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Processo n.º 36/03
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por despacho de 25 de Janeiro de 2002, de fls. 19, proferido nos autos de inquérito criminal ------------------ TAGRD, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, foi indeferido o requerimento de constituição de assistente formulado por A., pelos crimes de falso testemunho, abuso de poder e falsificação de documento, imputados à B. e outros.
Na parte que releva, é o seguinte o teor do mencionado despacho:
“Relativamente ao crime de falsificação de documento, nos termos já decididos, por despacho transitado em julgado, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional, o tribunal indefere o requerido.
Relativamente aos crimes de abuso de poder, p. e p. pela Lei n.º
34787, e de falso testemunho p. e p. pelo artigo 360º do Código Penal a questão coloca-se em termos idênticos aos já decididos no despacho de 13.03.01.
Na verdade, a existirem indícios da prática de tais crimes, os crimes em apreço revestem natureza pública, pelo que apenas tem legitimidade para a sua prossecução o M. P.
Pelo exposto, por falta de legitimidade do requerente, o tribunal não admite a intervir nestes autos como assistente, no que diz respeito aos referidos crimes, o mesmo.”
2. Inconformado, o requerente recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, suscitando, na sua motivação do recurso e na resposta ao parecer do Ministério Público, a questão da constitucionalidade do artigo 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretado “de forma a que seja legítimo impedir o particular ofendido, de se constituir como Assistente quanto aos crimes de falsificação de documento, abuso de poderes e falso testemunho”, por violação dos artigos 20º e 32º, n.º 7, da Constituição (cfr. fls. 15, 18 e
68).
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 27 de Novembro de 2002, de fls.
72, negou provimento ao recurso no que se refere aos crimes de falsificação de documentos e de falso testemunho, confirmando nessa parte o despacho recorrido, e concedeu-lhe provimento no que se refere ao crime de abuso de poder.
O Tribunal da Relação de Coimbra entendeu, quanto aos crimes de falsificação de documentos e de falso testemunho, que “o particular não tem um interesse imediato ou directo”; e que “quanto à questão de constitucionalidade
(também invocada pelo recorrente) desta interpretação limitamo-nos a lembrar o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 76/2002, publicado na II Série de DR, de 5 de Abril de 2002 (em que um dos crimes em causa era precisamente o de falsificação de documentos) que terminou dizendo: ‘A constituição de assistente em crimes que não visam directamente proteger interesses privados, mas sim interesses colectivos, em que nem sempre há lesão adicional de interesses privados e em que a lesão desses interesses não é um elementos constitutivo do tipo de crime – por outras palavras em crimes em que nem sempre há ofendido – não é certamente uma exigência constitucional’.
Tal foi reafirmado no posterior Ac. n.º 162/202 – Proc. 602/2001, de
17-4-2002 (DR. II Série de 31 de Maio de 2002).”
3. Novamente inconformado, o A. recorreu para o Tribunal Constitucional, “ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Setembro”, pretendendo “ver apreciada a questão de constitucionalidade do artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, na interpretação com que foi aplicada no douto Acórdão recorrido, ou seja, de que quanto ao crime de falsificação de documentos e de abuso de poderes o particular ofendido não se pode constituir como Assistente”.
Com tal interpretação, afirma ainda o recorrente no seu requerimento, “o Tribunal a quo ofendeu o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado nas normas dos artigos 20º e 32º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa”.
4. A fls. 96, foi proferido o seguinte despacho:
«1. A. recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de Novembro de 2002, de fls.72, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da “inconstitucionalidade do artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, na interpretação com que foi aplicada no douto Acórdão recorrido, ou seja, de que quanto ao crime de falsificação de documentos e de abuso de poderes o particular ofendido não se pode constituir como assistente”.
Verifica-se, todavia, que o acórdão recorrido julgou procedente o recurso que o ora recorrente havia interposto do despacho que indeferira o seu requerimento de intervenção como assistente, no que se refere ao crime de abuso de poderes. O recorrente não tem, assim, legitimidade para, nesta parte, recorrer para o Tribunal Constitucional (cfr. al. b) do nº 1 do artigo 401º do Código de Processo Penal e al. b) do nº 1 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Nestes termos, considera-se reduzido o objecto do recurso à parte relativa ao crime de falsificação de documentos.
2. Para alegações, considerando-se o objecto do recurso reduzido nos termos atrás indicados.»
5. A fls. 98, foi junto aos autos um requerimento do recorrente juntando «o acórdão n.º 1/2003 do Supremo Tribunal Administrativo [Supremo Tribunal de Justiça], proferido para uniformização de jurisprudência, no qual é decidido que
‘No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256º do CP, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir como assistente’.»
Conforme afirma, “tal acórdão retira utilidade ao presente recurso, na parte que diz respeito ao crime de falsificação de documento e na vertente em que o mesmo se possa pronunciar pela falta de legitimidade do Recorrente para se constituir como Assistente, relativamente a tal crime, em virtude do mesmo ser crime de natureza pública.” E conclui que, “nestes termos, deverá ser de imediato dado provimento ao recurso, em causa, pelo Tribunal Constitucional, pelo menos na parte que respeita ao alegado quanto ao crime de falsificação de testemunho”.
6. Devidamente notificadas, as partes apresentaram as respectivas alegações, que o recorrente concluiu nos seguintes termos:
“1º Por douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 27 de Novembro de 2002, viu a Recorrente negada a sua admissão como assistente quanto aos crimes de falsificação de documentos e de falso testemunho.
2º Assim, nos termos da decisão recorrida “com o crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256º, do C. P. revisto, o ordenamento jurídico tutela directa e imediatamente o interesse do Estado (e comunitário ou colectivo) na confiança pública e na boa fé pública do documento enquanto meio de prova e, concomitantemente, o valor da segurança e da credibilidade que a verdade intrínseca do documento encerra enquanto tal, sendo que os interesses particulares só secundária ou indirectamente ali serão considerados”. Porém,
3º Os assistentes têm, nos termos do artigo 69º, n.º 1, do CPP, a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvo as excepções da lei.
4º Assim, relativamente aos crimes públicos e semi-públicos, a posição de Assistente é a de colaborador do MP, com poderes processuais que se traduzem em formas de auxílio directo ao MP, no inquérito, na submissão ao tribunal de uma outra perspectiva fáctica ou jurídica do objecto do processo e participação na discussão, no debate instrutório, no julgamento e nos recursos.
5º Com efeito, embora o crime ofenda primordialmente interesses de toda a comunidade, entende-se que quem sofre o mal do crime são pessoas concretas, as quais devem ter a oportunidade de participarem activamente no processo, colaborando na descoberta da verdade dos factos.
6º Para que o particular possa ter uma intervenção directa quanto à discussão da matéria criminal em processo penal é necessário que o mesmo [seja] considerado ofendido, isto é, que seja titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – artigo 68º, n.º 1, alínea a) do CPP.
7º Todavia, este preceito tem sido interpretado restritivamente quanto aos crimes e falsificação de documento e falso testemunho, no sentido não permitir que os lesados com a prática do mesmo se constituam assistentes.
8º Todavia, se um crime de natureza pública, que em tese visa proteger um bem de natureza colectiva, apenas se torna real porque os actos materiais para a sua efectivação pelo respectivo Arguido surgiram pela violação de direitos de particulares, como o direito à imagem, à participação e vitória numa competição justa, à verdade desportiva, terá necessariamente de se reconhecer que houve interesses particulares afectados que deverão ser acautelados juridicamente.
9º Assim, a par do interesse público, da segurança jurídica e confiança no tráfico jurídico dos documentos, no caso de violação da identidade e outros elementos identificativos e próprios de um particular, através da falsificação de um documento que atesta a residência do mesmo, são igualmente violados direitos cujo interesse é particular, como sejam os daqueles a quem tal documento é exibido e, em caso de falsificação, os daqueles que são ofendidos com tal conduta.
10º Veja-se que eventual falsidade de declarações afecta principalmente e directamente os particulares, muito antes de ofender o interesse público.
11º Isto porque a credibilidade das declarações dos particulares prestadas perante instituições dotadas de fé pública, necessárias para constituir um documento oficial, é um dos meios encontrado pelos infractores para obterem um benefício ilegítimo, prejudicando uma terceira entidade.
12º Tais direitos e bens jurídicos pessoais têm protecção na lei Constitucional, respectivamente no artigo 26º da Constituição da república Portuguesa (CRP).
13º No artigo 26º, n.º 2, da Constituição é estipulado que, «A lei estabelecerá garantias contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias», no entanto o Tribunal a quo fez uma interpretação do artigo 68º, n.º 1, alínea a), do CPP, no sentido de não admitir o ora Recorrente a intervir como Assistente nos presentes autos em que foi vítima da actuação dos Arguidos.
14º A lei de processo penal interpretada nesses termos afasta a possibilidade do particular exercer os seus direitos de defesa, ficando assim ofendido o preceito constitucional supra referido.
15º A vingar a tese recorrida, temos então que, o Denunciante, num crime de natureza pública, limita-se a participar esse crime, não tendo mais qualquer intervenção no processo, nem mesmo a possibilidade de requerer a abertura da instrução, vendo-se dependente dos actos de inquérito que o Ministério Público entenda convenientes.
16º Como bem refere o Acórdão do Tribunal Constitucional de 20/1/88, processo
87-0174, Base de Dados jurídica do Ministério da Justiça, «III – A lei protege o interesse do ofendido por crime público em contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima através do instituto do assistente e do direito à sua constituição bem como através do reconhecimento de amplos poderes de intervenção processual. IV – Assim é inconstitucional a norma que recusa ou dificulta a defesa desse interesse através da via judiciária».
17º Considera-se pelo exposto como inconstitucional a interpretação do artigo 68º, n.º 1, alínea a) do CPP na versão que entende não ser de admitir o particular como Assistente, nos crimes e natureza pública, porque nestes a lei com a incriminação não quis proteger especialmente o interesse do particular.
18º Tal interpretação é violadora dos artigos 20º e 32º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
19º Com efeito, esta é ofensiva de princípios basilares de qualquer Estado de direito democrático, como sejam a tutela jurisdicional efectiva e a intervenção do ofendido em processo penal, com uma posição de colaborador do Ministério Público, nos termos supra expostos.
20º Pelo que se argui para os devidos efeitos legais a inconstitucionalidade do artigo 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na interpretação com que foi aplicada no douto Acórdão recorrido, ou seja, de que quanto aos crimes de falsificação de documento e de falso testemunho o particular ofendido não se pode constituir como assistente”
Quanto ao Ministério Público, formulou as seguintes conclusões:
“1 – Para a decisão recorrida a questão da constitucionalidade da norma do artigo 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal não surge como ratio decidendi, já que a não admissão como assistente do recorrente radica em primeira linha e essencialmente na existência de caso julgado formal no processo, relativamente a esta matéria, pelo que não deverá conhecer-se do recurso.
2 – Mas mesmo que assim não se entenda, semelhante resultado se atinge, por carecer de interesse processual julgar a questão de constitucionalidade suscitada, uma vez que qualquer que fosse o sentido da decisão, nunca afectaria a questão de mérito em apreço, face à reconhecida existência de caso julgado formal, que sempre obstaria à constituição como assistente.
3 – Não sendo sufragado este entendimento impeditivo, deverá o recurso improceder por não ser exigência constitucional a constituição do ofendido particular como assistente no crime de falsificação de documento, onde o que releva é a tutela dos bens jurídicos da segurança e da credibilidade do tráfico jurídico probatório da titularidade do Estado, sendo acidental a existência de lesão adicional de interesses privados.”
Os outros recorridos não alegaram.
Tendo sido notificado para se pronunciar, querendo, sobre os obstáculos ao conhecimento do recurso suscitados pelo Ministério Público nas alegações, o recorrente veio sustentar o entendimento de acordo com o qual “o despacho que não tenha admitido um sujeito processual como Assistente não forma caso julgado formal”, pelo que “nenhum fundamento existe que obste ao conhecimento do presente recurso”.
7. Cumpre começar por recordar o objecto do recurso – aliás, já delimitado, por despacho não impugnado, a fls. 96, “à parte relativa ao crime de falsificação de documentos”.
Constitui, assim, o objecto do presente recurso a norma, constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 68º do Código de Processo Penal, “na interpretação (...) de que quanto ao crime de falsificação de documentos (...) o particular ofendido não se pode constituir como assistente” (requerimento de interposição de recurso).
Já não integra o respectivo objecto a mesma norma enquanto referida ao crime de falso testemunho, como parece resultar das alegações apresentadas pelo recorrente, porque essa norma não foi impugnada perante o Tribunal Constitucional.
Com efeito, é no requerimento de interposição de recurso que se define o objecto do recurso, não podendo o mesmo ser ampliado nas alegações, como se sabe (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 366/96 ou 589/99, publicados no Diário da República, II, respectivamente, de 10 de Maio de 1996 e de 20 de Março de 2000).
8. Nas suas alegações, o Ministério Público suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso com base em duas ordens de razões. Por um lado, com base na circunstância de que “a não admissão como assistente do recorrente
[relativamente ao crime de falsificação de documentos] radica em primeira linha e essencialmente na existência de caso julgado formal no processo”. Por outro lado, carece “de interesse processual julgar a questão de constitucionalidade suscitada”, atendendo “à reconhecida existência de caso julgado formal, que sempre obstaria à constituição como assistente”.
O recorrente, por seu turno, sustenta a inexistência de caso julgado formal quanto à questão da sua admissão como assistente relativamente ao crime de falsificação de documentos.
Não cabe naturalmente ao Tribunal Constitucional analisar as razões apontadas pelo recorrente para saber se há ou não decisão com força de caso julgado formal, por se tratar de questão manifestamente insusceptível de ser apreciada no âmbito de um recurso de constitucionalidade.
A verdade, todavia, é que o acórdão recorrido conheceu expressamente da questão de saber se o recorrente tinha ou não legitimidade para se constituir como assistente relativamente a este crime, e que julgou neste sentido:
“Nestes termos, se decide, dando parcial provimento ao recurso:
– Julga-se improcedente o recurso no que se refere aos crimes de falsificação de documentos e falso testemunho, confirmando, nessa parte o despacho recorrido.”
Improcedem, pois os obstáculos apontados pelo Ministério Público quanto ao conhecimento do objecto do recurso.
Mas igualmente improcede a afirmação do recorrente, atrás reproduzida – que se não interpreta como uma desistência parcial do recurso – quanto ao efeito que teria sobre o recurso de constitucionalidade a emissão do Acórdão n.º 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça.
Como é manifesto, tal acórdão não tem qualquer repercussão neste recurso, mantendo-se, naturalmente, o interesse no julgamento da questão de constitucionalidade.
9. Considera-se que o objecto do presente recurso se reconduz à norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 68º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, quanto ao crime de falsificação de documentos, o particular ofendido não se pode constituir como assistente. Tal norma seria, na tese do recorrente, inconstitucional por violação do preceituado nos artigos 20º e 32º, n.º 7, da Constituição.
É o seguinte o texto da norma impugnada:
“Artigo 68º Assistentes
1 – Podem constituir-se como assistentes no processo penal, além das pessoas a que as leis especiais confiram esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
...”
10. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de apreciar uma questão semelhante à dos presentes autos, relativa ao crime de falsificação praticada por funcionário, previsto no artigo 257º do Código Penal.
Com efeito, no Acórdão n.º 76/2002 (publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Abril de 2002), o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido da
«impossibilidade de constituição como assistente no que se refere aos crimes de
“falsificação praticada por funcionário” (previsto e punido, actualmente, pelo artigo 257º do Código Penal, que veio substituir os artigos 228º, nº1, alínea d) e 233º - do Código Penal de 1982) e de “denegação de justiça” (previsto e punido, actualmente, no artigo 369º do Código Penal, que veio substituir o artigo 233º do Código Penal de 1982).
É que, também nestes casos, os bens jurídicos protegidos (a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório relacionado com documentos no primeiro caso e a realização da justiça no segundo caso) tem claramente uma natureza supra-individual, residindo a sua titularidade no Estado.
É certo que, embora os crimes de falsificação praticada por funcionário e de denegação de justiça não visem directamente a protecção ou mesmo a satisfação
(no caso de denegação de justiça) de interesses colectivos, e de não incluírem por consequência como seu pressuposto, a violação de interesses particulares, a verdade é que tais interesses são em muitos casos ofendidos através da sua comissão. Alguns destes casos haverá, porventura, concurso de crimes, como quando a falsificação servir para a prática de burla, caso em que o ofendido se poderá constituir como assistente. E genericamente, pode dizer-se que tais incriminações visam indirectamente proteger também interesses particulares, como resulta de o tipo subjectivo de ilícito de crime de falsificação do artigo 257º incluir a “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado” e de o crime de denegação de justiça, sempre que a justiça é pedida pelos particulares, ter como consequência necessária a insatisfação do interesse particular nessa administração.
A questão, porém, é a de saber se, em face de disposições constitucionais que não só garantem a administração da justiça, com o artigo 202º, nº 2, como especialmente garantem o direito do ofendido “de intervir no processo nos termos de lei”, nas palavras do nº 7 do artigo 32º, aditado na revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 68º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, que delimita a constituição de assistente através do conceito de ofendido, na interpretação que não considera ofendidos os particulares possivelmente afectados pelos crimes de falsificação praticada por funcionário do artigo 257º do Código Penal e de denegação de justiça prevista no artigo 369º do Código Penal, excede o espaço de configuração deixado ao legislador pela Constituição.
A resposta deve ser negativa. A revisão constitucional de 1997 faz-se no contexto da vigência do artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabelece. A constituição de assistente em crimes que não visam directamente proteger interesses privados, mas sim interesses colectivos, em que nem sempre há lesão adicional de interesses privados, e em que a lesão desses interesses não é um elemento constitutivo do tipo de crime – por outras palavras, em crimes em que nem sempre há ofendido – não é certamente uma exigência constitucional.»
Ora a argumentação do Acórdão que acaba de ser citado, referida ao crime de falsificação feita por funcionário, previsto no artigo 257º do Código Penal (bem como ao crime de denegação de justiça), é transponível para o caso do crime de falsificação de documento, previsto no artigo 256º do mesmo Código.
Aliás, o entendimento firmado no Acórdão n.º 76/2002 surge na sequência do que já anteriormente o Tribunal havia adoptado no Acórdão n.º 647/98 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 41, pp. 423 e ss.) em que estava em causa a constituição como assistente relativamente ao crime de desobediência.
Tal como sucede com os crimes de falsificação de documentos, também aqui se verifica a natureza supra-individual do bem jurídico protegido, no caso, “o acatamento pelos particulares de certas decisões das autoridades públicas que os vinculam”.
O mesmo entendimento foi também confirmado, quanto ao crime de violação de segredo de justiça, pelo Acórdão n.º 579/2001 (publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Fevereiro de 2002), e quanto ao crime de manipulação de mercado, pelo Acórdão n.º 162/2002 (publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Maio de 2002).
Em todos estes arestos se entendeu que a natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação é fundamento bastante para se considerar não ser constitucionalmente censurável a exclusão da possibilidade de se constituírem como assistentes no processo penal por parte de titulares de interesses particulares ofendidos. É que tais interesses particulares eram, nos casos sobre os quais incidiram os mencionados arestos, apenas indirecta ou mediatamente tutelados pela previsão de tais crimes.
Importa ainda referir que a norma impugnada, restringindo a possibilidade de se constituir como assistente no processo penal aos ofendidos que sejam “titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, encontra paralelo na exigência decorrente da demonstração, por parte dos assistentes, de um específico e concreto interesse em agir como condição para impugnar certa decisão, decorrente do artigo 401º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do Código de Processo Penal, exigência essa que o Tribunal não considerou inconstitucional, através do Acórdão n.º 205/2001 (publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Junho de 2001).
Como se afirmou neste último Acórdão, o artigo 32º, n.º 7, da Constituição atribuiu à lei ordinária “a acção modeladora” do “direito do ofendido de intervir no processo penal”. E se é certo que essa “atribuição à lei ordinária não legitima o legislador a proceder a um “«esvaziamento» do núcleo essencial da intervenção do assistente no processo penal»”, parece também certo que tal
«esvaziamento» não está em causa nos presentes autos, como não estava no caso sobre que incidiu o citado Acórdão n.º 205/2001.
Por último, resta ainda acrescentar que não se afigura relevante a invocação, pelo recorrente, da argumentação expendia pelo Tribunal no seu Acórdão n.º 24/88 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pp. 525 e seguintes). Com efeito, partia-se aí de um quadro legislativo diverso do actualmente vigente (v. g. o artigo 388º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção do Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de Setembro, que admitia a possibilidade de os assistentes acusarem por crimes públicos ainda que o Ministério Público se abstivesse de o fazer), emitido no âmbito do espaço de
“modelação” que ao legislador se deve reconhecer nestas matérias, para se concluir apenas pela inconstitucionalidade da norma que, perante tal enquadramento legislativo, proibia a concessão de assistência judiciária aos ofendidos que quisessem constituir-se assistentes no exercício da acção penal por crimes públicos.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 22 de Outubro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida (vencido, por razões idênticas às que expressei na declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 205/01, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Junho de 2001).