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Proc. n.º 453/02
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. O A., identificado nos autos, recorre para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art.º 70º, n.º1, alínea b) da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, do acórdão do Tribunal de Relação de Coimbra, de 9 de Maio de 2002, o qual negou provimento ao recurso jurisdicional interposto da sentença do Tribunal de Trabalho de Águeda, de 6 de Novembro de 2001, sentença esta que, por seu lado, decidiu negar provimento ao recurso judicial interposto, pelo mesmo recorrente, da decisão administrativa proferida pelo Delegado, em Aveiro, do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT), que lhe aplicou a coima de Esc. 1 500 000$00, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições combinadas do art.º 10º, n.º 1, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 2º do Decreto-Lei n.º
398/91, de 16/10, e 11º, este na redacção dada pelo art.º 14º da Lei n.º 118/99, de 11/08, ambos do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2/12, conjugados com a alínea d) do n.º 4 do art.º 7º e alínea d) do n.º 1 do art.º 9º da Lei n.º 116/99, de
4/08.
2. Nas alegações para o Tribunal da Relação, o recorrente refutou a decisão da 1ª instância com base nas razões sintetizadas nas seguintes conclusões:
«a) O D.L. nº 491/85 não tem já qualquer aplicação ao caso dos autos por estar integralmente revogado pela Lei nº 116/99, e ainda que não estivesse a sua aplicação era impedida por este ser integralmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 168° n.º 1 al. d) da CRP seu contemporâneo ou 165º, n.º 1,
al. d), da CRP na redacção actual.
b) A decisão proferida pelo Senhor Delegado do IDICT de Aveiro não está fundamentada e por isso é nula nos termos do artigo 379° do CPP, ou caso assim não se entenda, nos termos do artigo 283°, n.º 3, do mesmo Código.
c) O artigo 125° do CPA não é aplicável às contra-ordenações, quer pela sua natureza puramente administrativa, quer por o diploma em que foi vertido ter sido concebido ao abrigo de autorização legislativa que não abrange matéria contra-ordenacional – al. u) do artigo 165° n.º 1 da CRP .
d) O recurso ao regime das irregularidades previsto no CRP como forma de resolução jurídica da falta de fundamentação não apresenta suporte legal e induz no caminho da incerteza e insegurança jurídica.
e) O Senhor Delegado do IDICT de Aveiro não tinha competência para decidir e aplicar a coima em questão uma vez que a delegação de poderes ao abrigo da qual o fez – despacho 8616/2001 – se suporta em norma inconstitucional – artigo 4° n.º 2 al. c) já que incide sobre matéria da reserva relativa da Assembleia da República – artigo 165 n.º 1 al. d) – e não foi feito ao abrigo de autorização legislativa».
3. Conhecendo de tais razões, o acórdão recorrido, na parte útil à compreensão do recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, discreteou do seguinte modo:
«No que concerne à revogação do D.L. nº 491/85, aceita-se a bondade dessa tese (art.º 2° n.º1 da L. nº 116/99 de 4/8). Todavia tal não tem - e salvo melhor opinião - as consequências que a arguida pretende. Na verdade situando-se esta temática, no domínio do regime contra-ordenacional, o que sucede é que no que respeita ao foro laboral, não existirá norma que determine quais os elementos que devem constar do despacho administrativo sancionatório: Por isso, dever-se-á lançar mão do regime genérico contido no D.L. nº 433/832 citado, conforme expressamente o determina o art.º 2° da aludida L. nº 116/99. E aí de forma explícita (seu art.º 58°, n.º 1) se elenca quais eles são. E basta ler a decisão em causa que integra como o permite o art.º 125° do CPA para a proposta de fls. 41 a 45 (inclusive), para se concluir que ela obedece a todos os requisitos exigidos por tal normativo. E nem se argumente contra este raciocínio- sempre salvo o devido respeito por opinião contrária- com a inaplicabilidade desse art.º 125° ao processo de contra-ordenação laboral. Na verdade este assume natureza de procedimento administrativo, naturalmente até
à sua fase judicial, embora com especificidades (p. ex. a impossibilidade de recurso hierárquico da sanção cominada, como resulta do disposto no art.º 59°, n.º 1, do D.L. nº 433/82). E por isso, será de admitir em todos os casos não expressamente previstos e em que a lei a tal se não oponha, o recurso às normas e princípios do CPA que genericamente regem esse tipo de procedimento(CJ, XX, IV, 139).
É certo que o aludido art.º 58° impõe que o despacho de aplicação de coimas contenha os requisitos mencionados. Mas o problema que previamente se coloca, é o de se saber se tal despacho- exactamente por ter natureza administrativa- não pode ser considerado válido se operar remissão para uma proposta juridicamente válida de sanção que os contenha, nomeadamente no que concerne à 'fundamentação'. Quer os diplomas relativos às contra-ordenações laborais, quer o que contém o regime geral deste tipo de ilícitos, são omissos, neste ponto e também, diga-se desde já, no que concerne às consequências da falta de fundamentação desses despachos sancionatórios. Por isso, entende-se que a resposta à questão posta deve ser encontrada, por ser de acto administrativo que se trata, nos princípios e/ ou normas, que regem os procedimentos dessa natureza. Ora neste domínio rege o art.º 125, n.º 1, do C. P. Administrativo, que exige que a fundamentação dos actos seja expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, mas permite de forma explícita que essa fundamentação consista em mera declaração de concordância com pareceres, informações ou propostas anteriores, que constituirão neste caso parte integrante do respectivo acto. O que se impõe, nestas hipóteses é que tal remissão seja clara, inequívoca, de forma a que o destinatário do acto administrativo fique ciente dos motivos de facto e de direito que o basearam de molde a que fique na posse dos elementos que permitam a sua impugnação (cfr. Esteves Oliveira e outros, in CPA Comentado
2ª edição, págs. 600 e segs.) Não existindo no ordenamento contra-ordenacional, nada que obste à deste aplicação princípio geral, não se vê motivo para excluir a aplicação deste dispositivo ao despacho que em processo de contra-ordenação laboral aplique uma coima. E nem se argumente contra este raciocínio com o facto de por força do disposto no art.º 41° do D.L nº 433/82, ser o CPP subsidiariamente aplicável, nas contra-ordenações e portanto também quanto ao regime de nulidades.
É evidente a certeza desta asserção. E daí que concluindo-se pela nulidade dum despacho desse tipo por falta de fundamentação, dever-se-á fazer apelo ao regime para tal estabelecido naquela codificação. Mas o saber-se se um despacho desse teor está ou não fundamentado
(o que envolve necessariamente um juízo prévio sobre o acto), apenas se pode alcançar, como se referiu, com o recurso às regras e/ou princípios do procedimento administrativo. E concluindo-se pela sua validade, então claro que não tem cabimento fazer apelo
à regulamentação do CPP, para as nulidades. Não repugna, a nosso ver aceitar este entendimento, sabendo-se desde logo que é diferente a natureza do Direito de Mera Ordenação Social da do Direito Criminal, Basta notar a este propósito e como demonstrativo de tal diferença substancial que a culpa (na contra-ordenação) não se baseia numa censura ética dirigida
àquele, como sucede no direito criminal, mas sim 'na impugnação do facto à responsabilidade social do seu autor', no dizer de F. Dias. E, ao considerar-se válido, o acto que operou tal remissão não se ofende qualquer garantia do administrado, nomeadamente a de defesa, pois que o mesmo tem assim perfeito conhecimento daquilo em que se baseou a Administração para o punir, já que a proposta faz parte integrante por força de lei, do acto condenatório - e vê-se que sucedeu isso mesmo no caso concreto, pelo próprio teor das alegações das impugnações apresentadas pela arguida, quer agora, quer na 1ª instância. Pelo que e em suma, a decisão em causa está devidamente fundamentada e não viola qualquer preceito legal, nomeadamente o dito art.º 58°. E assim não podem sufragar-se as conclusões a) a d)- inclusive- das doutas alegações de recurso. No que concerne à última questão ela prende-se em síntese com a constitucionalidade dos art.ºs 4°, n.º 2, c), e 6 a 13° do D.L. nº 102/00 e consequentemente do citado despacho de delegação de poderes 8616/01. Igualmente sobre este ponto este Tribunal já se pronunciou, pelo que aqui e agora nos limitaremos a repetir o que então se escreveu: Desde logo, deve dizer-se que compulsando o processo, dele não resulta em parte alguma, que a aplicação da coima, ou mesmo o processamento contra-ordenacional se tenha fundamentado no referido D.L. nº 102/00. Depois, este diploma veio estabelecer, um novo regime relativo ao 'estatuto' da I. Geral de Trabalho. E cremos ser inquestionável, que essa matéria não cabe no domínio que a nossa Lei Fundamental reserva à Assembleia da República- cfr. art.º 165° da CRP-, contendo-se perfeitamente nas competências legislativas próprias do Governo- art.º 198° n.º 1 a) do mesmo diploma -. Sem dúvida que, como alega a recorrente, é da exclusiva competência deste Órgão de Soberania (e ressalvados os casos de autorização ao Governo) legislar sobre o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo. E na verdade foi o que sucedeu, no que concerne concretamente às contra-ordenações laborais, nomeadamente através das Leis nºs 113/99 e 114/99 ambas de 3/8, 116/99 de 4/8 e 118/99 de 11/8, emanadas todas elas indubitavelmente da Assembleia da República, como se alcança pela sua simples leitura. E logo no art.º 17 n.º 1 da mencionada L. nº 116/99 se determina que o processamento das contra-ordenações laborais compete à Inspecção-Geral do Trabalho, acrescentando o seu n.º 2 que tem competência para aplicação das coimas correspondentes às contra-ordenações laborais o inspector geral do Trabalho, que poderá delegá-la nos delegados ou subdelegados do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho. E no que concerne ao processamento contra-ordenacional regem os art°s 19° a 26 da mesma lei. Ora no caso concreto, temos que a aplicação da coima à arguida foi da competência de um Delegado da I. Geral do Trabalho, no uso da delegação de poderes feita pelo Inspector Geral do Trabalho e ao abrigo do despacho 8616/01 publicado no D.R. II, de 24/4/01. Portanto em perfeita obediência ao que o dito art.º 17° determina e permite. E conforme resulta, a nosso ver claramente dos autos, todo o processamento da contra-ordenação em causa, se fez com rigorosa observância do regime estabelecido na referida L. nº 116/99, nomeadamente seus art°s 20° a 23° e 25°, com remessa no que se impunha, para o contido no D.L. nº 433/82 de 27/10, diploma esse que como se sabe, contem o regime geral do ilícito de contra-ordenação social.
É verdade que o D.L. nº 102/00, contém ele mesmo - como não podia deixar de ser atenta a sua natureza de 'estatuto' a que acima já se aludiu- normas atributivas de competência à I. Geral do Trabalho e a seus funcionários e também sobre a forma, meios e finalidades da acção inspectiva a realizar por aquela entidade. Só que, quer no que concerne ao procedimento contra-ordenacional, quer no que respeita ao acto administrativo de aplicação das coimas -e competência para tal- em nada se opõe ao regime estabelecido na L. nº 116/99, ou o altera, antes se limitando, isso sim e no essencial, a repetir o que desta lei e a propósito consta».
4. Inconformado com esta decisão, o recorrente interpôs recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação de inconstitucionalidade do art.º 125º do Código de Procedimento Administrativo, à luz de cuja aplicação a decisão administrativa foi julgada devidamente fundamentada, por violação do art.º 32º, n.º 10 e da reserva de competência da Assembleia da República consagrada no art.º 165º, n.º 1, alínea d), ambos os preceitos da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigos 4º, n.º 2, alínea c) e 6º a 13º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, que estabelecem, respectivamente, a competência do Inspector Geral do Trabalho para aplicar coimas correspondentes às contra-ordenações laborais e a actividade sancionatória e inspectiva da Inspecção Geral do Trabalho, igualmente por violação das mesmas normas constitucionais de competência da Assembleia da República.
5. Nas alegações de recurso para este Tribunal Constitucional, o recorrente sustentou o seu pedido com base nos fundamentos sintetizados nas seguintes proposições conclusivas:
«1. O artigo 125° do Código de Procedimento Administrativo é inconstitucional se interpretado no sentido de que a sua previsão inclui matéria contra-ordenacional. Naquela interpretação o artigo 125°, concebido ao abrigo de uma autorização legislativa que não abrange o artigo 165° n.º 1 al. d) da CRP , viola-o, porquanto a autorização legislativa ao abrigo da qual foi feito não abrange a al. d) do citado n.º 1 do artigo 165°, mas sim a al. u) do mesmo n.º e artigo da Lei Fundamental.
2. Só uma interpretação restritiva do artigo 125° do CPA, no sentido de que o mesmo se não aplica em processo de contra-ordenação, está conforme com a Constituição. O mesmo é dizer que o artigo 125º do CPA, interpretado no sentido da sua aplicação em processo de contra-ordenação, na medida em que viola o direito de defesa do arguido, garantido pelo artigo 32°, n.º 10 da Constituição, é materialmente inconstituciona1'.
3. O D.L. nº 102/2000 de 2 de Junho é material, orgânica e formalmente inconstitucional na parte em que atribuí ao Senhor Inspector-geral do Trabalho competência para aplicação de coimas, cfr. artigo 4°, n.º 2, al. c), e à Inspecção-Geral do Trabalho o desenvolvimento da acção sancionatória, cfr.
6° a 13° do citado diploma.
4. Tais inconstitucionalidades advêm do facto da matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que por isso teria que ser objecto de Lei da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo se este para tal estivesse autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165°, n.º 1, al. d), e 198°, ambos da C.R.P.».
6. Contra-alegando, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal defendeu o não provimento do recurso, com base nas razões condensadas nas seguintes conclusões:
«1 - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República em sede de contra-ordenações apenas envolve a definição do 'regime geral' vigente, não implicando a tipificação de cada infracção ou a definição de quais as entidades administrativas competentes para intervir no processo contra-ordenacional.
2 - Não implica qualquer violação dos direitos de audiência e defesa do arguido em processo contra-ordenacional a interpretação normativa que considera subsidiariamente aplicável à fundamentação da decisão da autoridade administrativa o preceituado no artigo 125° do Código de Procedimento Administrativo, não havendo razão para considerar, do ponto de vista jurídico-constitucional, obrigatória a aplicação subsidiária da norma constante do artigo 374° do Código de Processo Penal, relativo ao dever de fundamentação das decisões judiciais tomadas no âmbito penal.
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso».
Com os vistos dos senhores juízes cumpre decidir.
B – A fundamentação
7. As questões decidendas
São as de saber se são inconstitucionais as seguintes normas: o art.o 125º do Código de Procedimento Administrativo, que o acórdão recorrido considerou aplicável à fundamentação da decisão administrativa que aplicou a coima impugnada, admitindo ao seu abrigo a fundamentação per remissionem, por violação do disposto nos art.os 32º, n.º 10 e 165º, n.º 1, alínea d), ambos da Constituição da República Portuguesa; os art.os 4º, n.º 2, alínea c) e 6º a 13º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, por violação do mesmo art.º 165º, n.º1, alínea d) da Lei Fundamental.
Relativamente ao objecto do recurso, cabe notar que não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre a correcção jurídica do resultado interpretativo a que o tribunal recorrido chegou quanto à aplicabilidade, no plano do direito infraconstitucional, do art.º 125º do Código de Procedimento Administrativo à decisão administrativa de aplicação da coima, tomada na fase dita administrativa do procedimento contra-ordenacional. Tal solução apresenta-se como um dado indiscutido para o Tribunal, limitando-se este a conhecer se a norma assim determinada viola ou não quaisquer parâmetros constitucionais.
Por outro lado, importa referir que, muito embora pareça não ser de conhecer da questão de inconstitucionalidade das referidas normas do Decreto-Lei n.º 102/2000, por se poder entender que essas normas não teriam sido aplicadas na decisão recorrida, dada a asserção dela constante de que “desde logo, deve dizer-se que compulsando o processo, dele não consta em parte alguma, que a aplicação da coima, ou mesmo o procedimento contra-ordenacional se tenha fundamentado no referido D.L. nº 102/00”, o certo é que não deixou o acórdão recorrido de as aplicar ao concluir que o regime delas constante “quer no que concerne ao procedimento contra-ordenacional, quer no que respeita ao acto administrativo de aplicação das coimas - e competência para tal - em nada se opõe ao regime estabelecido na L. nº 116/99, ou o altera, antes se limitando, isso sim e no essencial, a repetir o que desta lei e a propósito consta”.
8. Do mérito do recurso
As questões de inconstitucionalidade trazidas para julgamento não são novas. Este Tribunal já teve ocasião de se pronunciar sobre elas em casos em tudo paralelos, nos Acórdãos n.os 62/2003, publicado no Diário da República II Série, de 23 de Maio de 2003, e 136/2003, inédito. Igualmente no Acórdão n.º
50/2003, publicado no Diário da República II Série, de 16 de Abril de 2003, o Tribunal conheceu de questão idêntica relativa ao art.º 125º do Código de Procedimento Administrativo.
8.1. Relativamente à questão da inconstitucionalidade do art.º 125º do Código de Procedimento Administrativo, escreveu-se naquele Acórdão n.º
62/2003 o seguinte:
«A tese do recorrente pode sintetizar-se assim: aos requisitos das decisões administrativas punitivas no âmbito de um processo contra-ordenacional só podem ser aplicadas normas editadas ao abrigo do disposto no artigo 165º, n.º, 1 alínea d) da Constituição, ou seja, aquele que inclui na reserva relativa de competência da Assembleia da República legislar em matéria de «regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo», o que não seria o caso.
Sobre esta específica competência da Assembleia da República escreveu-se no Acórdão n.º 56/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., págs. 153 e segs.:
“12 – Salvo autorização ao Governo, igualmente pertence à Assembleia da República – artigo 168º n.º 1 alínea d) – a competência para legislar sobre o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo. A competência exclusiva do Parlamento limita-se, neste caso, ao regime geral. Razões de ordem histórica e razões de sistema confirmam esta interpretação de imediato deduzível da letra do preceito.
Na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional discutiu-se a nova formulação proposta para a alínea c) do n.º 1 do artigo 168º: ‘definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos e regime geral de punição das infracções disciplinares e dos actos ilícitos de mera ordenação social, bem como do processo criminal’. Como entremostra a discussão travada – Diário da Assembleia da República 2ª, sessão legislativa, 2ª série, suplemento ao n.º 44, pp. 904(1) e 904(2) – acabou por se assentar na sua desmultiplicação em duas alíneas as actuais alíneas c) e d), ficando, segundo esta última alínea, no domínio da reserva legislativa da Assembleia da República, o regime geral do ilícito de mera ordenação social e, pela mesma lógica, o regime geral do respectivo processo ou as suas grandes normas adjectivas.
Esta interpretação é, ainda, confirmada sistematicamente a dois níveis. Por um lado, é significativo que a alínea d) do n.º 1 do artigo 168º, ao invés do que sucede com a alínea c) do mesmo n.º 1, se refira expressamente a regime geral. Por outro lado, o artigo 229º, alínea m), da Constituição atribui
às regiões autónomas o poder de definir actos ilícitos de mera ordenação social e respectiva punição, pelo que ao Governo, e com referência a todo o território do Estado, se não pode deixar de reconhecer igual competência. Mais exactamente, ao Governo dentro da lei-quadro (Decreto-Lei n.º 433/82, emitido no uso da autorização conferida pela Lei n.º 24/82 de 23 de Agosto), pertence, no exercício de competência legislativa concorrente com a da Assembleia da República, delinear ilícitos contra-ordenacionais, estabelecer a concernente punição e moldar regras secundárias do processo contra-ordenacional.
Com tudo isto se não quer significar que ao Governo seja ilícito revogar parcialmente o Decreto-Lei nº 433/82. Ponto é que estejam em equação normas desenquadradas do regime geral substantivo ou adjectivo do ilícito de mera ordenação social”.
Esta doutrina veio a ser seguida por uma orientação jurisprudencial sempre uniforme deste Tribunal (cfr. Acórdão n.º 158/92 e outros aí citados in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 713 e segs.). E dela resulta, como se viu, que, em matéria adjectiva, só a edição de normas ditas primárias, como fazendo parte do regime geral do ilícito de mera ordenação social, se insere na competência reservada da Assembleia da República. O Decreto-Lei n.º 433/82, editado pelo Governo, sob autorização legislativa, contém essas normas primárias substantivas e adjectivas; mas não estará obviamente excluído que nesse diploma se contenham outras normas que não comunguem daquela natureza.
Entende-se, porém, que os requisitos das decisões condenatórias constantes do artigo 58º daquele decreto-lei, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95 de 14 de Setembro (tal como do artigo 56º do Decreto-Lei n.º 421/85 de 26 de Novembro, então vigente, que, aprovado pelo Governo no uso de competência própria, estabelecia disposições relativas às contra-ordenações laborais), traduzem uma exigência fundamental em matéria de processo contra-ordenacional.
Com efeito, os direitos de defesa dos acoimados ali tutelados determinam, seguramente, a qualificação da norma como norma primária do processamento das contra-ordenações, assim integrando o regime geral de punição dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Isto não obstante a Lei n.º 116/99 de 4 de Agosto, que aprova o regime geral das contra-ordenações laborais, nada dispor a este respeito, o que se deverá ao facto de, nos termos do artigo 2º desse regime, ser subsidiariamente aplicável o regime geral das contra-ordenações.
A verdade, porém, é que se, nesse regime geral, se impõe que as decisões condenatórias obedeçam a determinados requisitos, já nele se não exige a forma por que eles devam ser preenchidos.
E tal como a exigência constitucional de fundamentação expressa dos actos administrativos se não deixa de cumprir com a remissão para peça do processo (v.g. parecer ou proposta) que contenha tal fundamentação, também se obedecerá ao disposto no artigo 58º do Decreto-lei n.º 433/82 se a decisão condenatória remeter para proposta que contenha os requisitos ali previstos.
Nesta medida, nada impediria que o Governo, no exercício de competência própria, editasse norma que previsse a forma remissiva para se cumprir o disposto no citado artigo 58º do Decreto-Lei n.º 433/82.
Mas, assim sendo, não se inserindo na competência reservada da Assembleia da República, ao abrigo do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea d) da Constituição, legislar em tal matéria, nada impede que se lance mão do disposto no artigo 125º do Código do Procedimento Administrativo respeitante à admissibilidade da fundamentação dos actos administrativos por remissão, razão por que a norma do artigo 125º do CPA interpretada no sentido de ela ser aplicável às decisões condenatórias em processo contra-ordenacional não a faz incorrer em violação do citado preceito constitucional.
E também não viola os direitos de defesa do arguido (artigo 32º, n.º
10 da CRP), uma vez que a aludida forma de fundamentação da decisão condenatória não impede – como aliás se vê que no caso não impediu – o exercício daqueles direitos, bem sabendo o acoimado os factos por que lhe é imposta uma coima e o direito aplicado».
Estas considerações podem ser transpostas nos seus precisos termos para o caso sub judicio, não havendo razões para alterar o entendimento nelas sufragado e por isso, aqui a elas se adere. Aliás, dizendo algo mais relativamente ao direito de defesa, reconhecido pelo art.º 32º, n.º 10 da CRP ao arguido em processo contra-ordenacional, cumpre notar que o que é verdadeiramente decisivo, à face da sua natureza e da garantia constitucional consagrada no n.º 3 do art.º 268º da CRP, relativa à exigência de fundamentação da decisão administrativa (aplicativa de coima), é que a lei ordinária, no caso a norma do art.º 125º do Código de Procedimento Administrativo, obrigue a autoridade administrativa a externar expressamente - e de forma acessível (a um destinatário normal) - as razões de facto e de direito da decisão, tal como esta foi tomada, ou seja, numa formulação sempre renovada na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que obrigue a administração à evidenciação expressa do iter cognoscitivo e valorativo que conduz à prática do acto, com o concreto conteúdo que o mesmo tem. Desde que tal se verifique, não pode deixar de considerar-se ficar o arguido em posição de poder contraditar, quer a correcção do processo interior/funcional de prognose e de ponderação fácticas feita pela administração a partir das provas evidenciadas, quer o acerto jurídico da decisão sancionatória, podendo assim fazer uma opção esclarecida entre o aceitar essa decisão ou, contrapondo-lhe os fundamentos que entenda pertinentes, recorrer a juízo.
Nada justifica, do ponto de vista constitucional, sem embargo do legislador ordinário poder fazer outras opções no plano infraconstitucional, que o acto decisório tenha de enunciar contextualmente os fundamentos da decisão e que não possa lançar mão de declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, usando a técnica racional de remissão, agilizadora da actividade administrativa.
O art.º 125º do Código de Procedimento Administrativo satisfaz, assim, por inteiro, estas exigências constitucionais, não sendo, por isso, materialmente inconstitucional.
8.2. Também a questão de inconstitucionalidade dos art.os 4º, n.º 2, alínea c), 6º a 13º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho foi, como se disse, objecto de apreciação no referido acórdão n.º 62/2003.
Sobre essa matéria escreveu-se aí o seguinte:
« 4 - Sustenta ainda o recorrente que o Decreto-Lei n.º 102/2000 de
2 de Dezembro é inconstitucional, material, orgânica e formalmente, considerando que “tais inconstitucionalidades advêm do facto de a matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que, por isso, teria que ser objecto de Lei da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo, se este para tal estivesse autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165º, nº1, al. d) e 198º ambos da CRP”. Sendo, para o recorrente, todo o diploma mencionado inconstitucional, não deixa ele de destacar as normas constantes dos artigos 4º, nº.2, alínea c) e 6º a 13º. Subjaz, deste modo, ao entendimento do recorrente a ideia de que as matérias, todas as matérias que respeitem à punição dos ilícitos de mera ordenação social, são da competência legislativa da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo).
Ora, como se disse, e é jurisprudência firme deste Tribunal, só é da competência da Assembleia da República (ou do Governo com autorização legislativa) legislar em matéria de regime geral de punição de ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo.
O Decreto-Lei n.º 102/2000 de 2 de Dezembro respeita ao desenvolvimento e à protecção das condições de trabalho em que a Inspecção-Geral do Trabalho “desempenha uma função indispensável na regularização de aspectos essenciais do mercado de trabalho e contribui para realizar a responsabilidade do Estado de assegurar a concorrência económica equilibrada entre as empresas”
(cfr. respectivo preâmbulo), não podendo, assim, afirmar-se que a matéria, que ele (todo ele) regula, se insira na competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea d) da Constituição. Mas, ainda que centremos a nossa análise nas normas dos artigos 4º nº2 alínea c) e artigos 6º a 13º do Decreto-Lei supra referido, também, aí, não assiste razão ao recorrente. O artigo 4º, n.º 2, alínea c) confere ao Inspector-geral do Trabalho competência para aplicar coimas, multas e sanções acessórias correspondentes às contra-ordenações e contravenções laborais.
Ora, sobre a competência em razão da matéria para aplicar coimas, o artigo 34º n.º 1 do Decreto-lei n.º 433/82 limita-se a dispor que ela
'pertencerá às autoridades determinadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações'.
Remete-se, assim, para a lei que define um determinado tipo de contra-ordenação a competência para aplicar a respectiva coima, sendo certo que o Tribunal Constitucional desde o seu citado Acórdão n.º 56/84 (cfr. ainda Acórdão n.º 110/95 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 627 e segs.) firmou já doutrina no sentido de que a criação ex novo de contra-ordenações se insere na competência concorrente da Assembleia da República e do Governo.
Não faz pois parte do regime geral de punição do ilícito de mera ordenação social a definição das entidades competentes para punir esse ilícito.
Acresce que já a Lei n.º 116/99 atribuía, no seu artigo 17º, à Inspecção-Geral do Trabalho a competência para o processamento das contra-ordenações laborais e ao inspector-geral do Trabalho a competência para aplicação das coimas correspondentes, competência esta que poderia ser delegada nos delegados ou sub-delegados do IDICT.
Não se verifica assim qualquer inconstitucionalidade na norma do artigo 4º n.º 2 alínea c) do Decreto-Lei nº 102/2000.
No que concerne às normas constantes dos artigos 6º a 13º do Decreto-Lei nº. 102/2000 de 2 de Dezembro, inseridas no Capítulo II, reportam-se elas à acção inspectiva matéria que, igualmente, nada tem que ver com a definição do regime geral das contra-ordenações laborais.
É certo que algumas dessas normas (artigos 6º a 9º) se referem ao processamento das contra-ordenações. A verdade, porém, é que nenhuma delas, que se possa considerar norma primária adjectiva, altera o que se dispõe no Decreto-Lei n.º 433/82, sendo ainda evidente que algumas correspondem mesmo ao disposto nos artigos 19º e 20º da citada Lei n.º 116/99 e a que consta do artigo 8º n.º 2 manda aplicar ao processamento iniciado com a participação 'o regime geral das contra-ordenações'. Não se vislumbra assim qualquer inconstitucionalidade das citadas normas». Este juízo de não inconstitucionalidade é completamente transponível para o caso em apreço, dado o inteiro paralelismo das questões de inconstitucionalidade que o recorrente nele suscita, a ele se aderindo.
C – A decisão
9. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 22 de Outubro de 2003 Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos