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Processo n.º 594/02
2ª Secção Relator -Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Em 9 de Julho de 2003 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso, com o seguinte teor:
«1. Em 13 de Março de 2002, A. intentou acção de impugnação judicial da decisão de indeferimento do apoio judiciário requerido ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social, dizendo:
“1º O requerimento deu entrada nos serviços do ISSS em 2002.01-16, tendo sido efectuada notificação nos termos e para os efeitos do disposto no Art.º 100º e
101º do Código de Procedimento Administrativo em 2002.02.04 credora de resposta em 2002.02.05 e estando a notificação de indeferimento datada de 2002.03.06
2º Resulta claro que o requerido Apoio judiciário se mostra tacitamente deferido e concedido, de acordo com o peremptoriamente previsto no Art.º 26º da citada Lei.
3º Por mera precaução – sem conceder – se refere, no entanto, inexistir fundamento para o indeferimento porquanto:
4º O ora impugnante demonstrou por documentos enviados por fax de 2002.02.05 que não aufere qualquer rendimento das empresas em causa.
5º De facto, tal como declarou, adquiriu-as por adjudicação judicial em data recente, relativamente.
6º E, não sendo gerente, não tem legitimidade para requerer certidões fiscais que lhe permitam sequer aferir da real situação económica e fiscal dessas empresas.
7º Impossibilidade que emerge da lei, quer no Código das Sociedades Comerciais quer da Lei Geral Tributária, certamente do conhecimento da Ilustre Técnica Instrutora do processo em apreço.
8º Sendo que, em mais de trinta processos do género, é a primeira vez que lhe é indeferida a pretensão com tão infundado motivo (ou qualquer outro)
9º Para além de que se fosse obtido algum rendimento dessas sociedades o mesmo estaria, obrigatoriamente, espelhado na declaração fiscal de rendimentos sobre as pessoas singulares dada ao processo. Termos em que deverá ser julgada procedente a presente impugnação com as legais consequências, como de Direito.”
Por sentença datada de 24 de Maio de 2002, o 4º Juízo Cível da Comarca de Lisboa decidiu negar provimento ao recurso, nos seguintes termos:
“O acto tácito pressupõe que o agente da administração requerido tenha poderes de disposição sobre a matéria em causa e possa exercê-los e não o tenha feito dentro do prazo estabelecido por lei, razão pela qual, para se fazer face à inércia da administração e com o intuito de não lesar os interesses dos particulares que a ela recorrem, se ficciona uma decisão de deferimento da pretensão requerida.
(...) Ora, no caso presente não se afigura ter existido inércia por parte do agente da administração requerido, porquanto o mesmo proferiu uma decisão dentro do referido prazo de 30 dias, já que resultou provado que o impugnante apresentou o seu requerimento no dia 16.01.2002, foi ouvido no procedimento no dia
04.02.2002, momento em que ficou suspenso o referido prazo por força do disposto no artº 100º, nº 3, do Cód. Proced. Adm., respondeu no dia 05.02.2002, e o ISS proferiu decisão no dia 06.02.2002.
(...) A finalidade da Lei não é tornar a Justiça gratuita ou tendencialmente gratuita, pelo que a protecção jurídica não pode ser concedida indiscriminadamente, justificando-se, assim, medidas tendentes a evitar que sejam desvirtuados os princípios que lhe servem de fundamento ou que se abuse dos seus benefícios.
(...) Afigura-se, deste modo, que o impugnante possui património que lhe permite suportar os honorários dos profissionais forenses e custear os encargos normais de uma causa judicial, excluindo-o da previsão legal do artº 7º, nº 1, do citado diploma legal.”
Notificado desta decisão, o impugnante veio requerer a sua reforma e arguir a sua nulidade, nos termos do artigo 668º, n.º 3 do Código de Processo Civil, dizendo então, nomeadamente:
“1º Considerou a decisão em crise, douta aliás, que não ocorreu qualquer deferimento tácito do pedido de apoio judiciário por a decisão administrativa impugnada ter ocorrido ‘ (...) no dia 06.02.2002, data em que ainda não havia decorrido o referido prazo de 30 dias.’ Mais considerou a mesma que ‘a notificação não faz parte do acto. Já que, sendo ulterior à sua prática e à sua perfeição, não passa de mero requisito de eficácia do acto.
2º Diz o artº 26º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro:
1- O prazo para a conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de apoio judiciário é de 30 dias.
2- Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de apoio judiciário. Na verdade, a decisão em crise interpretou tal norma no sentido de que uma vez tomada a decisão da administração dentro do prazo referido no n.º 1 citado, pouco importa quando é que ela é notificada ao requerente, pois de facto ela
é-lhe oponível desde logo, só não sendo exequível por não notificada.
3º ora, no limite, tal interpretação dá cobertura a uma flagrante violação das legítimas expectativas criadas nos administrados quando vêem precludir o prazo de indeferimento do acto por parte da administração. Constitui pois uma intolerável violação dos direitos dos administrados, já que depois, até mesmo muito depois, podem vir a saber da administração que, afinal, o seu pedido de apoio judiciário não havia sido tacitamente deferido pelo decurso do prazo para o efeito, pois sobre o mesmo havia recaído despacho de indeferimento dentro desse prazo. Numa situação destas que, salvaguardadas as distâncias, é a dos autos:
- Quem fiscaliza uma afirmação deste tipo? Ninguém.
- Que garantia tem o administrado de que assim foi? Nenhuma.
- E o juiz que, em impugnação, tem de decidir sobre um tal argumento, que garantia tem de que a administração lhe leva a verdade? Nenhuma.
- Quem defende os interesses dos cidadãos perante a administração num caso destes? Ninguém.
É a possibilidade o regresso ao livre arbítrio que a Revolução Francesa enterrou.
4º Senhor juiz, isto para, com o mais subido respeito, evidenciar que a interpretação feita na decisão em crise da norma do artigo 26º da Lei n.º
30-E/2000, de 20 de Dezembro, viola de forma flagrante, nomeadamente, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artº 268º e artº 20º da CRP, este, de resto, preceito de aplicação imediata ex vi artº 18º do mesmo diploma fundamental.
(...)
11º Ora, emerge do Artº 20º da Lei 30-E/2000 e é pacífico na jurisprudência, que é o rendimento do requerente de apoio judiciário e não o seu património que enquadra a aferição da insuficiência económica para custear as despesas de pleito judicial – Vd. Ac. TRL, Proc. 4795/99 de 10.05.2000.
12º Por isso, salvo melhor opinião, os autos não contêm elementos bastantes para se poder aferir quer o valor do activo imobilizado adquirido em 1985 pelo impugnante, quer se mantém na actualidade esse património, quer ainda se dele retira algum rendimento, que o não retira.
13º Neste particular existe pois lapso manifesto na apreciação dos elementos probatórios constantes nos autos, o que, só por si, implica decisão diversa da tomada (Artº 669º, nº2, alínea b, CPC).
14º Por último, acresce que os fundamentos da improcedência do requerido beneficio de apoio judiciário constantes na decisão administrativa impugnada nos presentes Autos não recaem sobre qualquer factualidade subjacente à sociedade B., cuja liquidação foi pacificamente aceite nessa decisão, sem repercussão nos motivos invocados para esse indeferimento. Ao tomar conhecimento de questão não invocada na decisão a quo ou alegada pelos respectivos serviços administrativos na peça processual de defesa da sua manutenção, a douta decisão viola capitalmente, o preceituado na parte final da alínea d) do n.º1 do Artº 668º, CPC, o que constitui nulidade que aqui se argui para os legais efeitos. Deve pois a decisão tomada ser reformada no sentido de acolher a pretensão do requerente pois é a mais consentânea com a Lei e a Constituição.” Por despacho datado de 9 de Julho de 2002, o Tribunal da Comarca de Lisboa decidiu indeferir a arguida nulidade da decisão proferida, concluindo:
“Assim, os elementos analisados e que fundamentavam a decisão são exactamente os mesmos que existiam nos autos e a questão a analisar era também a mesma a conhecer por este Tribunal, isto é, se o impugnante estava em condições ou não de lhe ser concedido o apoio judiciário requerido. Apenas existiu por parte deste Tribunal, uma interpretação dos factos e do direito diferente, e que, como
é sabido, o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. Artº 664º, Cód.Proc.Civil).”
2. Veio então o requerente interpor o presente recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, para apreciação da
“inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 26º da Lei n.º 30-E/2000, de
20 de Dezembro, com a interpretação de que uma vez tomada decisão sobre o pedido de apoio judiciário dentro do prazo referido no seu n.º 1, não há formação de acto tácito, ainda que tal decisão não seja notificada ao interessado nesse mesmo prazo ou, quando menos, no prazo supletivo estabelecido no artº 69º do Código do Procedimento Administrativo para notificação dos actos administrativos”
Segundo o recorrente, tal norma violaria os “artigos 268º, n.ºs 3 e 4, e 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e [d]os princípios da Legalidade e da Garantia dos Cidadãos face à Administração”.
Cumpre apreciar e decidir.
3. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, mas essa decisão não vincula este Tribunal, como prevê o n.º 3 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que, entendendo-se que não é de conhecer do recurso, é caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A do mesmo diploma.
4. Na verdade, o recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, sendo necessário, como requisitos específicos para se poder conhecer de tal recurso, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta norma, ou dimensão normativa, tenha sido suscitada durante o processo.
Como se sabe, este último requisito, conforme se decidiu, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República [DR], II série, de 6 de Setembro de 1994), e se tem repetido em numerosos arestos, deve ser entendido,
“não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado (ver, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, DR, II, de 10 de Janeiro de
1995 e ainda o Acórdão n.º 155/95, in DR, II, de 20 de Junho de 1995).
Designadamente, já não é momento adequado para a suscitação da questão de constitucionalidade o dos incidentes pós-decisórios, tal como o pedido de reforma ou a arguição de nulidade da decisão, por então se encontrar já esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido quanto à inconstitucionalidade – que não é causa de nulidade da decisão judicial. Este momento já não é, pois, adequado para poder suscitar tempestivamente uma questão de constitucionalidade, excepto em situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que não tenha havido oportunidade pocessual de o fazer antes (v.g. Acórdãos n.ºs 61/92, 499/97 e
120/02, publicados no DR, II Série, respectivamente de 18 de Agosto de 1992, 21 de Outubro de 1997 e 15 de Maio de 2002).
5. Ora, no presente caso, consultando o processo, verifica-se que, perante o tribunal recorrido, e antes de esgotado o poder jurisdicional deste – isto é, na impugnação judicial da decisão de indeferimento do apoio judiciário, apresentada em Março de 2002 –, não encontra referência a qualquer inconstitucionalidade, apesar de, como se pode ver pela transcrição efectuada (de fls. 36 e seg. dos autos), o impugnante já então discutir a questão do deferimento tácito e invocar já o artigo 26º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
Aliás, pode duvidar-se de que, mesmo depois da decisão do 4º Juízo Cível da Comarca de Lisboa que negou provimento a essa impugnação judicial, no pedido de reforma e de arguição de nulidade (fls. 48 e segs. dos autos), o recorrente tenha explicitado devidamente a dimensão interpretativa acusada de desconformidade constitucional. Seja como for, ainda que nesse momento tivesse sido devidamente suscitada a inconstitucionalidade da norma em questão, a verdade é que esse momento já não era atempado, por já se ter então esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido sobre a matéria. Não houve, portanto, suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo, nem o caso é daqueles, de todo anómalos e excepcionais, em que se pudesse prescindir dessa invocação, uma vez que, como se referiu, a questão de constitucionalidade da norma em causa podia ter sido suscitada antes do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal a quo, sendo essa norma logo referida como fundamento da impugnação judicial.
Ou seja: o recorrente não cumpriu o ónus de adoptar a conduta processualmente adequada a, pela suscitação da inconstitucionalidade normativa antes do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal a quo, criar os pressupostos para a interposição do presente recurso de constitucionalidade, apesar de nada obstar a que o tivesse feito, e de a questão de constitucionalidade da norma em causa poder ser suscitada (cfr. ainda, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 478/89, 439/91 e
1124/96, publicados no DR, II Série, de 24 de Abril de 1992, os dois primeiros, e de 6 de Janeiro de 1997, o terceiro).
Pelo que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.»
2.Notificado desta decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo:
“A decisão reclamada apoia o não conhecimento do recurso no facto da questão da inconstitucionalidade da norma não ter sido suscitada durante o processo. Não obstante, salvo melhor opinião, entende o reclamante que a decisão, assim tomada, não levou em consideração o facto da decisão judicial violadora dos princípios constitucionais invocados, o Artº 268º, n.º 3 e 4 e o Artº 20º, n.º
1, ter sido absolutamente inusitada, imprevista, tal a sui generis interpretação dada ao n.º 2 do Artº 26° da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro (LAJ). Com efeito a clareza da norma era – e continua a ser – cristalina e jamais o reclamante poderia antecipar a possibilidade da mesma vir a ser interpretada como o foi na decisão recorrida, isto é, de que a notificação a que se refere o n.º 1 do Art 24° equivale já à decisão a que se refere a norma do n.º 1 do Art
26° da LAJ. Na verdade, a interpretação de que se recorreu, tendo sido verdadeiramente pioneira, foi inesperada. Para o reclamante é claro, e desde sempre, que a notificação efectuada por imposição do n.º 1 do Art 24° da LAJ tem apenas a potencialidade de interromper o prazo em curso para a tomada de decisão como, de resto, emerge do disposto no n.º 3 do Artº 100° do Código do Procedimento Administrativo (CPA) aplicável por força do Artº 22° com a variante imposta no Artº 41°, ambos da aludida LAJ . Que prazo se interrompe ?
- O que está em curso para a decisão, sem sombra de dúvida. Pois que se trata apenas de uma notificação para o interessado carrear ao processo administrativo outros elementos de prova e alegar razões que possam sobrestar à intenção de indeferir o requerido, ali notificada para esses efeitos. Tanto assim é que essa ‘intenção’ pode não prevalecer, cedendo aos argumentos do interessado e elementos entretanto carreados ao processo. Doutro modo, a dar a essa ‘intenção’ o valor de decisão estaria esgotado o poder da autoridade administrativa para outra tomar, tomando-se desnecessário ouvir o interessado. Tanto basta, independentemente das competentes alegações a produzir no momento próprio, para, justificar a imprevisibilidade da decisão judicial recorrida, que
é ilógica, sem sustentação na doutrina nem na jurisprudência, nem antecedentes conhecidos. Ora, perante esta imprevisibilidade patente, que não é fruto de qualquer descuido do reclamante mas sim de uma interpretação legislativa fora do comum e ilógica, cede o fundamento exarado na doutíssima decisão aqui reclamada, de acordo com a vasta jurisprudência deste Tribunal (v.g. Ac. 61/92, 188/93,
181/96, 569/95,596/99, entre muitos outros).”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.O reclamante reconhece, na presente reclamação, que não suscitou perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional no presente recurso de constitucionalidade. Simplesmente, entende que a interpretação da norma aplicada pelo tribunal recorrido foi “absolutamente inusitada, imprevista” e “sui generis”, pelo que nunca o “reclamante poderia antecipar a possibilidade da mesma vir a ser interpretada como o foi na decisão recorrida”, isto é, no sentido de que não existiu formação de acto tácito por o prazo para a decisão ter ficado suspenso com a notificação para audição do requerente, por força do disposto no artigo
100º, nº 3, do Código de Procedimento Administrativo.
Ora, como resulta da decisão sumária, tal aspecto foi já considerado nela, ao referir-se que, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido – isto é, na impugnação judicial da decisão de indeferimento do apoio judiciário – se não encontra referência a qualquer inconstitucionalidade, “apesar de, como se pode ver pela transcrição efectuada (de fls. 36 e seg. dos autos), o impugnante já então discutir a questão do deferimento tácito e invocar já o artigo 26º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.”
Como se nota na decisão reclamada, pode, aliás, duvidar-se de que, mesmo depois da decisão do 4º Juízo Cível da Comarca de Lisboa que negou provimento à impugnação judicial, no pedido de reforma e de arguição de nulidade (fls. 48 e segs. dos autos), “o recorrente tenha explicitado devidamente a dimensão interpretativa acusada de desconformidade constitucional”, sendo certo, porém, que, “ainda que nesse momento tivesse sido devidamente suscitada a inconstitucionalidade da norma em questão, a verdade é que esse momento já não era atempado, por já se ter então esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido sobre a matéria.”
A interpretação efectuada na decisão recorrida não pode, aliás, considerar-se como insólita ou imprevisível.
Na verdade, na decisão de 24 de Maio de 2002 o tribunal a quo adoptou o entendimento de que, suspendendo-se a contagem do prazo para a decisão com a realização da audiência prévia do interessado (artigo 100.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo), a decisão fora, no caso, emitida antes de expirado o respectivo prazo legal, não tendo ocorrido deferimento tácito.
Ora, esta interpretação, seguida também pela entidade administrativa, e neste como noutros casos, não era imprevisível, em termos de não ser exigível ao recorrente, que, quando já discutia a inexistência de deferimento tácito, na impugnação judicial de decisão em que se invocava o referido artigo 100º (cfr. a notificação da decisão, a fls. 14 dos autos), antecipasse a sua possibilidade – decisão semelhante pode, aliás, encontrar-se, por exemplo, no caso que deu origem ao recente Acórdão n.º 585/2003, deste Tribunal, onde igualmente se não considerou tal interpretação como correspondendo a qualquer “decisão-surpresa”.
Como este Tribunal tem repetidamente afirmado (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de
1995),
“ (...) A exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão.”
E a verdade é que o tribunal recorrido não foi confrontado com a inconstitucionalidade da norma em questão, pelo que deve confirmar-se a decisão reclamada.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada de não conhecimento do recurso, e condenar o reclamante em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 19 de Novembro de 2003
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos