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Proc. n.º 790/03
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, neste Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 - A., com os sinais dos autos, reclama do acórdão da Conferência do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Outubro de 2003, o qual decidiu confirmar o despacho do Senhor Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 4 de Agosto de 2003, que não admitiu o recurso por ele interposto para o Tribunal Constitucional do acórdão daquele Supremo Tribunal, de 25 de Junho de 2003, que decidira rejeitar o recurso que o ora reclamante interpusera do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
2 - O acórdão reclamado sufragou-se na seguinte fundamentação:
«No decurso do processo em momento algum, designadamente na sua resposta de fls. 4242-A e 4243, relativamente ao douto parecer do Ministério Público constante de fls. 4227 a 42 229 no qual se opinava no sentido da inadmissibilidade dos recursos e sua consequente rejeição, nunca o arguido, agora reclamante, suscitou a questão da inconstitucionalidade do art. 400º, n.º1, alínea e) do Cód. Proc. Penal; e o acórdão constante de fls. 4260 a 4263, ao rejeitar o recurso do mesmo arguido não fez qualquer interpretação inconstitucional do citado art. 400º, n.º 1 , alínea e), do Cód. Proc. Penal.
Entendemos, pois, que não se verificam os pressupostos mencionados na al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, sendo também manifesto que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional constitui um mero expediente dilatório, em ordem a protelar o início do cumprimento da pena imposta, sendo evidente a falta de razão do reclamante.
Nestes termos e concluindo: acordam os juizes do Supremo Tribunal de Justiça em manter o despacho reclamado».
3 - O reclamante refuta esta decisão com base em síntese nos seguintes fundamentos:
« [...]
3º
Por acórdão proferido em 25/6/03, o STJ considerou não ser admissível o recurso do recorrente, por, pese embora, estar em apreciação um ilícito, cuja moldura penal, em abstracto, ser de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão, o facto de não existir recurso do Ministério Público, conjugado com o princípio da “reformatio in pejus”, a pena de 1 ano e um mês de prisão concretamente aplicada, torna-se na pena aplicável, pelo que nos termos do art.
400º, n.º1, alínea a) do CPP, não é admissível recurso do acórdão da Relação para o STJ.
4º
Perante esta decisão, o ora reclamante, veio interpor recurso para o tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art. 70º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, em que deduziu a inconstitucionalidade da norma do art. 400º, n.º
1, alínea e) do CPP, por violação do disposto no art. 32º, n.º 1 da CRP, na dimensão interpretativa referida a fls. 4297 - requerimento de interposição de recurso.
5º
Mais referiu nesse requerimento de interposição de recurso, que só aí se suscitava a questão de inconstitucionalidade da referida norma, atendendo a que foi interpretado com uma interpretação da mesma com a qual não podia razoavelmente contar, tendo em consideração o texto da referida norma - art.
400º, n.º 1, alínea e) do CPP - que apenas faz precludir a possibilidade de recurso para o STJ, quando a pena aplicável, em abstracto, seja inferior a cinco anos, e não quando a pena concretamente aplicada seja inferior a esse limite e o recurso seja interposto apenas pela defesa.
6º
Afigura-se, também, que anteriormente ao acórdão recorrido, não podia ter sido suscitada a inconstitucionalidade desta norma, atendendo a que a mesma diz apenas respeito à não admissibilidade de recurso do acórdão do Tribunal da Relação proferido em recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça tinha sido admitido, anteriormente, pelo Tribunal da Relação.
7º
E contrariamente, ao referido no despacho reclamado, o parecer do M. Público de fls. 4227 não suscitou a questão nos moldes em que o fez o acórdão do STJ de 25/06/03.
8º
Com efeito, nesse parecer, considerou-se que a pena aplicável, em abstracto, ao ilícito em questão seria de 1 mês a 5 anos de prisão, pelo que, nos termos do art. 400º, n.º 1 , alínea e) não seria admissível recurso.
9º
O que motivou a resposta do recorrente, no sentido de assinalar que a pena aplicável, em abstracto, não se situava entre 1 mês e cinco anos de prisão, mas entre 7 meses e 6 dias de prisão, não existindo assim óbice legal à admissão do recurso.
[...]».
4 - A questão da inadmissibilidade do recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o STJ foi suscitada, no seu parecer, pelo Ministério Público junto deste último Tribunal, nos seguintes termos:
«Os arguidos A. e B. foram condenados como co-autores de um crime de roubo na forma tentada (arts. 210º, n.os 1 e 2, 22º e 23º do CP), respectivamente, nas penas de 1 ano de prisão e 2 meses e de 1 ano. Os recursos por ambos interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa, negou-lhes provimento, confirmando a decisão recorrida. A pena aplicável ao crime de roubo por que vieram a ser condenados vai de 1 mês cinco anos, conforme dispõe o art. 73º, n.º 1, al. a) do CP. Não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de “acórdãos proferidos em recurso das relações a que seja aplicável penas de prisão não superior a cinco anos” [al. e) do n.º 1 do art.º 400º] nem de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão da primeira instância ... a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos
... [al. f) do n.º1 do art. 400º do CPP). O terceiro arguido agora recorrente - A., apenas recorre por razões pessoais - medidas das penas que lhe foram aplicadas. Parece-nos, pois, que os recursos dos arguidos A. e B. são inadmissíveis (art.
400º, n.º 1, alíneas e) e f) do CPP] não vinculando o tribunal superior a decisão que os admitiu (fls. 419 e v.º) no Tribunal da Relação de Lisboa
(conforme o dispõe o n.º 4 do art. 414º do CPP).
5 - À questão prévia respondeu o ora reclamante, alegando:
«O recorrente foi condenado pela prática de um crime de roubo sob a forma tentada p. e p. pelos arts. 210º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), com referência ao art. 204º, n.º 2, alíneas a) e f) e arts. 22º e 23º do CP. Consequentemente, a moldura penal abstracta, aplicável seria de 3 a 15 anos de cadeia - art. 210º, n.º 2 do CP, sendo devida a atenuação verificada, de 7 meses e 6 dias a 10 anos de cadeia - art. 73º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP [...]. Pelo que, tendo sido o recorrente condenado por crime cuja moldura penal excede cinco anos e mesmo oito anos, não se verifica qualquer óbice legal ao conhecimento do recurso por parte do STJ, dado a moldura penal aplicável exceder a referida no art. 400º, alíneas e) e f) do CPP».
6 - O Ex.mo Magistrado do M.º P.º junto deste Tribunal pronunciou-se, no seu parecer, no sentido do indeferimento da reclamação em virtude do reclamante ter disposto da oportunidade de suscitação da questão de inconstitucionalidade a quando da resposta à questão da inadmissibilidade do recurso invocada pelo Ministério Público junto do STJ.
B – A fundamentação
7 - Constitui requisito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante designada por LTC), em cuja categoria se insere o interposto pelo ora reclamante, e como decorre do mesmo preceito quando fala da aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, mas que encontra igualmente tradução no n.º 2 do art.º 75º-A da LTC, que a questão de inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida tenha sido suscitada durante o processo.
O sentido deste conceito tem sido esclarecido, por várias vezes, por este Tribunal Constitucional. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, disse-se que esse requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”.
Por seu lado, afirma-se, igualmente, no Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de 1995, que «a exigência de um cabal cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão».
Neste domínio há que acentuar que, nos processos de fiscalização concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado. Ainda na mesma linha de pensamento podem ver-se, entre outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º
192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000 - sobre o sentido de um tal requisito, cfr. José Manuel Cardoso da Costa, « A jurisdição constitucional em Portugal», separata dos Estudos em Homenagem ao Prof. Afonso Queiró, 2ª edição, Coimbra, 1992, pp. 51).
É certo que tal doutrina sofre restrições, como se salientou naquele Acórdão n.º
354/94, mas isso apenas acontece em situações excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível.
Usando os termos do recente Acórdão n.º 192/2000, dir-se-á, ainda, que “quem pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido o acórdão da conferência de que recorre...”.
E é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s) articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados pelo juiz.
Ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental.
Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros acabados de definir.
8 - Ora, no caso sub judicio o reclamante apenas suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 400º, n.º 1, alínea e) do CPP, que o acórdão recorrido aplicou como ratio decidendi da rejeição do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação para o STJ, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional. Fê-lo, portanto, numa altura em que a decisão recorrida não pôde já apreciá-la. É certo que o reclamante sustenta que foi surpreendido por uma interpretação do acórdão recorrido no sentido da expressão “ por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos” ser entendida, para efeitos da inadmissibilidade do recurso aí prevista, na acepção da pena limite aplicável ao recorrente no concreto recurso - no caso de 1 ano e 1 mês - e não na dimensão segundo a qual a pena a considerar seria a estabelecida no tipo legal de crime por cuja prática foi condenado - na situação, de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão.
Mas esta alegação carece de fundamento. Qualquer que fosse o entendimento que o STJ viesse a seguir na interpretação do referido excerto do preceito – fosse o de relevar a moldura abstracta do tipo legal por cuja prática o reclamante foi condenado, fosse o de atender à moldura máxima de pena concretamente aplicável, dentro do tipo legal, mas com consideração já da atenuação especial julgada concretamente aplicável ao caso dos autos, de acordo com o disposto no art. 73º, n.º 1 do Código Penal [sentido este que parece ser aquele que melhor corresponde aos termos do parecer do Ministério Público junto do STJ], fosse, finalmente, aquele que veio a ser fixado [o de atender aos limites da pena concretamente aplicável ao recorrente no recurso, na ausência de recurso do Ministério Púbico e da proibição da reformatio in pejus], sempre seria de exigir ao reclamante que antecipasse o critério normativo que veio a ser efectivamente seguido pelo Tribunal e que questionasse a sua validade à face dos pertinentes parâmetros constitucionais.
Na verdade, quando confrontado com a questão da inadmissibilidade do recurso tal qual ela foi delineada pelo Ministério Público, no parecer ao qual o reclamante teve a oportunidade de responder, e cujo sentido mais ajustado aos seus termos seria o de ter-se por não admissível o recurso quando a pena aplicável ao crime correspondesse à moldura máxima da pena concretamente aplicável, dentro da prevista no tipo legal, ou seja, com consideração já da atenuação especial julgada concretamente aplicável ao caso dos autos, de acordo com o disposto no art. 73º, n.º 1 do Código Penal - moldura essa que seria de 1 mês a 5 anos face ao disposto nos arts. 210º, n.os 1 e 2, 22º, 23º e 73º, n.º 1, alínea a), do C. Penal - , não poderia o reclamante, a agir com a devida cautela técnica que será de exigir-lhe, deixar de antecipar que outro entendimento poderia ser dado ao preceito, como aquele que veio a ser efectivamente a ser aplicado pelo STJ, e de questionar a sua validade constitucional. Porém, o reclamante não só não antecipou essa outra dimensão interpretativa, como inclusivamente nem sequer questionou a conformidade constitucional da que foi sustentada pelo Ministério Público, no referido parecer, quando é certo que, por um lado, o entendimento seguido pelo STJ quanto à inadmissibilidade do recurso nos termos da referida al. e) do n.º 1 do art. 400º do CPP traduz um resultado que está forçosamente compreendido pela interpretação do preceito, tal como foi sustentada pelo Ministério Público, e que, por outro, ambas as interpretações partem da consideração da existência de um momento judicial de aplicação em concreto das penas abstractamente previstas [embora com diferença quanto ao momento relevante desse raciocínio judiciário de aplicação da lei - o momento final (interpretação do acórdão recorrido) ou um momento intermédio
(interpretação do M.º P.º)], em contrário da posição defendida pelo recorrente de atender apenas à moldura abstracta da pena prevista no tipo legal, independentemente de qualquer aplicação, em concreto, da mesma.
Desta sorte, e mesmo esquecendo que a interpretação da referida al. e) do n.º 1 do art. 400º do CPP aplicada pelo STJ para rejeitar o recurso traduzia uma jurisprudência não inovadora, pois já havia sido seguida em muitos casos paralelos (cf., entre muitos, os acórdãos do STJ, de 4/12/02, proc. n.º
3404/02-3; de 12/03/03, proc. n.º 4528/02-3; 13/2/03, proc. n.º 384/03-5 e
23/03/01, proc. 137/02-2, todos disponíveis em www.dgsi.pt - jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça), o que mais propiciaria a intelecção e colocação antecipada da problemática em causa, não pode deixar de concluir-se não ser o caso uma daquelas situações em que o recorrente se pode considerar surpreendido por uma interpretação de todo insólita e imprevisível das normas legais sobre a qual seria desrazoável e inadequado exigir-lhe um prévio juízo de prognose relativo à sua aplicação e como tal desonerado do ónus de suscitação.
C – Decisão
9 - Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça de 6 UC.
Lisboa, 19 de Novembro de 2003
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos