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Processo n.º 471/01 Plenário Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O Procurador-Geral da República, no uso da competência prevista no artigo 281.º, n.° 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa (CRP), requereu a este Tribunal Constitucional que fosse apreciada e declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade orgânica e material, por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea t), e 47.º, n.º 2, da CRP, da norma constante do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 342/99, de
25 de Agosto (diploma que criou o Instituto Português de Conservação e Restauro e extinguiu o Instituto de José de Figueiredo), que dispõe:
Artigo 22.º Pessoal técnico especializado
1 – O pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro poderá ser admitido em regime de contrato individual de trabalho, mediante despacho do Ministro da Cultura.
2 – O pessoal a que se refere o número anterior beneficia do regime geral da previdência e não fica abrangido pelo estatuto da função pública.
São os seguintes os fundamentos do pedido:
– por força do preceituado no artigo 165.°, n.° 1, alínea t), da CRP, é da exclusiva competência da Assembleia da República – salvo autorização legislativa outorgada ao Governo – legislar sobre a matéria referente às “bases do regime e âmbito da função pública”;
– os princípios fundamentais do regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública são definidos pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, e pelo Decreto-Lei n.º
427/89, de 7 de Dezembro, que se configuram como verdadeira “lei quadro” nesta matéria, abrangendo a disciplina básica neles estabelecida grande parte da Administração – mesmo descentralizada – integrada pelos institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundações públicas (cf. Acórdãos n.ºs 36/96 e 129/99, do Tribunal Constitucional);
– na verdade, os referidos diplomas estabelecem, de forma taxativa, as formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública, apenas admitindo as formas de contrato de pessoal, nas modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo, este último só admissível nos casos especialmente previstos na lei;
– tal tipificação taxativa das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública tem o seu âmbito institucional definido em torno dos serviços e organismos da Administração Pública – incluindo os institutos públicos nas modalidades de “serviços personalizados do Estado” e de “fundos públicos” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º
184/89) – sendo vedado a tais serviços ou organismos a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diferente da prevista nos referidos diplomas legais;
– o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR)
é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia científica, administrativa e patrimonial, sujeita à tutela do Ministro da Cultura (artigo
1.° do Decreto-Lei n.° 342/99), configurando-se, atentas as suas atribuições e estrutura orgânica e funcional, como um instituto público, na modalidade de serviço personalizado do Estado, na área do Ministério da Cultura, sujeito a um regime de direito administrativo e totalmente desprovido de natureza empresarial, e situando-se, por isso, no “âmbito institucional” definido pelo artigo 2.° do citado Decreto-Lei n.º 184/89;
– a admissibilidade de celebração de contratos de trabalho por tempo indeterminado, sujeitos ao regime legal genericamente vigente em direito laboral, colide frontalmente com o princípio da taxatividade das formas de constituição da relação de emprego na Administração Pública e com a proscrição da figura do contrato de trabalho por tempo indeterminado, resultante da disciplina básica instituída pelos citados Decretos-Leis n.ºs 184/89 e
427/89;
– integrando-se a norma questionada em diploma editado pelo Governo, nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 198.° da Constituição, sem precedência de autorização legislativa, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165.°, n.° 1, alínea t), da CRP;
– por outro lado, a norma a que se reporta o presente pedido, ao prever a possibilidade de constituição de uma relação jurídica de emprego na Administração Pública sem instituir um procedimento justo de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação definitiva, fazendo assentá-la em mero e discricionário despacho ministerial, não precedido de adequada selecção e concurso dos interessados, colide ainda com o n.° 2 do artigo 47.º da CRP, enfermando de inconstitucionalidade material;
– a recente jurisprudência do Tribunal Constitucional – expressa nomeadamente nos Acórdãos n.ºs 689/99 e 368/00 – acentuou a relevância atribuível à regra constitucional do concurso como forma privilegiada de acesso
à função pública.
2. Notificado do pedido, o Primeiro-Ministro apresentou resposta, sustentando a não inconstitucionalidade da norma impugnada, com base em argumentação sintetizada nas seguintes conclusões:
– o pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro, a que se refere o artigo 22.° do Decreto-Lei n.° 342/99, virá a adquirir, por provimento contratual, a qualidade de “agente administrativo”, mas não a de “funcionário público”;
– a opção pelo recurso ao regime do contrato individual de trabalho quando a necessidade e as circunstâncias de serviço assim a exigirem em nada colide com os direitos fundamentais dos trabalhadores constitucionalmente consagrados e os princípios próprios de um Estado de direito democrático;
– no caso do Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR), cujo substrato, o “serviço público”, consiste no cumprimento das responsabilidades que incumbem ao Estado no domínio da conservação e restauro dos bens culturais de reconhecido valor histórico, artístico, técnico e científico, um objectivo constitucional, pode a lei determinar que a respectiva gestão, incluindo a gestão de pessoal, obedeça a um regime de direito administrativo ou a um regime de direito comum, maxime empresarial, ou aos dois, em sectores de gestão diferenciados;
– a norma não viola a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.°, n.° 1, alínea t), da CRP), posto que em nada interfere com as “bases do regime e âmbito da função pública”;
– o candidato a prover, caso o regime escolhido seja o do contrato individual de trabalho, adquire a qualidade de “agente administrativo”, mas não de “funcionário público”;
– não fica assim abrangido pelo disposto nos Decretos-Leis n.ºs 184/89 e 427/89, que tem por objecto o regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego público, maxime a remuneração e gestão de pessoal da função pública;
– consequentemente, o “teor literal” e o “âmbito da norma” em nada ofendem a disposto no artigo 47.º, n.° 2, da CRP, não padecendo por isso do vício de inconstitucionalidade material;
– não está aqui em causa o “direito de acesso à função pública” com as suas notas de “igualdade” e “liberdade”, e “em regra por via de concurso”.
3. Debatido o memorando apresentado, nos termos do artigo 63.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pelo Presidente do Tribunal, e fixada a orientação sobre as questões a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II – Fundamentação
4. A norma impugnada
4.1. O Decreto-Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto, criou o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR), que sucedeu na universalidade dos direitos e obrigações do Instituto de José de Figueiredo, então extinto (artigo 25.º, n.ºs 1 e 2), e cujo pessoal do quadro transitou para o quadro do novo instituto (artigo 23.º, n.º 1).
O Instituto de José de Figueiredo fora reestruturado pelo Decreto-Lei n.º 383/80, de 19 de Setembro, que o qualificou como “organismo do Estado, dependente da Secretaria de Estado da Cultura, através do Instituto Português do Património Cultural” (artigo 1.º), estatuindo que a nomeação do director e o provimento dos chefes de divisão se processasse nos termos do Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de Junho (artigos 22.º, 24.º, 25.º e 26.º), que os lugares de técnico superior e técnico auxiliar de BAD fossem providos nos termos do Decreto-Lei n.º 280/79, de 10 de Agosto (artigo 27.º), que o pessoal das carreiras de conservação e restauro fosse provido nos termos do Decreto-Lei n.º 245/80, de 22 de Julho (artigo 28.º) e que os restantes lugares do quadro fossem preenchidos nos termos da lei geral (artigo 29.º).
O Decreto-Lei n.º 342/99 qualifica o IPCR como “uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia científica, administrativa e património próprio”, “tutelado pelo Ministro da Cultura”
(artigo 1.º, n.ºs 1 e 2), tendo por objecto “assegurar o desenvolvimento das medidas de política e o cumprimento das obrigações do Estado no domínio da salvaguarda do património cultural móvel e integrado e do desenvolvimento da ciência da conservação”, “promover, assegurar e divulgar a investigação em conservação”, “promover e apoiar projectos e acções de estágio, formação inicial e formação contínua através da concessão de bolsas de estudo, no País e no estrangeiro, bem como através da concessão de subsídios e comparticipações para o efeito”, “certificar a qualificação de entidades públicas ou privadas, colectivas ou individuais, que exercem actividades de conservação e restauro do património cultural móvel e integrado”, “promover a conservação aplicada ao património cultural móvel e integrado, através de uma política de contratualização com outras pessoas colectivas públicas e privadas e em articulação com as políticas definidas para o sector”, “superintender normativamente e assegurar a qualidade científica e técnica dos trabalhos de conservação e restauro de bens culturais de reconhecido valor histórico, artístico, técnico ou científico”, “colaborar na realização de projectos e acções vocacionados para a sensibilização pública no domínio da salvaguarda e conservação do património cultural, estimulando na sociedade civil a promoção de iniciativas destinadas ao seu conhecimento e divulgação”, “incentivar, através da celebração de protocolos e de outras figuras jurídicas de cooperação, o recurso a instituições de investigação científica, nacionais e estrangeiras”, e
“realizar trabalhos de conservação e restauro de bens culturais móveis e integrados de reconhecido valor histórico, artístico, técnico ou científico”
(artigo 2.º, n.º 1).
O objecto do IPCR corresponde, assim, à execução da
“tarefa fundamental do Estado” de “proteger e valorizar o património cultural do povo português” (artigos 9.º, alínea e), e 78.º, n.º 2, alínea c), da CRP). Para a prossecução do seu objecto, são atribuídos ao IPCR um conjunto de poderes de autoridade do Estado, designadamente poderes de certificação e de superintendência normativa e asseveração da qualidade científica e técnica dos trabalhos de conservação e restauro dos bens culturais de reconhecido valor, para além de concessão de subsídios, bolsas de estudo e comparticipações para promoção de acções de formação.
Do exposto resulta que o IPCR constitui um instituto público, na modalidade de serviço personalizado do Estado, com clara prevalência do regime de direito público, na linha da doutrina estabelecida no Acórdão n.º 140/02 (Diário da República, I Série-A, n.º 146, de 27 de Junho de
2002, pág. 5044, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52.º vol., pág. 253).
4.2. O artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 342/99 estipula que o IPCR dispõe do quadro de pessoal dirigente constante do mapa anexo a esse diploma e do quadro de pessoal a aprovar por portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Cultura e do membro do Governo responsável pela Administração Pública, o que foi feito pela Portaria n.º 288/2003, de 3 de Abril.
A todo esse pessoal é aplicável o regime geral da função pública, com a excepção, prevista na norma do artigo 22.º, do “pessoal técnico superior” e do “pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro”, que “poderá ser admitido em regime de contrato individual de trabalho, mediante despacho do Ministro da Cultura”.
De acordo com o mapa anexo à Portaria n.º 288/2003, o grupo de pessoal técnico superior abrange cinco conjuntos de áreas funcionais, a que correspondem outras tantas carreiras: (i) área funcional de gestão de recursos humanos, materiais e financeiros; organização, planeamento e estatística; documentação, informação e relações públicas; estudo, promoção e realização de projectos de investigação na área da conservação, das técnicas da produção artística e da ciência dos materiais – carreira de técnico superior;
(ii) área funcional de conservação e restauro – carreira de conservador-restaurador; (iii) área funcional de biblioteca e documentação – carreira de técnico superior de biblioteca e documentação; (iv) área funcional de arquivo – carreira de técnico superior de arquivo; e (v) área funcional de consultadoria jurídica – carreira de consultor jurídico.
O sentido que o requerente atribuiu à norma impugnada foi o de que ela permite a contratação do pessoal em causa em regime de contrato individual de trabalho com base “em mero e discricionário despacho ministerial”, “sem instituir um procedimento justo de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação definitiva”, sentido que o autor da norma, na sua resposta, não rejeitou, antes reconhecendo que “quedará no âmbito de liberdade e autodeterminação dos interessados” (Ministro da Cultura e contratandos) “a opção quanto ao exercício desse «direito»” de contratação, embora sustentando a sua conformidade constitucional, pelas razões atrás expostas.
Constitui, assim, objecto do presente pedido a fiscalização da constitucionalidade da norma do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º
342/99, de 25 de Agosto, que permite que, no IPCR, instituto público na modalidade de serviço personalizado do Estado, o pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro possa ser admitido em regime de contrato individual de trabalho, por despacho do Ministro da Cultura.
5. A questão de inconstitucionalidade orgânica
O primeiro fundamento do pedido consiste na violação do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, que comete à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência exclusiva para legislar em matéria de bases do regime e âmbito da função pública.
Com efeito, segundo o requerente, a lei geral reguladora das formas de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública – lei geral que se aplicaria também aos institutos públicos – não prevê a existência de contratos de trabalho por tempo indeterminado, sendo certo que essa exclusão, resultante da taxatividade das formas de constituição daquela relação jurídica de emprego, consagrada na mesma lei geral, traduz um princípio fundamental da mesma legislação, cujo desrespeito implicaria a inconstitucionalidade orgânica das normas colidentes, quando não emitidas pela Assembleia da República ou parlamentarmente autorizadas.
Esta questão foi recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional, primeiro no Acórdão n.º 162/2003 (Diário da República, II Série, n.º 110, de 13 de Maio de 2003, pág. 7215), a propósito do Instituto Geográfico Português, e depois no Acórdão n.º 406/2003 (Diário da República, I Série-A, n.º
247, de 24 de Outubro de 2003, pág. 7095), relativo ao Instituto Nacional da Aviação Civil. Aí se recordou o entendimento deste Tribunal Constitucional no sentido de que:
– o Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, editado pelo Governo ao abrigo da autorização legislativa concedida pelo artigo 15.º da Lei n.º 114/88, de 30 de Dezembro, “deve ser entendido como um diploma que define as bases sobre o regime e âmbito da função pública”;
– entre essas bases consta a que, relativamente às formas de constituição da relação jurídica de emprego nos serviços da Administração Pública, incluindo os institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundos públicos (cf. artigo 2.º, n. 1), as limita taxativamente à nomeação, ao contrato administrativo de provimento e ao contrato de trabalho a termo certo (artigos 5.º e 7.º), daqui derivando “a proibição expressa de celebrar outro tipo de contratos com carácter subordinado, designadamente de contratos de trabalho sem prazo”;
– é admissível a introdução de excepções a estas regras básicas, mas os órgãos constitucionalmente competentes para tal são a Assembleia da República ou o Governo desde que parlamentarmente autorizado, já que “a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários em matéria de bases do regime e âmbito da função pública não podem ser considerados como constituindo o desenvolvimento de tais bases”, uma vez que, ainda que se admita que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP, “não abrange a particularização e a concretização do regime da função pública (...), ela não pode deixar de incluir a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários àqueles que podem considerar-se os princípios básicos definidores das bases de tal regime”;
– porém, a criação de excepções aos princípios básicos definidores do regime e âmbito da função pública não constitui matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República no caso de “a própria lei de bases prever, desde logo, a possibilidade de introdução dessas mesmas excepções, desde que as identifique com um mínimo de precisão e determinabilidade, ou de tais excepções serem previstas, nos mesmos termos, em decreto-lei parlamentarmente autorizado que defina as referidas bases”.
O citado Acórdão n.º 162/2003 não deixou de recordar que:
“E, nesta linha orientadora, num recurso de constitucionalidade em que estava em causa a recusa de visto, pelo Tribunal de Contas, a contratos de trabalho sem termo celebrados pelo Instituto Nacional de Investigação das Pescas, ao abrigo de normas dos respectivos estatutos a que o mesmo Tribunal de Contas recusara aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, o Tribunal Constitucional confirmou esse juízo de inconstitucionalidade, por considerar que tais normas violavam claramente «o princípio da tipicidade das formas de contrato de pessoal admitidas» pelo Decreto-Lei n.º 184/89 (Acórdão n.º 129/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional,
42.º vol., pág. 609 e seguintes). Ou seja: no referido aresto, este Tribunal concluiu – num caso paralelo ao dos autos – que se verificava a invocada inconstitucionalidade orgânica das normas específicas atinentes a um instituto público, que o autorizavam a celebrar contratos de trabalho sem termo.”
Mas o Tribunal, no mesmo Acórdão n.º 162/2003 viria a decidir, por maioria, afastar-se desse entendimento, com base na seguinte argumentação:
“10. Há, no entanto, que ponderar que essa solução não decorre, constitucional e necessariamente, das leis em vigor. Com efeito, poderá haver casos em que a criação de excepções aos princípios básicos definidores do regime e âmbito da função pública não constitua, todavia, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Assim será, seguramente, no caso de a própria lei de bases prever, desde logo, a possibilidade de introdução dessas mesmas excepções, desde que as identifique com um mínimo de precisão e determinabilidade, ou de tais excepções serem previstas, nos mesmos termos, em decreto-lei parlamentarmente autorizado que defina as referidas bases.
Ora, relativamente aos institutos públicos, não pode deixar de se levar em consideração o disposto no artigo 41.º do mencionado Decreto-Lei n.º
184/89, de 2 de Junho. Aí se salvaguardam certos regimes especiais e se determina, no seu n.º 4, a aplicação das respectivas disposições estatutárias ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos. Assim:
Artigo 41.º Salvaguarda de regimes especiais
4 – Ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos e dos serviços públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou de contrato individual de trabalho, bem como das conservatórias, cartórios notariais e às situações identificadas em lei como regime de direito público privativo, aplicam-se as respectivas disposições estatutárias.
E, na sua sequência, o artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
427/89, de 7 de Dezembro, aprovado nos termos da alínea c) do n.º 1 do então artigo 201.º – hoje, artigo 198.º – da Constituição da República Portuguesa, por constituir o desenvolvimento do regime jurídico estabelecido no Decreto-Lei n.º
184/89, veio dispor igualmente:
Artigo 44.º Salvaguarda de regimes especiais
1 – Ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável
às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho e, bem assim, ao pessoal abrangido por regimes identificados em lei como regimes de direito público privativo aplicam-se as respectivas disposições estatutárias.
Esta salvaguarda de regimes especiais foi expressamente mencionada no Acórdão n.º 36/96, atinente ao Estatuto do Pessoal das Administrações dos Portos (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., pág. 197 e seguintes), onde se escreveu:
«(...) Ao tempo da edição do Decreto-Lei n.º 101/88, não existia propriamente uma lei quadro que, de modo global, enunciasse os “Princípios básicos fundamentais” do regime da função pública, tendo contudo sido já aprovados, ao abrigo de credencial parlamentar, alguns diplomas que vieram estabelecer regras gerais sobre tal matéria.
Assim, e num primeiro momento, foram aprovados o Decreto-Lei n.º
191-C/79 (já atrás referido) e o Decreto-Lei n.º 191-F/79, de 26 de Junho, relativo ao regime jurídico e condições de exercício das funções de direcção e chefia.
Mais tarde, o Decreto-Lei n.º 248/85, de 15 de Julho, para além de revogar o Decreto-Lei n.º 191-C/79, procedeu à reestruturação do regime geral das carreiras da função pública, estabelecendo também um conjunto de princípios e de regras respeitantes a matérias ligadas ao sistema de carreiras e à sua aplicação na Administração Pública.
Numa linha de continuidade destes textos legais, foram depois aprovados, também no uso de delegação legislativa, os Decretos-Leis n.º 184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Dezembro, relativos ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública – diplomas estes cujo conhecimento, apesar de posteriores às normas sob controvérsia, serve para iluminar a questão em apreço –, os quais, nos artigos
41.º e 44.º, respectivamente, salvaguardam a existência de regimes especiais aplicáveis ao pessoal de certos serviços e organismos, nomeadamente “institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho e, bem assim, ao pessoal abrangido pelos regimes identificados em lei como regimes de direito público privativo aplicam-se as respectivas disposições estatutárias (...)”.
Não lhe foi, porém, feita qualquer referência, nem de qualquer modo tida em conta no já referido Acórdão n.º 129/99.
Poder-se-ia, porventura, pensar que a salvaguarda de regimes especiais referida na epígrafe do artigo conduziria tão-só a excepcionar as situações preexistentes à data da entrada em vigor do citado Decreto-Lei n.º
184/89, de 2 de Junho, razão pela qual não seria aplicável a situações criadas posteriormente. Isso, todavia, não só não resulta de forma inequívoca do texto legal, como até se pode afirmar que nele não tem qualquer correspondência verbal, havendo, ao invés, boas razões para aceitar a tese exactamente oposta.
Na verdade, o referido artigo 41.º do mencionado Decreto-Lei n.º
184/89 não faz qualquer distinção entre situações passadas e situações futuras. E não se diga que a utilização do verbo salvaguardar implica que tal só possa ser aplicado a situações preexistentes, já que, no contexto, se pode afirmar que tal verbo vale por exceptuar e, estando utilizado no presente, se aplica, por conseguinte, às excepções que existam ou venham a existir enquanto vigorar. Aliás, a ser intenção do legislador ressalvar apenas situações preexistentes, não lhe teria faltado uma forma mais explícita de o fazer, com um mínimo de correspondência verbal na letra da lei.
Por outro lado, também não parece que seja possível deduzir uma tal solução do disposto no artigo 2.º do mencionado Decreto-Lei n.º 184/89, já que tal preceito – que submete os institutos públicos ao regime constante do referido diploma – não pode deixar de ser lido em conexão com as regras especiais nele mesmo contidas.
Finalmente, não parece, dada a realidade institucional existente, que o legislador de 1989 tivesse querido deixar subsistir determinadas situações do passado, não permitindo que se resolvesse a situação em termos de futuro. Com efeito, o disposto no artigo 15.º, alíneas a), b) e c), da Lei n.º 114/88, de 30 de Dezembro, indicia que se estará, mais do que perante a intenção de pôr a salvo situações eventualmente existentes, face à tentativa de construção de uma nova forma de solucionar as diversas questões suscitadas pelo regime do pessoal da administração pública. «Rever os princípios de gestão de recursos humanos, tendo em vista a sua flexibilização pela valorização do mérito e do empenhamento no serviço público, pela flexibilização dos quadros de pessoal e das regras de recrutamento, (...)», como se prescreve na alínea b) do citado artigo, não pode deixar de ter esse sentido.
11. No presente caso, estamos perante um instituto público, sob a forma de um serviço personalizado, cujas disposições estatutárias mandam aplicar ao respectivo pessoal o regime do contrato individual de trabalho. É, manifestamente, um dos casos em que, como já vimos, a criação de excepções aos princípios básicos definidores do regime e âmbito da função pública não constitui matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pois que, em decreto-lei parlamentarmente autorizado, que definiu as bases – o já amplamente referido Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho –, se previu, desde logo, a possibilidade de introdução dessa mesma excepção.
Assim, por tudo quanto se deixa exposto, deve entender-se que a normação impugnada se encontrava coberta pelo disposto no transcrito artigo
41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, o que exclui a verificação da alegada inconstitucionalidade orgânica.”
Esta mesma fundamentação foi mantida no citado Acórdão n.º 406/2003 e entende-se reiterá-la no presente caso, o que conduz a dar-se por não verificada a alegada inconstitucionalidade orgânica.
6. A questão de inconstitucionalidade material
O requerente baseia o seu pedido, quanto à inconstitucionalidade material, na possibilidade de constituição de uma relação jurídica de emprego na Administração Pública sem instituição de um procedimento justo de recrutamento e selecção dos candidatos, fazendo assentá-la em mero e discricionário despacho ministerial, não precedido de adequada selecção e concurso dos interessados, o que colidiria com o n.º 2 do artigo 47.º da CRP.
Por sua vez, o Primeiro-Ministro argumenta que o regime do pessoal do IPCR assume natureza privatística, pelo que o mesmo pessoal se encontra, por conseguinte, excluído do âmbito da função pública, à qual respeita exclusivamente o n.º 2 do artigo 47.º da CRP. E que, em qualquer caso, existem aqui específicas razões materiais justificadoras da dispensa do concurso, visto que a preservação, defesa e valorização do património cultural se revestem de especial natureza, pontualidade, sazonalidade e especificidade, podendo surgir a necessidade de recorrer à prestação de serviços técnicos especializados, individuais ou em equipa, nacionais ou estrangeiros.
Cabe, pois, analisar com mais detença a procedência de tal argumentação, atentas as especificidades efectivamente decorrentes da função de salvaguarda e transmissão da herança patrimonial e cultural comum, que constitui a tarefa do IPCR enquanto instituto público.
6.1. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a jurisprudência constitucional
O mencionado n.º 2 do artigo 47.º da CRP preceitua o seguinte:
Artigo 47.º Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública
1. (...)
2. Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.
A questão do direito de acesso à função pública e da regra do concurso foi recentemente analisada pelo já citado Acórdão n.º
406/2003, relativo ao Instituto Nacional da Aviação Civil, com argumentação que se reitera e que conduz à emissão de declaração de inconstitucionalidade.
Como se afirmou no Acórdão n.º 683/99 (Diário da República, II Série, n.º 28, de 3 de Fevereiro de 2000, pág. 2351):
“Entre nós, retira-se do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, como concretização do direito de igualdade no acesso à função pública, um direito a um procedimento justo de recrutamento e selecção de candidatos à função pública, que se traduz, em regra, no concurso (embora não um direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação – assim, v. recentemente o Acórdão n.º
556/99).
Este não pode, por outro lado, ser procedimentalmente organizado, ou decidido, em condições ou segundo critérios discriminatórios, conducentes a privilégios ou preferências arbitrárias, pela sua previsão ou pela desconsideração de parâmetros ou elementos que devam ser relevantes (cf., recentemente, o Acórdão n.º 128/99, que fundou no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, embora com votos de vencido quanto à sua aplicação ao caso, um julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 36.º, alínea c), da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que, para a candidatura a Juiz do Tribunal de Contas, em concurso curricular, não considerava o exercício durante três anos de funções de gestão em sociedades por quotas).
É certo que o direito de acesso previsto no artigo 47.º, n.º 2, não proíbe toda e qualquer diferenciação, desde que fundada razoavelmente em valores com relevância constitucional – como exemplos pode referir-se a preferência no recrutamento de deficientes ou na colocação de cônjuges um junto do outro (assim G. Canotilho/V. Moreira, Constituição..., cit., pág. 265). Poderá discutir-se se do princípio consagrado no artigo 47.º, n.º 2, resulta, como concretização dos princípios de igualdade e liberdade, que os critérios de acesso (em regra, de decisão de um concurso) tenham de ser exclusivamente meritocráticos, ou se pode conceder-se preferência a candidatos devido a características diversas das suas capacidades ou mérito, desde que não importem qualquer preferência arbitrária ou discriminatória – assim, por exemplo, o facto de serem oriundos de uma determinada região, ou de terem outra característica (por exemplo, uma deficiência) reputada relevante para os fins prosseguidos pelo Estado.
Seja como for, pode dizer-se que a previsão da regra do concurso, associada aos princípios da igualdade e liberdade no acesso à função pública, funda uma preferência geral por critérios relativos ao mérito e à capacidade dos candidatos (de «princípio da prestação» fala a doutrina alemã – v., por exemplo, Walter Leisner, «Das Leistungsprinzip», in idem, Beamtentum, Berlim,
1995, pág. 273 e seguintes –, sendo certo, contudo, que o respectivo texto constitucional é, como vimos, explicitamente mais exigente).
E o concurso é justamente previsto como regra por se tratar do procedimento de selecção que, em regra, com maior transparência e rigor se adequa a uma escolha dos mais capazes – onde o concurso não existe e a Administração pode escolher livremente os funcionários não se reconhece, assim, um direito de acesso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits., anotação XI; sobre o fundamento do procedimento concursal, v. também Ana Fernanda Neves, Relação jurídica de emprego público, cit., págs. 147 e seguintes).
Assim, para respeito do direito de igualdade no acesso à função pública, o estabelecimento de excepções à regra do concurso não pode estar na simples discricionariedade do legislador, que é justamente limitada com a imposição de tal princípio. Caso contrário, este princípio do concurso – fundamentado, como se viu, no próprio direito de igualdade no acesso à função pública (e no direito a um procedimento justo de selecção) – poderia ser inteiramente frustrado. Antes tais excepções terão de justificar-se com base em princípios materiais, para não defraudar o requisito constitucional (assim Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.; Ana F. Neves, ob. cit., págs. 153-4).”
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão n.º 368/00
(Diário da República, I Série-A, n.º 277, de 30 de Novembro de 2000, pág.
6886). E, anteriormente, no Acórdão n.º 53/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pág. 303 e seguintes) já se expressara o seguinte entendimento, relativamente ao n.º 2 do artigo 47.º da CRP:
“Como decorre do seu próprio enunciado, este preceito compreende três elementos: a) o direito à função pública, não podendo nenhum cidadão ser excluído da possibilidade de acesso, seja à função pública em geral, seja a uma determinada função em particular, por outro motivo que não seja a falta dos requisitos adequados à função (v. g. idade, habilitações académicas e profissionais); b) a regra da igualdade e da liberdade, não podendo haver discriminação nem diferenciações de tratamento baseadas em factores irrelevantes, nem, por outro lado, regimes de constrição atentatórios da liberdade; c) regra do concurso como forma normal de provimento de lugares, desde logo de ingresso, devendo ser devidamente justificados os casos de provimento de lugares sem concurso.”
E, neste mesmo acórdão, ainda se acrescentou que “não existe aqui nenhuma garantia de igualdade quando o provimento depende decisivamente de uma escolha discricionária do serviço” e que “é precisamente contra o poder de os serviços escolherem livremente o seu pessoal que se dirigem os princípios constitucionais da igualdade e do concurso no acesso à função pública”.
Ainda quanto à questão do direito de acesso à função pública e da regra do concurso, no já citado Acórdão n.º 683/99 afirmou-se igualmente que “visando assim o concurso possibilitar o exercício do próprio direito de acesso em condições de igualdade, a sua dispensa não pode deixar, como se afirmou, de se basear em razões materiais – isto é, designadamente, em razões relevantes para o cargo para o qual há que efectuar uma escolha (assim, por exemplo, para a escolha de pessoal dirigente, para o qual poderá eventualmente revelar-se adequada a selecção sem concurso). Considerando esta necessidade de justificação material da postergação da regra do concurso não pode, pois, tirar-se qualquer argumento do facto de o concurso não ser previsto imperativamente pela Constituição como único meio de acesso à função pública”.
Este Acórdão n.º 683/99 firmou, pois, o entendimento segundo o qual a postergação da regra de concurso carece de uma justificação material, entendimento esse que não foi questionado nos votos de vencido a ele apostos.
Próxima da apreciação da justificação material da postergação do concurso, situa-se a argumentação desenvolvida pelo Acórdão n.º
556/99 (Diário da República, II Série, n.º 63, de 15 de Março de 2000, pág.
4987). Neste acórdão discutiu-se a questão da conformidade constitucional do disposto na alínea a) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 46/88, de
11 de Fevereiro, através do qual o legislador permitiu o ingresso nos quadros do Ministério da Defesa Nacional a pessoal que, à data de 31 de Dezembro de
1987, não tendo a qualificação legal de funcionário, quisesse obtê-la; e, a propósito de tal questão, afirmou-se no citado aresto:
“No entanto, o direito de acesso à função pública não é um direito de exercício incondicionado.
O n.º 2 do artigo 47.º da Constituição estabelece a regra do concurso público, que será realizado sempre que as necessidades de preenchimento de lugares de quadro se verificarem. Este concurso é uma forma de selecção de candidatos, em função das aptidões demonstradas, não se podendo afirmar, à partida, o direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação.
Da norma constitucional também não decorre uma exigência absoluta de realização de concurso, em todos os casos, para o acesso à função pública.
O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro (diploma que aprova instrumentos de mobilidade nos serviços da Administração Pública), proíbe, como regra, que, nos casos de criação ou alteração de quadros de pessoal, se estabeleçam «promoções automáticas ou reclassificações de pessoal»
(alínea a)) ou «integração directa em lugares de quadro a pessoal que não tenha a qualidade de funcionário ou que, sendo agente, não desempenhe funções em regime de tempo completo, não se encontre sujeito à disciplina, hierarquia e horário do respectivo serviço e conte menos de três anos de serviço ininterrupto» [alínea b)].
Esta norma é uma concretização do imperativo constitucional do recurso ao concurso público para preenchimento de lugares nos quadros da função pública, em atenção, precisamente, ao respeito pela igualdade de oportunidades dos candidatos e à transparência nas relações jurídicas administrativas.
O artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 46/88 surge como uma derrogação a este regime. Derrogação, porém, que, como se demonstrou, obedece a imperativos de interesse público e à qual subjaz um critério objectivo, não incompatível com a Constituição. A desigualdade no tratamento legislativo das situações, ou seja, na fixação dos critérios de acesso aos quadros de funcionários do Ministério da Defesa Nacional, tem uma base constitucionalmente aceitável, que justifica a excepção à regra da realização do concurso público.”
6.2. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a celebração de contratos individuais de trabalho
A primeira linha de argumentação da resposta do Primeiro-Ministro assenta na ideia de que o n.º 2 do artigo 47.º se destina à função pública, interpretando esta expressão no sentido de a limitar ao universo dos elementos ao serviço da Administração Público a que corresponda o qualificativo de funcionário público, com exclusão dos agentes não funcionários e dos demais trabalhadores da Administração Pública não funcionários nem agentes.
Seguindo, uma vez mais, a argumentação desenvolvida no Acórdão n.º
406/2003, recordar-se-á que uma solução intermédia parece ser defendida por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando referem (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 264, nota VIII ao artigo
47.º):
“A definição constitucional do conceito de função pública suscita alguns problemas, dada a diversidade de sentidos com que as leis ordinárias utilizam a expressão e dada a pluralidade de critérios (funcionais, formais) defendidos para a sua caracterização material. Todavia, não há razões para contestar que o conceito constitucional corresponde aqui ao sentido amplo da expressão em direito administrativo, designando qualquer actividade exercida ao serviço de uma pessoa colectiva pública (Estado, região autónoma, autarquia local, instituto público, associação pública, etc.), qualquer que seja o regime jurídico da relação de emprego (desde que distinto do regime comum do contrato individual de trabalho), independentemente do seu carácter provisório ou definitivo, permanente ou transitório.”
No entanto, Vital Moreira, mais tarde, viria a pronunciar-se em sentido mais amplo (Projecto de lei-quadro dos institutos públicos, Relatório Final e Proposta de Lei-Quadro, Grupo de Trabalho para os Institutos Públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro de 2001, n.º 4, pág. 50, nota ao artigo 45.º), adoptando uma posição que tem também sido defendida pelo Tribunal Constitucional, ao ponderar que:
“No entanto, mesmo quando admissível o regime do contrato de trabalho, nem a Administração Pública pode considerar-se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores comuns.
No que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de «gestão privada», ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam-se a necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266.º, n.º
2, da Constituição), todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.
Além disso, estabelecendo a Constituição que «todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso» (CRP, artigo 47.º, n.º 2), seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adopção do regime de contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.”
Estas últimas considerações afiguram-se inteiramente procedentes, principalmente quando, como é o caso, o regime laboral do contrato individual de trabalho se reporta a um instituto público que mais não é que um serviço público personalizado.
Com efeito, a exigência constitucional de “acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso” apresenta duas vertentes. Por um lado, numa vertente subjectiva, traduz um direito de acesso à função pública garantido a todos os cidadãos; por outro lado, numa vertente objectiva, constitui uma garantia institucional destinada a assegurar a imparcialidade dos agentes administrativos, ou seja, que
“os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público” (n.º 1 do artigo 269.º da CRP). Na verdade, procedimentos de selecção e recrutamento que garantam a igualdade e a liberdade de acesso à função pública têm também a virtualidade de impedir que essa selecção e recrutamento se façam segundo critérios que facilitariam a ocupação da Administração Pública por cidadãos exclusiva ou quase exclusivamente afectos a certo grupo ou tendência, com o risco de colocarem a mesma Administração na sua dependência, pondo em causa a necessidade de actuação “com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé” (n.º 2 do artigo
266.º da CRP).
Esta perspectiva é particularmente importante quando se trate de recrutamento e selecção de pessoal para entidades que exerçam materialmente funções públicas, como acontece com o IPCR (cf., supra, 4.1).
A afirmação anterior não é desmentida pelo facto de o pessoal técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação laboratorial para a conservação e restauro, ao contrário do restante pessoal do Instituto, ser admitido em regime de contrato individual de trabalho (artigo 22.º, n.º 1, do Decreto-Lei em análise). De facto, e se bem que se possa admitir que aquele regime se poderá adaptar melhor
à situação do pessoal técnico especializado (embora não de todo o pessoal técnico superior), em virtude da sazonalidade e especificidade das tarefas que
é chamado a desempenhar, não podemos ignorar que, no decurso da sua actividade, também poderá estar em causa o exercício de poderes de autoridade estadual, nomeadamente, os poderes de superintendência e de certificação acima mencionados.
Consequentemente, as atribuições e a natureza do IPCR, bem como as funções cometidas aos seus órgãos e agentes justificam inteiramente que ao recrutamento e selecção do seu pessoal, ainda que sujeito ao contrato individual de trabalho, se apliquem as garantias de liberdade e igualdade de acesso que se encontram fixadas no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
Ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a realização de um concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de acesso.
A recente Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro (Lei quadro dos institutos públicos), no seu artigo 34.º, sob a epígrafe Pessoal, veio justamente dispor:
“1 – Os institutos públicos podem adoptar o regime do contrato individual de trabalho em relação à totalidade ou parte do respectivo pessoal, sem prejuízo de, quando tal se justificar, adoptarem o regime jurídico da função pública.
2 – O pessoal dos institutos públicos estabelece uma relação jurídica de emprego com o respectivo instituto.
3 – O recrutamento do pessoal deve, em qualquer caso, observar os seguintes princípios:
a) Publicitação da oferta de emprego pelos meios mais adequados;
b) Igualdade de condições e oportunidades dos candidatos;
c) Fundamentação da decisão tomada.
4 – Nos termos do artigo 269.º da Constituição, a adopção do regime da relação individual de trabalho não dispensa os requisitos e limitações decorrentes da prossecução do interesse público, nomeadamente respeitantes a acumulações e incompatibilidades legalmente estabelecidas para os funcionários e agentes administrativos.
(...).”
Tratou-se da generalização para todos os institutos públicos de soluções que já vinham sendo adoptadas pelo legislador, como, por exemplo, no Decreto-Lei n.º 59/2002, de 15 de Março, que criou o Instituto Geográfico Português (vide o n.º 6 do artigo 46.º dos Estatutos por ele aprovados), e no Decreto-Lei n.º 96/2003, de 7 de Maio, que criou o Instituto do Desporto de Portugal (vide o artigo 33.º dos Estatutos por ele aprovados), o que demonstra que não existe qualquer incompatibilidade entre o regime do contrato individual de trabalho e a definição de garantias de liberdade e igualdade no acesso ao exercício de funções nos institutos públicos.
Em suma: as normas em causa, na medida em que prevêem uma plena liberdade de selecção e recrutamento do pessoal técnico superior e do pessoal técnico especializado do instituto público em apreço, sem estabelecerem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da liberdade e da igualdade de acesso à função pública, colidem com o preceituado no n.º 2 do artigo 47.º da CRP.
6.3. A eventual existência de justificação material para um regime de excepção
Como vimos, sustentou o Primeiro-Ministro que existem aqui específicas razões materiais que se apresentam como bastantes para se admitir a dispensa do concurso público. Tais razões consistiriam na especial natureza, pontualidade, sazonalidade e especificidade das funções a desempenhar, conjugadas com as exigências da preservação, defesa e valorização da herança patrimonial.
Ainda que assim seja, estas razões não colhem no que respeita ao pessoal técnico superior, uma vez que estão em causa tarefas de gestão de recursos humanos, biblioteca e documentação, arquivo, consultadoria jurídica e informática, para os quais não se vislumbram quaisquer especificidades ou sazonalidade justificativas da dispensa de concurso público
(veja-se o mapa anexo à Portaria n.º 288/2003, de 3 de Abril, que aprova o quadro de pessoal do IPCR – cf., supra, 4.2).
Já quanto ao pessoal técnico especializado em conservação e restauro (superior ou não), se as razões alegadas pelo Primeiro-Ministro se podem apresentar como procedentes para a opção pelo regime do contrato individual de trabalho, e eventualmente mesmo para se não prever que o recrutamento e selecção devessem ser efectuados por concurso público, o que elas não podem justificar é a ausência de quaisquer regras e procedimentos tendentes a assegurar que o acesso tenha lugar com efectivas garantias de liberdade e igualdade. Efectivamente, as qualidades técnicas que deverão constituir critério essencial de selecção do pessoal técnico especializado são, em grande medida, objectivamente avaliáveis, pelo que não se compreende a postergação daquelas regras.
De facto, se é verdade que este Tribunal definiu o entendimento segundo o qual a regra do concurso pode ser postergada, caso exista uma justificação material, uma vez que o n.º 2 do artigo 47.º apenas determina que o recurso ao concursos deve ter lugar em regra, já se não descortinam nem credencial constitucional nem, no caso vertente, quaisquer interesses que pudessem determinar a eventual existência de motivos conducentes ao afastamento de um recrutamento baseado em critérios que assegurem a liberdade e igualdade de acesso à função pública.
6.4. Conclusão
Do exposto resulta que a norma constante do artigo 22.º do Decreto-Lei que cria o Instituto Português de Conservação e Restauro, na medida em que admite a possibilidade de contratação do pessoal técnico superior e do pessoal técnico especializado em conservação e restauro mediante contrato individual de trabalho, sem que se preveja qualquer procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e igualdade, viola o n.º 2 do artigo 47.º da CRP.
7. Limitação de efeitos
Nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da CRP, este Tribunal tem a faculdade de fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restrito do que o que resultaria da aplicação do preceituado no n.º
1 do mesmo artigo, se tal se justificar por razões conexionadas com a segurança jurídica, a equidade ou interesse público de excepcional relevo.
Dada a evidente necessidade de garantir a segurança jurídica relacionada com a estabilidade das relações de trabalho subordinado que, entretanto, se constituíram, este Tribunal considera que se justifica a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, nos termos do n.º 4 do artigo
282.º da CRP, de modo a salvaguardar a validade dos contratos de trabalho celebrados pelo IPCR até à data da publicação deste acórdão.
III – Decisão
8. Em face do exposto, decide-se:
a) declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, da norma constante do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto, que cria o Instituto Português de Conservação e Restauro, na medida em que admite a possibilidade de contratação do pessoal técnico superior e do pessoal técnico especializado em conservação e restauro mediante contrato individual de trabalho, sem que preveja qualquer procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e igualdade;
b) limitar os efeitos da inconstitucionalidade, de modo a salvaguardar a validade dos contratos de trabalho celebrados pelo IPCR até à data da publicação do presente acórdão.
Lisboa, 27 de Janeiro de 2004.
Mário José de Araújo Torres (Relator; com declaração de voto anexa)
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Fernanda Palma
Bravo Serra (Votei a decisão, embora com as mesmas dúvidas que expus na declaração de voto que apus no Acórdão n.º 162/2003)
Carlos Pamplona de Oliveira (Com declaração igual à do Relator)
Vítor Gomes (Com declaração idêntica à do Ex.mo Cons. Mário Torres)
Artur Maurício (Com declaração idêntica à do Ex.mo Relator)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Vencida nos termos da declaração junta ao Acórdão n.º 406/2003, com as devidas adaptações)
Maria Helena Brito (Vencida, nos termos da declaração junta ao Acórdão n.º 406/2003, com as devidas adaptações)
Gil Galvão (Vencido quanto à alínea a) da decisão, no essencial pelas razões constantes da declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 406/03)
Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido de ser também reconhecida, para além da inconstitucionalidade material, a inconstitucionalidade orgânica da norma constante do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição da República Portuguesa (CRP), pelas razões desenvolvidas na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 162/2003 (Diário da República, II Série, n.º 110, de 13 de Maio de
2003, pág. 7215), então a propósito de normas similares constantes dos artigos
3.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 59/2002, de 15 de Março, e dos artigos 43.º e 44.º dos Estatutos do Instituto Geográfico Português, aprovados por esse diploma.
A divergência relativamente à tese maioritária, que se manteve no caso decidido pelo Acórdão n.º 406/2003 e que se mantém no presente caso, radica essencialmente no entendimento de que o artigo 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 184/89 (e, na sua sequência, o artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, diploma que foi aprovado pelo Governo não ao abrigo de qualquer autorização legislativa, antes nos termos do artigo
201.º [hoje, artigo 198.º], n.º 1, alínea c), da CRP, por constituir o desenvolvimento do regime jurídico estabelecido no Decreto-Lei n.º 184/89), ao proceder à “salvaguarda de regimes especiais”, designadamente quanto ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos, só visou excepcionar as situações preexistentes à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 184/89, e não também possibilitar a introdução, no futuro, de “regimes especiais”, pelo que, a meu ver, não constituía habilitação para que o Governo, sem credencial parlamentar, editasse a normação questionada no presente pedido.
No sentido de que a norma invocada (o artigo 41.º, n.º
4, do Decreto-Lei n.º 184/89) apenas visou salvaguardar regimes especiais existentes à data da entrada em vigor desse diploma aponta desde logo a própria epígrafe (oficial) do preceito (só se “salvaguarda” o que existe...) e o tempo verbal utilizado, não parecendo razoável afirmar-se que, “estando utilizado no presente”, o verbo salvaguardar “se aplica, por conseguinte, às excepções que existam ou venham a existir enquanto vigorar”, pois, para cobrir esta segunda dimensão, seria mais adequado a utilização do tempo futuro. Trata-se, porém, de argumentação sem relevância decisiva.
O outro argumento invocado pela tese maioritária, extraído da lei de autorização legislativa, também não procede. Invoca-se aí a alínea b) do artigo 15.º da Lei n.º 114/88 – segundo a qual um dos sentidos do diploma a editar seria o de “rever os princípios de gestão de recursos humanos, tendo em vista a sua flexibilização pela valorização do mérito e do empenhamento no serviço público, pela flexibilização dos quadros de pessoal e das regras de recrutamento, promoção e progressão e pelo enriquecimento funcional dos cargos”
– para se afirmar que ela não pode deixar de indiciar “que se estará, mais do que perante a intenção de pôr a salvo situações eventualmente existentes, face
à tentativa de construção de uma nova forma de solucionar as diversas questões suscitadas pelo regime do pessoal da Administração Pública”. Acontece, porém, que não é essa alínea b) (que respeita à revisão dos princípios de gestão de recursos humanos) a que releva no presente caso, mas antes a alínea c) do citado artigo 15.º, que define o sentido da legislação a emitir pelo Governo quanto à definição dos princípios gerais da relação de emprego público, o que veio a ser feito pelo Decreto-Lei n.º 184/89. Resulta dessa alínea c) que a legislação a publicar pelo Governo devia ter o sentido de “definir os princípios gerais da relação de emprego público, simplificando e tipificando os diversos títulos de vínculo, identificando as situações que devam ser objecto de nomeação ou de vinculação precária (...)”.
Estes objectivos de simplificação e de tipificação dos títulos de vínculo e de identificação das situações em que cada um destes títulos poderá ser utilizado é manifestamente incompatível com uma cláusula em branco, como aquela que resultará do artigo 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º
184/89, com a extensão que a tese maioritária lhe atribui. A simplificação pressupõe a redução da complexidade de um sistema com múltiplas formas de vinculação; a tipificação implica a indicação taxativa das formas de vinculação que passam a ser consentidas e a precisa identificação das situações em que cada uma delas pode ser utilizada. Esses objectivos foram atingidos quando o Decreto-Lei n.º 184/89 reduziu a três os títulos de vinculação doravante consentidos (nomeação, contrato administrativo de provimento e contrato de trabalho a termo), com expressa postergação de quaisquer outros (designadamente, o contrato de trabalho sem termo), e com clara enunciação dos casos de utilização da vinculação precária.
A “ordem” que, desse modo, o Decreto-Lei n.º 184/89 introduziu na matéria fica completamente destruída com o alcance atribuído pela posição maioritária ao n.º 1 do artigo 41.º, pois ele permitirá ao Governo, casuisticamente, e independentemente de credencial parlamentar, alterar no futuro o regime do pessoal de todo e qualquer instituto público que revista a forma de serviço personalizado ou de fundo público, substituindo o regime comum da função pública pelo regime do contrato individual de trabalho, e ainda – saliente-se – de todo e qualquer serviço da Administração directa, substituindo o regime comum da função pública pelos mais diversificados regimes de direito público privativos. Isto é: onde o legislador das bases do regime e âmbito da função pública quis simplificar e tipificar os títulos de constituição da relação jurídica de emprego público, com identificação precisa das situações a que cada um se aplica, o Tribunal Constitucional vem permitir a sua ilimitada proliferação, através de intervenções legislativas avulsas do Governo, sem precedência de autorização legislativa e sem prévia enunciação de qualquer critério geral orientador. Concretiza-se assim o efeito perverso denunciado no Acórdão n.º 208/2002 quando referia que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP,
“não pode deixar de incluir a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários àqueles que podem considerar-se os princípios básicos definidores das bases de tal regime, sob pena de se abrir a porta a um esvaziamento da reserva pela via da multiplicação de regimes excepcionais”
(sublinhado acrescentado).
Concluindo que o artigo 41.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º
184/89 apenas visou salvaguardar os regimes especiais existentes à data da sua entrada em vigor (no mesmo sentido, quanto à norma paralela do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 417/89, de 7 de Dezembro, cf. Cláudia Viana, “A Laboralização do Direito da Função Pública”, Scientia Ivridica, tomo LI, n.º 292, Janeiro/Abril
2002, págs. 81-95, em especial pág. 92), tal norma não constitui credencial bastante para habilitar o Governo a, desprovido de autorização legislativa específica, instituir, no caso concreto do Instituto Português de Conservação e Restauro, um regime de pessoal excepcional ou contrário ao regime geral consagrado nas bases da relação jurídica de emprego público.
Daí a inconstitucionalidade orgânica da norma questionada, a acrescer à inconstitucionalidade material que foi reconhecida. Mário José de Araújo Torres