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Proc. n.º 327/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por acórdão de fls. 2372 e seguintes, o Tribunal Colectivo da Comarca do Fundão decidiu condenar o arguido A. como autor material de um crime de falsificação de documentos, previsto e punível pelo artigo 256º, n.º s 1, alínea a), e 3, do Código Penal, na pena de três anos de prisão.
2. Deste acórdão recorreu A. para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.
2410), tendo na motivação respectiva (fls. 2410 e seguintes) concluído do seguinte modo:
“1- Os factos dos autos ocorreram há mais de 6 anos, não havendo notícia de o recorrente ter cometido qualquer ilícito após.
2- A lei prevê para o crime cometido pena alternativa de multa ou prisão, isto é pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou pena de multa de 60 a 600 dias.
3- A mesma lei determina que a primeira tem aplicação preferencial, desde que esta realize, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
4- A medida concreta da pena é fixada, nos termos do n° 1 do artigo 71° do CP, ou seja, em função da culpa, tomando-se em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e as demais do n° 2 daquele preceito, que deponham a favor ou contra o arguido.
5- Não tem qualquer sentido sujeitar quem quer que seja a cumprir uma pena de prisão mais de 6 anos sobre o cometimento dos factos, mantendo o arguido bom comportamento.
6- Só essa situação, por si, justificava a opção pela pena não detentiva.
7- Se de outra forma se entendesse, face ao previsto no artigo 50° do CP, a pena devia ser declarada suspensa na sua execução, face às circunstâncias específicas do recorrente.
8- Face à moldura penal abstracta, no que à multa concerne, vistos os critérios supra referidos, adequar-se-ia a multa de 200 dias de multa à taxa diária de 5€.
9- Face à moldura penal abstracta, no que à prisão concerne, ponderados os critérios supra referidos, adequar-se-ia a pena de 9 meses de prisão.
10- Por se verificarem os respectivos condicionalismos, a pena de prisão, a ser determinada, deve ser suspensa na sua execução.
11- A decisão recorrida, ao fixar as penas de modo e medida diferentes, violou os artigos 70°, 71°, eventualmente o 72° e ainda o artigo 50°, todos do CP.
12- Revogando-se a mesma nos termos sobreditos, far-se-á justiça.”
Na resposta à motivação do recurso (fls. 2430 e seguintes), o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
“1. O arguido falsificou os elementos identificativos de vinte veículos automóveis;
2. Destes, vendeu nove a pessoas que desconheciam a falsificação;
3. Em julgamento não confessou os factos e não mostrou arrependimento;
4. Estes automóveis foram submetidos à inspecção anual obrigatória (após o quarto ano de matriculação) e a falsificação não foi detectada;
5. Só foi descoberto por delação de um ex-empregado [...];
6. A falsificação denunciada foi confirmada em exame pericial especializado, confrontado o arguido em julgamento com o perito que elaborou o exame, continuou a negar a evidência da falsificação a que procedeu em cada um dos veículos;
7. Além destes veículos outros houve que não foi possível examinar devido à morosidade da investigação e ao pedido de aceleração processual apresentado na fase de inquérito;
8. Mesmo sem prova da falsificação de mais veículos, os vinte falsificados dão uma ideia muito clara que este comportamento não foi episódico ou esporádico, mas sim uma actividade em dose apreciável de grande reiteração, quiçá bastante lucrativa;
9. O arguido continua a ser o dono da oficina «B.», continua a ter os mesmos meios para continuar a mesma actividade criminosa e a ligeireza nas explicações de procedimentos e a irresponsabilidade demonstrada em julgamento, são sérias indicações de uma personalidade deformada que não se demoverá desta actividade delituosa sem cumprimento efectivo de pena de prisão;
10. A pena de 3 anos e 3 meses de prisão traduz a culpa do arguido e as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir e teve em atenção o grau elevado de ilicitude do facto, o dolo intenso e reiterado com que agiu, o modo como agiu e o prejuízo que causou aos adquirentes e à sociedade;
11. Esta pena, superior a 3 anos de prisão, é impeditiva da suspensão da execução da pena, nos termos do nº 1 do art. 50º do CP;
12. Mas, mesmo que a mesma fosse inferior, a mera censura do facto e a ameaça da prisão não são, neste caso, suficientes nem adequadas às finalidades da punição, exigindo-se que a ressocialização do arguido passe pelo cumprimento de pena de prisão;
13. Nenhuma das normas penais apontadas pelo recorrente foram violadas, devendo ser negado integral provimento ao recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido.”
3. Por acórdão de 30 de Janeiro de 2003 (fls. 2452 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso do arguido, podendo ler-se no respectivo texto, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...]
[...] impugna também o recorrente a medida da pena que lhe foi infligida. Pretende ele que, a improceder a opção pela pena de multa, a prisão deve ser fixada em 9 meses de prisão. Vejamos, pois, começando por analisar os poderes de cognição deste Tribunal em matéria de medida concreta da pena. Mostra-se hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar»: um sistema de penas variadas e variáveis, com um acto de individualização judicial da sanção em que à lei cabia, no máximo, o papel de definir a espécie ou espécies de sanções aplicáveis ao facto e os limites dentro dos quais deveria actuar a plena discricionariedade judicial, em cujo processo de individualização interviriam, de resto coeficientes de difícil ou impossível racionalização. De acordo com o disposto nos arts.º s 70º a 82º do Código Penal a escolha e a medida da pena, ou seja a determinação das consequências do facto punível, é levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, traduzindo-se numa autêntica aplicação do direito. Não só o Código de Processo Penal regulou aquele procedimento, de algum modo autonomizando-o das determinação da culpabilidade (cfr. arts. 369º a 371º), como o nº 3 do art. 71º do Código Penal
(e antes dele o nº 3 do art. 72º na versão originária) dispõe que «na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena», alargando a sindicabilidade, tomando possível o controlo dos tribunais superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena. Mas importa considerar os limites de controlabilidade da determinação da pena em recurso de revista, como é o caso. Não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Tendo sido posto em dúvida que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade caibam dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista
(Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3), deve entender-se que a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (Neste sentido, Maurach e Zipp, Derecho Penal, § 63 nº m. 200, Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197 e Simas Santos, Medida Concreta da Pena. Disparidades, pág. 39). Ao crime de falsificação em causa corresponde, como se viu, a moldura penal abstracta de prisão de 6 meses a 5 anos ou de multa de 60 dias a 600. Encontrada a moldura penal abstracta, é nela que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
– O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);
– A intensidade do dolo ou negligência;
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
– As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
– A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Retomando elementos já adiantados a propósito da opção pela pena de prisão, importa notar que, no domínio da ilicitude, está provado que o arguido falsificou 20 automóveis e vendeu 9 deles, assim prejudicando os seus adquirentes. Aproveitou, nesse trabalho minucioso prolongado no tempo, os meios de que dispunha para o exercício da sua actividade lícita, aumentando, assim, a eficácia da sua actuação. No que se refere à sua culpa, personalidade e condições pessoais, deve salientar-se que agiu com dolo intenso que perdurou no tempo, atento todo o trabalho desenvolvido na viciação de tantos veículos. Como se viu, não interiorizou o significado pessoal e social da sua conduta delituosa, nem aceitou ter praticado os factos apurados, mesmo se confrontado com elementos de grande significado probatório. Daí que sejam, no caso e como se viu, acentuadas as necessidades da prevenção geral e especial. Não tem antecedentes criminais, é de condição social modesta e ter uma situação económica pelo menos média. Isto posto, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. nº 624/97). A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele. A esta luz, e atendendo aos poderes de cognição que a este Supremo Tribunal assistem, impõe-se concluir que a pena concreta fixada e que tem alguma expressão no quadro da moldura abstracta, o recorrente contesta, se situa dentro da sub-moldura a que se fez referência e que dentro dela foram sopesados todos aqueles elementos de facto que se salientaram. Deste modo, não se mostrando a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada, não está aberto o caminho para a censura deste Supremo Tribunal de Justiça
[...].”
4. A. requereu ainda o esclarecimento da decisão do Supremo (fls. 2492 e seguinte), pedindo que se concretizasse:
“[...]
[...] nomeadamente, que norma permitiu o entendimento de que ao STJ está vedado o conhecimento sobre o quantum exacto da pena, a menos que haja «... violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada ...».
[...].”
Por acórdão de 20 de Março de 2003 (fls. 2495 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça decidiu desatender o pedido de aclaração formulado pelo arguido, por nada haver a esclarecer.
5. A. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 2500):
“A., com os sinais dos autos, não se conformando com o douto acórdão na parte em que decidiu não sindicar o quantum exacto da pena com o argumento de que «... não se mostrando violação das regras da experiência ou da desproporção da quantificação efectuada, não está aberto o caminho para a censura deste Supremo Tribunal de Justiça...», mas sem indicação da norma, apesar de expressamente solicitada, que permitiu tal entendimento, do mesmo interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
– O recurso é interposto ao abrigo do artigo 70°, n° 1 , al. b) da Lei 28/82 de
15/9;
– Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo
432º, al. d) do CPP, que prevê o tipo de recurso interposto, apesar da decisão recorrida o não ter conseguido indicar;
– Tal interpretação da norma viola o artigo 32°, n° 1 da CRP;
– A questão da inconstitucionalidade não foi suscitada anteriormente, porquanto não era de todo previsível a posição assumida, tanto mais que, conforme já se referiu, a decisão recorrida nem sequer conseguiu indicar a norma onde se sustentou.
[...].”
O recurso foi admitido por despacho de fls. 2502.
6. Notificado, nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, para explicitar qual a interpretação atribuída no acórdão recorrido à norma impugnada, que considera inconstitucional e que pretende submeter à apreciação deste Tribunal, veio o recorrente dizer, em síntese, que a decisão recorrida havia interpretado o artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, “no sentido de o Supremo não ser obrigado a conhecer de direito sobre todas as questões que lhe são colocadas” (fls. 2504 e seguinte).
7. Nas alegações que produziu perante o Tribunal Constitucional (fls.
2513 e seguintes), concluiu assim o recorrente:
“1 - A decisão recorrida entendeu que o STJ não podia tomar posição sobre o quantum exacto da pena, por não se mostrar na decisão de primeira instância violação das regras da experiência ou da desproporção da quantificação efectuada.
2 - A fixação do quantum exacto da pena é, visto o teor do artigo 71° do CP, uma questão de direito: apurados os factos, há que subsumi-los à norma.
3 - É da competência do STJ, visto o teor do artigo 432°, al. d) do CPP, conhecer dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando, exclusivamente, o reexame da matéria de direito.
4 - O artigo 410° do CPP, versando sobre os fundamentos do recurso, determina que, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
5 - A lei não limita, em sede de direito, o conhecimento do STJ, sobre quaisquer questões de que cuidou a decisão de primeira instância, entre elas a medida da pena.
6 - O STJ é o tribunal a quem compete, em última instância, decidir sobre a lei e o direito.
7 - Não havendo qualquer limitação legal ao conhecimento da matéria de direito, não pode o STJ impô-la a si próprio.
8 - Ao tê-lo feito, como o fez, restringindo, por isso, os poderes normais de conhecimento do STJ, sem fundamento legal, interpretou a decisão recorrida erradamente o artigo 432°, al. d) do CPP e fê-lo com violação do artigo 32°, nº
1 da CRP, por, com tal interpretação, ter impedido o exercício do direito de recurso.
9 - Termos em que, declarando-se inconstitucional tal interpretação, far-se-á justiça.”
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou (fls. 2519 e seguintes), tendo concluído do seguinte modo:
“1º- Não é conforme à Constituição, por violação do seu artigo 32°, n° 1, que consagra o direito ao recurso como uma das garantias de defesa em processo penal, a interpretação normativa do artigo 432°, alínea d) do Código de Processo Penal, segundo a qual não compete ao Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista apreciar a quantificação da medida concreta da pena que foi aplicada pelo Tribunal Colectivo de 1ª instância, confirmando tal aplicação com preclusão da apreciação da matéria por outro Tribunal Superior.
2º- Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar.
II
8. O objecto do presente recurso, identificado pelo recorrente na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 5.), prende-se com uma determinada interpretação dada à norma do artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal.
Não obstante a decisão recorrida não ter invocado tal preceito legal
– nem, aliás, qualquer outro – em abono da tese segundo a qual o Supremo não poderia sindicar, em recurso de revista, a determinação, dentro de certos parâmetros (por exemplo, a culpa do arguido e as exigências de prevenção), do quantum exacto da pena, salvo violação de regras da experiência ou desproporção da quantificação efectuada (supra, 3. e 4.), entende-se que tal circunstância não é impeditiva do conhecimento do objecto do presente recurso, por falta de aplicação, na decisão recorrida, da norma cuja conformidade constitucional é questionada (cfr. artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional).
Na verdade, embora sem invocar um concreto preceito legal, é inquestionável que o tribunal recorrido perfilhou uma dada interpretação normativa sobre a sindicabilidade da determinação do quantum exacto da pena, que redundou numa decisão desfavorável ao agora recorrente. Seria restrição desproporcionada do direito de interpor recurso de constitucionalidade exigir, como pressuposto do recurso, que a decisão recorrida, além de perfilhar tal interpretação, tivesse de fazer referência expressa a um preceito legal. Na verdade, a omissão na decisão recorrida dessa referência expressa não poderia obviamente ser assacada ao recorrente.
Por outro lado, é perfeitamente aceitável que, como fundamento legal da interpretação normativa perfilhada, o recorrente identifique o artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, já que este preceito prevê justamente o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “[d]e acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito” e, no caso dos autos, havia sido interposto um recurso com esse fundamento.
Aceita-se, pois, que o objecto do presente recurso possa consistir numa determinada interpretação da norma do artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal.
9. No entanto, o objecto do recurso, tal como foi identificado pelo recorrente, carece de delimitação adicional.
Em primeiro lugar, não pode o recorrente pretender que o Tribunal Constitucional se pronuncie, em geral, sobre a conformidade constitucional da inexistência de um dever, para o Supremo, de conhecer de direito sobre todas as questões que lhe são colocadas (vide resposta ao despacho de aperfeiçoamento: supra, 5.). E isto porque o tribunal recorrido apenas apreciou a questão de saber se lhe era possível sindicar a medida concreta da pena, isto é, a questão dos seus próprios poderes de cognição em matéria de medida concreta da pena
(supra, 3.).
Assim sendo, o objecto do presente recurso apenas pode versar sobre a conformidade constitucional da restrição dos poderes de cognição do Supremo no domínio da medida concreta da pena.
Em segundo lugar, não pode esquecer-se que a decisão recorrida admitiu a possibilidade de controlo, pelo Supremo, da medida concreta da pena, quando ocorresse violação das regras da experiência ou desproporção da quantificação efectuada, tendo ainda aludido à sindicabilidade dos “parâmetros” dentro dos quais se determinaria o quantum exacto da pena, constituídos pela culpa do arguido, exigências de prevenção, moldura penal abstracta e tipo legal de crime em causa (supra, 3.).
Do exposto decorre que o objecto do presente recurso não pode ser tão amplo quanto o configurado pelo recorrente, apenas podendo consistir na norma do artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer da medida concreta da pena, com excepção dos “parâmetros” dentro dos quais ela é fixada, da violação de regras da experiência e da desproporção da quantificação efectuada.
Mas nem assim fica delimitado o objecto do presente recurso. Como bem salienta o Ministério Público nas suas contra-alegações (fls. 2519 e seguintes: supra, 7.), o tribunal recorrido admitiu a restrição dos seus poderes de cognição sem concomitantemente determinar a remessa do processo para o Tribunal da Relação, assim restringindo também a possibilidade de controlo da decisão relativa à medida concreta da pena por um tribunal superior.
Este último aspecto é importante, já que a restrição dos poderes de cognição do Supremo, em si mesma considerada, dificilmente geraria qualquer problema de constitucionalidade. Na verdade, sendo esses mesmos poderes correspondentemente atribuídos a outro tribunal de recurso, não se vê em que medida sairia lesado o direito ao recurso do arguido (artigo 32º, n.º 1, da Constituição).
Importa, pois, e em síntese, apenas averiguar se é inconstitucional a norma do artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer da medida concreta da pena nos casos de desrespeito dos respectivos parâmetros, violação de regras da experiência ou desproporção da quantificação efectuada, não implicando tal restrição dos seus poderes de cognição a remessa do processo para outro tribunal de recurso.
10. Assim delineado o objecto do recurso, já se antevê que a resposta a tal questão tenha de ser afirmativa.
Na verdade, e não obstante possa ser compreensível que, como tribunal de revista, o Supremo se não ocupe de matérias cuja valoração implica a aplicação de critérios de justiça ou de oportunidade – como seria, na perspectiva do tribunal recorrido, a matéria da medida concreta da pena fora dos casos de violação de regras da experiência ou desproporção da quantificação efectuada –, já é dificilmente aceitável que a decisão sobre a medida concreta da pena fique, pelo menos parcialmente, imune a qualquer controlo por um tribunal superior. Tal consequência afecta, directa e irremediavelmente, o direito ao recurso consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
Em abono desta conclusão pode, aliás, invocar-se a doutrina do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2001, de 21 de Fevereiro (publicado no Diário da República, I-A Série, n.º 64, de 16 de Março de 2001, p. 1490), citado pelo Ministério Público nas suas contra-alegações (cfr. fls. 2519 e seguintes), no qual se declarou “inconstitucional com força obrigatória geral, por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição, a norma que resulta das disposições conjugadas constantes dos artigos 33º, n.º 1, 427º, 428º, n.º 2, e 432º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação”.
Entendeu-se, nesse acórdão – tal como, aliás, já se entendera no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2000, de 17 de Maio (publicado no Diário da República, II Série, n.º 258, de 8 de Novembro de 2000, p. 18155) –, que tal interpretação “implicou uma total preclusão do direito do arguido à reapreciação, por via de recurso, da decisão condenatória que sobre ele impendeu”, pois que dela decorreria “de um lado, que o Supremo Tribunal de Justiça não determina, após se ter considerado incompetente para curar do recurso, que o processo seja remetido ao competente tribunal de relação e, de outro, que nem sequer, afastando embora o reexame da matéria de facto (pois que para tanto está legalmente desprovido de poderes), pode aquele Supremo reapreciar a matéria de direito”, sendo que tal “total preclusão [...] se mostra desconforme ao direito ao recurso como uma das garantias que a Lei Fundamental determina que devem enformar o processo criminal”.
Nesse acórdão entendeu-se, ainda, que a interpretação em causa implicaria que, no âmbito do processo criminal, o direito ao recurso se encontrasse mais fragilizado do que no âmbito do processo civil, já que aqui, por exemplo, não se poderia indeferir um requerimento de interposição de recurso com fundamento no erro da espécie de recurso (cfr. n.º 3 do artigo 673º do Código de Processo Civil), prevendo-se, além do mais, que, se porventura tivesse sido interposto recurso directamente para o Supremo Tribunal de Justiça e se do recurso resultasse a necessidade de apreciar questões que ultrapassassem o âmbito da revista, se determinaria, ex vi do n.º 4 do artigo 725º do mesmo Código, que o processo baixasse à relação, a fim de o recurso aí ser processado, nos termos gerais, como de apelação.
No presente recurso, as considerações que se podem tecer são similares e para elas se remete.
Com efeito, muito embora o tribunal recorrido considere não ter poderes para apreciar uma parte da decisão respeitante à medida da pena – e sobre a bondade de tal tese (e sobre a concreta extensão de tal insindicabilidade) não pode o Tribunal Constitucional obviamente pronunciar-se –, a norma do artigo 32º, n.º
1, da Constituição, que consagra o direito ao recurso do arguido, impede que o tribunal se limite a não conhecer, nessa parte, do objecto do recurso e a negar-lhe provimento (cfr. fls. 2488).
Dito de outro modo, a conclusão que, de tal tese, o tribunal recorrido pudesse extrair nunca poderia implicar o sacrifício do direito do arguido ao recurso, antes imporia a utilização de um qualquer meio (nomeadamente, a remessa do processo para o tribunal considerado competente para a apreciação dos aspectos que, na decisão relativa à medida concreta da pena, não podiam ser controlados pelo Supremo) que salvaguardasse esse mesmo direito.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 432º, alínea d), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer da medida concreta da pena nos casos de desrespeito dos respectivos parâmetros (culpa do arguido, exigências de prevenção, moldura penal abstracta e tipo legal de crime em causa), violação de regras da experiência ou desproporção da quantificação efectuada, sem que tal restrição dos seus poderes de cognição implique a remessa do processo para outro tribunal de recurso;
b) Consequentemente, conceder provimento ao presente recurso.
Lisboa, 28 de Outubro de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício
Luís Nunes de Almeida