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Processo n.º 205/03
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O Ministério Público veio interpor o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho proferido no Tribunal Judicial de Ponte de Lima, em 9 de Janeiro de 2003, pelo qual foi declarado extinto o procedimento criminal relativo ao arguido por crime de emissão de cheque sem provisão, “uma vez que no mesmo foi recusada a aplicação da norma do art. 2.º, n.º 4, parte final, do Código Penal, com fundamento na sua inconstitucionalidade.”
Nesse despacho adere-se aos fundamentos da promoção do Ministério Público, na qual se dizia ter-se operado “uma descriminalização da conduta em causa nestes autos”, pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, e que esta “ocorreu posteriormente ao trânsito em julgado da condenação”, sustentando-se, com remissão para a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade da norma contida na parte final do artigo 2º n.º 4 do Código Penal, na interpretação segundo a qual “a descriminalização operada pelo n.º 3 do art. 11º do DL 454/91, na redacção do DL 316/97, não pode ser aplicada no caso dos autos, por já haver condenação com trânsito em julgado.”
2.No Tribunal Constitucional, o recorrente concluiu as suas alegações da seguinte forma:
“1º – É materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei [penal] mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que descriminaliza o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sentença condenatória transitada em julgado.
2º – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.”
Por parte do recorrido não foram apresentadas quaisquer alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, de decisão judicial que recusou a aplicação, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, da norma contida no artigo 2º n.º 4 do Código Penal, parte final, na interpretação segundo a qual “a descriminalização operada pelo n.º 3 do art. 11º do DL 454/91, na redacção do DL 316/97, não pode ser aplicada no caso dos autos, por já haver condenação com trânsito em julgado.”
Está em causa o confronto desta norma com o artigo 29º, n.º 4, da Constituição, que consagra a aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, tendo o tribunal recorrido considerado que a lei nova (o Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro) operou uma descriminalização do facto imputado ao arguido.
4.Como se nota nas alegações do Ministério Público, e foi já invocado (por remissão para a promoção) na decisão recorrida, decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada nesse artigo 29º, n.º 4, “implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos substancialmente análogos” – cfr. os Acórdãos n.ºs 677/98
(agora publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional vol. 41º págs. 501 e segs.) e 169/02 (publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Maio de
2002).
Assim, neste último aresto remeteu-se para o Acórdão n.º 677/98, escrevendo-se o seguinte:
“6. Pode, assim, continuar-se a acompanhar o citado Acórdão n.º 677/98, no qual, sobre o confronto da norma em causa com o princípio da aplicação retroactiva da lei, se escreveu:
«4. É no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais que a Constituição consagra os princípios básicos relativos à ‘aplicação da lei criminal’ (artigo 29º). Entre eles, contam-se o princípio da legalidade, o princípio da irretroactividade da lei incriminadora, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, o princípio ne bis in idem e o direito
à revisão da sentença e à indemnização em caso de condenação injusta. Na parte que agora nos importa considerar, o n.º 4 do artigo 29º determina que se aplicam ‘retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido’. Não se afigura difícil encontrar o fundamento substancial para esta regra, que decorre directamente do princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas (Acórdão deste Tribunal n.º 290/97, de 12 de Março de 1997, publ. no Diário da República, II, de 15 de Maio de 1997 e FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Direito Penal – Questões fundamentais – a doutrina geral do crime, em curso de publicação, Coimbra, 1996, págs. 66 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal - Parte Geral, Lisboa, 1994, pág. 65 e segs.; TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 50 e segs.; JOSÉ SOUSA E BRITO, A lei penal na Constituição, in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 178, págs. 199 e segs. e 222 e segs.; TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 2ª edição, Coimbra, 1997, págs. 102 e segs.). Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que ‘qualquer criminalização e respectiva punição’ (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado no n.º 1 do artigo 27º da Constituição). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do n.º 2 artigo 18º, quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais favorável se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se constitucionalmente ilegítima.
5. Como já se viu, a norma do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal foi interpretada pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de não permitir a aplicação retroactiva da lei que transforma em crime semi-público um crime público – lei que é, por isso, mais favorável – e de impedir, consequentemente, a relevância da desistência da queixa apresentada. Apurado o fundamento do n.º 4 do artigo 29º da Constituição, impõe-se a conclusão de que se verifica uma contradição formal entre esta disposição e a norma do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, com o alcance com que foi aplicada pelo acórdão recorrido (considerando existir tal contradição em todos os casos abrangidos pelo n.º 2 do artigo 4º do Código Penal, TERESA PIZARRO BELEZA, op.cit., 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 455, que sustenta que a parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal deve ‘considerar-se inconstitucional face ao disposto no n.º 4 do artigo 29º’).
É necessário, no entanto, averiguar se tal contradição é admissível, o que só ocorrerá se constituir uma restrição constitucionalmente permitida de direitos, liberdades e garantias, em razão da sua necessidade, adequação e proporcionalidade relativamente à defesa de outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos. Com efeito, ‘... as restrições e os condicionamentos dos direitos fundamentais ... só se justificam quando, para além do mais, se mostrem necessários e adequados à salvaguarda de outros direitos ou valores constitucionais. Por outro lado, têm sempre que ser proporcionados. E, tratando-se de restrições, têm que deixar intocado o conteúdo essencial do respectivo preceito constitucional (cf. artigo 18º da Constituição)’ (Acórdão n.º 392/89 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II, de 14 de Setembro de 1989). Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal . Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar legítima a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 3ª edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, pág. 257), se trata, sem qualquer dúvida, de um valor constitucionalmente protegido. Torna-se, todavia, indispensável demonstrar que o valor constitucional do caso julgado deva prevalecer nestas hipóteses perante o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável. Afirmou-se no Acórdão n.º 644/98 deste Tribunal, ainda inédito [e entretanto publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 41º, págs. 367 e segs.], haver que averiguar se ‘aceite a consagração constitucional do valor ou interesse consistente no respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar a regra constante da parte final do n.º 4 do artigo 29º como uma garantia constitucional fundamental, ... se, atentos os números 2 e 3 do artigo
18º, a restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a salvaguarda desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela garantia’. Ora, a verdade é que, independentemente de outras considerações, se considera que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no n.º 4 do artigo 29º da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos substancialmente análogos. Não estando em causa, neste processo, averiguar da conformidade constitucional da não aplicação retroactiva da lei mais favorável a todos os casos hipoteticamente abrangidos pelo n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, há que entender que, na parte em que constitui objecto do presente recurso, esta norma não respeita o conteúdo essencial do n.º 4 do artigo 29º da Constituição. Com efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da ofendida, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência da queixa, o resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza, em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, a aplicação da lei nova determinaria a não punição.
6. Não se afigura admissível invocar o n.º 5 do artigo 29º da Constituição, que garante que ‘ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime’, para defender a intangibilidade do caso julgado, como se fez no douto acórdão recorrido (cfr. a invocação do n.º 5 do artigo 29º como um dos argumentos para a defesa da não inconstitucionalidade da última parte do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, em PEREIRA TEOTÓNIO, Interpretação da lei criminal e sua aplicação no tempo, in Revista do Ministério Público, ano 3º, vol. 12,
1982, pág. 64). Na verdade, a disposição constitucional invocada, que consagra o princípio ne bis in idem, constitui, sem margem para qualquer dúvida, uma garantia do arguido, não podendo pois ser invocada contra ele, em manifesta violação da sua ratio.»”
5.No presente caso, o tribunal recorrido considerou que se verificara, com a lei nova, uma “descriminalização da conduta em causa nestes autos”, e, invocando a citada jurisprudência do Tribunal Constitucional, recusou a aplicação da dimensão normativa em questão do artigo 2º, n.º 4 – e não do n.º 2 do mesmo artigo –, do Código Penal, para o efeito de poder considerar que o trânsito em julgado da decisão condenatória não obstava à aplicação da lei nova.
Este enquadramento normativo adoptado pelo tribunal a quo, bem como a consideração de que se verificara uma descriminalização da conduta em questão – sem, porém, se referir expressamente à transformação de crime público em semi-público e a qualquer desistência de queixa, como na hipótese do citado Acórdão n.º 677/98 –, não são sindicáveis pelo Tribunal Constitucional, ao qual não compete, no presente recurso, controlar a correcção dessa aplicação do direito infraconstitucional. Cumpre-lhe apenas apreciar a norma cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo, e cuja apreciação é objecto do recurso: a do artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, apenas na dita “interpretação” de que veda a aplicação da lei penal nova que descriminaliza o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sentença condenatória transitada em julgado (e não noutras suas dimensões interpretativas).
Ora, como nota o recorrente, os fundamentos da citada jurisprudência constitucional conduzem efectivamente, se aplicados também à “dimensão interpretativa” ora em questão, a confirmar o julgamento de inconstitucionalidade material a que se chegou na decisão recorrida, e, portanto, a negar provimento ao recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável consagrado no n.º 4 do artigo 29º da Constituição, a norma constante do artigo 2º n.º 4 do Código Penal na interpretação de que veda a aplicação da lei penal nova que descriminaliza o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sentença condenatória transitada em julgado; b) Por conseguinte negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. c) Lisboa, 19 de Novembro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos