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Proc. n.º 27/04
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferida decisão, em 19 de Novembro de 2003, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional que A. (ora reclamante) interpôs de uma outra decisão daquele Tribunal, esta de 23 de Setembro do mesmo ano (fls. 127 a 132). Escudou-se o Tribunal, para tanto, na seguinte fundamentação:
“Tendo presente o disposto nos artigos 70º, n.º 1 alíneas b) e f), 72º, n.º 2 e
76º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e considerando que a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada na motivação do recurso interposto para esta Relação (cfr. fls. 98 a 114) - nem em qualquer momento anterior -, tendo sido levantada, apenas, no requerimento de fls. 139 a 142, em que a recorrente invoca a nulidade daquele acórdão e se pede a sua aclaração. Indefere-se o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional”
2. Inconformada com esta decisão que não lhe admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, apresentou a recorrente a presente reclamação, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“A ora Reclamante, no exercício das funções de Defensora Oficiosa foi condenada pessoalmente em multa, na 1ª instância. Depois de ter requerido que lhe fosse indicada a norma que permite ao julgador condenar Advogado no e por causa do exercício de funções, maxime em patrocínio oficioso, não foi indicada a norma substantiva mas foi mantida a condenação. Interpôs, por isso, recurso para a Relação de Lisboa que manteve, no essencial a condenação da 1 a instância, pese embora ter reconhecido que a alegada má fé que sustentou a condenação não pode ser considerada em termos técnicos. Na sequência do que a Senhora Advogada condenada se sentiu no direito de arguir a nulidade do acórdão, referir que o Tribunal omitiu a aplicação de normas constitucionais, sendo que a do n° 1 do Artigo 29° da Constituição da República Portuguesa, por ser directamente aplicável, não carece de ser sequer invocada por constituir direito fundamental, com vinculação das entidades públicas, como
é o caso dos Tribunais, por força do disposto no Artigo 18°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa. Assim não entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, razão do recurso interposto para este Tribunal Constitucional e que a mesma Relação não admitiu com o fundamento de que 'a inconstitucionalidade não foi suscitada na motivação do recurso interposto para a Relação', invocando, sem mais, o dispositivo dos artigos 70°, n° 1, alíneas b) e f), 72°, n° 2 da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, não apreciando sequer a questão do dever da aplicação directa e obrigatória da norma constitucional que constitui direito fundamental e que, por isso mesmo se entende não carecer de invocação em motivação de recurso. Aliás, diga-se, para além de se entender que a recusa na aplicação de norma constitucional nos termos e por imperativo do disposto no n° 1 do Artigo 18° referido da Constituição, pode constituir denegação de justiça, simultaneamente, na interpretação que a Relação agora apresenta das disposições que refere para indeferir o recurso - artigos 70°, n° 1, alíneas b) e f), 72°, n° 2 da Lei n°
28/82, de 15 de Novembro - também terá que ser inconstitucional e como tal declarada por violação da norma do n° 1 do Artigo 32° e, de novo, omissão da aplicação do disposto no n° 1 do Artigo 18°, ambos da Constituição. Para a Exmª. Advogada trata-se de questão de extrema e máxima importância que transporá para as instâncias internacionais se as do seu País persistirem em não acatar direito fundamental como invocado e demonstrado ficou. [...]”.
3. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido da improcedência da reclamação, posição que fundamentou nos seguintes termos:
“A presente reclamação carece de fundamento, já que a reclamante não suscitou, durante o processo e em termos processualmente adequados, qualquer questão de constitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso que interpôs, com base na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82 – e sendo manifesto, face à matéria controvertida, que o decidido pela Relação não pode configurar-se como “decisão-surpresa” que, pelo seu carácter insólito e imprevisível, dispensasse o cumprimento de tal ónus. Não é, por outro lado, legítimo confundir – como o faz a reclamante – os planos do poder-dever de os tribunais recusarem oficiosamente a aplicação das normas que julgam inconstitucionais e dos pressupostos de admissibilidade do recurso tipificado naquela alínea b) e os ónus que dela decorrem para a parte que se pretenda socorrer de tal tipo de recurso.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
4. No cumprimento do disposto no artigo 75º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a recorrente indicou como fundamento do recurso que pretendeu interpor para o Tribunal Constitucional a alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da referida Lei, dizendo, então, que ”porque se afigura que o julgador deve aplicar directamente as normas da Constituição da República, mormente as que protegem direitos, liberdades e garantias fundamentais e porque o acórdão coloca em causa o patrocínio forense e assim os direitos de defesa, no caso, dos cidadãos julgados em processo crime, vem, com o beneficio do apoio judiciário, nos termos da al. f) do n° 1 do art. 70° da Lei n.º 15/82, de 15 de Novembro recorrer para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL”.
Mas, como se verá sumariamente, é manifesto que não estão preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto naquela alínea. Com efeito, a alínea f) do n.º 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional refere-se aos recursos de decisões que “apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)”. É, porém, evidente, que não foi aplicada pela decisão recorrida qualquer norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento em:
(i) violação de lei de valor reforçado [alínea c)]; (ii) violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República – no caso de norma constante de diploma regional – [alínea d)]; ou (iii) violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República – no caso de norma emanada de órgão de soberania –
[alínea e)].
Pretendendo a ora reclamante ver apreciada a compatibilidade com a Constituição de uma norma de direito ordinário aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, deveria ter invocado como fundamento do recurso a alínea b) – e não a alínea f) do n.º 1 do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o que manifestamente não fez.
É, assim, evidente - e não carece, por isso, de mais aprofundada demonstração - que não estando preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso exigidos pela alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
– nem sendo possível uma convolação oficiosa por parte do Tribunal, como se decidiu recentemente no Acórdão n.º 468/03 (já disponível na página do Tribunal na Internet em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) - bem andou a decisão reclamada ao não admitir o recurso.
Agora apenas se acrescentará que, em qualquer caso, ainda que o recurso que não foi admitido tivesse sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da LTC, sempre o mesmo seria de não admitir por a reclamante não ter suscitado, tempestivamente, qualquer questão de constitucionalidade normativa idónea para sustentar um recurso com base naquela alínea. Com efeito, apenas no requerimento em que arguiu a nulidade e pediu a aclaração da decisão recorrida a reclamante se refere a uma norma - aliás diversa daquelas que enumera no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – “cuja omissão permite a conclusão de que foi feita interpretação inconstitucional”, o que, como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, já não se pode considerar durante o processo para efeitos de permitir o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC. Como se escreveu logo no Acórdão n.º
450/87 (Acórdãos do T.C., 10º vol., pp. 573), em jurisprudência entretanto por inúmeras vezes reiterada, “[...] porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão, nem torna esta obscura ou ambígua, há-de ainda entender-se - como este Tribunal tem entendido - que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade...”.
Assim, também por esta razão, não tendo a ora reclamante cumprido os ónus que decorrem para a parte que se pretenda socorrer de um recurso a interpor ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, sempre seria igualmente de não admitir um tal recurso.
III. Decisão.
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida