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Processo nº 479/01 Plenário Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira vem requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição, a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade das normas adiante referidas, constantes dos artigos 23º, 27º e 31º do Decreto Legislativo Regional n.º 15/2001/M, de 27 de Junho, que estabelece o estatuto disciplinar dos alunos dos ensinos básico e secundário da Região Autónoma da Madeira, e que são do seguinte teor:
“Artigo 23º Aplicação das medidas disciplinares
1 - A aplicação das medidas disciplinares de advertência e de repreensão registada não carece de processo.
2 - A aplicação das medidas disciplinares de realização de actividades úteis à comunidade escolar, de inibição de participar em actividades de complemento curricular e de suspensão da frequência da escola depende de um processo de averiguação sumária.
3 - O comportamento cuja gravidade seja susceptível de aplicação da pena de expulsão da escola no ano lectivo determina a instauração de processo disciplinar.
Artigo 27º Conselho de turma disciplinar
1 - Recebido o relatório do instrutor, compete ao director ou presidente do
órgão de gestão convocar o conselho de turma disciplinar, que reunirá com carácter de urgência em prazo não superior a dois dias úteis.
2 - O conselho de turma disciplinar é presidido pelo director ou presidente do
órgão de administração e gestão e tem a seguinte composição: a) Professores da turma; b) Delegado e subdelegado dos alunos da turma; c) Um representante dos pais ou encarregados de educação dos alunos da turma;
d) Um representante da associação de pais e encarregados de educação.
3 - O director ou presidente do órgão de administração e gestão pode solicitar a presença no conselho de turma disciplinar de um técnico dos serviços especializados de apoio educativo, designadamente do núcleo de apoio educativo ou dos serviços de psicologia e orientação.
4 - Os elementos que detenham a posição de interessados no procedimento não podem participar no conselho de turma disciplinar.
5 - Se, devidamente convocados, os representantes dos alunos ou dos pais e encarregados de educação não comparecerem, o conselho reúne sem a sua presença.
Artigo 31.º Recursos hierárquicos
1 - Da decisão da aplicação da medida disciplinar cabe recurso hierárquico a interpor perante o director ou presidente do órgão de administração e gestão da escola, no prazo de cinco dias úteis.
2 - É competente para apreciar o recurso hierárquico num prazo de 10 dias
úteis: a) O director ou presidente do órgão de administração e gestão da escola, tratando-se de recurso interposto de medida disciplinar aplicada pelo director de turma; b) O Secretário Regional de Educação, tratando-se de recurso interposto de medida disciplinar aplicada pelo director ou presidente do órgão de administração e gestão da escola.”
2. Alega, em síntese, o Ministro da República:
- A Assembleia Legislativa Regional da Madeira, ao abrigo do disposto no artigo
227º, n.º 1, alínea a), e do artigo 228º, alínea o), da Constituição da República Portuguesa e do artigo 37º, n.º 1, alínea c), e do artigo 40º, alínea o), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM), aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, e revisto pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, aprovou um diploma que veio a ser assinado e publicado como o Decreto Legislativo Regional n.º 15/2001/M, que define o estatuto disciplinar dos alunos dos estabelecimentos públicos dos ensinos básico e secundário da Região Autónoma da Madeira;
- O mencionado decreto não contém, seja na exposição preambular, seja no articulado, qualquer referência ao Decreto-Lei n.º 270/98, de 1 de Setembro, não obstante a natureza por este assumida de lei geral da República e a circunstância de versar sobre matéria idêntica à que ali é tratada – o estatuto disciplinar dos alunos dos estabelecimentos públicos dos ensinos básico e secundário –, mas é nele claramente inspirado, constituindo algumas das suas disposições uma quase integral reprodução dos seus preceitos;
- O diploma em apreço, em alguns dos seus preceitos, não respeitou, como se impunha, princípios fundamentais caracterizadores do estatuto disciplinar dos alunos dos ensinos básico e secundário, talqualmente naquele decreto-lei são definidos;
- Ora, tendo em conta que o Decreto-Lei n.º 270/98 foi editado para valer como lei geral da República, nos termos do artigo 112º, nº 5, da Constituição (no desenvolvimento do regime jurídico a que se referem os artigos 43º e 45º da Lei nº 46/86, de 24 de Outubro, alterada pela Lei nº 115/99), a legislação regional incidente sobre aquela matéria não podia deixar de ter presente os princípios fundamentais daquele regime jurídico;
- Nos termos do artigo 112º, nº 5, da Constituição «são leis gerais da República as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e assim o decretem», sendo que os princípios fundamentais destas leis devem apresentar-se como normas rectoras, essenciais, no quadro da estrutura e do sistema contidos na disciplina básica do regime jurídico instituído, e tanto podem ser os princípios fundamentais de certa e determinada lei como os ínsitos na ordem legislativa no seu conjunto, no “bloco de legalidade” (cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, Coimbra, 1997, págs. 401 e segs.);
- Os princípios fundamentais de leis gerais da República abrangem as «regras consagradas na lei (que) são necessária decorrência de princípios constitucionais que especificamente vinculam o regime jurídico da matéria» (cfr. Acórdão n.º 631/99, publicado no DR, I Série-A, de 28 de Dezembro de 1999), e abrangem também as normas que traduzam uma opção legislativa fundamental, ainda que não surjam catalogadas de princípio fundamental do regime jurídico instituído pela própria lei geral da República;
- Ora, tendo presente os objectivos proclamados, no seu exórdio, pelo Decreto-Lei n.º 270/98 – definir um código de conduta a adoptar nos estabelecimentos de ensino e explicitar o estatuto dos alunos, na dupla componente de direitos e deveres, numa dinâmica de construção gradual da sua personalidade e de formação do seu carácter, sem a vocação essencialmente punitiva que se encontrava subjacente à Portaria nº 679/77, de 8 de Novembro, por ele revogada – hão-de considerar-se seus princípios fundamentais, por traduzirem uma opção legislativa essencial, os que consagram garantias de defesa do aluno face à aplicação de medidas educativas disciplinares em consequência da prática de um comportamento violador dos deveres a que se encontra submetido;
- Nesta conformidade, quando no artigo 23º desta lei geral da República se impõe, no caso de comportamento do aluno, objecto de participação, a obrigatoriedade de instauração de um processo de averiguação sumária, no qual serão ouvidos o aluno, o participante e eventuais testemunhas, como pressuposto de aplicação pelo professor titular ou pelo director de turma das medidas educativas disciplinares de advertência ao aluno e advertência comunicada ao encarregado de educação, institui-se ali, seguramente, um princípio fundamental;
- Do mesmo modo, os artigos 24º e 25º daquela lei geral, ao preverem que a aplicação das medidas educativas disciplinares de repreensão registada, de actividades de integração na comunidade educativa, de suspensão da frequência da escola até dez dias úteis, de transferência da escola e de expulsão da escola estejam dependentes de procedimento disciplinar, a realizar nos termos dos seus artigos 26º e seguintes, devem ser havidos como princípios fundamentais;
- Pelas mesmas razões de garantia de defesa do aluno, se deve entender que a previsão contida no artigo 28º, nº 2, quando atribui ao conselho de turma disciplinar competência para emitir parecer sobre o relatório do instrutor e formular a proposta de realização das tarefas de integração na comunidade educativa a realizar pelo aluno, reveste também a natureza de princípio fundamental;
- Finalmente, na medida em que o artigo 33º, sempre do Decreto-Lei nº 270/98, prevê a existência de uma comissão arbitral, para actuar como instância de regulação de conflitos no âmbito da comunidade educativa, intervindo a pedido dos interessados, há-de entender-se que a existência desta comissão se apresenta também como instrumento garantístico, revestindo a natureza de princípio fundamental;
- Todavia, o diploma regional em apreço não observa, em diversos dos seus preceitos, os princípios fundamentais acabados de enunciar;
- Os artigos 19º e 23º, nº 1, do Decreto Legislativo Regional, na sequência de um comportamento objecto de participação, em sede de aplicação pelo director de turma das medidas disciplinares de advertência comunicada ao encarregado de educação e de advertência ao aluno (ao contrário do que sucede com o artigo 23º, nº 3, do Decreto-Lei nº 270/98), não prevêem a necessidade de existência de um processo de averiguação sumária, no qual se proceda à audição do aluno, do participante e de eventuais testemunhas, podendo assim ser aplicadas as medidas disciplinares de advertência e de advertência comunicada ao encarregado de educação, sem audição de todos os intervenientes no processo;
- Ainda no artigo 23º, nº 1, o diploma regional prevê que a aplicação da medida disciplinar de repreensão registada «não carece de processo», estabelecendo apenas (pelo artigo 20º, nº 2), que a entidade competente para aplicar a medida disciplinar de repreensão registada pode solicitar o parecer do conselho de turma disciplinar sempre que o entenda conveniente;
- Paralelamente, o artigo 23º, nº 2, do mesmo diploma regional faz depender tão-só de um processo de averiguação sumária a aplicação das medidas disciplinares de realização de actividades úteis à comunidade escolar, de inibição de participar em actividades de complemento curricular e de suspensão de frequência da escola, e, apenas no caso da medida de suspensão de frequência da escola (por força do artigo 20º, nº 3), também de prévia solicitação de parecer ao conselho de turma disciplinar;
- Todavia, o Decreto-Lei nº 270/98 prevê, no artigo 24º, nº 2, como princípio fundamental, que a aplicação das medidas de repreensão registada, de actividades de integração na comunidade educativa e de suspensão da frequência da escola até
10 dias úteis, depende de procedimento disciplinar;
- Não basta, para que se cumpra o princípio fundamental, no que respeita à repreensão registada, que a entidade competente para aplicar a medida disciplinar possa solicitar o parecer do conselho de turma sempre que o entenda conveniente, como não basta, no que respeita às medidas disciplinares de realização de actividades úteis à comunidade escolar e de inibição de participar em actividades de complemento curricular, que se faça depender a sua aplicação de um processo de averiguação sumária, cuja natureza é distinta daquele procedimento, e se traduz sempre num minus relativamente ao procedimento disciplinar, deste se distinguindo, desde logo, na circunstância de não incluir a intervenção necessária do conselho de turma disciplinar;
- A intervenção do conselho de turma disciplinar, regulado nos termos dos artigos 26º e seguintes do Decreto-Lei nº 270/98, há-de ter-se por essencial, pois que este órgão integra na sua composição representantes de toda a comunidade escolar, garantindo-se assim, neste contexto, a discussão das conclusões enunciadas pelo instrutor do processo, com observância da garantia de defesa do aluno e da democraticidade e transparência do procedimento disciplinar, pelo que o princípio fundamental consagrado, designadamente, no artigo 28º, nº 2, do referido decreto-lei há-de considerar-se violado pelo esvaziamento das competências daquele conselho nos moldes estabelecidos pelo artigo 27º do diploma regional, onde se omite a referência à sua competência para emitir parecer sobre o relatório do instrutor do procedimento disciplinar e para formular a proposta a que se refere o artigo 17º, nº 3, do mesmo decreto-lei;
- Finalmente, o artigo 31º do diploma regional, que rege sobre o sistema dos recursos hierárquicos, não contempla a existência de uma comissão arbitral com competência para a apreciação de recurso interposto da decisão de aplicação da medida disciplinar, o que colide com o princípio fundamental contido no artigo
33º do Decreto-Lei nº 270/98.
Conclui o Ministro da República no sentido de os referidos segmentos normativos contidos nos artigos 23º, 27º e 31º do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M, de 27 de Julho, serem ilegais, por desconformidade com princípios fundamentais definidos pelo Decreto-Lei nº 270/98, ultrapassando o âmbito da competência legislativa regional, tal como esta se acha delimitada nos artigos
227º, nº 1, alínea a), da Constituição e 37º, nº 1, alínea c), da Lei nº 13/91, de 5 de Junho, revista pela Lei nº 130/99, de 21 de Agosto.
3. Notificado do pedido, veio o Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira responder, alegando, fundamentalmente, o seguinte:
- O Decreto Legislativo Regional n.º 15/2001/M foi emitido no âmbito do poder legislativo primário regional, ao abrigo dos artigos 227º, nº 1, alínea a), e
228º, alínea o), da Constituição;
- A matéria de que trata aquele decreto legislativo regional não está constitucionalmente reservada à competência própria dos órgãos de soberania nem consta do elenco de atribuições que, no âmbito da educação, são reservadas ao Governo da República pelo Decreto-Lei nº 364/79, de 4 Setembro, constituindo matéria de interesse específico para a Região, visto que o ensino básico e secundário consta do artigo 40º, alínea o), do EPARAM;
- Tendo sido emitido após a revisão constitucional de 1997, o diploma regional em questão apenas tem que observar os princípios fundamentais do Decreto-Lei nº
260/98 e não já todo o seu sistema de normas e princípios [v., no sentido do alargamento do âmbito material das atribuições legislativas das Regiões após a revisão constitucional de 1997: M. da Assunção A. Esteves, Os princípios fundamentais das leis gerais da República: Generalidade e vinculatividade
(parecer solicitado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira), págs. 6 e
42; Luís Marques Guedes, Uma Constituição Moderna para Portugal, 1997, pág. 199; José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1999, prefácio e págs. 171 e 172; Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa Comentada, 2000, pág. 360];
- Assim, segundo Assunção Esteves, «os princípios fundamentais não abrangem toda a extensão normativa das leis gerais da República. Identificam-se apenas com o que nelas, por natureza, é geral», ou seja, «o que resulta dos domínios vitais dessa lei» (loc. cit., pág. 42);
- E J. J. Gomes Canotilho, sobre o mesmo tema, refere que o conceito em questão
«não é susceptível de uma captação material apriorística, devendo, por isso, o legislador da República começar por adoptar a técnica da legislação de princípios fundamentais (...) onde se individualizem, para cada matéria disciplinada por leis gerais da República, os princípios considerados paramétricos relativamente à legislação regional”, pelo que “os princípios fundamentais tidos como limite ao poder legislativo primário regional devem ser aqueles (...) princípios positivamente incorporados, de forma directa ou indirecta, nas leis e nos decretos-leis, que se devem considerar fundamentais», o que «permitiria às leis regionais intervir regulativamente em tudo o que as leis gerais da República previamente definidoras de princípios não proibissem»
(Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1998, págs. 705 a
718);
- Ora, o Decreto-Lei nº 270/98 não estabelece quais são os princípios fundamentais da matéria legislada, sendo, porém, indiscutível a qualificação, como tais, dos princípios consagrados no artigo 77º, nºs. 1 e 2, da Constituição e dos princípios gerais consignados nos artigos 3º, alínea b), 43º e 45º da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro), princípios estes que não foram objecto de qualquer violação pelo Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M;
- Quanto à obrigatoriedade de instauração de um processo de averiguação sumária como pressuposto de aplicação das medidas disciplinares de advertência e de advertência comunicada ao encarregado de educação, prevista no artigo 23º, nº 3, do Decreto-Lei nº 270/98, é questionável a sua qualificação como princípio fundamental do regime instituído naquela lei geral da República;
- A opção legislativa de não prever no artigo 23º, nº 1, do Decreto Legislativo Regional a necessidade de existência de tal processo fundamenta-se no propósito de simplificar e tornar mais célere o procedimento disciplinar nos casos em que as medidas disciplinares não acarretam consequências significativas para o aluno e não implica a dispensa da audição de todos os intervenientes no processo, quando esteja em causa a aplicação das medidas disciplinares de advertência, de advertência comunicada ao encarregado de educação e de repreensão registada, dado que a aplicação subsidiária do Código do Procedimento Administrativo, por força do artigo 38º do Decreto Legislativo Regional, impõe a audiência prévia de todos os interessados face à tomada de decisão por parte da entidade competente para aplicar a medida disciplinar;
- Porém, não se justifica que nas medidas de advertência e de advertência comunicada ao encarregado de educação a audição dos interessados implique a realização de um processo de averiguação sumária: no primeiro caso, porque a competência para aplicá-la pertence apenas ao professor que presencia o comportamento que lhe deu origem, no segundo caso, porque visa alertar os pais e os encarregados de educação para a necessidade de reforçar a responsabilização do seu educando no cumprimento dos seus deveres na escola e que a sua aplicação decorre da reiteração do comportamento objecto de advertência e consequente reiteração das comunicações da mesma ao director de turma (artigos 13º, nº 1, e
17º, nº 3);
- O objectivo de simplificação do processo quando estejam em causa comportamentos de reduzida gravidade justifica também que o parecer do conselho de turma disciplinar apenas seja solicitado quando a entidade competente para aplicar a medida de repreensão registada (artigos 23º, nº 1, e 20º, nº 2, do Decreto Legislativo Regional) o entenda conveniente, face às circunstâncias em que o comportamento ocorreu, não se vislumbrando que o carácter facultativo da solicitação do referido parecer possa atentar contra qualquer princípio fundamental, pois que, mesmo quando a sua intervenção é obrigatória, aquele parecer não tem carácter vinculativo, podendo ser aplicada medida diversa da proposta, desde que a decisão seja fundamentada;
- As mesmas razões fundamentam a opção legislativa de fazer depender de um processo de averiguação sumária a aplicação das medidas disciplinares de realização de actividades úteis à comunidade escolar, de inibição de participar em actividades de complemento curricular e de suspensão da frequência da escola
(artigo 23º, nº 2, do Decreto Legislativo Regional), por entender que este processo é suficiente para cumprir os princípios fundamentais subjacentes (no caso da última medida referida, justifica-se a obrigatoriedade de prévia solicitação de parecer ao conselho de turma disciplinar, dadas as repercussões que esta medida acarreta para o aluno), sendo de referir, a propósito, que o legislador da República prevê, no projecto de decreto-lei que altera o Decreto-lei nº 270/98, actualmente em elaboração, a substituição do procedimento disciplinar por um processo de averiguação sumária no âmbito da aplicação destas medidas, demonstrando que a exigência de procedimento disciplinar não constitui princípio fundamental daquela lei geral da República;
- No que respeita ao alegado esvaziamento das competências do conselho de turma disciplinar (artigo 27º do Decreto Legislativo Regional), também não nos parece colidente com qualquer princípio fundamental do Decreto-Lei nº 270/98, uma vez que: quanto à questão do parecer sobre o relatório do instrutor, a reunião do conselho de turma, no âmbito do procedimento disciplinar, pressupõe que o mesmo se pronuncie sobre o dito relatório, estando esta competência implícita na redacção do preceito e, quanto à questão da medida disciplinar de actividades de integração, o Decreto Legislativo Regional salvaguarda, no artigo 13º, nº 4, alínea a), a audição do encarregado de educação do aluno previamente à sua aplicação;
- Finalmente, também não parece que a previsão de uma comissão arbitral com competência para apreciar o recurso, contida no artigo 33º do Decreto-Lei n.º
270/98, constitua um princípio fundamental desta lei geral da República, tendo em conta que o funcionamento desta comissão está dependente de regulamentação, por despacho do Ministro da Educação (artigo 33, nº 4), a qual, decorridos três anos desde a entrada em vigor daquele diploma, ainda não ocorreu.
Do exposto, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional conclui que, contrariamente ao que é defendido no pedido de fiscalização, os artigos
23º, 27º e 31º do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M não padecem do vício de ilegalidade, por desconformidade com princípios fundamentais constantes em lei geral da República e porque cabem no âmbito da competência legislativa regional prevista nos artigos 227º, nº 1, alínea a), da Constituição e 37º, nº
1, alínea c), do EPARAM, na redacção dada pela Lei nº 130/99, de 21 de Agosto.
II – Fundamentação
4. O decreto legislativo regional em apreciação foi emitido ao abrigo dos artigos 227º, nº 1, alínea a), e 228º, alínea o), da Constituição, bem como dos artigos 37º, nº 1, alínea c), e 40º, alínea o), do EPARAM.
A primeira das normas acima mencionada dispõe o seguinte:
Artigo 227º
(Poderes das regiões autónomas)
1 - As regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:
a) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania;
(...)”
A norma transcrita impõe às regiões autónomas o respeito dos princípios fundamentais das leis gerais da República, sendo que tal conclusão se retira também do artigo 112º, nº 4, da CRP.
Nesta matéria, conforme alega o requerente, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 270/98, para valer como lei geral da República, com a finalidade de desenvolver as opções fundamentais relativas à administração e gestão escolares contidas na Lei n.º 46/86 (Lei de Bases do Sistema Educativo).
Este decreto-lei foi aprovado ao abrigo do artigo 198º, nº 1, alínea c), da Constituição, que determina que é da competência do Governo “fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos princípios contidos em leis que a eles se circunscrevam”, e visou dar cumprimento ao disposto no nº 1 do artigo 59º da Lei nº 46/86, que dispõe o seguinte:
“Artigo 59º
(Desenvolvimento da lei)
1 - O Governo fará publicar no prazo de um ano, sob a forma de decreto-lei, a legislação complementar necessária para o desenvolvimento da presente lei que contemple, designadamente, os seguintes domínios:
(...) d) Administração e gestão escolares;
(...)”
O requerente vem, neste contexto, sustentar que as normas impugnadas do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M estão desconformes aos princípios fundamentais definidos no Decreto-Lei n.º 270/98 e, como tal, padecem de vício de ilegalidade.
Sucede que, entretanto, o Decreto-Lei nº 270/98 foi expressamente revogado pelo artigo 60º da Lei nº 30/2002, de 20 de Dezembro, que aprova o Estatuto do Aluno do Ensino não Superior e procede ao desenvolvimento das normas da Lei de Bases do Sistema Educativo relativas à administração e gestão escolares. Também esta Lei nº 30/2002 foi aprovada para valer como lei geral da República, à semelhança do Decreto-Lei nº 270/98.
Considera-se, no entanto, que a apreciação do pedido não fica prejudicada pela revogação do decreto-lei em referência, dado que o Tribunal Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas
«com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada» pelo requerente (vide o artigo 51º, nº 5 da LTC), sendo certo que, no caso de pedidos de declaração de ilegalidade, a referência a normas ou princípios constitucionais deve ser entendida como atinente a normas ou princípios legais (cfr. a norma paralela do artigo 79º-C da LTC). No caso, princípios fundamentais das leis gerais da República. Nesta conformidade, nada impede que se prossiga na apreciação do pedido, para o efeito de se verificar se as normas questionadas contradizem princípios fundamentais da lei geral da República que veio substituir a anteriormente vigente e que serviu de fundamento paramétrico ao mesmo pedido.
Contudo, uma vez que a Lei nº 30/2002 é posterior ao Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M, coloca-se ainda outra questão, que é a de saber se este não terá sido revogado tacitamente por aquela (a referida lei é omissa quanto a este aspecto), o que poderia conduzir a que o Tribunal não tomasse conhecimento do pedido, por inutilidade superveniente.
A solução da revogação, nestes casos, é defendida por Pedro Machete, que considera que a revogação do decreto legislativo regional se justifica pelo princípio lex posterior legi priori derrogat e pela razão de ser da própria qualificação como lei geral da República, sendo necessariamente a intenção do legislador «a regulamentação ex novo de uma matéria para todo o território nacional (revogação de sistema)» (Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente, Estudos de Direito Regional, 1997, Lex, pág.136. De notar, todavia, que o estudo se moveu no sistema de relações entre actos legislativos do Estado e das Regiões Autónomas anterior ao emergente da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro). Esta solução corresponde, pois, à aplicação da regra contida no artigo 7º, nº 2, do Código Civil, que determina a revogação quando «a nova lei regular toda a matéria da lei anterior».
Há, contudo, quem entenda ser de aplicar, nestes casos, a regra prevista no nº 3 do mesmo artigo do Código Civil, que determina que «a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador».
Assim se pronuncia Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, tomo V, 2.ª ed., 2000, Coimbra, págs. 407 e segs.):
“Uma lei geral da República superveniente não revoga decreto legislativo regional que valha como lei especial – até porque lei geral não revoga lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador (artigo 7.º, n.º 3 do Código Civil) e nunca tal intenção seria consentida pelo princípio da autonomia.”
E no mesmo sentido parece inclinar-se J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª edição, Almedina, 2002, pág. 804):
“Problemática é a questão de saber se, perante a inexistência de leis gerais da República contendo princípios fundamentais, pode haver uma intervenção legislativa regional com carácter primário. A resposta positiva não afasta a possibilidade de intervenção posterior de leis gerais da República transportadoras de princípios fundamentais que tornarão inválidos (invalidade sucessiva) os decretos legislativos regionais com eles contrastantes.”
Esta é também a conclusão que se retira do Acórdão nº 133/90
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., pág. 447 e Diário da República, II Série, de 4/9/90), onde se escreveu:
«Em primeiro lugar, a contradição entre um diploma regional e uma lei geral da República posterior não pode ser reconduzida à mera questão da revogação da lei ordinária anterior pela posterior. Uma tal solução apenas seria admissível se as competências legislativas estivessem concentradas nos órgãos do poder central
(Assembleia da República e Governo). Mas não é isso que sucede no nosso ordenamento jurídico-constitucional.»
Não existindo, portanto, intenção inequívoca do legislador em revogar o decreto legislativo regional em causa – o que dispensa mais detalhado exame sobre se e em que condições tal intenção revogatória seria compatível com o princípio da autonomia regional –, mantém-se este em vigor.
E, assim sendo, deve-se aferir da compatibilidade das normas impugnadas com os princípios fundamentais constantes da Lei nº 30/2002.
5. Verificada a manutenção da vigência do Decreto Legislativo Regional nº
15/2001/M e alcançada a conclusão de que o pedido de declaração de ilegalidade pode ser apreciado por referência à lei geral da República que substituiu aquela que vigorava no momento da sua formulação, importa analisar os limites constitucionais ao poder legislativo regional primário: por um lado, as matérias a regular não podem pertencer à reserva de competência própria dos órgãos de soberania e têm que revestir interesse específico para a região; por outro lado, a legislação regional tem que respeitar os princípios fundamentais das leis gerais da República (artigo 227º, n.º 1, alínea a), da Constituição). O texto da norma não deixa dúvidas quanto ao carácter cumulativo dos referidos limites.
Tendo presente aquele primeiro limite (a exclusão de poder legislativo regional no domínio da competência reservada dos órgãos de soberania) e a matéria sobre que versa o Decreto Legislativo Regional n.º
15/2001-M – prima facie, desenvolvendo lei de bases do sistema de ensino, matéria esta da reserva absoluta da competência da Assembleia da República, que não pode ser desenvolvida por diploma legislativo regional (cfr. artigo 227º, nº1, alínea c) da Constituição) – poderia colocar-se, a título prejudicial, a questão de averiguar a natureza dos vícios que, no caso, podem confluir.
Efectivamente, se tais vícios se configurassem, apenas, como de inconstitucionalidade (ou consumissem os geradores de ilegalidade ou a apreciação destes ficasse necessariamente prejudicada pela existência daqueles), este Tribunal não poderia conhecer do pedido, em virtude de o mesmo ser de apreciação e declaração de ilegalidade e de o Ministro da República só poder requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade com fundamento na violação dos direitos das regiões autónomas (vide o artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição).
Sucede, porém, que tal questão perde interesse perante o entendimento do Tribunal, que se mantém, de que não ocorre tal relação de consunção ou prejudicialidade, em casos como o presente, em que o pedido é restrito à declaração de ilegalidade e se invoca, como parâmetro autónomo, princípio fundamental de lei geral da República.
Recorde-se o que se disse no Acórdão n.º 161/03 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 6 de Maio de 2003):
«Com efeito, pode entender-se que a subordinação a princípios fundamentais das leis da República apenas tem pertinência em leis sobre matérias de competência concorrente, sendo a “competência exclusiva” dos órgãos de soberania totalmente inibidora de conteúdos normativos emanados de decretos legislativos regionais
(cfr., nesse sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo V,
2000, p. 406, e CARLOS BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas – As leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos, 1998, p. 296). Poder-se-ia, então, entender que o vício consistente na contradição de um decreto legislativo regional com uma lei de competência própria de um órgão de soberania configura apenas uma inconstitucionalidade, sendo incorrecta a classificação como ilegalidade. E se assim fosse não poderia este Tribunal conhecer do pedido, já que não lhe é constitucionalmente autorizado convolar um pedido de declaração de ilegalidade num pedido de declaração de inconstitucionalidade, sendo que, de resto, o requerente careceria de legitimidade para formular tal pedido [já que o Ministro da República só pode requerer a declaração de inconstitucionalidade “quando o pedido se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas”, nos termos do artigo 281º, nº 2, alínea g), da Constituição]. Porém, deve concluir-se que, em qualquer caso, o facto de o Decreto-Lei nº
115-A/98 traduzir o exercício de uma competência própria do Governo não lhe retira a natureza, que simultaneamente possui, de lei geral da República: a sua razão de ser envolve, necessariamente, a respectiva aplicação a todo o território nacional e ele assim o decreta. A apreciação do decreto legislativo regional que o contradiz sob o prisma da ilegalidade é, deste modo, possível sobretudo tendo em conta que o vício da inconstitucionalidade não poderá ser conhecido, não se aplicando, por isso, em concreto, a lógica de consunção do vício de ilegalidade pelo vício mais grave de inconstitucionalidade. É essa lógica que resulta dos Acórdãos nº 170/90, de 27 de Junho, e 624/97, de 28 de Novembro, nos termos dos quais a questão de ilegalidade subsiste se não se verificar o vício de inconstitucionalidade quando forem reportados à mesma norma ambos os vícios.»
No mesmo sentido, escreveu Pedro Machete (ob. cit., pág. 134):
“(...) a legislação regional umas vezes se subordinará exclusiva e imediatamente
à CRP; mas, na maioria das situações, ela está vinculada simultaneamente à CRP e
à legislação da República. A violação desses parâmetros determina, no primeiro caso, “inconstitucionalidade” e, no segundo caso, inconstitucionalidade e ilegalidade ao mesmo tempo.”
Daqui resulta que poderemos estar perante um vício de ilegalidade, no caso de haver contradição entre o Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M e os princípios fundamentais da Lei n.º 30/2002, e que esse vício é autónomo relativamente a eventual vício da inconstitucionalidade, não se verificando a consunção daquele por este. A existir, tratar-se-á de uma ilegalidade superveniente, em virtude de a lei geral da República ser posterior ao decreto legislativo regional.
6. Em face do exposto, importa agora ponderar se as normas impugnadas do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M atentam contra os princípios fundamentais da Lei nº 30/2002. Ou seja, torna-se necessário proceder
à sua análise de forma a verificar em que medida revelam opções distintas ou, eventualmente, contrárias aos princípios fundamentais da lei geral da República actualmente em vigor neste domínio.
Dispõe o artigo 112º, nº 4, da Constituição que «os decretos legislativos regionais versam sobre matérias de interesse específico para as respectivas regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo, não podendo dispor contra os princípios fundamentais das leis gerais da República (...)».
Acerca do conceito de princípio fundamental de lei geral da República, J. J. Gomes Canotilho refere que este «não é susceptível de uma captação material apriorística», adiantando que «são (...) os princípios positivamente incorporados, de forma directa ou indirecta, nas leis e decretos-leis, que se devem considerar princípios fundamentais de leis gerais da República» (ob. cit., págs. 803 e 804).
Sobre o tema em análise, disse este Tribunal no Acórdão n.º 631/99
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 45º, pág. 43):
«À tarefa, árdua e complexa, de integrar este conceito indeterminado – o dos
“princípios fundamentais” – não teve ainda oportunidade o Tribunal Constitucional de se dedicar; na doutrina, começa a ensaiar-se a dilucidação do conceito, procurando sintetizá-lo numa fórmula que, qualquer que seja a sua valia, terá sempre um limite: sendo os princípios fundamentais das leis gerais da República “princípios referentes às matérias concretamente disciplinadas por estas leis”, eles são “insusceptíveis de uma captação apriorística” (Gomes Canotilho, in cit. “Legislação...”, nº. 19/20, p. 42; cfr. ainda Carlos Blanco de Morais, “As competências legislativas das regiões autónomas no contexto da revisão constitucional de 1997”, Separata da “Revista da Ordem dos Advogados”, ano 57, Dezembro de 1997, pp. 32 e segs..
(...) Ora, quando as regras consagradas na lei são necessária decorrência de princípios constitucionais que, especificamente, vinculam o regime jurídico da matéria, elas são, seguramente, expressão de princípios fundamentais; e é neste sentido que deve compreender-se o que pretende significar Jorge Miranda, ao escrever que nem sempre é fácil discernir esses princípios “afora os que derivam directamente de princípios constitucionais (...)” (“Manual de Direito Constitucional”, tomo V, p. 404).»
Carlos Blanco de Morais propõe a seguinte definição de princípios fundamentais das leis gerais da República (As Leis Reforçadas – As leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativo, Coimbra, 1998, pág. 299):
“(...) Poderemos neste pressuposto e a título exemplificativo definir os
“princípios fundamentais” das leis gerais da República como critérios gerais de decisão legislativa que, pelo seu relevo necessário para todos os cidadãos, fundamentam o preenchimento homogéneo de fins e o cumprimento uniforme de obrigações de resultado, por parte de uma disciplina legal determinada.”
Cabe, por último dizer que os princípios fundamentais podem revelar-se ao intérprete por diversos modos, seja mediante a técnica legislativa de enunciação ou alusão explícita pelo legislador, seja através de uma tarefa interpretativa que, em razão do finalismo do acto normativo, permita identificar os referidos princípios e proceder à sua densificação (cfr. Carlos Blanco de Morais, As Competências Legislativas das Regiões Autónomas ..., Separata da Revista da Ordem dos Advogados, p. 33).
Verifiquemos então se as normas impugnadas do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M atentam contra os princípios fundamentais da Lei nº
30/2002.
7. O artigo 23º, nº 1, do diploma legislativo regional em apreço dispõe que a aplicação das medidas disciplinares de advertência ao aluno, de advertência comunicada ao encarregado de educação e de repreensão registada “não carece de processo”, enquanto que o Decreto-Lei nº 270/98 impunha a realização de um processo prévio de averiguação sumária para as medidas de advertência ao aluno e de advertência comunicada ao encarregado de educação (artigo 23º, nº 3) e de um procedimento disciplinar para a medida de repreensão registada (artigo
24º, nº 2).
Todavia, a Lei nº 30/2002 afasta-se do regime previsto no Decreto-Lei n.º 270/98 relativamente a esta matéria, desde logo porque a tipificação das medidas disciplinares constante da nova lei distingue dois tipos de medidas: as preventivas e de integração (artigo 26º) e as sancionatórias
(artigo 27º), inserindo-se a advertência no primeiro grupo e a repreensão registada no segundo grupo. Por outro lado, desaparece a medida disciplinar de advertência comunicada ao encarregado de educação, subsistindo apenas a advertência simples (artigo 26º, nº 2, alínea a), e artigo 29º).
De salientar, também, que a competência para aplicar estas medidas disciplinares continua a pertencer ao professor (artigo 38º, nº 2) e ao director de turma ou ao professor titular (artigo 39º, nº 2) mas alarga-se ao presidente do conselho executivo ou director (artigo 40º) e ao conselho de turma disciplinar (artigo 41º, nº 1).
Não se encontra prevista na Lei nº 30/2002 a necessidade de existência de um procedimento formal prévio para a aplicação das medidas disciplinares de advertência e de repreensão registada, com excepção do caso previsto no artigo 39º (comportamento do aluno ocorrido fora das situações de desenvolvimento do plano de trabalho da turma na sala de aula, presenciado ou participado ao director de turma ou ao professor titular), procedendo-se a averiguação sumária prévia, apenas se necessário, e na qual são ouvidos o aluno, o participante e eventuais testemunhas.
Assim, uma vez que na Lei nº 30/2002 a regra, em matéria de aplicação da medida disciplinar de advertência e de repreensão registada, é a ausência de processo prévio, está liminarmente excluída a possibilidade de verificação de um conflito entre o regime constante do nº 1 do artigo 23º do Decreto Legislativo Regional em causa e o daquela lei, sem prejuízo do que imediatamente a seguir se vai dizer e que, por maioria de razão, é aqui também aplicável.
8. Quanto ao nº 2 do artigo 23º do mesmo diploma regional, o requerente colocou em causa a legalidade daquela norma por fazer depender de um processo de averiguação sumária (e não de procedimento disciplinar, conforme previsto no artigo 24º, nº 2, do Decreto-Lei nº 270/98) a aplicação das medidas disciplinares de realização de actividades úteis à comunidade escolar, de inibição de participar em actividades de complemento curricular e de suspensão de frequência da escola, prevendo-se apenas no caso da medida de suspensão de frequência da escola (por força do artigo 20º, nº 3), a necessidade de prévia solicitação de parecer ao conselho de turma disciplinar.
A Lei nº 30/2002 não prevê a medida disciplinar de inibição de participar em actividades de complemento curricular. Prevê as medidas de realização de actividades úteis à comunidade escolar e de suspensão de frequência da escola [artigo 26º, nº 2, alínea c), e artigo 27º, nº 2, alíneas c) e d)], cuja aplicação é obrigatoriamente precedida de procedimento disciplinar (artigo 43º, nº 1), embora, quanto à segunda, apenas quando a medida de suspensão for de duração superior a 5 dias úteis (artigo 40º).
Todavia, a análise do artigo 23º, nº 2, do decreto legislativo regional e do artigo 43º, nº 1, da Lei n.º 30/2002, efectuada no contexto do complexo normativo em que se inserem, não permite concluir que a primeira norma conflitue com o sentido em que a exigência de procedimento disciplinar, contido na segunda, pode ser erigido em princípio fundamental.
É certo que a exigência de procedimento disciplinar, contida no artigo 43º, nº 1, da Lei nº 30/2002, consubstancia um princípio fundamental deste diploma, na medida em que, destinando-se a «apurar a responsabilidade individual do aluno», se traduz numa garantia de defesa, tida por essencial.
Mas nem toda a tramitação prevista na lei geral da República (e muito menos um determinado nomen juris) se compreende no núcleo substancial dessa garantia, por forma que todos os preceitos de detalhe da legislação estadual se articulem em princípio fundamental com valor paramétrico face ao legislador regional.
O diploma regional comporta duas formas de averiguação do comportamento do aluno que se traduza em infracção disciplinar, elegíveis em função da gravidade das penas: o “processo de averiguação sumária” (artigos 23º e 24º) e o “processo disciplinar” (artigo 25º). Porém, apesar desta dualidade de designações, ambas as espécies pertencem ao género “procedimento disciplinar”, como a própria epígrafe do “Capítulo VI” e o conteúdo regulatório dos mencionados preceitos inequivocamente demonstram.
Ora, o processo de averiguação sumária a que se refere o artigo 24º do diploma regional em apreço, que tem de preceder a aplicação das penas agora em consideração, está estruturado de molde a garantir os fins essenciais de um procedimento disciplinar desta natureza. Nele se asseguram os aspectos garantísticos fundamentais do procedimento sancionatório: a audição do (aluno) arguido e o contraditório esclarecido sobre os factos imputados e as penas susceptíveis de serem aplicadas.
Efectivamente, em ambos os modelos em comparação, o processo é reduzido a escrito (artigo 24º, nº 1, do diploma regional e artigo 46º, nº 1, da Lei nº 30/2002) e é sempre ouvido o aluno e, sendo este menor, o respectivo encarregado de educação (artigo 24º, nº 2, do primeiro e artigo 46º, nº 1, do segundo diploma) e são realizadas as diligências indispensáveis.
O efeito colateral de, nos casos para cuja averiguação, segundo o decreto legislativo regional, é idóneo este procedimento simplificado, a intervenção do conselho de turma disciplinar apenas ser obrigatória na hipótese de aplicação da medida de suspensão da frequência da escola (cfr. nºs. 2 e 3 do artigo 20º) não colide – por este ângulo e sem prejuízo do que se dirá no momento da apreciação do vício de ilegalidade imputado ao artigo 27º – com qualquer princípio fundamental do diploma estadual paramétrico considerado. Tanto assim que a Lei nº 30/2002 permite a aplicação da medida de suspensão da escola até cinco dias, pelo presidente do conselho executivo ou pelo director da escola, mediante, se necessário, averiguação sumária (artigos 39º, nº 2, 40º, nº 1, e 43º, nº 2). Na tramitação do procedimento disciplinar estabelecido por esta Lei, o referido conselho de turma só tem intervenção para aplicação das medidas para que é competente, por excederem a competência do dirigente máximo da escola (cfr. nº 4 do artigo 46º).
Por último, também não pode ver-se colisão com um princípio fundamental no facto de a averiguação sumária terminar com um simples relatório sucinto, que inclua uma proposta de pena a aplicar (artigo 24º, nº 3), não estando consagrada, em termos explícitos, a obrigação de fundamentação desse relatório, ao invés do que sucede com o relatório do instrutor no procedimento disciplinar (artigo 25º, nº 4). Trata-se de um mero acto preparatório, cuja utilidade se esgota na relação com a decisão final, que se destina a facilitar. Susceptível de ser erigido em princípio fundamental será só o dever de fundamentação da própria decisão de aplicação da medida disciplinar (nº 3 do artigo 268º da Constituição), mas este, embora não se encontre previsto no decreto legislativo regional para os casos em que há averiguação sumária, decorre do regime geral constante do artigo 124º, nº 1, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo.
9. No que respeita ao artigo 27º do Decreto Legislativo Regional nº
15/2001/M, foi esta norma posta em causa na medida em que esvazia as competências do conselho de turma disciplinar, por não estar prevista a emissão de parecer sobre o relatório do instrutor nem a formulação de proposta das tarefas a realizar pelo aluno no âmbito da aplicação da medida disciplinar de actividades de integração na comunidade educativa.
De referir que este preceito, que tem por epígrafe “Conselho de turma disciplinar”, não atribui competências directas a este órgão, limitando-se a regular a sua convocação e composição.
Contudo, e no que diz respeito à primeira das questões mencionadas, decorre implicitamente do nº 1 do referido artigo que compete ao conselho de turma disciplinar analisar o relatório do instrutor. Da mesma forma, tal competência resulta do n.º 4 do artigo 46.º da Lei n.º 30/2002, não havendo, quanto a esta matéria, divergência de regime.
Relativamente à segunda questão, a medida disciplinar de realização de actividades úteis à comunidade escolar, prevista no artigo 20º, nº 2, do Decreto Legislativo Regional (análoga à medida disciplinar de execução de actividades de integração na escola, prevista na Lei n.º 30/2002), é efectivamente aplicada pelo director ou presidente do órgão de administração e gestão, podendo este solicitar previamente parecer ao conselho de turma, mas tão-só sempre que o entenda conveniente.
Ora, no regime constante da Lei nº 30/2002, o conselho de turma disciplinar é o órgão competente para aplicar a medida disciplinar de execução de actividades de integração na escola (para além das medidas de advertência, repreensão, repreensão registada, transferência, suspensão e expulsão da escola
– artigo 41º, nº 1), de onde resulta um significativo reforço das sua competências. Detém competências decisórias – aliás, exclusivas, relativamente à aplicação da medida em causa (cfr. artigos 32º, nº 2, e 41º, nº 1) –, e não meramente consultivas.
Nesta conformidade, e sendo o conselho de turma disciplinar um
órgão colegial, em que intervêm vários elementos da comunidade educativa, nomeadamente, um representante dos pais e encarregados de educação dos alunos da turma e, eventualmente, alunos (artigo 41º, nºs. 5 e 6, da Lei nº 30/2002), o reforço das suas competências é uma forma de concretização do princípio constitucional da participação dos professores e alunos na gestão democrática das escolas (artigo 77º, nº 1, da Constituição), pelo que não pode deixar de ser encarado como um princípio fundamental da lei geral da República.
Assim sendo, o artigo 27º do Decreto Legislativo Regional nº
15/2001/M, na medida em que não prevê que o conselho de turma disciplinar seja a entidade competente para aplicar a medida disciplinar de realização de actividades úteis à comunidade escolar, contraria o princípio fundamental relativo à participação de professores e alunos na gestão democrática das escolas, no referente ao procedimento disciplinar, por via do reforço das competências do conselho de turma disciplinar, contido no nº 1 do artigo 43º da Lei nº 30/2002, padecendo, portanto, de vício de ilegalidade.
10. Finalmente, o artigo 31º do Decreto Legislativo Regional, relativo ao sistema dos recursos hierárquicos, não contempla a existência de uma comissão arbitral.
Porém, tal comissão também não se encontra prevista na Lei nº
30/2002, dispondo o seu artigo 50º, nº 3 que “O recurso hierárquico constitui o
único meio admissível de impugnação graciosa”.
Nestes termos, não se verifica uma divergência entre a norma impugnada e os princípios fundamentais da Lei nº 30/2002 e, consequentemente, a ilegalidade da mesma.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade da norma constante do artigo 27º do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M, de 27 de Junho, na medida em que não prevê que o conselho de turma disciplinar seja a entidade competente para aplicar a medida disciplinar de realização de actividades úteis
à comunidade escolar, por contrariar o princípio fundamental de participação na gestão democrática das escolas, contido no Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior, aprovado pela Lei nº 30/2002, de 20 de Dezembro.
b) Não declarar a ilegalidade das normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 23º e do artigo 31º do mesmo Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2004
Vítor Gomes Artur Maurício (vencido quanto à decisão III-b) no que concerne à norma do nº 2 do artº 23º do DLR nº 15/2001/M que considero ilegal conforme da declaração anexa) Rui Manuel Moura Ramos (vencido, quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto junta) Gil Galvão (vencido quanto à não declaração de ilegalidade da norma constante do nº 2 do artigo 23º,. no essencial, por entender que tal norma conflitua com o princípio fundamental da exigência de procedimento disciplinar que a averiguação sumária não é susceptível de substituir sem perda de garantias para o aluno.) Maria Fernanda Palma (vencida quanto à parte da alínea b) de decisão, no que se refere à norma do artigo 23º, nº 2, do DLR nº 15/2001/M, que considero ilegal conforme declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à decisão de não declaração de ilegalidade da norma do nº 2 do artigo 23º do diploma em causa, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmº Cons. Artur Maurício) Carlos Pamplona de Oliveira – vencido nos termos da declaração anexa. Bravo Serra (vencido quanto ao entendimento, sufragado no acórdão, segundo o qual a revogação do diploma com base no qual foi pedida a ilegalidade das normas em apreço, não prejudica o conhecimento dom pedido. Vencido, igualmente, quanto
à decisão constante da alínea a) pelas razões aduzidas na declaração de voto da Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza e para a qual, com vénia, remeto) Paulo Mota Pinto (vencido quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto que junto) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, quanto à ali. a) da decisão, nos termos da declaração que junto) Maria Helena Brito (vencida quanto à decisão de não declaração de ilegalidade da norma do nº 2 do artigo 23º do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmº Conselheiro Artur Maurício) Benjamim Rodrigues (vencido quanto à alínea a) da decisão pelas razões aduzidas no voto de vencida da Exmª Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza para a qual, com a devida vénia, remeto). Luís Nunes de Almeida (vencido em parte, nos mesmos termos e com idênticos fundamentos aos do Exmº Cons. Gil Galvão).
Declaração de voto
Entendi que o Decreto-Legislativo Regional n.º 15/2001/M distingue claramente no Capítulo VI, relativo ao “procedimento disciplinar”, o “processo de averiguação sumária” e o “processo disciplinar”, propriamente dito, e há-de, desde logo, pressupor-se que essa distinção não resulta de meras preocupações
“nominalistas”...
Logo o artigo 23º, prevendo no n.º 1 a ausência de processo, no n.º
2 o processo de averiguação sumária e no n.º 3 o processo disciplinar, correspondentes a medidas disciplinares de gravidade crescente (desde a advertência e a repreensão registada à expulsão), deixa perceber uma diferença no grau de exigência formal das diligências que antecedem a punição. E é sabido que, nos processos sancionatórios, as “formalidades” têm sempre uma função garantística, visando, no essencial, o rigor na averiguação da verdade, a melhor ponderação da decisão e uma defesa eficaz dos visados.
No caso, se se admite que, mesmo nos processos de averiguação sumária a decisão final tem de ser fundamentada, já as exigências relativas ao relatório final – “sucinto, onde inclua uma proposta de pena a aplicar” (artigo
24º n.º3), no processo de averiguação e “fundamentado, de que conste a qualificação do comportamento e a ponderação das circunstâncias relevantes”
(art. 25º n.º4), no processo disciplinar – são de menor rigor no processo de averiguação; e a necessidade de fundamentação da decisão final, comum a ambos os tipos de processos, não pode fazer desvalorizar aquela diferença, no ponto em que o relatório final constitui uma peça relevante do processo para a formação da referida decisão final.
Por outro lado, entendendo que os termos da audiência oral dos interessados, prevista no artigo 25º n.º3, são apenas aplicáveis ao processo disciplinar – e eles são os que, por expressa remissão do preceito, constam do artigo 102º do Código de Procedimento Administrativo – conclui-se, inevitavelmente, que, nos casos de averiguação sumária, tal audiência não obedece aos requisitos – também aqui estabelecidos com finalidades garantísticas
– impostos por aquele preceito do CPA.
Em suma, pois, considerando que a exigência de processo disciplinar, com as inerentes garantias de defesa do aluno, configura um princípio fundamental da Lei n.º 30/2002, entendo que a norma do artigo 23º n.º 2 do DLR
15/2001/M conflitua com esse princípio, sendo, assim, ilegal. Artur Maurício
Declaração de voto
1. Votei vencido quanto à declaração de ilegalidade, por violação do princípio fundamental de participação na gestão democrática das escolas contido no Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior, aprovado pela Lei nº 30/2002, de 20 de Dezembro, da norma do artigo 27º do Decreto Legislativo Regional nº
15/2001/M, na medida em que ela não prevê que o conselho de turma disciplinar seja a entidade competente para aplicar a medida disciplinar de realização de actividades úteis à comunidade escolar.
Concordando, no essencial, com a linha traçada pelo Tribunal quanto à caracterização do conceito de «princípios fundamentais das leis gerais da República» (cf. o Acórdão nº 161/03, D.R., I Série-A, de 6-5-2003), creio que essa linha não pode, por um lado, deixar de atender à distinção entre normas e princípios, e, por outro lado, à ideia, constitucionalmente firmada, da necessidade de o princípio pretensamente violado possuir uma natureza
«fundamental» no contexto do regime jurídico em que se integra.
Nestes termos, entendo que o critério ora adoptado pelo Tribunal não coincide com o que a Constituição determina – nem, de resto, com a jurisprudência que atrás se indicou. Com efeito, o presente acórdão parece aceitar que, se uma dada norma concretiza um princípio ou uma regra constitucional, contém ipso facto um «princípio fundamental de uma lei geral da República». Ao fazê-lo, o Tribunal introduziu, em boa verdade, um novo critério de densificação do conceito de «princípios fundamentais das leis gerais da República».
Ora, não se nos afigura ser esse o sentido da norma do artigo 227º, nº 1, alínea a), da Constituição da República. A concretização de uma regra ou de um princípio constitucional não confere, por si só, à norma concretizadora uma natureza de «princípio fundamental». A «fundamentalidade» da Constituição não se confunde nem se transmite automaticamente à «fundamentalidade» da legislação ordinária que a concretiza. E, verdadeiramente, não é esse o critério que a Constituição acolhe. A Constituição fala em «princípios fundamentais das leis gerais da República». A «fundamentalidade» deve, pois, buscar-se, como atrás se disse, no contexto do sistema da lei geral da República e não por decorrência directa, e como que necessária, da concretização, historicamente situada e por isso mutável, de uma norma da Constituição. Levado às últimas consequências, isso implicaria que os diplomas que se apresentem como concretizadores de normas constitucionais não exequíveis por si mesmas pudessem, no limite, ser considerados, no seu todo, como expressões de princípios fundamentais de leis gerais da República.
Por outro lado, a natureza «textualmente aberta» de muitas normas e princípios constitucionais permite uma multiplicidade de concretizações pelo legislador ordinário. Umas, poderão assumir, no quadro do regime jurídico instituído, mas não pelo simples facto de constituírem uma tal concretização, uma natureza de
«princípio fundamental». Outras, servindo embora para concretizar princípios constitucionais, podem não se revestir dessa natureza no contexto interno do diploma em que se inserem. Ao intérprete caberá pois uma indagação rigorosa em torno daquilo que, no âmbito da lei geral da República pretensamente violada, se configura como um princípio estruturante e essencial, nuclearmente modelador do regime jurídico criado por aquela lei. Sem que tal natureza possa sem mais ser reconhecida ao grau de concretização de um princípio constitucional decorrente de determinado conjunto de normas previstas numa dada lei geral.
2. No caso em apreço, entendo que na consagração do conselho de turma disciplinar pode, ainda que de forma algo ténue e problemática, encontrar-se uma refracção do princípio constitucional da participação dos professores e alunos na gestão democrática das escolas. Mas tenho por seguro que este princípio não exige que em todos os domínios do ensino haja uma participação de professores e alunos. No domínio específico da aplicação de sanções disciplinares, não se me afigura que o princípio constitucional do artigo 77º, nº 1, reclame a intervenção necessária de professores e alunos. Tratou-se, pois, de uma opção do legislador ordinário, feita naturalmente no quadro da Constituição, mas não como exigência necessária desta. E, não sendo uma exigência necessária da Constituição, fica naturalmente enfraquecido o argumento de que a presença de pais e alunos no órgão de aplicação das sanções, por corresponder a uma emanação de um princípio constitucional, é uma emanação de um princípio fundamental da lei geral da República em análise. É que, como está bem de ver, em face de um texto constitucional com as características do nosso, não seria difícil visualizar, em praticamente todas as intervenções do legislador ordinário,
«concretizações» de princípios enunciados na Lei Fundamental (v.g., nas diversas alíneas do seu artigo 9º). Isto reforça a ideia segundo a qual o critério a que agora o Tribunal recorreu não é adequado - não é constitucionalmente adequado - para qualificar uma norma como expressão de um princípio fundamental de uma lei geral da República.
Além do mais – e o ponto parece-me decisivo –, o Decreto Legislativo Regional nº
15/2001/M, de 27 de Junho, não deixa de prever a existência de um conselho de turma disciplinar. Órgão colegial, na sua composição, encontram-se professores, representantes dos alunos, dos pais ou encarregados de educação e das associações de pais ou encarregados de educação. Ou seja, do ponto de vista da gestão democrática da escola – o argumento que o Tribunal considerou relevante – não deixa de se prever a existência de um órgão plural, integrado pelos diversos intervenientes no processo educativo. Por outras palavras, o princípio constitucional da gestão democrática das escolas também aqui é concretizado pelo legislador regional. A composição do conselho de turma disciplinar parece-me satisfazer integralmente o desiderato de uma gestão democrática das escolas. E nem se afirme que este argumento é de natureza meramente formal, porquanto esse conselho vê, como afirma o acórdão, «esvaziadas as suas competências» pelo Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M; ou seja, que de nada adianta prever um órgão colegial se este, de facto, não dispuser de quaisquer poderes. É que, desde logo, não é líquido o «esvaziamento de competências» do conselho de turma disciplinar – o nº 1 do artigo 27º do diploma sub judicio determina que este
órgão deverá reunir com carácter de urgência após a recepção do relatório do instrutor. Não se diz, é certo, a finalidade de tal reunião, mas não é seguro que a mesma não sirva para aplicar a medida disciplinar de realização de actividades úteis à comunidade escolar. E, mesmo que assim não seja, não se vê em que é que o elenco de competências concretas deste órgão, num dado momento histórico, possa ser considerado, sem mais, expressão de um princípio fundamental da lei geral da República que opera a concretização do princípio constitucional da gestão democrática das escolas.
Pelo que não posso deixar de concluir que, na minha perspectiva, o Tribunal foi longe de mais na leitura do princípio da gestão democrática das escolas e da sua concretização pela Lei nº 30/2002. O que agora se exige do legislador regional não é a previsão de um órgão onde participem pais, professores e alunos – esse
órgão está previsto no Decreto Legislador Regional nº 15/2001/M. O que se exige
é que, para a aplicação de uma sanção específica – a medida disciplinar de realização de actividades úteis à comunidade escolar –, aquele órgão (o conselho de turma disciplinar) intervenha, nos precisos e exactos termos definidos pelo legislador nacional. Julgo, em síntese, que tal significa uma compressão manifestamente excessiva e desproporcionada do espaço de intervenção legislativa dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas. Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Votei vencida relativamente à alínea b) da Decisão do presente Acórdão, referente à não declaração da ilegalidade das normas constantes dos artigos 23º, nºs 1 e 2 do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M. Considero que tais normas atentam contra princípios fundamentais da Lei nº 30/2002, desde logo porque entendo que são princípios gerais de uma lei geral da República, que trata do procedimento disciplinar nas escolas, os conteúdos das normas que traçam a estrutura geral daquele “processo”, regulando a actuação das escolas na realização dos concretos procedimentos. Pela natureza da matéria, contrariam as opções legislativas com vocação nacional quaisquer alterações, mesmo que constitucionalmente aceitáveis, que não se conformem com o modelo estatuído para todo o território nacional. Razões de igualdade impedirão especificidades e variações neste tipo de matéria, dada a sua natureza sancionatória. Esta é, por isso, desde logo, uma razão de princípio. Por outro lado, mesmo aceitando entrar na comparação detalhada da solução legislativa regional com a lei geral, é evidente que a primeira é
“desformalizadora” no que se refere ao chamado processo de averiguação sumária, enfraquecendo as exigências da Lei nº 30/2002 quanto à fundamentação do relatório final prevista no artigo 24º, nº 3 e quanto à audiência oral prevista no artigo 25º, nº 3, do Decreto Legislativo Regional nº 15/2001/M. Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Fiquei vencido quanto à alínea a) da decisão por entender que a norma constante do artigo 27º do Decreto Legislativo Regional n.º 15/2001/M de 27 de Junho não viola princípio fundamental de lei geral de República. A procura de princípios fundamentais em leis ordinárias, para este efeito, é tarefa que não dispensa o cotejo das competências atribuídas pela Constituição às Regiões com referência à matéria que em concreto é alvo da legislação regional. A norma em causa insere-se em matéria não subtraída à competência legislativa regional e, assim, para este efeito, os aludidos princípios fundamentais não são [não podem ser] os que traduzem opções do legislador ordinário, mas os que correspondem a precipitações de princípios constitucionais. De outro modo, a competência legislativa das Regiões estaria condicionada pelas escolhas que, em cada momento, o legislador ordinário resolvesse adoptar, o que, a meu ver, é inadmissível, por contrário ao reconhecimento constitucional da competência legislativa autónoma das Regiões. É manifesto que a determinação jurídica que é contrariada pela norma em causa é uma opção do legislador ordinário que não representa qualquer imposição constitucional e, por essa razão, a Assembleia Legislativa Regional da Madeira goza de competência para, com autonomia, disciplinar a matéria. Acresce que a solução a que chegou o acórdão é ainda mais surpreendente se se tiver em conta que o parâmetro legal invalidante é posterior ao preceito regional e que não pretendeu proceder à alteração da norma impugnada. Carlos Pamplona de Oliveira
Declaração de voto Votei vencido quanto à alínea a) da decisão por, a meu ver, não poder afirmar-se que a norma do artigo 27º do Decreto Legislativo Regional n.º 15/2001/M, de 27 de Junho, pelo simples facto de não estabelecer a competência do conselho de turma disciplinar para aplicar tão-só uma medida disciplinar (que, aliás, também prevê) como a realização de actividades úteis à comunidade escolar, viola um princípio fundamental de uma lei geral da República – e, mais concretamente, do Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior, aprovado pela Lei n.º 30/2002, de 20 de Dezembro. O acórdão entende que essa diferença quanto à norma de competência consubstancia uma violação de um princípio fundamental relativo à participação na gestão democrática das escolas, que a Constituição consagra no artigo 77º, n.º 1
(remetendo os seus termos para a lei). E, com efeito, não pode pôr-se em causa que existe uma diferença de regime quanto à competência para a aplicação de sanções disciplinares entre o Decreto Legislativo Regional n.º 15/2001/M, de 27 de Junho e o referido Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior. Mas a meu ver, admitindo que a competência do conselho disciplinar constitui, na verdade, uma forma de concretização do princípio constitucional da participação dos professores e alunos na gestão democrática das escolas, não pode retirar-se daqui qualquer obrigação de uma identidade de regime jurídico quanto às sanções disciplinares a prever e quanto à competência para a sua aplicação – designadamente, daquelas que não se afiguram sequer impostas pela lei geral da República. Na verdade, o juízo de respeito pelos princípios fundamentais destas leis não se basta com uma comparação de regimes (ou, sequer, do seu diverso sentido, à luz de princípios constitucionais), mas tem igualmente de ter em conta a amplitude e o alcance da diferença em causa. No caso, tratava-se de averiguar a amplitude e o alcance da divergência quanto à competência. A meu ver são, desde logo, legítimas dúvidas sobre a necessidade de previsão, pelo regime regional, de uma medida disciplinar como a “realização de actividades úteis à comunidade escolar”
(correspondente grosso modo, na lei geral da República, à medida de “execução de actividade de integração na escola”), que é a única que está em causa. E, sobretudo, o próprio Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior prevê que uma medida como a suspensão da escola até cinco dias seja aplicada pelo presidente do conselho directivo ou pelo director da escola (artigo 40º), e tal medida, em que também não intervém o conselho de turma disciplinar, não se afigura menos gravosa do que a de “realização de actividades úteis à comunidade escolar”. Também esta comparação põe, pois, em causa o desrespeito por um princípio fundamental do Estatuto citado pela simples circunstância de, apenas para a aplicação desta outra medida, o conselho disciplinar não ser, segundo o regime regional, a entidade competente (e antes o director ou o presidente do órgão de administração e gestão da escola). Com estes fundamentos, não teria declarado a ilegalidade do artigo 27º do Decreto Legislativo Regional n.º 15/2001/M, de 27 de Junho, na medida em que prevê que não seja o conselho de turma disciplinar seja a entidade competente para aplicar a medida disciplinar de realização de actividades úteis à comunidade escolar. Paulo Mota Pinto
Declaração de voto
Votei vencida quanto à alínea a) da decisão porque penso que também se verifica quanto à norma nela referida a razão que levou ao julgamento de não inconstitucionalidade constante da al. b) – não contradição com nenhum princípio fundamental da Lei n.º 30/2002, no caso, o “princípio fundamental relativo à participação de professores e alunos na gestão democrática das escolas”, que, em si mesmo, se não contesta.
É que, para a Lei n.º 30/2002, nem sempre é da competência do Conselho Disciplinar a aplicação da medida de suspensão da escola; quando a suspensão não excede 5 dias, tal competência cabe ao presidente do Conselho executivo ou ao director – a um órgão singular, portanto (artigo 40º). Ora suponho que, independentemente da duração da sanção imposta, a suspensão é sempre mais grave do que a medida que, no âmbito da Lei n.º 30/2002, é, como se observa no acórdão, “análoga” à medida de realização de actividades úteis à comunidade escolar – a medida disciplinar de execução de actividades de integração na escola (al. c) do n.º 2 do artigo 26º e artigo 31º da Lei
30/2002). Não me parece, pois, que, de uma lei que não considera necessário que a sanção de suspensão (mais grave) seja decretada por um órgão colegial, se possa retirar um princípio geral que se tenha como ofendido por um diploma regional que não exige tal intervenção para uma sanção menos grave (a meu ver, naturalmente). Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040069.html ]