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Processo n.º 335/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
a., requereu, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, a suspensão de eficácia do despacho do Secretário de Estado do Desenvolvimento Rural, de 27 de Agosto de 2002, que negou provimento a recurso hierárquico interposto do despacho do Director Regional de Agricultura de Entre Douro e Minho, de 7 de Janeiro de 2002, que determinara a suspensão da laboração do estabelecimento fabril da requerente. No final do requerimento, solicitou, “atendendo quer aos direitos que a requerente pretende aqui ver assegurados, quer ao princípio do contraditório, quer ao direito de audição e defesa, atento o carácter sancionatório da decisão que se impugna, quer ao direito a uma tutela jurisdicional efectiva, quer, por fim, ao dever que impende sobre os Tribunais de assegurar a defesa dos direitos da requerente, todos com assento constitucional, (...) nos termos do disposto nos artigos 569.º e
577.º, ambos do Código de Processo Civil, e para prova de que a unidade fabril da requerente cumpre a legislação em vigor e que da sua produção não resulta qualquer perigo para a saúde pública, que [fosse] efectuada perícia colegial”.
Declarada, por despacho de 21 de Outubro de 2002, a incompetência material e hierárquica do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto e requerida e deferida a remessa do processo ao Supremo Tribunal Administrativo, este, por acórdão de 18 de Dezembro de 2002, indeferiu o pedido de suspensão de eficácia, tendo igualmente indeferido o pedido de efectivação de prova pericial por tal ser “incompatível com o meio processual acessório a que a requerente lançou mão”.
Indeferido, por acórdão de 25 de Fevereiro de 2003, pedido de aclaração do anterior acórdão, vem a requerente deste interpor recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade e a ilegalidade - por alegada violação do princípio do contraditório, do direito de audição e defesa (atento o carácter sancionatório da decisão cuja suspensão se requer), do direito a uma tutela jurisdicional efectiva e do dever dos tribunais de assegurarem a defesa dos direitos da requerente - das normas do artigo 76.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), constante do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho,
“interpretadas no sentido de que nas suspensões de eficácia de actos administrativos está vedado ao Tribunal realizar as diligências de prova requeridas pelo requerente, respeitantes à averiguação da exactidão material dos fundamentos do acto”, questão que teria sido suscitada no requerimento inicial.
Neste Tribunal Constitucional, foi determinada a apresentação de alegações, tendo a requerente terminado as por ela produzidas com a formulação das seguintes conclusões:
“1 - As normas constantes do artigo 76.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretadas no sentido de que nas suspensões de eficácia de actos administrativos está vedado ao Tribunal realizar as diligências de prova - mormente a peritagem requerida pela recorrente -, respeitantes à averiguação da exactidão material dos fundamentos do acto administrativo viola o princípio do contraditório e o direito de audição e defesa dos cidadãos;
2 - Tal interpretação viola ainda o seu direito constitucional a uma tutela jurisdicional efectiva.
3 - Assim, deve ser declarada a inconstitucionalidade daquelas normas interpretadas no sentido referido na decisão recorrida.”
A entidade requerida, ora recorrida, não apresentou contra-alegações.
Proferiu então o relator o seguinte despacho:
“Embora a recorrente não tenha indicado, nem no requerimento de interposição de recurso, nem nas alegações agora apresentadas, a alínea do n.º
1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual o presente recurso vem interposto, surge como óbvio que essa alínea apenas poderá ser a alínea b), por o acórdão recorrido pretensamente ter aplicado norma (ou interpretação normativa) inconstitucional.
Ora, tal recurso só pode ser interposto pela parte que houver suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo 72.º, n.º 2, da mesma Lei).
No presente caso, se é verdade que a recorrente, ao requerer a prova pericial, invocou princípios com assento constitucional (cf. fls. 5), não menos verdade é que então não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente não arguiu – em termos processualmente adequados a que o Supremo Tribunal Administrativo ficasse obrigado a dela conhecer – a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 76.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos que agora pretende ver apreciada, e sendo certo que a recorrente não poderia legitimamente ignorar a constante jurisprudência desse Supremo Tribunal no sentido da inadmissibilidade de produção de prova não documental [por lapso, escreveu-se testemunhal] quer nos recursos contenciosos de anulação perante ele directamente deduzidos, quer nas providências de suspensão de eficácia que constituem incidentes desses recursos.
Surgindo, assim, como defensável o não conhecimento do objecto do presente recurso, por inadmissibilidade do mesmo, notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre esta questão.”
Nem a recorrente nem o recorrido apresentaram qualquer resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Como se assinalou no despacho do relator atrás transcrito, constitui requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – espécie em que não pode deixar de se integrar o presente recurso – que o recorrente haja suscitado, “durante o processo”, a questão da inconstitucionalidade da norma (ou interpretação normativa) que veio a ser aplicada pela decisão recorrida e que essa suscitação seja feita “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo
72.º, n.º 2, da mesma Lei).
Essa suscitação há-de ser feita, em regra, antes de proferida a decisão recorrida, excepto se a interpretação e aplicação normativas nesta efectuadas sejam de tal modo inesperadas e insólitas que não fosse de exigir ao recorrente que antecipasse essa eventualidade e logo arguisse a respectiva inconstitucionalidade.
No presente caso, a recorrente não suscitou adequadamente no decurso do processo qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como tal não podendo valer as afirmações, contidas na parte do requerimento inicial em que requereu a realização de prova pericial, de que a produção desta prova era necessária para assegurar o respeito de determinados princípios, deveres e direitos constitucionalmente consagrados, sem identificar minimamente a norma (ou interpretação normativa) cuja conformidade constitucional impugnava e, consequentemente, sem colocar o tribunal a quo na obrigação de conhecer de tal questão.
Por outro lado, a interpretação acolhida no acórdão recorrido nada tem de insólito ou de inesperado, correspondendo a uma prática uniforme, mantida sem qualquer desvio, ao longo de todo o período de vigência da LPTA, quer no sentido de que, na apreciação do pedido de suspensão de eficácia, não cabe ao tribunal apreciar a legalidade do acto cuja eficácia se pretende ver suspensa, quer no sentido da inadmissibilidade de produção de prova não documental. O primeiro entendimento sempre assentou na constatação de que o artigo 76.º da LPTA apenas faz depender o deferimento do pedido de suspensão de eficácia da verificação cumulativa dos três requisitos nele elencados (a execução do acto causar provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses por este defendidos; a suspensão não determinar grave lesão do interesse público; não resultarem do processo fortes indícios da ilegalidade da interposição do recurso), sem qualquer alusão ao requisito do fumus boni iuris (ao invés do que sucede nas providências cautelares cíveis, cujo deferimento depende da existência de “probabilidade séria da existência do direito” – artigo 387.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). O segundo entendimento resultava da especial tramitação do incidente em causa, inspirada por fortes preocupações de celeridade, que impunham que o requerente juntasse logo com o requerimento inicial “os documentos que entenda necessários” (artigo 77.º, n.º 2, da LPTA) e que o juiz ou o relator – que recebiam o processo, pela primeira vez, após prolação do parecer do Ministério Público, pronto para decisão – decidissem no prazo de 3 dias ou o submetessem a julgamento na sessão imediata, independentemente de vistos dos juízes adjuntos
(artigo 78.º, n.º 4), sem previsão de qualquer fase de instrução (também ao invés do que sucede nas providências cautelares cíveis, onde se prevê que se proceda “quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo juiz” – artigo 386.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), solução esta que, aliás, estava em conformidade com a regra, estabelecida no artigo 12.º, n.º 1, da LPTA, de que “nos processos da competência do Supremo Tribunal Administrativo (...) só é admissível prova documental”.
Não se ignoram as críticas que a doutrina dirigia a estas soluções legislativas, justamente por não assegurarem uma tutela jurisdicional cautelar efectiva, críticas essas que levaram a que o novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 Fevereiro, consagrasse, por um lado, o requisito do fumus boni iuris (artigo
120.º, n.º 1, alínea a)), e, por outro lado, possibilitasse a produção de prova em todas as providências cautelares nele previstas (artigo 118.º). Mas justamente o conhecimento da existência dessas críticas dirigidas a soluções que reconhecidamente resultavam das opções legislativas então vigentes mais tornava exigível que a recorrente, se pretendia arguir a inconstitucionalidade dessas soluções, o tivesse feito de modo processualmente adequado a que o tribunal a quo ficasse constituído na obrigação de apreciar tal questão, o que, como se viu, não ocorreu.
Conclui-se, assim, que a recorrente não suscitou antes de proferida a decisão recorrida – quando podia e devia tê-lo feito – a questão da inconstitucionalidade normativa que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, pelo que o presente recurso é inadmissível.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2004.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos