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Processo n.º 317/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A.. reclamou a quantia de Esc. 67.056.279$00 em processo de reclamação de créditos apenso aos autos de falência instaurados contra a B., falência decretada por sentença transitada em julgado em 19 de Outubro de 2000.
Por sentença do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira de 11 de Maio de 2001, constante de fls. 25 e seguintes, foi o crédito acima mencionado considerado verificado, reconhecendo-se que o pagamento de tal crédito se encontra garantido por hipoteca registada a favor da reclamante. Afirmou-se na mesma sentença que os créditos (resultantes de retribuições em atraso e de indemnizações por despedimento) reclamados pelos trabalhadores “devem prevalecer sobre a referida hipoteca quanto ao produto da venda do bem imóvel, prevalecendo ainda quanto ao produto dos bens móveis”. E considerou-se, por fim, que “após o pagamento das custas bem como das demais despesas de administração, dar-se-á pagamento aos créditos dos trabalhadores, de seguida ao crédito hipotecário (que goza de garantia unicamente pelo produto da liquidação desse mesmo prédio) e no final, simultânea e rateadamente, a todos os créditos considerados verificados”.
Assim, decidiu-se – considerando a sentença abrangido pelo n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, “qualquer crédito emergente do contrato individual de trabalho, não devendo pois restringir-se a sua aplicabilidade aos créditos provindos de salários em atraso” –, que se procedesse ao pagamento dos créditos reconhecidos pelo produto dos bens da massa falida da seguinte forma:
“1) Pelo produto da liquidação do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ----------------: a) Em primeiro lugar os créditos descritos de 5) a 110), 113) a 148), 153), 155) a 159), 163) e 164) e 166) a 211), com preferência sobre os restantes créditos até ao montante reclamado; b) Em segundo lugar, o crédito descrito em 2), no montante de Esc.
67.056.279$00, reclamado por A., e até esse montante; c) Em terceiro lugar, os restantes créditos supra-reconhecidos.”
2. Inconformada, A.. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto. Este Tribunal, por acórdão de 17 de Janeiro de 2002, de fls.
94 e seguintes, concedeu provimento ao recurso e, em conformidade, graduou, no que respeita ao produto da liquidação do bem imóvel hipotecado, em primeiro lugar, o crédito da recorrente e, em segundo lugar, os créditos dos trabalhadores, mantendo, no mais, a sentença recorrida.
Na parte que agora releva, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto decidiu o seguinte:
“V – A Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, dispõe, no artº 12º, n.º1, que os créditos emergentes de contrato individual de trabalho gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral, devendo, quanto a este serem graduados antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.
Por sua vez, o artº 686º, n.º 1, do Código Civil determina que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros, com preferência sobre os demais credores que gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
VI – Aquela lei, ao arrepio do artº 753º, n.º 3, criou um privilégio imobiliário geral.
Vista sob o prisma que aqui nos importa, é manifesta a sua similitude com o artº 11º do DL n.º 103/80, de 9.5, e com o artigo 2º do DL n.º
512/76, de 3.7
Colocado perante a questão da inconstitucionalidade destes preceitos, na medida em que implicavam a graduação dos créditos antes do crédito garantido por hipoteca – tendo como referência o bem hipotecado – o Tribunal Constitucional entendeu que tais normas, enquanto tutelavam essa preferência, eram inconstitucionais por violação do artº 2º da Constituição (Acórdãos de
22.3.2000 e de 5.7.2000, publicados no Diário da República, II Série, de 10.10.
2000 e de 7.11.2000, respectivamente).
Ponderou aquele Alto Tribunal que as normas em questão conferiam ao privilégio em causa ‘a natureza de verdadeiro direito real de garantia munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora,... com preferência sobre outros direitos reais de garantias (nomeadamente a hipoteca) e à margem do registo’. Ora, perante isto, o credor hipotecário ficaria gravemente lesado na confiança tutelada pelo mencionado artigo 2º, que o registo do seu direito lhe conferia.
Este raciocínio é válido também para a norma aqui em causa, de sorte que a temos, enquanto interpretada como foi feito na 1ª instância – e se mácula da devida consideração ao Sr. Juiz a quo – como materialmente inconstitucional.
Com isto estamos, aliás, a acolher a orientação do STJ no acórdão de
3 de Abril de 2001 (que, cremos, não foi publicado) em que se discutia precisamente um caso igual ao presente.
(...)
IX – Temos, então, que aplicar o regime do artº 749º, sempre do Código Civil – O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.”
3. O Ministério Público recorreu então para o Tribunal Constitucional deste acórdão do Tribunal da Relação do Porto, “nos termos dos artigos 280º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro”. Como se afirma no requerimento de interposição do recurso, o “acórdão recorrido recusou aplicar a norma do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, com o fundamento que tal norma é inconstitucional, porque viola o princípio da confiança consignado no artigo 2º da CRP”.
4. Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegar.
O Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo concluído da seguinte forma:
“1 – A norma constante do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral, outorgado aos trabalhadores da entidade declarada falida com vista à garantia dos
‘salários em atraso’ e indemnizações por despedimento devidas, prevalecer, ao abrigo do disposto no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada, não é materialmente inconstitucional.
2 – Na verdade, a restrição à tutela da confiança do credor hipotecário na prioridade, emergente das regras do registo, na satisfação do crédito – puramente patrimonial – de tal credor, encontra justificação constitucionalmente adequada na circunstância de o direito dos trabalhadores à remuneração do trabalho prestado e à indemnização por despedimento se configurar como expressão de um direito fundamental, susceptível de legitimar a referida
‘compressão’ do direito de credor hipotecário.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Quanto à recorrida, formulou as seguintes conclusões:
“1 – O crédito da recorrida está garantido por hipoteca constituída por escritura pública de 24/11/1992 e registada em 07/01/1993;
2 – Os créditos dos trabalhadores reportam-se a 2000, são no seu grosso referentes a indemnizações por despedimento, apenas 4.815.996$00 respeitando a salários não pagos pontualmente;
3 – A hipoteca registada confere ao credor o direito de ser pago pelo valor do imóvel do devedor com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigos 686º e 687º do C. Civil);
4 – As regras que definem os privilégios creditórios e estabelecem a sua preferência constam do Código Civil, que preceitua que os privilégios imobiliários são sempre especiais, e só estes o legislador do Código Civil teve em conta (artigo 735º, n.º 3, do C. Civil);
5 – Só os privilégios imobiliários, que são sempre especiais, prevalecem sobre a hipoteca, mas já não os privilégios gerais (artigos 749º e 751º do C. Civil);
6 – O artigo 12º da Lei n.º 17/86 fala num ‘privilégio imobiliário geral’, que gradua antes dos créditos referidos no artigo 748º do C. Civil e dos créditos de contribuições devidas à segurança social, mas que não é um privilégio especial;
7 – E os privilégios gerais não valem contra terceiros titulares de direitos que recaiam sobre as coisas abrangidas pelo privilégio e oponíveis ao exequente
(artigo 749º do C. Civil);
8 – Às hipóteses que possam verificar-se de privilégios imobiliários gerais, criadas posteriormente ao Código Civil, aplica-se o regime dos correspondentes privilégios mobiliários (artigo 749º do C. Civil);
9 – Por força da hipoteca que garante o crédito da recorrida, esta é terceiro e sendo-o, o privilégio imobiliário ‘geral’ não vale contra ela (artigo 749º do Código Civil);
10 – Os créditos dos trabalhadores não gozam de um privilégio especial e não estão registados, não prevalecendo sobre a hipoteca constituída e registada a favor da recorrida (artigo 686º do C. Civil);
11 – Doutra forma, a recorrida, que registou a sua hipoteca ver-se-ia agora confrontada com uma situação de privilégio imobiliário geral dos trabalhadores que frustraria a fiabilidade que o registo lhe merecia;
12 – Tratando-se de um privilégio imobiliário de carácter geral e não estando sujeito a limite temporal, nem existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado com a hipoteca e o facto que motivou os créditos dos trabalhadores (ao contrário do que sucede nos privilégios especiais dos artigos 743º e 744º do Código Civil) a sua subsistência implica uma lesão desproporcionada do comércio jurídico;
13 – Seria notoriamente CHOCANTE, por violador do princípio da protecção da confiança no comércio jurídico, da boa fé, que a recorrida se pudesse ver, inesperada e imprevisivelmente confrontada com a existência de um privilégio oculto, que frustrasse o pagamento do seu crédito garantido por hipoteca registada, em favor de créditos que não são privilégios especiais, nem gozam de prioridade de registo;
14 – Preterir o direito da recorrida, por entender que, sendo ‘privilégio geral imobiliário’ se aplicaria o artigo 751º do Código Civil, quando este Código diz que ‘todos os privilégios imobiliários são especiais’ e foi tendo em conta estes princípios que foram estabelecidas as regras de graduação de créditos no Código Civil, é violar, frontalmente, o princípio da protecção da confiança ‘ínsito na ideia de Estado de Direito democrático’, a certeza e segurança do comércio jurídico, apanágio e princípio basilar do Estado de Direito, com dignidade constitucional (artigo 2º da C.R. Portuguesa);
15 – Em toda a relação jurídica, quaisquer que sejam os intervenientes e os respectivos interesses, a confiança, certeza e segurança jurídicas, nas regras jurídicas que conferem direitos e os regulam, têm que existir e prevalecer sobre interesses particulares;
16 – Admitir a derrogação do princípio constitucional de protecção da confiança em favor dos trabalhadores por estes terem o direito à retribuição consagrado na Constituição, passando por cima das normas jurídicas que conferem à recorrida um direito previsto legalmente (o direito a, como credor hipotecário, ser pago antes de um credor que goze tão-só de privilégio geral), é abrir um precedente grave na tutela da confiança, certeza e segurança jurídicas;
17 – Além de que ‘favorecer’ os trabalhadores, considerando o ‘privilégio imobiliário geral’ do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, equiparável aos privilégios imobiliários especiais previstos no artigo 751º do C. Civil, constitui manifesta violação do princípio constitucional da igualdade de tratamento dos cidadãos perante a Lei (artigo 13º da C. R. Portuguesa);
18 – Num Estado de Direito as pessoas têm de poder confiar nas regras de direito, e em função delas se orientar, reger as suas condutas, celebrar os negócios jurídicos, assumir ou não determinados riscos, confiança que tem de existir e prevalecer quaisquer que sejam os sujeitos da relação jurídica e os seus interesses, sendo irrelevante o direito à remuneração estar consagrado constitucionalmente, ou estar-se no âmbito de um processo de falência;
19 – Se há regras jurídicas que no Código Civil definem a preferência entre os créditos, são estas as regras que têm de ser observadas, considerando os critérios e definições que essas mesmas regras jurídicas contêm e que foram as previstas pelo legislador;
20 – A hipoteca é uma das figuras jurídicas onde predomina o valor da segurança e da certeza do Direito, impondo a Lei (Código Civil) a observância de certas formalidades para a sua validade, nomeadamente exigindo que seja levada a registo, o que visa proteger a confiança e a fé pública;
21 – E não tem fundamento estabelecer paralelismo com o direito de retenção, pois quanto a este está expressamente previsto na Lei que pode prevalecer sobre a hipoteca, pelo que é previsível;
22 – É aplicável ao caso sub judice o entendimento do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 160/2000 de que o princípio da protecção da confiança, ínsito no Estado de Direito democrático, exige um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar e de que
23 – O registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e a circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário;
24 – E de igual modo é aplicável o entendimento contido nos diversos Acórdãos do Tribunal Constitucional mencionados, mormente nos Acórdãos n.º 362/2002 e n.º
363/2002, publicados no Diário da República, I Série, de 16/10/2002;
25 – Impõe-se negar provimento ao recurso, confirmando o entendimento do Acórdão recorrido de que é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 2º da Constituição da República, a norma constante do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º
17/86, de 14 de Junho, interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do C. Civil;
26 – SEM PRESCINDIR, verifica-se que apenas uma parte muito pequena dos créditos reclamados por trabalhadores se referem a salários em atraso, pelo que, ainda que se não concluísse pela inconstitucionalidade material do artigo 12º de tal Lei, o que só por mera hipótese académica se admite, apenas os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida relativos a retribuições em atraso, não pagas pontualmente, poderiam gozar do privilégio do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho.”
5. Não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso, cabe começar por fixar o respectivo objecto.
É o seguinte o texto do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho:
Artigo 12º
(Privilégios creditórios)
1. Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios: a) (...) b) Privilégio imobiliário geral.
(...) Pelo artigo 4º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, foi alterado o regime de protecção dos créditos laborais em processo de falência; o novo regime não se aplica, porém, como observa o acórdão recorrido, ao caso dos autos.
A questão de constitucionalidade objecto dos presentes autos traduz-se, assim, em saber se a norma transcrita, interpretada em termos de os créditos emergentes do contrato individual de trabalho gozarem de privilégio imobiliário geral e prevalecerem, ao abrigo do disposto no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada, é inconstitucional por violação do princípio da tutela da confiança, previsto no artigo 2º da Constituição.
6. Nos termos em que acaba de ser formulada, a questão de constitucionalidade assenta já numa interpretação do regime do artigo 12º, n.º
1, da Lei n.º 17/86 que não é inteiramente pacífica no âmbito da própria doutrina juslaboralista.
Assim, em primeiro lugar, afirma-se na sentença do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira que no tocante ao “âmbito do citado preceito da Lei n.º 17/86 dir-se-á que os referidos privilégios recaem sobre qualquer crédito emergente do contrato individual de trabalho, não devendo pois restringir-se a sua aplicabilidade aos créditos provindos de salários em atraso”. Em abono desta interpretação citam-se na referida sentença o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1998 (BMJ, n.º 475, p. 548) e o acórdão da Relação de
Évora de 2 de Julho de 1998 (BMJ, n.º 479, p. 734).
No mesmo sentido, afirma-se no acórdão recorrido que “a Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, dispõe no artigo 12º, n.º 1, que os créditos emergentes do contrato individual de trabalho gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral”, não se efectuando qualquer distinção quanto aos créditos em causa.
Perfilham esta interpretação, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Novembro de 2001 (Colectânea de Jurisprudência, 2001, V, p.
162), Soveral Martins, Legislação Anotada sobre Salários em Atraso, Coimbra,
1986, p. 28 e Pedro Romano Martinez, Repercussões da Falência nas Relações Laborais, in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XXXVI, 1995, p. 423 ou Direito do Trabalho, Coimbra, 2002, pp. 567-568 e nota 3.
Seria, no entanto, possível entender que a previsão do artigo
12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86 tem uma amplitude mais reduzida, desde logo se essa previsão for comparada com a do artigo 737º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.
Na verdade, enquanto esta última norma atribui um privilégio mobiliário geral aos “créditos emergentes do contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato, pertencentes ao trabalhador”, a norma impugnada respeita apenas aos “créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei”. Ora, como logo esclarece o n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 17/86, tais créditos são os respeitantes ao “não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores”.
A diferente redacção das normas em confronto permitiria, pois, sustentar um entendimento quanto ao âmbito dos créditos emergentes do contrato de trabalho abrangidos pelo privilégio imobiliário geral previsto no n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86 mais restritivo do que aquele que veio a ser assumido na sentença do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, considerando que as garantias previstas no n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86 apenas abrangem os créditos retributivos e já não as indemnizações devidas por rescisão do contrato de trabalho (nesse sentido restritivo, Menezes Cordeiro, Salários em Atraso e Privilégios Creditórios, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho de
1998, II, pp. 645 e ss., António Nunes de Carvalho, Reflexos Laborais do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falênci”, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXXVII, n.ºs 1 a 3, p. 74, João Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, p. 151 e Luís Miguel Lucas Pires, Os Privilégios Creditórios dos Créditos Laborais, in Questões Laborais, Ano IX, n.º
20, 2002, pp. 176-181).
7. Em segundo lugar, a norma que constitui o objecto do presente recurso resulta ainda de uma determinada posição no que respeita à determinação da eficácia do privilégio imobiliário geral conferido pelo n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86 perante direitos de terceiros, questão que não é resolvida por nenhum preceito da Lei n.º 17/86.
Também quanto a este ponto se encontram divergências na doutrina e na jurisprudência, divergências que, em síntese, se traduzem em saber se será de aplicar o disposto no artigo 749º do Código Civil (na medida em que o privilégio do crédito salarial, sendo imobiliário, é geral) ou no artigo 751º do mesmo diploma (já que tal privilégio, sendo geral, é imobiliário), como observa João Leal Amado, ob. cit., p. 154-155.
O Tribunal de Santa Maria da Feira optou pela aplicação do artigo
751º do Código Civil, e por isso entendeu que os créditos dos trabalhadores deveriam prevalecer sobre a hipoteca quanto ao produto da venda do bem imóvel.
Diferentemente, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto recorreu ao regime do artigo 749º do Código Civil, por considerar que a norma que a 1ª instância aplicou é inconstitucional, violando o princípio da confiança previsto no artigo
2º da Constituição.
No sentido da aplicação do regime previsto no artigo 749º, por motivos que agora não vem ao caso desenvolver, pronunciaram-se, além de João Leal Amado, ob. cit., p. 154-155, Menezes Cordeiro, Salários em Atraso e Privilégios Creditórios cit., p. 665, António Nunes de Carvalho, Reflexos Laborais do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência cit., p. 73 e Luís Miguel Lucas Pires, “Os Privilégios Creditórios dos Créditos Laborais” cit., p.
173); diferentemente, sustentando que a eficácia perante terceiros do privilégio imobiliário geral previsto na norma impugnada deve ser resolvida na base no artigo 751º, cfr. Soveral Martins, Legislação Anotada sobre Salários em Atraso cit., p. 30).
8. Uma vez delimitados os contornos da questão, não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre as opiniões em confronto, no âmbito da interpretação do direito ordinário.
Com efeito, ao Tribunal Constitucional apenas cumpre averiguar se a interpretação normativa do artigo 12º, n.º 1, b), da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, segundo a qual todos os créditos emergentes do contrato individual de trabalho gozam de privilégio imobiliário geral e prevalecem, nos termos previstos no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada – interpretação que constitui o objecto do presente recurso, por ter sido a que o acórdão recorrido recusou com fundamento em inconstitucionalidade – é ou não compatível com a Constituição.
9. Como, aliás, se refere por diversas vezes nos autos, o Tribunal Constitucional já foi confrontado com a questão da constitucionalidade de normas que, tal como aquela que agora está em causa, conferem a determinados créditos privilégios imobiliários gerais, dotados de sequela e de prevalência nos termos do disposto no artigo 751º do Código Civil, e também a propósito de saber se tal privilégio poderia, à luz do princípio da confiança (artigo 2º da Constituição), prevalecer sobre uma hipoteca, anteriormente registada, incidente sobre um bem abrangido pelo privilégio.
Assim, nos seus Acórdãos 362/2002 e 363/2002 (publicados no Diário da República, I Série A, de 16 de Outubro de 2002), em ambos os casos na sequência de três julgamentos de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 2º da Constituição, respectivamente, “da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (...) e, hoje (...), do seu artigo 111º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil” e “das normas constantes do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil”.
Como se escreveu no Acórdão n.º 362/2002, para verificar se as razões que no Acórdão n.º 160/2000 (Diário da República, II série, de 10 de Outubro de 2000) haviam sido julgadas decisivas para o julgamento de inconstitucionalidade relativo às normas que atribuíam o referido privilégio aos créditos da Segurança Social valiam para o caso dos créditos por IRS, “em ambos os casos a lei garante com um privilégio imobiliário geral (portanto, onerando todos os imóveis do património do devedor, e não sujeito a registo) um crédito, desprovido de qualquer conexão com aqueles imóveis, no caso da segurança social, não necessariamente com eles relacionado, no caso presente (diferentemente do que se verifica com os privilégios imobiliários especiais constantes dos artigos
743º e 744º do Código Civil), de que é titular uma entidade pública, que visa
“permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas” (Acórdão nº 160/00); em ambos os casos a norma que o prevê foi interpretada no sentido de tal privilégio ser dotado de preferência sobre direitos reais de garantia, da titularidade de terceiros, sobre os bens onerados; e em ambos os casos são atingidos terceiros a quem não é acessível o conhecimento, nem da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo segredo fiscal, nem da oneração pelo privilégio, devido à inexistência de registo.
Estas semelhanças justificam que se siga, também neste caso, o juízo de inconstitucionalidade, por se mostrar violado, nos mesmos termos, o princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.
6. Na verdade, as referidas diferenças de regime não são suficientes para afastar esta conclusão.
É exacto, como afirma o Ministério Público nas suas alegações, que o privilégio conferido à Fazenda Pública pela norma agora em apreciação é menos “agressivo”, pois que apenas beneficia os créditos constituídos nos últimos três anos, e só incide sobre os imóveis existentes no património do devedor à data da penhora. Igualmente exacto é que a Fazenda Pública não goza da hipoteca legal que é conferida à Segurança Social, que a pode registar, como se observou no Acórdão nº 160/00. Todavia, e em primeiro lugar, não se vê que aquela limitação temporal seja apta a inverter o juízo de inconstitucionalidade, pois que, não tomando em consideração nenhuma relação de valores entre o crédito de imposto e o crédito do exequente, pode conduzir ao mesmo resultado a que levaria a inexistência de limite. Em segundo lugar, não há grande diferença, dentro da tramitação normal da execução, entre o momento da sua instauração e o da penhora; e a que existe não
é relevante para o efeito. Finalmente, não é a circunstância de a lei não ter curado de proteger o crédito de imposto com uma hipoteca legal que há-de justificar o sacrifício dos terceiros nos termos em que a norma em crise os afecta.”
Nos dois acórdãos citados o Tribunal Constituição entendeu que “o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário”, neste ponto se transcrevendo o já citado Acórdão 160/2000; e que a primazia desta finalidade prioritária não implicava, no confronto com os interesses da Segurança Social e da Fazenda Pública, uma lesão desproporcionada na tutela dos mesmos e no destino das contribuições que estas entidades deixariam de receber, pois as mesmas dispõem de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros.
Quer o Tribunal da Relação do Porto, quer a recorrida consideram que, no caso, valem as razões que ali justificaram o julgamento de inconstitucionalidade.
E, na verdade, é incontestável a semelhança entre a norma que constitui o objecto do presente recurso, acima definida, e as que, nos citados acórdãos 362/2002 3 363/2003 o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, com força obrigatória geral.
Mas também é incontestável a existência de diferenças, que se passam a analisar.
10. Desde logo, não se pode dizer com a mesma intensidade que não exista, no caso dos créditos abrangidos pelo n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86,
“qualquer conexão” com os imóveis onerados. É certo que não ocorre a conexão presente nos casos dos privilégios imobiliários especiais constantes dos artigos
743º e 744º do Código Civil; mas é igualmente certo que estão em causa privilégios incidentes sobre os bens imóveis da empresa ao serviço da qual se encontram os trabalhadores beneficiários, e que esta ligação necessária, no mínimo, atenua o carácter oculto e imprevisível para o credor com garantia real registada da possibilidade de virem a existir os referidos créditos.
Note-se, aliás – mas este argumento não vale para as hipóteses em que o crédito garantido por hipoteca registada é anterior ao crédito laboral – que não existe, aqui, qualquer segredo que impeça o conhecimento da existência de créditos abrangidos pela norma em apreciação.
Parece poder concluir-se que, no caso, não é tão intensamente atingido o princípio da confiança, especialmente prosseguido pelo registo predial.
Por outro lado, os beneficiários do privilégio que agora se analisa não são, naturalmente, pessoas colectivas públicas e, sobretudo, não têm à sua disposição os meios alternativos que, quer a Fazenda Pública, quer a Segurança Social detêm, para cobrar os seus créditos; em particular no caso de falência do empregador – mas, mais uma vez, este argumento também valeria para reforçar a necessidade de tutela do interesse do credor hipotecário –, a concessão da garantia será, pelo menos frequentemente, o único meio de permitir a cobrança do crédito laboral.
Finalmente, mas sobretudo, há que considerar a natureza do direito que, aqui, há-de ser confrontado com o princípio da confiança.
11. Com efeito, do lado do credor hipotecário está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, constitucionalmente protegidas pelo artigo 2º da Constituição e particularmente prosseguidas através do registo, como se observou, por exemplo, no Acórdão n.º 215/2000 (Diário da República, II série, de 13 de Outubro de 2000):
“No caso, esta segurança jurídica tem a ver com o interesse de ordem geral: o registo, na medida em que confere publicidade e segurança ao acto registado, está a realizar a certeza e a segurança do direito ou do facto sujeito a registo e, do mesmo passo, torna seguro o comércio jurídico que possa ter por objecto os factos ou direitos registados, assim se fomentando também o princípio constitucional da liberdade de iniciativa económica, reconhecida na Lei Fundamental após a Revisão de 1997 (artigo 80º, alínea c) da Constituição).
O princípio geral da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito prevê que qualquer cidadão possa, de antemão, saber que aos actos que praticar ou negócios que realizar se ligam determinados efeitos, incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas decorrentes de normas jurídicas em vigor, por forma que cada um tenha plena consciência das consequências da sua actividade (ou da sua omissão) na comunidade.
Este princípio está intimamente relacionado com o princípio da confiança na medida em que o registo, enquanto constitui publicidade do seu conteúdo, torna este digno de crédito, isto é, as pessoas, em geral, têm de poder confiar nos factos constantes do registo.
Por um lado, a segurança registral, quando o registo é definitivo, faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito (admitindo prova em contrário).
Por outro lado, a segurança jurídica registral visa a protecção de terceiros que fizeram aquisições confiando na presunção registral resultante do registo anterior em favor do transmitente.
Assim, o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático constante no artigo
2º da Constituição da República Portuguesa credenciam a prevalência registral que pode favorecer um adquirente «a non domino», na medida em que o princípio da publicidade que atribui essa prevalência determina a extinção do direito incompatível.”
Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa “garantir uma existência condigna”, conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. Acórdão n.º 373/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 20, p. 111 e segs. e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, ed., Coimbra, p. 152, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 318, João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Coimbra, 1985, p. 141, nota 215 e João Leal Amado, ob. cit., p. 32, nota 44).
O caso dos autos coloca-nos assim perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito.
Muito embora o modo como a norma impugnada solucionou o conflito, fazendo prevalecer o direito à retribuição, não pareça poder ser avaliado, directamente,
à luz do disposto no artigo 18º da Constituição, isso não significa que não deva ser analisado do ponto de vista de um critério de proporcionalidade.
Na verdade, as exigências do princípio da proporcionalidade decorrem, não só especificamente do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, mas também, justamente, do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º (cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 491/02, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 2003).
Assim, e em primeiro lugar, há que observar que parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva “sobrevivência condigna”.
Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida.
Mas esta consideração carece de ser confrontada com outros aspectos, e, em particular, com o âmbito da tutela constitucional da retribuição (artigo 59º, n.º 1, al. a), da Constituição), para saber se incide apenas sobre o direito ao salário ou abrange também, de modo mais geral, os créditos indemnizatórios emergentes do despedimento.
Ora a verdade é que não se descortinam quaisquer razões que justifiquem uma interpretação do direito constitucional à retribuição dos trabalhadores no sentido de vedar ao legislador ordinário a equiparação, para o efeito agora em análise, da tutela conferida a ambos os créditos.
No fundo, é manifesto que o crédito à indemnização desempenha uma evidente função de substituição do direito ao salário perdido.
Acresce ainda que a inclusão, repita-se, para o efeito agora em causa, do direito ao salário e do direito à indemnização por despedimento no âmbito da tutela constitucional do direito à retribuição é a que mais se ajusta à referência constitucional a uma “existência condigna”, exprimindo o que João Leal Amado (ob. cit., p. 22) designa de carácter alimentar e não meramente patrimonial do crédito salarial, neste sentido (ou seja, no confronto com os créditos dos titulares de direitos reais de garantia levados ao registo).
Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional.
12. Assim, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil; b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que respeita ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 22 de Outubro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida