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Proc. n.º 676/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e outro, notificados da decisão sumária de fls. 209 e seguintes que decidiu não tomar conhecimento do recurso por eles interposto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, vieram, nos termos do artigo 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, “requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão
(fundamentado e não meramente remissivo como é lamentavelmente habitual), submetendo-se o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária”.
Invocaram, em síntese, que:
“A decisão sumária em crise contraria o Despacho de admissão do recurso, como também é habitual nestes casos de «irmandade judicial»!!!
[...] Veja-se que, por Despacho de 10.4.02, o recurso de agravo foi admitido, e que, por despacho de 10.5.02, proferido pelo mesmo Juiz, o mesmo recurso de agravo não foi admitido. Andamos a brincar às admissões e não admissões de recursos?!!! Estamos na presença da inexistência do Despacho de 10.5.02, doutra forma isto é uma autêntica «ciganada processual»
[...] O despacho de não admissão de um recurso nunca dos nuncas podia ser atacado pela via do recurso, mas apenas pela via da reclamação. Este raciocínio processual é rectilíneo e só deixa de o ser por artifícios de
«irmandade processual»!!! O esgotamento do poder jurisdicional produz inexistências e não novos recursos!!! Esta questão é manifestamente um problema de óbvia ilegalidade/inconstitucionalidade relativamente à sucessiva admissão/rejeição do recurso, pelo mesmo Julgador e constitui uma questão prévia à decisão sobre o mérito do recurso. Donde, as normas dos arts. 654°/2/, 666°/1/3, 667° e 670°/4/ do CPC estão bem definidas quanto ao seu sentido negativo judicial e quanto ao seu sentido positivo dado pelos recorrentes e o Tribunal Constitucional percebeu bem, mas faz que não entende!!! Efectivamente, quando o Tribunal Constitucional diz que não sabe qual é o objecto do recurso (!!!) está nitidamente a brincar à cabra cega com os recorrentes, porque é judicialmente incorrecto estar em oposição com «a irmandade judicial»!!! Será possível brincar tanto com os recorrentes, a ponto de o Tribunal Constitucional afirmar que nenhuma referência foi feita às normas/sentidos que se consideram ilegais/inconstitucionais?!!! A identificação de tais normas/sentidos está com resposta exaustiva e repetitiva e o alegado «alvoroço processual» é demasiado escandaloso!!!
[...] A delimitação do objecto do recurso não consiste em transcrever artigos dos Códigos e fazer uma exegese das palavras contidas nessas disposições, pois o jogo da ilegalidade/inconstitucionalidade faz-se ao nível dos supremos princípios da igualdade, da proporcionalidade, etc... ínsitos na Lei Fundamental. O direito não é um «credo religioso», em que os cidadãos têm de recitar fórmulas pré-estabelecidas e esquecer-se do espírito profundo constitucional. Consequentemente, a ininteligibilidade da decisão sumária em crise é patente.
[...] Termos em que VV. Exas. devem decidir tomar conhecimento do objecto – definido em todos os seus contornos e quadrantes – do presente recurso. Assim, desaparecerá esta «farsa processual» e far-se-á Justiça contra «a irmandade judicial»
[...].”
2. Notificados para se pronunciarem sobre a reclamação apresentada, os recorridos B. e C. não responderam.
3. Embora os reclamantes fundem a sua pretensão no artigo 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, entende-se que o pedido formulado configura a reclamação prevista no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Cumpre apreciar e decidir.
4. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não tomar conhecimento do recurso por não ter sido delimitado o respectivo objecto pelos recorrentes, apesar de terem sido notificados expressamente para esse efeito.
Na verdade, uma vez que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, os recorrentes questionavam a conformidade constitucional de normas contidas no Código de Processo Civil, quando interpretadas num determinado sentido, mas em termos que não permitiam identificar claramente o objecto do recurso, foi, pelo despacho da relatora de fls. 196, determinada a notificação dos recorrentes, ao abrigo do disposto no artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, para completarem aquele requerimento, explicitando:
– quais as normas que pretendem submeter à apreciação do Tribunal Constitucional;
– qual o sentido que na decisão recorrida foi atribuído a tais normas, que consideram inconstitucional e que pretendem submeter ao julgamento deste Tribunal.
Em resposta, vieram os recorrentes indicar as disposições legais em que se fundam para interpor o recurso de constitucionalidade, as normas ou princípios constitucionais que consideram violados e as peças processuais em que haviam suscitado a questão constitucional (fls. 203 e seguintes). Na peça processual então apresentada pelos recorrentes nenhuma referência era feita às normas que pretendiam submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, nem ao sentido que na decisão recorrida foi atribuído a tais normas: afinal, os elementos cuja explicitação era pedida, no despacho de fls. 196.
Aliás, nessa peça processual os recorrentes apenas impugnavam – e em termos muito pouco claros – a conformidade constitucional de certas interpretações normativas, permanecendo sem resposta o pedido da relatora no sentido da identificação de tais interpretações.
Consequentemente, concluiu-se na decisão sumária reclamada que, tendo os recorrentes, em resposta ao despacho da relatora, indicado apenas elementos que não haviam sido pedidos e não tendo suprido uma falta essencial do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – a delimitação do próprio objecto do recurso –, não poderia o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso.
5. Na reclamação deduzida, os ora reclamantes referem-se longamente às vicissitudes ocorridas no processo que deu origem ao recurso para o Tribunal Constitucional.
Nada dizem, porém, que seja susceptível de pôr em causa a decisão sumária reclamada.
Concretamente, os ora reclamantes continuam a não explicitar o sentido que na decisão recorrida foi atribuído às normas impugnadas, que consideram violador da Constituição e que pretendem submeter ao julgamento deste Tribunal.
É que, segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, quando os recorrentes questionam a conformidade constitucional de uma determinada interpretação normativa, devem explicitar o sentido atribuído às normas em causa que consideram inconstitucional e que pretendem ver apreciado no
âmbito do recurso de constitucionalidade. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 367/94 (Diário da República, II Série, n.º 207, de 7.9.1994, p. 9341 ss),
“Ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição.”
Em momento algum do processo, nem mesmo no âmbito da reclamação da decisão sumária – que, de qualquer modo, não seria já momento processualmente adequado para o efeito – os ora reclamantes explicitaram qual a interpretação atribuída na decisão recorrida às normas do Código de Processo Civil que consideravam inconstitucional e que pretendiam que o Tribunal Constitucional apreciasse.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode substituir-se aos recorrentes na identificação do objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
6. Reafirma-se assim que, não tendo sido claramente delimitado o objecto do recurso interposto, o Tribunal Constitucional não pode dele conhecer.
A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que admitiu o recurso não vincula este Tribunal, conforme dispõe expressamente o artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, de 19 de Novembro de 2003, que não tomou conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 22 de Janeiro de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos