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Proc. n.º 57/03 Plenário Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 - Requerente e pedido
O PROVEDOR DE JUSTIÇA, usando os poderes conferidos pelo art. 281º, n.º 2, alínea d) da Constituição da República Portuguesa (CRP), requereu a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas dos n.os 1, 2, 3 e 4 do artigo 32º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2003).
Estas normas são do seguinte teor:
«Artigo 32.º
Taxas do imposto sobre os produtos petrolíferos
1 - Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 73.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, os valores das taxas unitárias do imposto aplicáveis no continente aos produtos indicados no n.º 2 são fixados por portaria dos Ministros das Finanças e da Economia e terão em consideração os diferentes impactes ambientais de cada um dos combustíveis, favorecendo gradualmente os menos poluentes.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a fixação, ou a respectiva alteração, é efectuada dentro dos seguintes intervalos:
Produto Código NC
Taxa do ISP
(valores em euros)
Mínima Máxima
Gasolina com chumbo ... 2710 11 51 a 2710 11 90
548,68 548,68
Gasolina sem chumbo ... 2710 11 41 a 2710 11 49
287,00 518,75
Petróleo ......................... 2710 19 21 a 2710 19
29 245,00 339,18
Petróleo colorido e mar-
cado........................... 2710 19 21 a 2710
19 29 18,00 149,64
Gasóleo .......................... 2710 19 41 a 2710 19
49 245,00 339,18
Gasóleo colorido e mar-
cado........................... 2710 19 41 a 2710
19 49 18,00 149,64
Fuelóleo com teor de en-
xofre superior a 1% 2710 19 63 a 2710 19 69
13,00 34,92
Fuelóleo com teor de en-
xofre inferior ou igual
a 1% ......................... 2710 19
61 13,00 29,93
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 75.º do referido Código, os valores das taxas unitárias do imposto aplicáveis na ilha de São Miguel aos produtos a seguir indicados são fixados por resolução do Conselho do Governo Regional, podendo ser alterados dentro dos seguintes intervalos:
Produto Código NC
Taxa do ISP
(valores em euros)
Mínima Máxima
Gasolina com chumbo... 2710 11 51 a 2710 11 90
548,68 548,68
Gasolina sem chumbo ... 2710 11 41 a 2710 11 49
287,00 518,75
Petróleo ........................... 2710 19 21 a
2710 19 29 49,88 199,52
Gasóleo............................ 2710 19 41 a
2710 19 49 49,88 299,28
Gasóleo agrícola ............ 2710 19 41 a 2710 19
69 18,00 199,52
Fuelóleo com teor de en-
xofre superior a 1% .... 2710 19 63 a 2710 19
69 0,00 34,92
Fuelóleo com teor de en-
xofre inferior ou igual
a 1% ..........................
2710 19 61 0,00 29,93
4 - Para efeitos do disposto no artigo 76.º do referido Código, os valores das taxas unitárias do imposto aplicáveis na Região Autónoma da Madeira aos produtos referidos no n.º 2 são fixados por portaria do membro competente do Governo Regional, podendo ser alterados dentro dos intervalos fixados no mesmo número.».
2 - Fundamentos do pedido
O requerente considera que as normas questionadas – relativas à fixação da taxa do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (doravante ISP) – violam o disposto nos artigos 165º, n.º 1, alínea i), 103º, n.º 2, e 112º, n.º 6, da Constituição.
Fundamentando tal asserção, o requerente aduz, em síntese, o seguinte:
a) De harmonia com o disposto no artigo 73º, n.º 1, do Código dos Impostos Especiais de Consumo (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de Dezembro, doravante CIEC), na redacção que lhe foi dada pelo artigo 38º da Lei n.º
109-B/2001, de 27 de Dezembro, “os valores das taxas unitárias do imposto sobre os produtos petrolíferos aplicável às gasolinas, aos gasóleos, aos petróleos e aos fuelóleos, são fixados, para o continente, tendo em consideração o princípio da liberdade de mercado e as técnicas tributárias próprias, nos termos determinados anualmente pela lei do Orçamento do Estado”. E assim – à semelhança do que fizeram sucessivos Orçamentos anteriores e, já antes, o artigo 1º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 124/94, de 18 de Maio, entretanto revogado pelo CIEC – o artigo 32º, n.º 1, da Lei n.º 32-B/2002 veio dispor que os valores das taxas unitárias em causa, no continente, “são fixados por portaria dos Ministros das Finanças e da Economia”, o que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, será feito dentro dos intervalos nele estabelecidos. Da mesma forma se passam as coisas, segundo o previsto nos artigos 75º e 76º do CIEC, com a fixação das referidas taxas nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira – sendo que essa fixação, dentro dos intervalos mencionados, é aí feita, no primeiro caso, por portaria do membro competente do Governo Regional e, no segundo, por resolução do Conselho do Governo Regional - cfr. os n.os 3 e 4 ainda do artigo 32º. Porque, entretanto, o ISP passou a estar estruturado de acordo com as obrigações decorrentes da Directiva 92/82/CEE, do Conselho, de 19 de Outubro, os limites mínimos das suas taxas, a fixar em valor absoluto, corresponderão, hoje, às orientações definidas pela legislação comunitária, enquanto os limites máximos serão estabelecidos pelo Governo, nos termos mencionados [arts. 1º a 3º e 10º a
16º do req. inicial].
b) Não está em causa a legitimidade dos objectivos prosseguidos com a solução legal questionada (do estabelecimento de limites mínimos e máximos das taxas), seja (segundo o próprio artigo 32º da Lei n.º 32-B/2002) o de concretizar uma orientação geral de favorecimento gradual dos produtos menos poluentes, seja o de assegurar a prossecução de uma política de estabilidade de preços (como tem sido assumido por sucessivos governos). O cumprimento de tais objectivos, de resto, sempre se mostrará viável através de soluções que não desrespeitem os normativos constitucionais em matéria de fixação de impostos – como, por exemplo, a de «fazer variar o montante do imposto em termos inversos à evolução dos demais custos que contribuem para o preço dos produtos petrolíferos» (para assegurar a estabilidade dos preços), ou a de fixar «limites de variação quantitativamente bem diferenciados» (isto no
âmbito da concretização do desiderato referido no artigo 32º citado, mas com o que também se propiciará uma possível aproximação em cada momento à evolução do custo da matéria-prima nos mercados mundiais).
O que está em causa é o que os mecanismos de fixação da taxa do ISP nos moldes em que agora estão previstos (e, de resto, desde que se optou por esta solução legal) brigam com tais normativos [arts. 4º a 8º e 16º do req. inicial].
c) Com efeito:
Do princípio da legalidade em matéria fiscal decorrem – como escreve J. Casalta Nabais, em Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Editorial Notícias, 1993, pp. 265 e 266 – dois sub-princípios: o «princípio da reserva de lei formal, que implica a reserva à lei ou ao decreto-lei autorizado da matéria fiscal referenciada» (na Constituição); e o «princípio da reserva material ou conteudística», ou «princípio da tipicidade», o qual impõe que «a lei ou o decreto-lei autorizado contenha a disciplina completa da matéria reservada». Estes princípios estão hoje consagrados, respectivamente, no artigo 165º, n.º 1. alínea i), e no artigo 103º, n.º 2, da Constituição – sendo que, neste último, se lê que “os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”. Assim, e na lição do mesmo Autor, «quanto aos elementos dos impostos a reservar
à lei, estão aí incluídas as normas que definem o an e o quantum dos impostos»,
«o que se reconduz à definição normativa: 1) do facto ou situação que dá origem ao imposto (…); 2) dos sujeitos activos e passivos (…); 3) do montante do imposto (…); 4) dos benefícios fiscais» [sublinhado do requerente]. Nisso – acrescenta ainda o mesmo Autor – a reserva «não se fica pelos princípios ou bases gerais», mas «compreende antes toda a disciplina normativa», a qual «não pode ser assim deixada para regulamentos ou para a acção discricionária da Administração».
No mesmo sentido se pronunciam Gomes Canotilho/Vital Moreira, na Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista e actualizada,
1993, pp. 458 e 459 – começando por sublinhar, entretanto, que, se o artigo
165º, n.º 1, quanto à reserva da Assembleia da República, fala apenas em
“criação de impostos”, deve entender-se, contudo, que nessa expressão «estão abrangidos todos os elementos referidos no n.º 2 do artigo 106º» (hoje, artigo
103º, n.º 2). E assim – dizem expressamente – «não pode deixar de considerar-se como constitucionalmente excluída a possibilidade de a lei conferir às autoridades administrativas (estaduais, regionais ou locais) a faculdade de fixar dentro de limites legais mais ou menos abertos, por exemplo, as taxas de determinados impostos».
E o mesmo (que a taxa tem de ser fixada directamente pelo legislador) di-lo Nuno Sá Gomes (Manual de Direito Fiscal, volume II, Rei dos Livros, 1999, p. 77), quanto aos impostos estaduais – recordando o diferente teor, a esse respeito, da actual Constituição e da Constituição de 1933, pois que esta última «apenas exigia a fixação legal dos limites da taxa».
Por outro lado, também na jurisprudência do Tribunal Constitucional se refere que os artigos 165º, n.º 1, alínea i), e 103º, n.º 3, da Constituição devem ser lidos conjugadamente (v., p. ex., Acórdão n.º 295/87); e se aponta como um dos momentos em que se desdobra o princípio da legalidade tributária o de que «a lei deve determinar especificadamente os elementos fundamentais ou essenciais de cada imposto (incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias concedidas aos contribuintes)» (Acórdão n.º 57/95).
Assim, e de acordo com a orientação doutrinária e jurisprudencial exposta, a fixação da taxa do ISP pelo modo antes indicado (por portaria ministerial ou portaria ou resolução governamental regional), «efectuada dentro de um intervalo balizado entre valores mínimos e máximos excessivamente amplos – potenciador, por exemplo, quanto à gasolina sem chumbo e relativamente ao ano de
2003, de uma variação entre € 287,00 e € 518,75/1000 litros, ou seja mais de
80% da quantia tributária a pagar (…) – e envolvendo, por isso, uma grande incerteza quanto ao montante devido a título de imposto, mostra-se contrária aos princípios da legalidade e tipicidade fiscais», consagrados nos preceitos constitucionais referidos. [arts. 17º a 23º e 27º do req. inicial].
d) Entretanto, a solução legal em apreço põe ainda em crise o disposto no artigo 112º, n.º 6, da Constituição, segundo o qual “nenhuma lei pode (…) conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa,
(…) integrar (…) qualquer dos seus preceitos” – como precisamente acontece no caso dos autos. Como referem ainda Gomes Canotilho/Vital Moreira (na obra citada), «a deslegalização (…) só é possível fora do domínio necessário da lei»
[art. 24º do req. inicial].
e) Com a solução legal em apreço, os critérios de fixação em concreto da taxa do ISP não têm tradução legal, não se revelando perceptíveis para os destinatários do imposto: as normas dos artigos 73º, n.º 1, 75º, n.º 1, e 76º do CIEC consagram orientações tão vagas e genéricas que inviabilizam a identificação de quaisquer critérios objectivos daquela fixação.
A verdade é que, com essa solução, de facultar ao Governo a possibilidade de fixar ele mesmo a taxa do ISP dentro de um leque alargado de variações, concede-se-lhe uma margem de discricionaridade que «não só é contrária aos princípios mais elementares do nosso sistema fiscal e constitucional», como, «sendo potenciadora de profunda indefinição, incerteza e insegurança», vem a preterir «o valor da segurança jurídica e inerente protecção da confiança dos cidadãos, essenciais num verdadeiro Estado de direito» [arts.
24º a 29º do req. inicial].
f) Aliás, que tal solução não será constitucionalmente admissível, é algo que já resulta a contrario do já citado Acórdão n.º 57/95 do Tribunal Constitucional – quando nele se enunciam as circunstâncias ou condições que levaram o Tribunal a admitir a fixação da taxa da contribuição autárquica pelas assembleias municipais, dentro dos limites da lei. Foram elas: a natureza municipal do imposto; o relativamente curto grau de variação da taxa, e a consequente estreita margem de liberdade das assembleias municipais, consentidos pela lei; o facto de o poder de modelação da taxa, dentro desses rigorosos limites, ser conferido aos municípios, ou seja, às autarquias locais mais importantes actualmente existentes. E o Tribunal não deixou de sublinhar que considerava «a conjugação destes factores» como «decisiva», para concluir que não havia, no caso, violação do princípio da legalidade tributária.
Ora, nenhuma dessas circunstâncias ou condições ocorrem na situação em apreço – seja pela diversa natureza do ISP, seja «pelo intervalo de variação possível da taxa aplicável a esse tributo, excessivamente largo, podendo atingir uma diferença de mais de 80%, no caso da gasolina sem chumbo, conforme já referido» [arts. 30º e 31º do req. inicial].
Condensando as causas de pedir alegadas, pode dizer-se que o requerente questiona a constitucionalidade das referidas normas com base em dois fundamentos distintos: um traduzido no facto de, ao devolver ao Governo, na veste de “administrador”, e aos governos regionais, a fixação, em definitivo, mas dentro dos limites por ela estabelecidos, das taxas unitárias do ISP, a lei afrontar o disposto no art.º 112º, n.º 6 da CRP; o outro consubstanciado em a solução legislativa assim definida contrariar a Constituição fiscal, nomeadamente o princípio da legalidade (ou os princípios da legalidade e da tipicidade) tributária.
3 - Resposta do autor da norma
Notificado para responder, o Presidente da Assembleia da República limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os exemplares do Diário da Assembleia da República contendo os trabalhos preparatórios do diploma (o Orçamento do Estado para 2003) a que pertencem as normas questionadas.
4 - Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do art. 63º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, e fixada a orientação do Tribunal Constitucional, cumpre agora decidir de harmonia com o que então ficou estabelecido.
B – Fundamentação
5 - O imposto sobre produtos petrolíferos: génese e evolução
a) O Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP) foi criado pelo artigo 41º da Lei n.º 9/86, de 30 de Abril, não tendo este diploma estabelecido, todavia, quaisquer regras para a sua determinação e cobrança, pelo que estas continuaram a fazer-se segundo o esquema que vinha do regime legal anterior. A situação foi, porém, alterada pelo Decreto-Lei n.º 292/87, de 22 de Outubro, que, além de dispor sobre a “determinação e cobrança” do tributo, atribuiu a competência para essas matérias à Direcção-Geral das Alfândegas. O imposto visou substituir – assumindo-os como imposições fiscais – as “taxas” ou “diferenciais de compensação”, fixados mais ou menos administrativamente, que até aí, e desde há muito, recaíam sobre os preços dos combustíveis, e que constituíam, então, receita do Fundo de Abastecimento, Fundo este ao qual também ficou então transitoriamente consignada a receita do novo imposto [Para maiores desenvolvimentos relativamente à vida do tributo até ao referido DL. n.º 292/87, veja-se o Acórdão n.º 322/89, deste Tribunal, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., Tomo I, pp. 561 ss.].
Atento o thema decidendum acima precisado, pode prescindir-se aqui da descrição detalhada da incidência do ISP, do seu ou dos seus factos geradores e do procedimento da sua liquidação e cobrança. Interessará atentar tão só no regime legal de definição da taxa do imposto. Na modelação inicial do ISP, a respectiva taxa era definida na lei apenas pelos seus limites mínimos e máximos, ou só estes últimos, e acabava por corresponder
à “diferença” entre o custo de cada produto, englobando certos encargos fiscais e aduaneiros, e o preço de venda ao público que era estabelecido administrativamente. A fixação da taxa no seu nível inicial operava-se, assim, através da fixação administrativa dos preços, sendo que nesta decisão haviam de respeitar-se aqueles limites. De harmonia com este mecanismo, o montante estabilizado era, portanto, o do preço – sendo a taxa do ISP, deste modo, uma taxa variável cuja oscilação operava na razão inversa da variação do custo de cada produto (cfr. n.os 3, 4, 5 e 7 do preceito citado). A lei, no entanto, punha, também, limites a esta variação. No caso de subida dos custos dos produtos (mas já não no da sua descida), a lei obrigava à fixação de um novo preço toda a vez que a taxa do ISP descesse prolongadamente abaixo de um certo limiar, repondo-se, então, a taxa dentro dos limites indicados na lei (cfr. n.º
7).
Com este esquema legal lograva-se realizar a estabilidade dos preços, servindo o ISP de factor amortecedor das variações dos custos: as subidas destes, até ao patamar mencionado, eram absorvidas automaticamente pela taxa do ISP, realizando-se como que uma compensação de receitas tributárias quando os custos descessem.
b) Ao regime do artigo 41º da Lei n.º 9/86, seguiu-se o do Decreto-Lei n.º
261-A/91, de 25 de Julho, emitido ao abrigo dos artigos 38º e 43º da Lei n.º
65/90, de 28 de Dezembro. No quadro deste outro diploma, manteve-se o esquema anterior de fixação da taxa do imposto. Os valores a partir dos quais ela se obtinha passaram, no entanto, a ser outros: em lugar do elemento “custo” de cada produto passou a relevar-se o do seu “preço da Europa sem taxas” (PE), acrescido este de um “factor de correcção” para Portugal (FC); em vez da variável “preço de venda ao público”, passou a considerar-se a variável “preço máximo de venda ao público” (PMVP), sem IVA. A taxa do ISP – agora designada como “taxa unitária” – vinha, aqui, também, a ser igual à “diferença” entre estes dois grupos de valores. A taxa do ISP era, assim, inicialmente determinada através da fixação do PMVP pelo Governo, tendo-se em conta os limites máximo e mínimo que a lei para ela estabelecia; e poderia variar, na razão inversa da variação do PE, mas não podendo igualmente a sua descida prolongar-se, abaixo de um limiar mínimo, sem uma nova fixação do PMVP que a repusesse dentro dos limites legais (cfr. artigo 7º, n.os 1, 2 e 4, e artigo 18º). Este esquema legal valia igualmente para as taxas de ISP aplicáveis nos Açores e na Madeira, as quais, porém, diferiam (ou podiam diferir) das aplicáveis no continente, por virtude da intervenção de um outro elemento na sua fixação, destinado a compensar os “custos da insularidade” ou os “custos de transporte”
(CT)- cfr. artigo 8º. Os limites das taxas achavam-se directamente fixados no diploma agora em apreço, quanto a certas mercadorias (as constantes do quadro do n.º 4). Relativamente a outras, previa-se a determinação da respectiva taxa através de uma referência quantitativa à de alguma das taxas daquelas primeiras mercadorias, daí resultando os respectivos limites (n.os 6 a 8). Esta última situação era aquela que se verificava, nomeadamente, quanto aos produtos petrolíferos já não sujeitos sequer a preços máximos (cfr. artigo 14º), assim se tornando operativo, também quanto a estes, o mecanismo de fixação das taxas do ISP antes descrito. Resta acrescentar que, se este era o regime aplicável à generalidade das mercadorias sujeitas a ISP, quanto a algumas delas, porém, a taxa era já fixada pelo próprio legislador num valor ou quantitativo certo, e não apenas dentro de limites determinados (cfr. n.º 5). Salvo relativamente a esta situação, as coisas, portanto, no tocante à taxa do ISP, não se modificaram estruturalmente com a publicação do Decreto-Lei nº
261-A/91. O que aconteceu foi uma adaptação ao processo de liberalização dos preços dos combustíveis – os quais deixaram de ser administrativamente fixados, para passarem ao regime de “preços máximos”, e, em alguns casos, nem sequer isso. Por outro lado, o diploma fez, já, uma aproximação ao processo de harmonização comunitária do imposto especial sobre produtos petrolíferos, e, mais genericamente, dos impostos especiais de consumo, que se havia, entretanto, encetado.
c) Este processo de harmonização comunitária da tributação especial do consumo – na qual se inclui a relativa aos óleos minerais – veio, entrementes, a culminar na emissão de diversas directivas. Entre elas, cabe aqui salientar a Directiva
92/12/CEE, do Conselho (JO CE n.º L76/1, de 23.3.92), a qual contém os princípios comuns sobre a incidência material e territorial daqueles impostos no espaço comunitário, e questões conexas, e sobre a circulação das correspondentes mercadorias. Sucederam-lhe, entre outras, as Directivas 92/81/CEE e 92/82/CEE, do Conselho (JO CE n.º L316/12, de 31.10.92), estas respeitantes, mais precisamente, ao imposto especial sobre o consumo de óleos minerais.
Das orientações definidas por essas directivas, e para o que agora interessa, importará referir: – que, nelas, é contemplada a aplicação pelos Estados membros de um “imposto especial de consumo harmonizado” sobre os “óleos minerais”, estes como tal definidos através dos correspondentes códigos da Nomenclatura Combinada (NC) comunitária (artigos 1º e 2º da Directiva 92/91); – que esse tributo será um imposto “específico”, calculado, em princípio, sobre
1.000 litros ou 1.000 quilogramas (consoante os casos) de cada produto (artigo
3º, idem); – e, finalmente, que as taxas desse imposto não deverão ser inferiores às “taxas mínimas” comunitariamente definidas (definição essa feita inicialmente pela Directiva 92/82).
Note-se que algumas das características, que, segundo a orientação comunitária, o imposto devia revestir, já ocorriam no ISP português. Era o que acontecia, designadamente, com a sua natureza “específica”, segundo a qual a taxa incide sobre uma certa quantidade do bem ou mercadoria tributada, e não sobre o seu “valor” (ao contrário do que, diversamente, sucede nos impostos ad valorem). Seja como for, uma vez definida tal orientação, impunha-se ao Estado português observá-la e transpor para o respectivo ordenamento jurídico interno as Directivas que devessem sê-lo. E foi o que o legislador nacional fez, quer através do Decreto-Lei n.º 123/94, de 18 de Maio (em que transpôs a Directiva
92/81 e o artigo 2º da Directiva 92/108, que introduzira uma alteração à primeira), quer mediante o Decreto-Lei nº 124/94, da mesma data, em que estabeleceu as taxas do ISP, tendo em consideração as taxas mínimas da Directiva
92/82. Por esses diplomas, emitidos ao abrigo da autorização concedida pelo artigo 40º da Lei n.º 75/93, de 20 de Dezembro, passou a reger-se, pois, o ISP. Anote-se, também, aqui que a Directiva “horizontal” básica – a 92/12 – foi transposta para o nosso ordenamento pelo Decreto-Lei n.º 52/93, de 26 de Fevereiro. No que ora releva, a principal modificação introduzida por este regime, relativamente ao anterior, traduziu-se em as taxas do ISP passarem agora a ser taxas fixas (assim, precisamente, qualificadas no n.º 5 do citado artigo 40º da Lei n.º 75/93 e no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 124/94), já que, uma vez estabelecidas, não vão variar em função de qualquer elemento constitutivo do preço do respectivo produto. Do mesmo passo, as taxas deixaram de ser determinadas, indirectamente, através da definição dos preços, passando a sê-lo
(todas elas) directamente (cfr. artigo 1º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 124/94). É um sistema que caminha de par, decerto, com o objectivo da evolução no sentido da liberalização dos preços – ainda quando se mantenha, quanto a alguns produtos, o regime de “preços máximos de venda ao público” (cfr. artigo 4º do mesmo Decreto-Lei) – e também (ou correspondentemente) com a orientação das directivas comunitárias. Dentro deste novo tipo o legislador continuou, porém, a definir, em regra, apenas os limites, máximo e mínimo, do intervalo dentro do qual o Governo fixava as taxas aplicáveis a cada produto (cfr. citado artigo 1º, n.º 2) – taxas essas relativas, agora, à “unidade tributável” de 1000 l. ou 1000 kg. (cfr. artigo 8º do Decreto-Lei n.º 123/94). As taxas eram (ou podiam ser) diferentes para o continente, para os Açores e para a Madeira, mas seriam, em qualquer caso, fixadas pelo Governo (cfr. artigos
2º e 3º do Decreto-lei n.º 124/94). Quanto a alguns produtos, no entanto (e tal como já acontecia no Decreto-Lei n.º 261-A/91), o legislador fixou logo o valor ou quantitativo das respectivas taxas (sendo que, nalguns desses casos, se trata de uma “taxa 0”): cfr. n.os 5, 6, e 7 do artigo 1º do mesmo Decreto-Lei n.º
124/94. Como é bom de ver, neste novo quadro legal – de taxas “fixas” – a relação entre o ISP e o preço dos produtos modifica-se: aquele deixa de constituir um factor
“automático” de estabilização dos preços, quando ocorrer uma subida dos custos ou do “preço de referência”, e até certo limiar [cfr. supra, alínea a)]. Como a taxa é “fixa”, o imposto manter-se-á, mesmo que aconteça uma subida dos custos dos produtos petrolíferos, vindo esta subida, assim, a repercutir-se sempre integralmente nos preços de venda ao público (com o limite dos preços “máximos”, onde os haja). Para que isso não aconteça – e para que seja o ISP a “amortecer” a subida dos custos – é necessário fixar novas taxas.
d) Os Decretos-Leis n.os 123/94 e 124/94 foram, entretanto, substituídos pelo compêndio normativo em que se procedeu à codificação do regime dos impostos especiais de consumo que foram objecto de harmonização comunitária (a saber, o ISP e, além dele, os incidentes sobre o álcool e bebidas alcoólicas e sobre os tabacos manufacturados) – o Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), hoje em vigor. Trata-se essencialmente, porém, do mesmo regime legal – como, de resto, já resultaria da natureza do diploma em causa e do enquadramento comunitário em que o mesmo se inscreve e a que visa dar tradução. Assim, e pelo que respeita às taxas do ISP, estas continuam a ser “taxas unitárias” fixas, incidindo sobre as mesmas “unidades tributáveis” do tempo anterior (artigo 72º). Por outro lado, as taxas só em alguns casos (cfr. n.os 3,
4 e 5 do artigo 73º, na actual redacção - v. infra) são fixadas no seu exacto valor pelo legislador. No mais, o legislador estabelece unicamente os respectivos limites, vindo aquele valor a ser fixado pelo Governo (ou, agora, também pelo governo de cada região autónoma - cfr. artigos 75º e 76º), directamente, no intervalo compreendido entre esses limites (cfr. n.º 1, com a remissão nele feita, e n.os 6 e 7). Entretanto, continua a estar prevista, neste quadro legal, a sujeição de certos produtos ao regime de “preços máximos de venda ao público” (artigo 77º).
Os “limites” das taxas começaram por constar, todos eles, dos artigos 73º e 75º do CIEC, na sua versão originária – mas por força dos próprios termos do artigo
5º do Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de Dezembro, que o aprovou, viriam, como vieram, a caducar (como todas as taxas aí definidas) no momento da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2000, que foi a Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril. Daí que este último diploma haja dado uma nova redacção integral
àqueles preceitos (e, também, ao artigo 76º do CIEC), na qual se definiu um novo quadro de taxas ou dos seus limites ou se passou a prever (n.º 1) que umas ou outros seriam fixados nos termos determinados anualmente pela lei orçamental.
É esta mesma alternativa [ou estabelecimento dos limites das taxas e, em alguns casos, destas mesmas (v. supra), pelo próprio CIEC, ou devolução para a Lei do Orçamento] que continua a encontrar-se na actual redacção do artigo 73º (a dos artigos 75º e 76º não voltou, entretanto, a ser modificada), redacção essa resultante das alterações introduzidas (à versão da Lei n.º 3-B/2000) pelo Decreto-Lei n.º 58/2001, de 19 de Fevereiro (n.º 8) e pelo Decreto-Lei n.º
223/2002, de 30 de Outubro [alínea g) do n.º 6 e n.º 7], mas, sobretudo, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento para 2002), que modificou os n.os 1, 2, 3, 4, e 5 e as alíneas a), e), e f) do n.º 6. Assim é que, enquanto para os produtos das alíneas e), f), e g) do n.º 6, se definem logo os limites das taxas, no n.º 1 dispõe-se, mas agora apenas relativamente às
“gasolinas, aos gasóleos, aos petróleos e aos fuelóleos”, que os valores das taxas serão fixados, para o continente, “tendo em consideração o princípio da liberdade de mercado e as técnicas tributárias próprias, nos termos determinados anualmente pela lei do Orçamento do Estado”, sendo que, depois, as taxas definidas para certos desses produtos virão a aplicar-se aos referidos nas alíneas a) a d) do n.º 6. No primeiro caso [das alíneas e), f), e g)], determina o próprio artigo 73º (no n.º 8) que a fixação da taxa “será feita por portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Economia”; no segundo caso (do n.º 1), as sucessivas leis orçamentais (logo, desde a própria Lei n.º 3-B/2000) têm vindo a estabelecer a mesma regra, definindo unicamente os limites das taxas. E de modo paralelo (a este último) se passam as coisas com a aplicação do ISP, nos Açores e na Madeira, aos produtos a que se refere o n.º 1 do artigo 73º. Já assim o prenunciavam os citados artigos 75º e 76º CIEC, ao preverem a fixação das taxas “nos termos determinados anualmente pelo decreto legislativo regional que aprova o Orçamento da Região”. Mas a verdade é que as sucessivas leis orçamentais do Estado têm vindo a derrogar implicitamente este dispositivo, ao determinarem, elas próprias, que as taxas serão fixadas por “resolução do Governo Regional” (Açores) ou “portaria do membro competente do Governo Regional” (Madeira), dentro dos intervalos que elas mesmas estabelecem – intervalos esses que para a Madeira têm vindo a ser os aplicáveis no continente, mas têm sido diferentes para os Açores (aí fixados com referência à ilha de S. Miguel, porquanto, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 75º do CIEC, as taxas de ISP deverão sofrer uma deflação nas outras ilhas, para compensar os sobrecustos de transporte e armazenagem).
É este mesmo mecanismo que encontra tradução e concretização, por último, no artigo 32º da Lei n.º 32-B/2002, cuja normatividade constitui, precisamente, o objecto do presente processo.
6 - Justificação do regime de fixação das taxas do ISP
a) Como se vê, a definição pelo legislador, quanto à maior parte dos produtos, e nomeadamente quanto às gasolinas, gasóleos, petróleos e fuelóleos, não precisamente do valor de cada taxa do ISP, mas apenas dos limites dentro dos quais elas virão a ser fixadas por acto governamental de índole regulamentar, é uma constante do regime deste tipo de imposto, desde a sua criação. A continuidade e a persistência das soluções legais adoptadas são realidades que não podem deixar de ser acentuadas: elas mostram iniludivelmente que se está, aí, perante uma característica que, longe de ser episódica e circunstancial, vem sendo tida como que constituindo um elemento “necessário” do regime da figura tributária em causa, como algo que é reclamado pela própria índole e objecto da sua incidência (de “técnicas tributárias próprias” do ISP se fala, de resto, nos n.os 1 dos artigos 73º, 75º e 76º do CIEC). Por outro lado, não é difícil descortinar qual a razão de ser de tal fenómeno: ela reside claramente no objectivo de se procurar garantir uma permanente e pronta articulação entre a incidência do imposto e o preço dos produtos sobre que o mesmo recai e suas variações. Com efeito, trata-se de produtos ou mercadorias de importância estratégica fundamental para a economia portuguesa e relativamente às quais, por isso, é altamente desejável, se não mesmo essencial, garantir em toda a medida do possível a estabilidade dos seus preços de venda ao público e às empresas, evitando, nomeadamente, subidas bruscas e acentuadas dos mesmos. Ora, tais preços são aqui, na sua maior medida, função variável dos preços à produção – e estes outros (que são formados num mercado internacional que é influenciado por múltiplos factores, inclusive de ordem política) têm conhecido historicamente, como é comummente sabido, e podem continuar a conhecer, significativas variações, mesmo no curto prazo. Compreende-se, por isso, que colocado perante este dado de facto - cuja não verificação ou grau de intensidade, no que concerne a Portugal, este em nada ou muito pouco pode influenciar o legislador
-, pretendendo prosseguir uma política de estabilidade dos preços internos de venda dos produtos petrolíferos, venha a dotar-se de instrumentos ou mecanismos que lhe permitam agir, dúctil e rapidamente, sobre uma variável da formação desses preços que inteiramente pode controlar - precisamente, o imposto especial de consumo sobre esses produtos. Tal mecanismo ou instrumento consiste, justamente, em não fixar antecipadamente o valor preciso da taxa (ou taxas) do mesmo imposto, ou mesmo só o valor dela (ou delas), destinado a ser aplicado durante todo o ano económico, mas tão-só um leque de valores, entre um mínimo e um máximo, dentro do qual vai estabelecer-se o montante da taxa em cada momento
(em cada período), com o que se permitirá, nomeadamente, tomar a posição de o baixar de imediato, se o preço à produção subir de modo tido como significativo.
b) Esta justificação da solução legal – a sua ligação à política de preços – evidencia-se de maneira patente na configuração que tal solução assumiu nos primeiros diplomas legais disciplinadores do ISP, até ao Decreto-Lei nº
261-A/91, no quadro de um regime de preços administrativamente fixados (ao menos alguns), em que a taxa do imposto era indirectamente determinada através da determinação do preço, e podia mesmo variar automaticamente. E, porventura, de forma não tão imediatamente visível, não pode realmente deixar de ser a mesma a razão que continuou a valer, num contexto de liberalização progressiva dos preços e de harmonização comunitária, acontecida a partir dos diplomas de 1994, e, agora, no quadro do CIEC. Com efeito, tratando-se, no caso, de um imposto sobre o consumo, o qual, portanto, se repercute e destina a repercutir nos preços dos produtos, claro é que a opção de definir apenas os limites das suas taxas tem necessariamente a ver com o propósito de mais facilmente se poderem influenciar, através delas, aqueles preços. Por outro lado, tal propósito só pode estar relacionado com o objectivo último da política de estabilidade de preços, pois aquele outro a que se reporta o próprio teor do n.º 1 do artigo 32º da Lei n.º 32-B/2002 e que no requerimento inicial se adianta como possível - a saber, o de promover uma discriminação tributária em função dos “diferentes impactes ambientais de cada um dos combustíveis, favorecendo gradualmente os menos poluentes” - não postula, para seu cumprimento, que o legislador se cinja à definição dos limites das taxas. Postula, isso sim, coisa diversa, que é o estabelecimento de taxas diferentes para cada produto. Que a razão de ser do regime legal é a apontada, mostra-o, de resto, a sua aplicação ao longo do ano económico findo, com a emissão da Portaria n.º
278-A/2003, de 26 de Março, e, depois, das Portarias n.os 349-A/2003, de 30 de Abril, 448-A/2003, de 31 de Maio, e 509-A/2003, de 30 de Junho. Como se vê da justificação constante dos preâmbulos de todos esses diplomas regulamentares, tratou-se sempre de agir sobre as taxas do ISP relativas a certos produtos – fixadas inicialmente pela Portaria n.º 1490-A/2002, de 29 de Novembro – em função das variações do preço do crude e dos “preços europeus (PE)” dos produtos petrolíferos: primeiro, numa situação de “volatilidade” dos mercados e de aumento desses preços, descendo as taxas do imposto, para evitar a repercussão negativa dessa situação sobre os preços internos; depois, à medida em que a situação se foi estabilizando, subindo-as (para, de novo, as voltar a descer, agora aproveitando uma nova baixa dos preços).
c) Salienta o Provedor de Justiça, no seu requerimento, que não está em causa a legitimidade do objectivo ou dos objectivos tidos em vista com a solução legal, mas apenas a admissibilidade desta no quadro constitucional.
Simplesmente, tal não deve levar a que, na apreciação dessa questão, se perca inteiramente de vista a razão de ser da solução legal. Ora, nesse contexto, cabe fazer duas observações:
– a primeira, é a de que o esquema adoptado pelo legislador se mostra efectivamente adequado ao objectivo tido em vista, já que, sendo os valores das taxas do ISP fixados, em último termo, simplesmente em “portaria” ou
“resolução” governamental, será fácil e rápido proceder à sua alteração, dentro dos limites legais, durante o ano económico (veja-se, precisamente, o exemplo das Portarias antes citadas, emitidas sucessivamente no curto intervalo de 90 dias). Seguramente que, se para essa alteração fosse necessária uma intervenção legislativa da Assembleia da República, ou mesmo só do Governo através de decreto-lei autorizado, ficaria extremamente dificultada, se não até frustrada, a possibilidade de operá-la em tempo útil;
- a segunda, é a de que não parece que as soluções alternativas concebidas pelo Provedor de Justiça no seu requerimento eliminem, afinal, o problema de constitucionalidade por ele suscitado. Com efeito, não se vê como possa fazer-se
“variar o montante do imposto em termos inversos à evolução dos demais custos” se não for consentida a alteração do valor da taxa, relativamente ao inicialmente fixado, seja dentro de certos limites, seja indefinidamente (o que, por certo, será ainda menos aceitável). Aquilo em que, no fundo, parece estar a pensar-se é no regime inicial das taxas do ISP, que vigorou até ao Decreto-Lei n.º 261-A/91, pressupondo-se, surpreendentemente, e contra a dinâmica do funcionamento de tal sistema, que ele já não suscitaria as dificuldades da possibilidade da variação do valor da taxa do imposto.
7 - Os parâmetros constitucionais
7.1 - Considerações preliminares.
Antes de mais cumpre notar que, muito embora o requerente faça também apelo, no desenvolvimento da sua argumentação, aos princípios da segurança jurídica e da confiança, próprios de um Estado de direito, não haverá que considerá-los aqui separadamente. Na verdade, a axiologia expressa por tais princípios é transportada, no contexto da matéria em causa, também pelo princípio da legalidade tributária, domínio no qual caberá, porventura, tê-los em conta. De resto, e em bom rigor, não os invocando o Provedor de Justiça como fundamentos “autónomos” do seu pedido, é de concluir que é nesse exacto contexto que, afinal, os enquadra.
7.2 - O princípio da legalidade fiscal e o artigo 112º, n.º 6, da Constituição: uma apreciação liminar
a) Antes de mais importa notar que não é possível cogitar a solução de inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade tributária e do artigo 112º, n.º 6, da Constituição, em relação a todo o conteúdo das normas dos n.os 1 a 4 do artigo 32º da Lei n.º 32-B/2002, mesmo que se parta da sua significação mais estreita. De facto, sendo idênticos os concretos limites mínimo e máximo da taxa unitária do ISP estabelecidos relativamente à gasolina com chumbo, e tanto para o continente e Madeira (cfr. n.os 2 e 4 do preceito em causa) como para os Açores (cfr. n.º 3 do mesmo preceito), estamos, evidentemente, perante uma situação em que a taxa efectiva do imposto é fixada directamente pelo legislador. Por conseguinte, mesmo que o Tribunal houvesse de concluir pela inconstitucionalidade, com base nas razões invocadas (ou noutras) pelo requerente, das normas em apreciação, sempre haveria de ressalvar-se desse juízo a parte delas acabada de delimitar.
b) Como resulta do relatado, o Provedor de Justiça sustenta que as normas em apreço, além de contrariarem o princípio da legalidade tributária, violam ainda o disposto no n.º 6 do artigo 112º da Constituição. Tem-se, todavia, por seguro que não procede a invocação de violação deste comando constitucional. A temática da proibição constitucional de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis tem sido uma questão recorrentemente sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional. Sobre ela discorreu o Acórdão n.º 586/01, publicado no Diário da República I Série-A, de 25 de Janeiro de
2002, nos seguintes termos:
«1 - O n.º 6 do artigo 112º da Constituição dispõe que “[n]enhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
O preceito, sem equivalente no texto originário da Constituição, corresponde ao n.º 5 do artigo 115º, introduzido com a Revisão Constitucional aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, que o integrou nos princípios gerais da parte do texto dedicado à organização do poder político.
Ter-se-á pretendido, por esta via, não só dar satisfação à necessidade então experimentada de introduzir uma melhoria de sistematização da matéria
(como observam, em anotação, António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas, in Constituição da República Portuguesa. Textos e comentários à Lei n.º 1/82, Lisboa, s/d pág. 117), como , em síntese, resolver, no sentido da proibição, a questão frequentemente suscitada à data e muito controversa, relativa à interpretação da lei (em sentido lato entendida) mediante actos normativos não legislativos, tais como os regulamentos.
Experimentava-se, então, no entendimento seguido por vários parlamentares, a necessidade de, com a introdução da regra incorporada no n.º 5, estabelecer um critério preciso e equilibrado que, nomeadamente, acudisse às exigências de preservação da defesa da própria autoridade do Estado e da autoridade do direito
(como, por exemplo, decorre das intervenções dos Deputados A., B., C. e D., publicadas no Diário da Assembleia da República, II Série, Suplemento ao n.º 19, de 25 de Novembro de 1981).
2 - Com o n.º 5 do artigo 115º da Constituição veio, nomeadamente, firmar-se o princípio da tipicidade dos actos legislativos, com a consequente
“proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor da lei” (nestes termos, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 510) e, bem assim, a consagração do sentido de que as leis não podem autorizar que as suas próprias interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação sejam levadas a efeito por outro acto que não seja uma outra lei.
E, na verdade, por mais árdua que possa ser a densificação semântica do preceito, tem-se por certo que, em primeira linha, visou-se evitar que a lei confira a actos não legislativos o poder de, com eficácia externa, a interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar, no seu todo ou em algumas das suas partes.
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado amiudadamente sobre a norma constitucional em causa, com soluções nem sempre coincidentes uma vez que essencialmente dependentes dos mais diversos circunstancialismos concretos.
Pôde a entidade requerente citar alguns desses arestos que, por inegável pertinência, aqui se citarão. Assim, os Acórdãos n.os 203/86, 354/86, 19/87,
1/92 e 262/97, respeitantes a regulamentos interpretativos (publicados no Diário da República II Série, de 26 de Agosto de 1986, 11 de Abril de 1987, 31 de Março de 1987, I Série-A, de 20 de Fevereiro de 1992 e 1 de Julho de 1997, respectivamente); os Acórdãos n.os 303/85, 34/86, 389/89 e 869/96, sobre regulamentos modificativos, publicados no Diário citado, II Série, de 10 de Abril de 1986, 13 de Maio de 1986, 13 de Setembro de 1989, e I Série-A, de 3 de Setembro de 1996, respectivamente; o Acórdão n.º 189/85, sobre regulamentos suspensivos, no mesmo Diário, I Série, de 31 de Dezembro de 1985; os Acórdãos n.os 458/93 e 743/96 (Diário da República, I Série-A, de 17 de Setembro de 1993 e de 18 de Julho de 1996, respectivamente), que se referem a actos de natureza não regulamentar, como sejam os actos regimentais e os actos jurisdicionais
(“assentos”); os Acórdãos n.os 308/94, 224/95 e 194/99, incidentes sobre a não aplicação do n.º 5 do artigo 115º e do novo n.º 6 do artigo 112º às relações entre actos regulamentares (publicados no mesmo jornal oficial, II Série, de 29 de Agosto de 1994, 28 de Junho de 1995 e 6 de Agosto de 1999, respectivamente).
Da leitura destes lugares jurisdicionais – que, entre outros, se citam – retira-se uma constante doutrinária, a que interdita uma lei que permita a sua própria alteração por acto sem natureza legislativa, sob pena de ser materialmente inconstitucional, como se condensou no citado Acórdão n.º 303/85.
A norma constitucional, por conseguinte, dirige-se ao conteúdo do acto legislativo e não à competência e forma dos actos normativos, ou seja, proíbe os diplomas legislativos de autorizarem a sua revogação, modificação, interpretação, integração ou de suspenderem a sua eficácia através de acto não legislativo, designadamente por via de regulamento (como se frisou no Acórdão n.º 389/89), sob pena de incorrerem no vício de inconstitucionalidade material».
Deste modo, o que se afasta ou proíbe nesse preceito constitucional é a possibilidade de a lei prever e autorizar a alteração ulterior do seu conteúdo normativo por um diploma de natureza e grau hierárquico diferente, v.g., por um regulamento. Todavia, já não afasta nem proíbe a situação em que o legislador se abstém, pura e simplesmente, de disciplinar certa matéria e devolve dessa disciplina, ab initio, para o poder regulamentar. Esta última só é constitucionalmente afastada pela “reserva de lei”, e na medida desta. Ora, a situação sub judicio – como bem se alcança – não se enquadra naquela primeira hipótese mas antes na segunda, porquanto o que a lei faz é, tão só, devolver para o âmbito da disciplina regulamentar a fixação da taxa efectiva, a efectuar dentro da amplitude quantitativa por ela definida.
7.3 - A solução por que o legislador optou e o princípio da legalidade fiscal
Cabe agora apurar se a dimensão normativa dos referidos preceitos, que está para além do segmento acima apreciado [cfr. ponto 7.2-a)], afronta o princípio da legalidade fiscal ou da legalidade tributária, como, por vezes, é também designado. O princípio da legalidade fiscal encontra-se consagrado no artigo 103º, n.º 2 da Constituição, numa redacção que repete a formulação adoptada nos correspondentes preceitos das anteriores versões da Lei Fundamental (arts. 107º, n.º 2, 106º, n.º 2 e 106º, n.º 2), nos seguintes termos:
«Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes». Por seu lado - e de modo sintonizado com este preceito constitucional - dispõe a alínea i) do n.º 1 do art. 165º da Constituição - preceito cuja normatividade foi igualmente repetida nos artigos equivalentes das anteriores versões da Constituição de 1976, com excepção do segmento acrescentado pela revisão de 1997 relativo à matéria do “regime geral das taxas e demais contribuições financeiras
a favor das entidades públicas”, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a matéria da «criação de impostos e sistema fiscal
[...]». O princípio caracteriza-se, essencialmente, por duas dimensões normativas. Uma corporizada na reserva absoluta de lei formal (Gesetzvorbehalt): os impostos apenas podem ser lançados mediante lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo emitido no uso de autorização legislativa do Parlamento. Trata-se de uma acepção que busca os seus fundamentos em razões puramente políticas cuja afirmação originária se perde na bruma dos tempos da Idade Média e cuja positivação começou por afirmar-se na Magna Charta Libertatum (1215), traduzindo uma ideia de auto-tributação, de auto-imposição dos tributos ou de consentimento no lançamento das contribuições e impostos e que se acha significativamente traduzida na expressão inglesa no taxation without representation, mas que entretanto recebeu um novo sopro de legitimidade e de fundamento substanciais com a consagração do Estado de direito democrático, na medida em que o exercício do poder tributário passou a ser uma expressão dos representantes eleitos do povo justificada pela realização dos fins materiais do Estado de direito (cfr., entre outros, Alberto Pinheiro Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, 1972, pp. 275 e ss.; José Manuel Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 1972, pp. 154 e ss. e José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 321 e ss. e Direito Fiscal, 2ª edição refundida e aumentada, Coimbra, 2003, pp. 123 e ss.). Outra dimensão do princípio da legalidade fiscal é a que é traduzida pelo princípio do nullum vectigal sine lege, da tipicidade (Tatbestandsmässigkeit), ou de reserva material ou “conteudística da lei” (como a denomina Casalta Nabais, O Dever...,op. cit. 345), nos termos do qual a lei deve conter em si, essencialmente, o critério de decisão das situações concretas. Segundo a sua formulação rígida, o princípio da tipicidade fiscal traduz-se na exigência de o imposto dever ser desenhado ou recortado na lei através de todos os seus momentos constitutivos, sem margem para qualquer discricionariedade administrativa ou de afirmação de quaisquer poderes jurídico-conformantes das situações concretas. Trata-se de uma dimensão que visa dar resposta, essencialmente, a preocupações de certeza e de segurança jurídicas que constituem também exigências próprias do Estado de direito democrático, entre nós reconhecido no art. 2º da Constituição.
A primeira dimensão está acolhida no art. 165º, n. 1, alínea i) e a segunda mostra-se vertida no art. 103º, n.º 2, ambos os preceitos da Constituição. No caso sub judicio não vêm questionados todos os referidos momentos de normatividade em que se concretiza em termos constitucionais o princípio da legalidade fiscal (a definição da incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes). Sob censura está apenas a solução adoptada pelo legislador quanto a um dos elementos do tipo tributário do ISP - a taxa. E aqui a questão que se coloca é a de saber se o legislador ordinário poderia devolver para o legislador regulamentar - no caso, os Ministros das Finanças e da Economia (no Continente), o Conselho do Governo Regional (nos Açores) e o membro competente do Governo Regional (na Madeira) - a fixação da taxa efectiva do ISP a aplicar sobre os produtos petrolíferos identificados nas normas cuja constitucionalidade se questiona [que aí não a tenham directamente fixada - cfr. supra, ponto 7.2-a], dentro dos intervalos estabelecidos nos preceitos mediante a definição de um mínimo e de um máximo. A compreensão do princípio da legalidade fiscal com uma extensão que permita a devolução para a administração de poder de fixar as taxas efectivas de impostos estaduais foi abertamente admitida pela nossa doutrina, no domínio da Constituição de 1933, em face do disposto no seu art. 70º - e quer antes (cfr. Teixeira Ribeiro, Os princípios Constitucionais da Fiscalidade Portuguesa, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1966, p. 229), quer depois da revisão de 1971, aqui mais fácil de sustentar por se ter acrescentado ao texto anterior uma expressa referência aos “limites” da taxa (cfr. José Manuel Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª edição, pp. 176-177, nota
2; Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, 1981, pp. 300 e Afonso Rodrigues Queiró, Revisão Constitucional de 1971, Coimbra, 1972, pp. 100-103).
No domínio da actual Constituição, esta solução é, todavia, repudiada por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pp. 458) e Nuno Sá Gomes (Manual de Direito Fiscal, volume II, 1997, pp. 77). Mas, de par com muitos silêncios de autores que tratam a temática dos elementos essenciais dos impostos, entre os quais se conta a taxa, não deixa de haver quem defenda, abertamente, a admissibilidade da devolução para a administração do poder de, mediante regulamento, fixar a taxa efectiva dos impostos, dentro dos “limites mais ou menos amplos”, pré-estabelecidos na lei. É o caso de José Manuel Cardoso da Costa (Notas de Actualização à 2ª Edição do Curso de Direito Fiscal, Coimbra,
1977, pp. 15-16), Barbosa de Melo (Parecer junto ao processo de fiscalização abstracta de constitucionalidade em que foi proferido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95, este publicado no Diário da República II Série, de 12 de Abril de 1995; Boletim do Ministério da Justiça, 446º, pp. 225; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º volume, pp. 141 e Ciência e Técnica Fiscal, n.º
377, Janeiro-Março de 1995, pp. 205-327) e Afonso Rodrigues Queiró e José Gabriel Queiró (Parecer, também junto ao processo onde foi tirado aquele Acórdão n.º 57/95, e publicado em Scientia Iuridica, 1996, Janeiro/Junho, n.os 259/261, pp. 23).
A favor desta compreensão do princípio da legalidade fiscal abona o facto de nada no texto constitucional inculcar que o termo verbal “taxa” constante do n.º 2 do art.º 103º, e dos correspondentes preceitos que o antecederam nas anteriores versões da Constituição de 1976, tenha de ser forçosamente entendido como referido tão só à espécie em concreto e não como dizendo respeito ao tipo em abstracto, em correspondência, aliás, com o que se passa relativamente aos demais elementos essenciais dos impostos mencionados no preceito - a incidência, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. Nesta perspectiva, o termo “taxa” tanto poderá traduzir uma ideia de especificação ou de fixação legal directa da taxa efectiva como uma ideia de que
à lei competirá apenas definir os termos em que a taxa se deve traduzir, cabendo aqui a possibilidade de a administração fixar, através de regulamento, dentro dos intervalos pré-fixados pelo legislador. Trata-se de uma acepção cuja admissibilidade poderá ser confortada com algumas das razões que levaram a admitir como sendo constitucionalmente lícito,
“guardadas certas margens de segurança”, o uso de conceitos jurídicos indeterminados, de “certas cláusulas gerais”, de “conceitos tipológicos”
(Typusbegriffe), de “tipos discricionários” (Ermessenstatbestände) e de certos conceitos que atribuem à administração uma margem de valoração, os designados
“preceitos de poder” (Kann-Vorschrift) (cfr. J. L. Saldanha Sanches, “A segurança jurídica no Estado social de direito”, in Ciência e Técnica Fiscal, n.os 310/312, pp. 299 e segs.), na conformação das normas definidoras da incidência (cfr. Acórdão n.º 756/95, publicado no Diário da República II Série, de 27 de Março de 1996; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 452, pp. 181 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º volume, pp. 775), como sejam a necessidade de adequação à plasticidade da vida económica e de flexibilização do sistema “tornando-o apto a abranger circunstâncias novas, porventura imprevisíveis ao tempo de formulação da lei (cfr. Saldanha Sanches, op. cit. 297 e 299-300).
Ao definir o factor de quantificação do imposto traduzido na taxa apenas através da indicação das suas respectivas balizas, mínima e máxima, não deixa o legislador parlamentar de actuar, no exercício desse poder tributário, em representação política dos cidadãos contribuintes, expressando-o num consentimento de tributação que se traduz na possibilidade de determinação da taxa desde um mínimo até uma taxa máxima.
Assim quem entenda o princípio da legalidade fiscal numa tal acepção não pode deixar de concluir, imediatamente, pela conformidade com a Lei Fundamental das normas ora sindicadas. Na verdade, ao fixar o intervalo dentro do qual o diploma regulamentar pode proceder à fixação do valor da taxa, e, maxime, ao determinar o seu montante máximo, o legislador parlamentar está a manifestar a sua clara opção política por uma tributação efectiva futura até ao limite expresso pela taxa máxima.
Mas, mesmo quem assim não pense, não poderá deixar de chegar à mesma solução pela consideração do princípio aceite por este Tribunal Constitucional no referido Acórdão n.º 57/95. Relembre-se que, então, a questão se colocou a propósito dos artigos 37º, n.º 3, alínea a), e 38º da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro (lei de autorização legislativa dos CIRS, CIRC e CCA) e 16º, n.º 1, alínea b) e 17º do Código da Contribuição Autárquica, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, prendendo-se, aí, com os poderes atribuídos pela lei aos órgãos municipais não só para fixarem a taxa da “contribuição autárquica” dentro dos limites por ela previamente estabelecidos (entre 1,1% a 1,3% do valor matricial)
(como se recorda no requerimento inicial), mas igualmente para lançarem
“derramas”, sob a forma de adicional à colecta do IRC, em percentagem desta até ao máximo também legalmente definido.
Ora em tal aresto, o Tribunal não adoptou um entendimento puramente literal do texto da Constituição e um correspondente entendimento “radical” ou
“rígido” do princípio da legalidade tributária que fosse excludente de toda a intervenção do poder regulamentar na fixação da taxa dos impostos. O que o Tribunal entendeu foi que não “podia deixar de relevar um conjunto de especificidades” que se verificavam no caso das normas em análise, amplexo esse que valorou de forma global.
Ao concluir, aí, pela conformidade com a Lei Fundamental das referidas normas, este Tribunal Constitucional admitiu como sendo constitucionalmente legítimo algum grau de incerteza quanto à expressão quantitativa da taxa. É certo que o Tribunal não admitiu como constitucionalmente aceitável qualquer grau de incerteza. Todavia, o que esta avaliação verdadeiramente traduziu foi uma exigência de razoabilidade quanto ao intervalo dentro do qual o legislador regulamentar podia fixar a taxa efectiva cuja razão de ser só poderia corresponder à sua preocupação de que esse intervalo não fosse de tal modo amplo que criasse uma incerteza intolerável quanto ao grau de amputação de riqueza admissível e esvaziasse de real conteúdo o juízo de opção política expresso num tal modo de tributação exigido ao legislador parlamentar.
Mas o juízo do Tribunal não se fundamentou apenas na razoabilidade do espaço de fixação da taxa deixado livre à intervenção de regulamento. Ele relevou ainda, numa expressão semelhante, outras “especificidades” da situação, traduzidas em circunstâncias completamente exteriores às exigências de segurança objectiva e subjectiva postuladas pelo princípio da legalidade tributária, que considerou como constitucionalmente adequadas para justificar a “ultrapassagem” de uma visão radical de tal princípio, nas duas dimensões referidas. Tal entendimento do Tribunal não deixa de reflectir a ideia de que a garantia dos contribuintes que o princípio da legalidade transporta, e que traduz como que um direito fundamental, pode ser limitada num mínimo tolerável, desde que adequado para acolher outros valores ou princípios constitucionais. Vai, pois, ínsita em tal perspectiva uma aplicabilidade dos princípios gerais de necessidade, de adequação e de proporcionalidade a que devem subordinar-se as leis restritivas dos direitos fundamentais (art. 18º, n.os 2 e 3 da CRP).
Pois bem: se as considerações que antecedem são procedentes, então, deve concluir-se que (ao contrário do alegado no requerimento inicial do presente processo) a solução legal adoptada quanto à determinação das taxas do ISP é
“consistente” com a orientação ou a directriz geral susceptível de extrair-se do Acórdão n.º 57/95. Ou seja, deve concluir-se que, mesmo na linha da jurisprudência anterior deste Tribunal, o juízo de não inconstitucionalidade das normas impugnadas é a solução que, aqui, se impõe. Conduzem a uma tal conclusão, evidentemente, as considerações atrás feitas sobre a natureza do ISP e, em particular, sobre a “justificação” do seu regime de taxas, as quais adquirem agora todo o seu relevo e para as quais se remete. Delas emerge, na verdade:
– que a natureza e o perfil do ISP justificam um regime de determinação da sua taxa contemplando normas como as ora questionadas. E para quem entenda necessária – o que estritamente nem será, para quem faça a primeira leitura do princípio da legalidade fiscal – a existência de um princípio constitucional expresso onde essa “exigência” deva ancorar-se, poderão eles ser colhidos - sem que seja sequer preciso recorrer ao enunciado das “tarefas fundamentais do Estado”, do artigo 8º - nas alíneas c), d), e), h) e l) do artigo 81º, na alínea e) do artigo 99º e nas alíneas a) e c) do artigo 100º;
– que essa mesma natureza e perfil do ISP reclamam que os limites das respectivas taxas sejam estabelecidos com um intervalo que permita o efectivo ajustamento delas à conjuntura do mercado do crude e dos produtos petrolíferos, o que implica levar em conta a frequente volatilidade e amplitude desse mercado. A este respeito, cumpre acentuar até que são muito diferentes as situações no caso da contribuição autárquica (versado no Acórdão n.º 57/95) e no do ISP: no primeiro, está-se perante um imposto insensível, por definição, à variação da conjuntura económica ao longo do ano e relativamente ao qual o legislador está em condições de dominar todos os factores relevantes para a determinação da taxa, e em que, além disso, esta vai ser fixada descentralizada e diferenciadamente; no caso do ISP, estamos perante um imposto que há-de adaptar-se, a cada momento, às variações da conjuntura do mercado referido e em que um factor variável determinante da fixação da taxa, escapa, pela sua mesma natureza, ao domínio e mesmo à capacidade de previsão do legislador, e um imposto, por outro lado, em que a taxa é, de todo o modo, fixada em definitivo pelo Governo (ou pelo governo regional) para todo o respectivo território. Ora, vistas as coisas a esta luz, não devem considerar-se “desrazoáveis” ou
“inadequados” os intervalos de taxas estabelecidos nos n.os 2 e 4 do artigo 32º da Lei n.º 32-B/2002: de modo algum eles esvaziam de conteúdo o juízo político do legislador, em particular na sua dimensão mais sensível que é a do estabelecimento do limite “máximo” da taxa. Se há circunstâncias susceptíveis de justificarem o estabelecimento, pelo legislador, unicamente dos limites da taxa de um imposto, porventura o ISP será paradigmático delas, quando partindo-se de uma opção básica do legislador sobre a tributação dos produtos petrolíferos - opção essa sem dúvida alguma legítima - se pretenda um mecanismo que seja sensível à conjuntura. Seria excessivo que o mesmo “princípio da legalidade”, no exercício do qual tal opção é feita, viesse afinal, por outra via, a impedi-la.
Mas a conformidade da fixação da taxa no ISP com o princípio da legalidade tributária, na sua dimensão de princípio de auto-consentimento da tributação, pode, quando confrontada com a situação analisada no referido Acórdão n.º 57/95, ser sustentada, ainda, com um argumento acrescido. É que, enquanto na situação analisada em tal aresto, a definição legislativa do intervalo de variação da taxa foi assumida pelo legislador como elemento estrutural do tipo de imposto e, portanto, para valer durante toda a vida do mesmo (excepcionado, evidentemente, o uso do poder de revisão legislativa), no caso do ISP o leque das taxas unitárias é determinado anualmente pela Lei do Orçamento do Estado, de acordo com o prescrito no n.º 1 do art. 73º do CIEC, na redacção dada pelo art. 48º, n.º 3 da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, tendo, portanto, a marca de um auto-consentimento de tributação dado a prazo de um ano. Quer isto dizer que o legislador parlamentar tem a oportunidade de, ano a ano, reponderar não só a avaliação política tomada quanto à bondade da solução de devolução para o legislador regulamentar do poder tributário de fixar as taxas unitárias efectivas do imposto como a justeza da leitura feita por este do princípio de liberdade de mercado e das técnicas tributárias próprias deste tipo de tributo, que lhe são apontados como critérios de decisão normativa a ter em conta na fixação efectiva da taxa do imposto, sendo que estas incorporam, certamente, a economia informadora do tipo de imposto acima precisada e o modo adequado de lhe dar resposta.
C – Decisão
8. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 1, 2,
3 e 4 do artigo 32º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2003).
Lisboa, 28 de Janeiro de 2004
Benjamim Rodrigues Vìtor Gomes Gil Galvão Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Artur Maurício (vencido nos termos da declaração de voto da Exmº Conselheiro Paulo Mota Pinto a que inteiramente adiro) Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos de declaração de voto junta) Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Consº Mário Torres, que integralmente subscrevo)
Declaração de voto
Votei vencido por entender que as normas em apreciação relativas às taxas de imposto sobre os produtos petrolíferos – e na medida em que se limitam a estabelecer apenas os limites destas, sendo o exacto valor das taxas fixado pelo Governo da República ou pelos Governos regionais, no intervalo compreendido entre esses limites – afrontam o princípio da legalidade tributária consagrado no artigo 103º, nº 2 da Constituição. Na verdade, sem contestar que seja possível ao legislador, em certos termos, deixar um certo espaço à Administração na fixação precisa da taxa de determinados impostos, entre intervalos mínimos e máximos previamente estabelecidos (como este Tribunal já admitiu no Acórdão nº
57/95), entendo que o grau de incerteza quanto à expressão quantitativa das taxas admitido no caso do imposto sobre os produtos petrolíferos, pela amplitude da variação que consente entre os respectivos limites, cria uma “incerteza intolerável” do ponto de vista da segurança jurídica dos contribuintes. Na verdade, não pode pretender-se que a margem de oscilação permitida – que chega a situar-se entre 18,00 e 149,64 – obedeça, pela sua amplitude, ao critério da razoabilidade do intervalo dentro do qual o legislador regulamentar poderia fixar a taxa efectiva do imposto, admitido no Acórdão nº 57/95 (note-se que aí o intervalo de variação se situava entre 1,1% e 1,3%).
Julgo, também, que não procede o argumento que se pretende extrair da comparação com a contribuição autárquica – o tema versado no Acórdão nº 57/95 – porquanto se reconhece que, em ambos os casos, é sempre legítima a intervenção do legislador na fixação da respectiva taxa, pelo que perde sentido a pretensa diferença do papel da taxa numa e noutra figura tributária. Se, como é evidente, o legislador pode sempre intervir, não me parece que se possam extrair grandes corolários de uma suposta caracterização da taxa como «elemento estrutural» da contribuição autárquica, o que já não ocorreria no caso do imposto sobre os produtos petrolíferos, cuja taxa é fixada anualmente.
Enfim, não pode assumir-se, como o faz o acórdão, que a «natureza e perfil» do imposto sobre produtos petrolíferos «reclamam que os limites das respectivas taxas sejam estabelecidos com um intervalo que permita o efectivo ajustamento delas à conjuntura do mercado do crude e dos produtos petrolíferos». A existência de tal «intervalo» não é um corolário inelutável da natureza do imposto, nem o perfil deste exige necessariamente a existência de uma «taxa flutuante», como o demonstra a prática nacional do passado, na vigência do Decreto-Lei nº 261-A/91, de 25 de Julho, e o regime do «Impuesto sobre Hidrocarburos» que vigora em Espanha, como salienta, na sua declaração de voto, o Exmo. Conselheiro Mário Torres.
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Votei vencida o presente Acórdão por entender que as normas em crise relativas à taxa de imposto sobre produtos petrolíferos violam o preceituado nos artigos
165º, nº 1, alínea i), 103º, nº 2, e 112º, nº 6, da Constituição. Entendo que a variação prevista legalmente da taxa do imposto entre o valor mínimo e o máximo, sendo muito ampla, está baseada num critério fundamentalmente político, não previsível nem controlável pelos destinatários do imposto. Deste modo, não realiza suficientemente a garantia constitucional derivada do princípio da legalidade. Com efeito, neste caso tal como já no Acórdão nº 57/95, em que estava em causa a contribuição autárquica, e em que votei vencida no sentido da inconstitucionalidade, inexiste qualquer espécie de critério pelo qual seja possível prever a taxa do imposto que a Administração fixará, tornando o controlo parlamentar da modelação concreta do imposto inviável. Não tem, todavia, de ser pressuposta uma concepção rigorista das exigências constitucionais quanto à precisão dos elementos dos impostos sujeitos à reserva de lei para se atingir esta conclusão, mas já uma perspectiva moderada permite tal conclusão. Mesmo que se admita que à Administração ainda seja possível fixar a taxa do imposto, não deixa de ser exigível pelo valor da segurança democrática em matéria de impostos que seja ex ante determinável o quantum do imposto. É exigível, de acordo com tal valor, que a lei preveja um qualquer critério orientador para a Administração, não podendo esta concretizar a taxa do imposto livremente, à medida de meras preocupações políticas conjunturais. É a ausência de um qualquer critério legal disciplinador previsível para os destinatários do imposto que desobedece aos comandos constitucionais, tornando de certa forma incontrolável pelos típicos mecanismos democráticos a fixação da taxa de um imposto. Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que as normas dos n.ºs 1, 2,
3 e 4 do artigo 32.º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2003), ao remeterem para portaria dos Ministros das Finanças e da Economia, para resolução do Conselho do Governo Regional dos Açores e para portaria do membro competente do Governo Regional da Madeira a fixação dos valores das taxas unitárias do imposto sobre os produtos petrolíferos, dentro dos intervalos enunciados nos n.ºs 2 e 3, viola o princípio da legalidade tributária, consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), enquanto comete à lei que cria impostos a determinação da sua incidência e da sua taxa.
A justificação actual desse princípio já não assenta na ideia de autotributação nem se esgota numa função de garantia dos contribuintes, que seria satisfeita pela mera fixação, pelo Parlamento, de limites máximos das taxas aplicáveis aos diversos impostos, sendo lícito ao Governo fixar limites inferiores, porque daí não derivaria agravamento da situação dos contribuintes. Pelo contrário, ao Parlamento incumbe a definição da política fiscal, e essa definição passa não só pela determinação dos impostos a cobrar, mas também pela definição dos seus elementos essenciais, entre os quais a incidência e a taxa.
Considero, assim, que cabe à lei proceder à determinação da taxa dos impostos e não apenas à indicação dos seus limites, tal como era defensável face ao artigo 70.º da Constituição de 1933, após a revisão de 1971, que reservava à lei tão-só a determinação da taxa ou dos seus limites. A Constituição de 1976, ao eliminar a menção “ou dos seus limites”, quis claramente reservar à própria lei a directa determinação da taxa dos impostos. Como se refere na declaração de voto do Ex.mo Cons. Monteiro Diniz, aposta ao Acórdão n.º 57/95: “Por força do princípio assim consagrado [no então artigo
106.º, actual artigo 103.º, n.º 2, da CRP], a criação e determinação dos elementos essenciais dos impostos não pode deixar de constar de diploma legislativo (reserva de lei), o que implica a tipicidade legal, isto é, o imposto há-de ser definido na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionariedade administrativa quanto aos seus elementos essenciais. E assim sendo, «não pode deixar de considerar-se como constitucionalmente excluída a possibilidade de a lei conferir às autoridades administrativas (estaduais, regionais ou locais) a faculdade de fixar dentro dos limites legais mais ou menos abertos, por exemplo, as taxas de determinados impostos» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993], pág. 458).”
Não se ignora que o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão n.º 57/95, embora com diversos votos dissidentes, aceitou como constitucionalmente tolerável que a lei se tivesse cingido a determinar os limites da variação possível da taxa da contribuição autárquica, “devolvendo às assembleias deliberativas dos municípios a competência para, dentro das balizas por ela traçadas, fixar o respectivo valor”. Mas fê-lo salientando a excepcionalidade da situação, fruto da conjugação, no caso, de diversas especificidades: (i) “o poder atribuído aos municípios para fixar a taxa da contribuição autárquica diz respeito a um imposto de natureza municipal – não apenas porque a sua receita reverte para os municípios, mas também porque o valor patrimonial dos prédios é fortemente influenciado pelas obras realizadas por aqueles entes públicos territoriais”; (ii) “o grau de variação fixado pela lei entre o mínimo e o máximo da taxa daquele imposto é relativamente curto
(1,1% a 1,3 % do valor matricial), pelo que a margem das assembleias municipais
é bastante estreita”; (iii) “o poder conferido pela lei para modelação da taxa do referido imposto, dentro dos limites rigorosos por ela definidos, tem como destinatários os municípios, ou seja, as autarquias locais mais importantes actualmente existentes, dotadas de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira”. Só por força da conjugação destes factores é que o Tribunal Constitucional concluiu então pela não violação do princípio da legalidade tributária, entendendo que as funções específicas desse princípio (a de natureza democrática, ligada à ideia de autotributação, e a de natureza garantística, sendo a anterioridade da lei condição necessária para que os cidadãos saibam antecipadamente e com exactidão o que vão ser chamados a pagar) não eram postas em causa “pelo facto de um órgão da administração autárquica ser autorizado pela lei a definir a taxa de um imposto local, dentro dos limites muito apertados fixados pelo órgão parlamentar” (sublinhado acrescentado).
Nenhuma destas especificidades ocorre no presente caso: não se trata de imposto local, a fixação definitiva da taxa não cabe a assembleias representativas, mas a órgãos administrativos, e – sobretudo – os limites de variação são enormes: contra os 0,2% (entre 1,1% e 1,3%) de variação no caso da contribuição autárquica, temos, no n.º 2 do questionado artigo 32.º, variações de taxas entre 18,00 e 149,64, e no n.º 3 entre 0,00 e 34,92, isto é, situações em que a margem de discricionariedade conferida à Administração chega ao limite da própria destributação.
O não reconhecimento, pelo Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade desta solução representa manifestação de excessiva complacência, que desvirtua completamente o sentido da reserva de lei quanto à fixação da taxa dos impostos, como instrumento de definição da política fiscal, que ao Parlamento compete.
E nem se tente justificar tal solução com o argumento da inevitabilidade ou praticabilidade. Basta recordar que, em Portugal, na vigência do Decreto-Lei n.º 261-A/91, de 25 de Julho, o sistema de fixação da taxa do imposto era diferente, sendo determinada directamente pela lei ou a fórmula de cálculo da taxa (n.º 1 do artigo 7.º), ou mesmo o seu montante monetário (n.ºs 5 e seguintes; por exemplo: taxas de 30$ e de 15$ por litro para, respectivamente, as mercadorias classificadas pelo código 2710 00 55 ou pelo código 2711 00 00 da NC; ou taxa de 19$ por metro cúbico para o gás de cidade, classificado pelo código 2711 29 00 da NC). E que, em Espanha, a taxa do “Impuesto sobre Hidrocarburos” consiste num quantitativo fixo para cada tipo de combustível em causa, directamente determinado pela lei (artigo 50.º da Lei n.º 38/1992, de 28 de Dezembro; por exemplo: € 404,793673 por 1000 litros de gasolina com chumbo).
Anote-se, por último, que o precedente acórdão não utilizou – e bem – eventual argumento fundado em costume constitucional, à semelhança do que no citado Acórdão n.º 57/95 se fez com as derramas. Com efeito, tal argumento seria manifestamente inutilizável no presente caso, atentas, por um lado, a “novidade” do imposto em causa e as oscilações verificadas na legislação quanto ao sistema de fixação da respectiva taxa e, por outro lado, a contestação de que tem sido objecto a sua conformidade constitucional, o que originou não apenas o presente processo, mas, já anteriormente, idêntico pedido quanto a correspondente norma do artigo 49.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril (Orçamento do Estado para
2000), de que o Tribunal Constitucional não conheceu, por inutilidade superveniente (Acórdão n.º 142/2002, em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
52.º vol., pág. 223). Faltam, assim, as duas condições cumulativas que tradicionalmente se exigem “para se poder falar da institucionalização de uma regra consuetudinária: (1) inveterata ou longaeva consuetudine (uso durante largo tempo); (2) opinio necessitatis ou opinio juris, ou seja, convicção da sua juridicidade” (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 1135-1136). Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto Votei vencido por entender que as normas em questão, ao permitirem, dentro de intervalos alargados, a fixação por portaria da taxa do imposto sobre os produtos petrolíferos, violam o princípio da legalidade consagrado no artigo
103º, n.º 2 (e 165º, n.º 1, alínea i)) da Constituição, segundo o qual é o legislador que há-de determinar a taxa dos impostos. Na verdade, entendo que o princípio da legalidade não fica satisfeito apenas com a fixação, pelo legislador, dos limites da taxa – e, nomeadamente, do limite máximo –, diversamente do que se sustentava antes da Constituição de 1976 (e, com apoio literal, posteriormente à revisão de 1971). É que, a meu ver, a razão de ser daquele princípio não reside apenas na ideia de consentimento ou de garantia dos destinatários quanto à tributação, que se poderia dizer satisfeita com a previsão de um assentimento apenas para os limites máximos. Está, também, no controlo da oportunidade e dos termos do juízo, necessariamente político e que compete à Assembleia da República, sobre a carga tributária, juízo, esse, que se reflecte, para cada imposto, desde logo, na fixação da respectiva taxa. Mesmo deixando de lado a circunstância de, segundo o artigo 103º, n.º 2, da Constituição, também os benefícios fiscais deverem ser previstos por lei, a solução contrária, segundo a qual a lei apenas teria de fixar o limite máximo da taxa, levaria, aliás, a que a opção política de introdução de um imposto pudesse ser totalmente esvaziada por apreciações de mera oportunidade política da Administração. No caso vertente, aliás – e diversamente do que ocorria, por exemplo, na hipótese do acórdão n.º 57/95 –, reconhece-se com facilidade que os intervalos consentidos pelo legislador são de uma grande amplitude: a variação pode ir, por exemplo, no caso da gasolina sem chumbo, de € 0,287 (cerca de 56$00) a € 0,518
(cerca de 102$00) por litro, e, num caso, prevê-se mesmo, como limite mínimo, uma taxa zero (o que equivale claramente a uma autorização para “destributação” administrativa). Tal amplitude significa na prática, considerando variações normais dos preços dos produtos petrolíferos, uma demissão da fixação da taxa do imposto pela Assembleia da República, e uma atribuição, contra o que dispõe o artigo 103º, n.º 2, da Constituição, do poder de fixar a taxa efectiva de um imposto estadual aos Ministros das Finanças e da Economia (no Continente), ao Conselho do Governo Regional (nos Açores) ou ao membro competente do Governo Regional (na Madeira). Tal excessiva amplitude do intervalo do espaço de fixação da taxa, deixado à livre intervenção regulamentar – entre margens que poderão facilmente chegar a
100% de variação –, também não é, a meu ver, “compensada” pelo facto de o legislador poder reponderar anualmente a avaliação política sobre a sua
“renúncia” à fixação das taxas, e correspondente fixação pelas referidas entidades. É que o que está em causa é justamente a possibilidade de variação da taxa durante o ano, sem qualquer controlo e – o que não pode deixar de ser relevante – sem a indicação, pelo legislador, de qualquer critério substantivo para essa fixação. Por outro lado, parece-me evidente que, nesta matéria, em que estão em causa um princípio e normas de competência verdadeiramente estruturantes – e num tema que, como se sabe, está, aliás, na origem do parlamentarismo –, não cabe de todo invocar, a favor da conformidade constitucional da fixação da taxa do imposto por regulamento, qualquer
“aplicabilidade dos princípios gerais de necessidade, de adequação e de proporcionalidade” das leis restritivas dos direitos fundamentais. Quanto à pretensa inevitabilidade desta configuração do imposto, ou – numa versão mais comedida – à impraticabilidade do resultado contrário, por se estar perante um tributo em que existe um factor de preço de variável que seria determinante para a fixação da taxa, considerando o objectivo de estabilidade de preços ao comprador final, afigura-se-me, desde logo (e, portanto, ainda antes da questão da procedência do argumento), que passa ostensivamente ao lado do problema do confronto com o princípio da legalidade tributária. Com efeito, independentemente de quaisquer considerandos metodológicos gerais sobre argumentações puramente a partir do resultado, afigura-se-me claro, sob pena de total esvaziamento das exigências normativas da Constituição, que, se realmente a única configuração possível do imposto exigisse a fixação da taxa por regulamento, a conclusão que se imporia seria, pelo contrário, a da inconstitucionalidade do tributo, cuja existência está longe de poder ser considerada como constitucionalmente imposta. Para além disto, considero, porém, estar cabalmente provado que pode existir um imposto sobre os produtos petrolíferos sem taxa fixada livremente por regulamento e sem pôr em causa o objectivo de assegurar minimamente uma certa estabilidade dos preços: é o que demonstram, quer logo a história deste tributo na nossa ordem jurídica, quer exemplos de direito comparado (por exemplo, o referido na declaração de voto do Sr. Cons. Mário Torres), quer, simplesmente, a consideração de que existem formas de indexar a taxa do imposto às variações do preço dos produtos petrolíferos, bem podendo o legislador tê-los apontado como critério para a variação da taxa. Entendo, pois, que o referido argumento da inevitabilidade (ou da impraticabilidade), para além de não ter relevância para a discussão da questão de constitucionalidade que está em causa, não é, em si mesmo, procedente. Com estes fundamentos, teria declarado a inconstitucionalidade do artigo 32º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, por violação do artigo 103º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Paulo Mota Pinto