ou mantém a prisão preventiva é classificada como «mera irregularidade» (cfr. ponto 2,
16.° parágrafo do acórdão recorrido).
10) E note-se que a «irregularidade» é a invalidade mais inócua que se encontra prevista no Código de Processo Penal,
11) «Irregularidade» esta que não poderia «enquadrar-se no fundamento do aludido artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do CPP» (cf. ponto 2, 16.° parágrafo do acórdão recorrido).
12) Portanto, por não lhe ser exigível a antecipação de tal solução, dado a mesma ser objectivamente surpreendente, é lícito ao reclamante suscitá-la aquando da interposição de recurso de fiscalização concreta,
13) O que fez, pois na verdade não podia o reclamante prever a dita interpretação.
14) Isto porque, se é certo que a alínea b) do [n.º 1 do] artigo
70.º da LTC pressupõe que o recorrente haja suscitado a questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas, não é menos certo que, de acordo com jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, «deve considerar-se o recorrente dispensado do ónus de suscitar a questão da inconstitucionalidade de certa norma antes da prolação da decisão recorrida quando não seja previsível a sua aplicação à decisão da causa» (Acórdão do Tribunal Constitucional, de 29 de Março de 1995, proc. n.º 802/93, Relator: Cons. Ribeiro Mendes, disponível em
www.dgsi.pt. Também neste sentido, inter alia: Acórdão n.º 155/00, proc. n.º
13/00, 3.ª Secção, Relator: Cons. Tavares da Costa; Acórdão n.º 74/00, proc. n.º
790/99, 1.ª Secção, Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito, todos do Tribunal Constitucional, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
15) E, como se pode verificar pelo que se explicita no Acórdão abaixo citado, esta orientação tem plena aplicabilidade no caso vertente:
«Tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo é precisamente a daqueles casos em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão.» (Acórdão n.º 156/99, proc. n.º 79/99, 3.ª Secção, Relator: Cons. Sousa e Brito, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
16) «E não se diga que aqueles preceitos haviam sido já, por outras vezes, interpretados e aplicados pelo Supremo Tribunal de Justiça com aquela dimensão normativa devido ao conteúdo da decisão citada naquele Acórdão, onde se lê:
[sic]
17) Pois tal Acórdão versa sobre a situação em que a decisão do Tribunal da Relação tinha já transitado em julgado, o que não sucedia no caso em apreço no momento em que foi proferida a decisão relativa ao habeas corpus pelo Supremo Tribunal de Justiça.
18) Ainda que não se considerasse imprevisível aquela decisão do Supremo Tribunal de Justiça, no que não se concede e por mera cautela de patrocínio se pondera, relativamente à parte da decisão reclamada que se reproduz no parágrafo 7) supra, cumpre referir o seguinte:
19) Ao contrário do que se afirma na decisão ora reclamada, o objecto do requerimento de interposição de recurso integra não somente uma interpretação do artigo 219.º do Código de Processo Penal, mas uma concertada do disposto nesta disposição e no artigo 222.º do mesmo Código, tendo-se requerido a fiscalização de constitucionalidade da interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça àquela norma nos seguintes termos:
«Pretende o recorrente suscitar no tribunal ad quem a apreciação da constitucionalidade do artigo 219.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que
“... se os direitos de defesa ficarem sob ameaça por ter sido ultrapassado o prazo de 30 dias previsto no artigo 219.º do CPP, não há fundamento para se declarar a ilegalidade da medida coactiva, mas para o arguido requerer a aceleração do processo nos termos do artigo 108.º do CPP.” (cfr. ponto 2, 11.º parágrafo, do acórdão recorrido)
“O facto de em dada fase dos autos se ter excedido qualquer prazo de processual, maxime o de 30 dias referido no artigo 219.º do citado Código, não interfere com a legalidade da prisão preventiva do arguido.” (cf. ponto 2, 16.° parágrafo, do acórdão recorrido)
“A violação do prazo referido (...) constitui uma mera irregularidade, que não pode enquadrar-se no fundamento do aludido artigo
222.º, n.º 2, alínea c), do CPP.” (cf. ponto 2, 16.° parágrafo, do acórdão recorrido)”.»
20) Ora, explicitou no seu requerimento de interposição de recurso o ora reclamante que tal interpretação viola diversas normas da Constituição da República Portuguesa, a saber:
a) O princípio da proibição da indefesa (artigo 32.º, n.º 1, e artigo 20.º, n.ºs 1 e 5);
b) o princípio do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigo
20.º, n.º 5);
c) o princípio do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1);
d) o princípio do direito à celeridade das decisões das quais dependa uma situação de privação de liberdade inerente ao disposto no artigo
20.º, n.º 5;
e) o princípio da proibição da indeterminabilidade das medidas privativas de liberdade (artigo 30.º, n.º 1);
f) o princípio da imposição de um «due process of law» inerente ao princípio do acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1); g) o princípio do direito à liberdade (artigo 27.º) e h) o princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.° da CRP).
21) E não mais se alongou com explicações adicionais o ora reclamante, porquanto tal detalhe não era necessário para delimitar o objecto do recurso e apenas se exige em sede de alegações.
22) Não obstante, ainda que não tenha sido formulada de igual modo, conclui-se que o reclamante suscitou a mesma questão de inconstitucionalidade no requerimento de habeas corpus, pois nesse requerimento se lê:
«Do Direito
Dispõe a lei nos termos do artigo 219.º do CPP: “... da decisão que aplicar ou mantiver as medidas previstas no presente título, há recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos”.
Ora, o habeas corpus constitui uma providência extraordinária destinada a pôr termo a uma prisão ou a uma detenção ilegal.
(...) impõe-se a aplicabilidade da norma constante do artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do CPP, porquanto, se é certo que aquela norma se refere a
“decisões judiciais”, não é menos certo que a tutela do direito à liberdade do arguido, assegurado como direito fundamental e pelo disposto no artigo 27.° da Constituição da República Portuguesa, não se compadece com interpretações restritivas da lei por forma a excluir as situações de non liquet por parte dos tribunais daquele dispositivo legal.
A relevância da omissão para a verificação de situações de prisão ilegal foi, inclusivamente, referida em jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça, onde se lê sobre a providência ora peticionada que se trata de: “.... providência destinada a pôr fim expedito a situações de ilegalidade (...). E se tal ilegalidade [já] não se verificar no momento de apreciação da providência, nomeadamente por ter sido suprida qualquer omissão em falta, o requerimento improcede.” [sublinhado nosso] (Ac. do STJ, de 27 de Março de 2003, proc. 3P1205, disponível em www.dgsi.pt).
Entendimento contrário constituiria, aliás, inconstitucionalidade material por força da violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe «garantias do processo penal», onde se lê:
«O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa».
Bem como por violação do princípio do Estado de direito democrático igualmente previsto na Lei fundamental uma vez que, como se lê na jurisprudência do Tribunal Constitucional:
«O primado do Estado de direito democrático, expressamente referido no preâmbulo da versão originária da Constituição (...) sempre garantiria seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica. Assim, uma normação ordinária que desencadeie, de forma intolerável, arbitrária ou demasiadamente opressiva, obstáculos a esse mínimo de certeza, necessariamente se terá de considerar inviabilizada pelo princípio do Estado de direito democrático.
Os cidadãos devem poder prever as intervenções que o Estado poderá, perante ou sobre eles desencadear, assim adequando toda a sua actuação de harmonia com o “direito” reconhecido pela ordem jurídica ...»
Como se explicitava no Decreto n.º 35 043, de 20 de Outubro de 1945, que institucionalizou a providência ora peticionada: «O grande desafio do ordenamento jurídico-penal de um país é a conciliação dos princípios aceites da autoridade e da liberdade, pilares fundamentais da vida social; para essa conciliação concorre a providência em causa, de carácter extraordinário, contra o abuso da autoridade, a qual só tem aplicação quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos; e um remédio excepcional nos casos em que não haja qualquer outro meio legal para fazer cessar a ofensa à liberdade...»
23) De onde resulta que no requerimento de habeas corpus se suscitou a questão da proibição da indefesa, embora não tenha sido expressamente designada dessa forma,
24) E que, inclusivamente, no âmbito dessa fundamentação, foi feita expressa referência aos princípios do direito à liberdade, do direito à defesa e ao princípio do Estado de direito democrático, consagrados nos artigos 27.°, 32.° e
2.° da Constituição, respectivamente.
Termos em que se requer a V. Ex.as que seja a presente reclamação julgada procedente por provada e, consequentemente, admitido o recurso interposto para o Tribunal Constitucional a que a presente reclamação se refere, seguindo-se os ulteriores termos do processo até final.”
1.3. Notificado desta reclamação, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou a seguinte resposta:
“1.º – A presente reclamação é improcedente, já que o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, a questão de inconstitucionalidade que integra o objecto do recurso, cujos pressupostos se não verificam, em consequência.
2.º – E sendo evidente que o decidido pelo Supremo, no âmbito da providência de habeas corpus, não pode seguramente perspectivar-se como decisão surpresa, já que a questão controvertida se conexionar precisamente com os efeitos processuais do não respeito do prazo de 30 dias, para proferir decisão, previsto no artigo 219.° do Código de Processo Penal.
3.º – Sendo naturalmente perspectivável a eventualidade de o Supremo se orientar para a solução que efectivamente acolheu no acórdão recorrido.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como se referiu na decisão sumária ora reclamada e o reclamante, em rigor, acaba por reconhecer, no requerimento de habeas corpus não foi adequadamente suscitada nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, com precisa identificação de uma qualquer interpretação normativa que se reputasse violadora da Lei Fundamental, quer tendo por suporte o artigo 219.º, quer o artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Sustenta agora o reclamante que a interpretação normativa acolhida no acórdão impugnado surge como uma decisão surpresa, preenchendo uma das hipóteses excepcionais em que é admissível o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC independentemente de o recorrente haver suscitado a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida.
Recorde-se que, no caso, encontrando-se o reclamante detido desde 3 de Junho de 2002 e sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, em processo que foi declarado de especial complexidade, no qual foi deduzida acusação em 3 de Junho de 2003, é de 3 anos – isto é, até 3 de Junho de
2005 – o prazo da prisão preventiva até condenação em primeira instância (artigo
215.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). O reclamante fundou o seu pedido de habeas corpus na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do mesmo Código, que considera ilegal a prisão preventiva que se mantenha para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial, excesso de duração este que derivaria do facto de o Tribunal da Relação não ter respeitado o prazo máximo de 30 dias, fixado no artigo 219.º, para ser julgado o recurso interposto da decisão que aplicou a prisão preventiva.
A interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido
– que o reclamante pretende ter constituído uma interpretação insólita e inesperada – assentou no entendimento de que o prazo de 30 dias previsto no citado artigo 219.º “não é um prazo de duração máxima da prisão preventiva, o qual está previsto nos artigos 215.º e 216.º do CPP”, sendo “antes um prazo para bom ordenamento processual, relativamente ao momento até ao qual deve ser decidido o recurso interposto contra a aplicação de uma das medidas de coacção”, prosseguindo:
“Sem dúvida que é um prazo estabelecido na lei para protecção dos direitos de defesa, particularmente de quem está sujeito à medida mais gravosa de coacção. O arguido em prisão preventiva tem o direito de ver decidido, de forma particularmente expedita, o recurso interposto sobre a aplicação ou manutenção dessa medida.
Mas não é um prazo que contenda com a legalidade da aplicação da manutenção da medida coactiva, pois essa legalidade resulta directamente do despacho recorrido. E este mantém os seus efeitos, independentemente de ainda não ter havido decisão do recurso, já que não lhe foi fixado efeito suspensivo
(cf. o artigo 408.º do CPP, a contrario).
E também não é um prazo de contagem da prisão preventiva, nem interfere com essa contagem.
Assim, há que concluir que, se os direitos de defesa ficarem sob ameaça por ter sido ultrapassado o prazo de 30 dias previsto no artigo 219.º do CPP, não há fundamento para se declarar a ilegalidade da medida coactiva, mas para o arguido requerer a aceleração do processo nos termos do artigo 108.º do CPP.
E, requerida que fosse a aceleração do processo, muitas vezes se constatará que o prazo de 30 dias é escasso, pois os recursos processados em separado vêm habitualmente com insuficiências de instrução e há ainda que respeitar todas as formalidades legais, designadamente os artigos 416.º e
417.º, n.º 2, do CPP.
Mas, agora, o que nos importa é a verificação da inteira legalidade da situação exposta, que de modo algum justifica que tenha sido suscitada a providência excepcional de habeas corpus, já que:
– o requerente se encontra em prisão preventiva por força de uma decisão transitada em julgado e posteriormente mantida por despacho judicial que ainda produz efeitos, mesmo que sujeito a recurso;
– o prazo de prisão preventiva, para a fase processual em curso, ainda está longe de estar esgotado, pois que o arguido está em prisão preventiva desde 3 de Junho de 2002, o processo foi declarado de excepcional complexidade e já foi deduzida acusação, sendo, assim, de 3 anos até à condenação em primeira instância (cf. artigo 215.º, n.º 3, do CPP);
– o requerente não perdeu o direito ao recurso, pois este mantém-se e, eventualmente, estará mesmo julgado.
Já este Supremo Tribunal decidiu, designadamente, pelo Ac. de 2 de Outubro de 1997, proc. n.º 1235/97, que: «1 – A ilegalidade da prisão preventiva que pode fundamentar a providência de habeas corpus tem de basear-se em alguma das situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP. 2 – Os prazos máximos estipulados por lei para a prisão preventiva são os previstos no artigo 215.º do CPP. 3 – O facto de em dada fase dos autos se ter excedido qualquer prazo processual, maxime o de 30 dias referido no artigo 219.º do citado Código, não interfere com a legalidade da prisão preventiva do arguido, se for reconhecido que este se encontrava legalmente preso por decisão transitada em julgado. 4 – A violação do prazo referido em 3 constitui uma mera irregularidade, que não pode enquadrar-se no fundamento do aludido artigo
222.º, n.º 2, alínea c), do CPP.»”
Como resulta da sua mera leitura, o entendimento acolhido no acórdão recorrido, para além de contar com precedentes jurisprudenciais, nada tem de tão inesperado ou insólito que justificasse a dispensa de o reclamante suscitar a sua inconstitucionalidade, em termos processualmente adequados, antes da prolação do acórdão em causa.
3. Em face do exposto, e sem necessidade de considerações complementares, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Novembro de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Ramos Ramos