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Procº nº 182/2000.
3ª Secção. Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. O Procurador-Geral da República veio, ao abrigo da alínea e) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, solicitar que este Tribunal declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos números 1º, 2º e 9º, todos da Portaria nº 393/97, de 17 de Junho, enquanto “nelas se fixam - para os resultados de excelência obtidos na prática desportiva, em competições internacionais, por cidadãos portadores de deficiência - prémios de montantes desproporcionadamente inferiores aos que estão previstos - actualmente na Portaria nº 211/98, de 3 de Abril - para os praticantes em regime de alta competição que obtiverem resultados desportivos correspondentes aos níveis máximos de rendimento da modalidade”.
Segundo o requerente, as indicadas normas violarão o princípio da igualdade e o direito ao incentivo à cultura física, de que gozam especialmente os cidadãos portadores de deficiência.
Fundamenta, em síntese, o seu pedido no seguinte:
- de acordo com o disposto no nº 1 do artº 33º do Decreto-Lei nº 125/95, de 31 de Maio, são atribuídos prémios aos praticantes em regime de alta competição que obtiverem resultados desportivos correspondentes aos níveis máximos de rendimento na modalidade, prémios esses cujos respectivos montantes e termos são fixados por portaria a editar pelo Governo, sendo que o artº 40º do mesmo diploma estabelece que o nele preceituado é aplicável, com as necessárias adaptações, aos cidadãos portadores de deficiência que obtenham resultados de excelência na prática desportiva em competições internacionais;
- comparando os montantes dos prémios atribuídos pela Portaria 211/98, de 3 de Abril, aos praticantes desportivos não afectados por deficiência e os montantes dos prémios atribuídos pelas normas sobre que recai o pedido, verifica-se que os respeitantes a estas últimas são desproporcionadamente inferiores, além de que o artº 2º da Portaria nº 393/97 ainda acentua a discriminação dos cidadãos afectados por deficiência, ao inviabilizar a acumulação material dos prémios em caso de obtenção de plúrimos resultados de excelência.
Ouvido nos termos do artº 54º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.
Apresentado memorando pelo Presidente do Tribunal, foi fixada a orientação sobre as questões a resolver, cumprindo agora formar a decisão.
2. As normas constantes dos números 1º, 2º e 9º da Portaria nº 393/97 dispõem como segue:
1.º Aos cidadãos deficientes que se classifiquem num dos três primeiros lugares de provas dos jogos paraolímpicos ou de Campeonatos do Mundo ou da Europa e da Taça do Mundo de Boccia são concedidos os seguintes prémios: a) Para praticantes de modalidades desportivas individuais:
1.º lugar no europeu e na Taça do Mundo de Boccia, 1000 contos, no mundial, 1500 contos, e nos jogos parolímpicos, 2000 contos
2.º lugar no europeu e na Taça do Mundo de Boccia, 500 contos, no mundial, 750 contos, e nos jogos paraolímpicos, 1000 contos;
3.º lugar no europeu e na Taça do Mundo de Boccia, 250 contos, no mundial, 500 contos, e nos jogos paraolímpicos, 750 contos; b) Para cada praticante (titular ou suplente) das modalidades desportivas colectivas:
1.º lugar no europeu e na Taça do Mundo de Boccia, 500 contos, no mundial, 750 contos, e nos jogos parolímpicos, 1000 contos;
2.º lugar no europeu e na Taça do Mundo de Boccia, 250 contos, no mundial, 275 contos, e nos jogos paraolímpicos, 500 contos;
3.º lugar no europeu e na Taça do Mundo de Boccia, 125 contos, no mundial, 250 contos, e nos jogos paraolímpicos, 375 contos.
2.º Os prémios são cumulativos até ao máximo de três medalhas - correspondentes aos três primeiros lugares obtidos pelo praticante. No caso de este conquistar mais de uma medalha no mesmo quadro competitivo, será atribuído por inteiro o prémio correspondente à melhor classificação, 50% do prémio relativo à segunda e 25% do prémio relativo à terceira.
9.º A obtenção de recordes alcançados em modalidades e disciplinas incluídas no programa oficial dos jogos paraolímpicos confere ao praticante direito a um prémio de, respectivamente, 1500 contos (campeonato do Mundo), 1000 contos (campeonato europeu e Taça do Mundo de Boccia) e 500 contos (jogos paraolímpicos), sendo tais prémios acumuláveis com os prémios referidos no n.º
1.º
2.1. Em 2 de Maio de 1989 veio a lume a designada Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência
(Lei nº 9/89) que, de entre as suas disposições, veio a consagrar, inter alia:
- que a política de reabilitação obedece aos princípios da universalidade, da globalidade, da integração, da igualdade de oportunidades, da participação, da informação e da solidariedade, impondo a equiparação de oportunidades a eliminação de todas as discriminações em função da deficiência e que o ambiente físico, os serviços sociais e de saúde, a educação e o trabalho, a vida cultural e social em geral se tornem acessíveis a todos (cfr. números 1 e
6 do seu artº 4º);
- que ao Estado cabe promover, através dos organismos competentes, todas as acções necessárias que visem impedir o aparecimento ou agravamento da deficiência e anular ou atenuar os seus efeitos e consequências
(nº 1 do artº 6º);
- que a cultura, desporto e a recreação visam contribuir para o bem-estar e para o desenvolvimento das capacidade de interacção social
(artº 15º) e
- que a política de cultura e recreação deve criar condições para a participação da pessoa com deficiência (artº 26º).
2.2. Por outro lado, a Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro), reconhecendo que a actividade desportiva é um factor cultural indispensável na formação plena da pessoa humana e no desenvolvimento da sociedade, veio estabelecer determinados princípios fundamentais .
De entre eles é, para o que ora interessa, de destacar o que se encontra regulado no nº 3 do seu artº 2º, ao se prescrever aí que no apoio à generalização da actividade desportiva é dada particular atenção aos grupos sociais dela especialmente carenciados, os quais são objecto de programas adequados às respectivas necessidades, nomeadamente em relação aos deficientes, vindo ainda a definir-se o elenco de apoios especiais aos desportistas de alta competição e às selecções nacionais.
É assim que, neste último particular, se dispõe nos artigos 15º e 26º:
Artigo 15.º
Alta competição
1 - A alta competição enquadra-se no âmbito do desporto-rendimento e, respondendo à evidência de talentos e de vocações de mérito desportivo excepcional, consiste em, por opção do praticante, o nível de excelência nos resultados desportivos se aferir por padrões desportivos internacionais e a respectiva carreira desportiva visar êxito na ordem desportiva internacional.
2 - O desenvolvimento da alta competição é objecto de medidas de apoio específicas, atendendo a que constitui um factor de fomento desportivo e em virtude das especiais exigências de preparação dos respectivos praticantes.
3 - As medidas referidas no número anterior contemplam o praticante desportivo desde a fase de detecção de talentos específicos e da sua formação e abrangem, designadamente: a) Regime de escolaridade; b) Regime de emprego e desempenho profissional; c) Regime no âmbito da função pública; d) Regime no cumprimento das obrigações militares; e) Acesso à formação na área do ensino da educação física ou como técnico de desporto; f) Apoio financeiro à respectiva preparação; g) Seguro desportivo; h) Reinserção profissional.
4- O Estado, em articulação com o associativismo desportivo, zela por que a alta competição se desenvolva com respeito pela ética e verdade desportivas, bem como pela saúde e integridade moral e física dos respectivos praticantes.
Artigo 26.º
Selecções nacionais
A participação dos agentes desportivos nas selecções ou em outras representações nacionais é classificada como missão de interesse público e, como tal, objecto de apoio e de garantia especial por parte do Estado.
2.3. A Lei de Bases do Sistema Desportivo veio a ser desenvolvida por intermédio do Decreto-Lei nº 125/95, de 31 de Maio.
Pode ler-se, em dados passos, no preâmbulo deste último diploma:
“O desporto de alta competição constitui um importante factor de desenvolvimento desportivo, como tal reconhecido no artigo 15.º da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de Bases do Sistema Desportivo).
Com efeito, é incontroverso que a alta competição, como paradigma da excelência da prática desportiva, fomenta a sua generalização, mesmo enquanto actividade de recreação, e particularmente entre a juventude. Por outro
lado, o desenvolvimento da sociedade não pode ignorar a actividade desportiva que é cada vez mais um factor cultural indispensável na formação da pessoa humana. Daí que a prática desportiva de alto rendimento deva ser objecto de medidas de apoio específicas, em virtude das particulares exigências de preparação dos respectivos praticantes.
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Impunha-se igualmente o enquadramento da situação dos praticantes que, não sendo de alta competição, integrem selecções nacionais. Com o presente diploma estabelecem-se as adequadas medidas de apoio para aqueles praticantes, sem que tal envolva a modificação da sua qualificação.
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Finalmente, cumpre salientar o maior desenvolvimento e clarificação das medidas de apoio aos praticantes de alta competição, designadamente no
âmbito do seguro desportivo e do regime escolar, e, bem assim, a extensão do regime constante do presente diploma a cidadãos deficientes que obtenham resultados de excelência na prática desportiva”.
Depois de, no seu artº 1º, o Decreto-Lei nº 195/95 ter definido o objecto da regulação pelo mesmo intentada (estabelecimento de medidas específicas de apoio ao desenvolvimento da alta competição, visando proporcionar aos praticantes os meios técnicos e materiais necessários às especiais exigências da sua preparação específica) e de ter dado, no seu artº 2º, a noção do que se considera alta competição, veio consagrar diversas medidas de apoio relativas aos designados Regime escolar (Capítulo III), Dispensa temporária de funções (Capítulo IV), Obrigações militares (Capítulo V), Apoio especializado de técnicos e dirigentes (Capítulo VI), Acesso a formação superior, especializada e profissional (Capítulo VII), Apoio material (Capítulo VIII) e Seguro desportivo e apoio médico (Capítulo IX).
No tocante às medidas inseridas no Apoio material, releva o que se comanda no artº 33º, que assim reza:
Artigo 33.º
Prémios
1 - Aos praticantes em regime de alta competição que obtiverem resultados desportivos correspondentes aos níveis máximos de rendimento da modalidade são atribuídos prémios em reconhecimento do valor e mérito daqueles
êxitos desportivos.
2 - Os resultados desportivos a considerar, o montante dos prémios e os termos da sua atribuição cumulativa à equipa técnica e aos clubes desportivos que participaram na formação e enquadramento do praticante são fixados por portaria do membro do Governo que tutela a área do desporto, tendo em atenção a especificidade de cada modalidade.
Finalmente, e na esteira da parte final do preâmbulo do diploma a que nos vimos referindo, prescreveu-se no seu artº 40º que o aí disposto é aplicável, com as necessárias adaptações, aos cidadãos deficientes que obtenham resultados de excelência na prática desportiva em competições internacionais.
2.4. De acordo com o previsto no transcrito artº 33º, veio a ser publicada a Portaria nº 953/95, de 4 de Agosto, que fixou o valor e as regras de atribuição de prémios em reconhecimento do valor e mérito dos
êxitos desportivos obtidos em regime de alta competição, portaria essa que veio a ser revogada e substituída pela Portaria nº 211/98, de 3 de Abril que estabeleceu nos seus números 1º e 8º:-
1.º Aos praticantes desportivos das disciplinas das modalidades integradas no programa olímpico que se classificarem num dos três primeiros lugares dos jogos olímpicos e dos campeonatos do mundo e da Europa, no escalão absoluto, são concedidos os seguintes prémios. a) Aos praticantes de modalidades individuais: Jogos olímpicos - 1.º lugar, 6000 contos; 2.º lugar, 4500 contos; 3,º lugar,
3500 contos; Campeonatos do mundo - 1.º lugar, 3000 contos; 2.º lugar, 2250 contos; 3.º lugar, 1750 contos; Campeonatos da Europa - 1.º lugar, 2250 contos; 2.º lugar, 1750 contos; 3.º lugar, 1250 contos; b) A cada praticante (titular ou suplente) das modalidades colectivas:
50% dos valores previstos na alínea anterior.
8.º A obtenção de recordes do mundo ou da Europa alcançados em modalidades e disciplinas olímpicas confere ao praticante direito a um prémio de, respectivamente, 3000 e 2250 contos, acumulável com os prémios referidos no nº 1.º O mesmo se aplica aos praticantes que obtenham recordes olímpicos, sendo que, neste caso, o valor considerado será igual ao definido pela obtenção de recordes da Europa.
2.5. Como a Portaria nº 211/98 (talqualmente sucedia com a que a procedeu - a citada Portaria nº 953/95) não abrangia os resultados de excelência desportiva obtidos em competições internacionais pelos cidadãos portadores de deficiência, veio a ser editada a Portaria cujas normas estão aqui questionadas do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional.
Na sua justificação preambular foi escrito:
“...............................................................................................................................................................................................................................................................
Importa, pois, desenvolver a norma contida no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 125/95, de 31 de Maio, pelo que o Governo decidiu, ouvida a Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes, fixar critérios para a concessão de prémios em reconhecimento do valor e mérito dos resultados desportivos obtido pelos cidadãos deficientes em competições internacionais.
Sendo certo que o mérito revelado pelos cidadãos deficientes no campo desportivo constitui um reflexo das acções desenvolvidas em apoio da sua inserção social, os prémios agora previstos apresentam a dupla natureza de saudar o êxito desportivo do praticante e de apoiar as referidas acções de integração. Os encargos com os prémios são suportados em partes iguais pelo Ministério da Solidariedade e Segurança Social e pelo membro do Governo que tutela a área do desporto”.
É facilmente apreensível que o montante dos prémios que se veio a consagrar na Portaria nº 393/97 é acentuadamente inferior ao que se consagrou na Portaria nº 211/98, sendo ainda que naquela se limita o número e o valor máximo dos prémios acumuláveis pelos cidadãos portadores de deficiência na obtenção de resultados de excelência desportiva em competições internacionais, o que não sucede com a última.
3. O requerente, como se viu, funda o vício de desarmonia com a Lei Fundamental das normas sub iudicio na violação do artigo
13º e dos artigos 71º e 79º, todos da Constituição.
Vejamos, então.
4. Na perspectiva do requerente, a violação do princípio da igualdade resultaria da circunstância de nas normas em causa se não vislumbrar “suporte os fundamento material adequado para tão substancial e desproporcionada dualidade de tratamentos, relativamente ao montante dos prémios atribuíveis para situações desportivas análogas”.
Encaremos, pois, a questão neste enfoque.
Como sabido é, o princípio da igualdade reclama, num primeiro passo, que seja conferido tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais.
Uma tal asserção tem, repetidamente, sido salientada pela jurisprudência deste Tribunal (vejam-se, verbi gratia, os Acórdãos números
186/90, 563/96, 14/2000, 187/2001, 509/2002 e 232/2003, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, 383 e segs., idem, 33º volume, 47 e segs., Diário da República, I Série-A, de 16 de Maio de 1996, idem, II Série, de 19 de Outubro de 2000, idem, idem, de 26 de Junho de 2001, idem, I Série-A, de 12 de Fevereiro de 2003, e idem, idem, de 17 de Junho de 2003).
Na verdade, o citado Acórdão nº 232/2003 teve, a propósito, ocasião de discretear assim:
“..........................................................................................................................................................................................................................................................
O requerente situa a questão da constitucionalidade no âmbito do princípio da igualdade, confrontando as normas sub judicio com o artigo 13º da Constituição da República.
Não é necessário recordar, em todas as suas dimensões, a abundante jurisprudência constitucional nesta matéria (uma resenha dessa jurisprudência pode encontrar-se in Martim de Albuquerque, Da igualdade. Introdução à jurisprudência, Coimbra, 1993, pp. 167ss).
O Acórdão nº 319/00 (in AcTC, 47º vol., pp. 497ss), apoiando-se no Acórdão nº 563/96 (in AcTC, 33º vol., pp. 47ss), procedeu a uma síntese da jurisprudência constitucional relativa ao princípio da igualdade. Assim:
«[O] Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar diversas vezes sobre as exigências do princípio constitucional da igualdade, que, no fundo, se reconduz à proibição do arbítrio, proibição essa que, naturalmente, não anula a liberdade de conformação do legislador onde ele a não infrinja. Assim, por exemplo, no acórdão nº 563/96 (...), publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º, pág. 47 e segs., foram assim descritas:
‘1.1.- O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido pelo artigo
13º da Constituição da República que, no seu nº 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o nº 2, por sua vez, que ‘ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social'.
Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125) o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob. cit., pág.
129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da ‘atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional
(artigo 18º, nº 1, da Constituição)’ (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de
1990).
Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) - cfr., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão nº 186/90, os Acórdãos nºs. 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93,
516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, I Série, de 3 de Março de 1988, e II Série, de 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 6 de Outubro do mesmo ano, e 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente.
1.2.- O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, ‘razoável, racional e objectivamente fundadas’, sob pena de, assim não sucedendo, ‘estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes’, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto
é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como ‘princípio negativo de controlo’ ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de
26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (‘tertium comparationis’).
A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cfr., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; acórdão nº 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da ‘diferença' de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
O nº 2 do artigo 13º da Constituição da República enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente - presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade - mas que são enunciados a título meramente exemplicativo: cfr., v.g., os Acórdãos nºs. 203/86 e 191/88, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Agosto de 1986, e, I Série, de 6 de Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do parecer nº 1/86, da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol., 1º, pág. 5 e segs., maxime pág. 11. A intenção discriminatória (...) não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalístico, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade’».
Registe-se ainda que, quer a Comissão, quer o Tribunal Constitucional admitiram já a hipótese de, em certos casos, se proceder a diferenciações de tratamento ou, noutra perspectiva, a ‘discriminações positivas’ (sobre a jurisprudência constitucional nesta matéria, cf., por todos, Luís Nunes de Almeida e Armindo Ribeiro Mendes, ‘Les discriminations positives – Portugal’, Annuaire International de Justice Constitutionnelle, vol. XIII, 1997, pp.
223ss).
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Nesse acórdão[estava a reportar-se ao Acórdão nº 412/2002], o Tribunal apoiou-se ainda em duas anteriores decisões suas, começando por citar o que se disse no Acórdão nº 180/99 (in AcTC, 43º vol, pp. 135ss):
‘(...) O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss.,
395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”.
Lembrou, depois, a linha argumentativa do Acórdão nº 409/99 (in AcTC, vol. 44º, pp 461ss):
‘O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os Acórdãos nºs 186/90,187/90,188/90,1186/96 e 353/98, publicados in ‘Diário da República’, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990, 12 de Fevereiro de 1997, e o último, ainda inédito).’
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio
(Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma ‘fundamentação razoável’ (vernünftiger Grund), tal como sustentou o ‘inventor’ do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: ‘[E]stando em causa (...) um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela 'ratio' do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento jurídico
é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério’
(cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: ‘[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a 'ratio' do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável
à subsistência familiar numa determinada sociedade’ (ob. cit., pp. 31-32).
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Caminhos idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional português (a título meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos nºs 44/84,
186/90, 187/90 e 188/90, in AcTC, 3º vol., pp. 133ss, e 16º vol., pp. 383 ss,
395ss e 411ss, respectivamente). No Acórdão nº 39/88, o Tribunal teve ocasião de dizer: ‘[O] princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes (...)’ (in AcTC, 11º vol., pp. 233ss). E, curiosamente, também nos Estados Unidos se alude à necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer a um cânone de razoabilidade (reasonableness) (cf. J. Tussman e J. tenBroek, ‘The equal protection of the laws’, California Law Review, nº 37,
1949, p. 344, cit. por Gianluca Antonelli, ‘La giurisprudenza italiana e statunitense sul principio di solidarietà’, Studi parlamentari e di politica costituzionale, nºs. 125-126, 1999, p. 89; sobre o princípio da razoabilidade na jurisprudência norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, ‘Il principio di ragionevolezza e la giurisprudenza della Corte Suprema degli Stati Uniti, in AA.VV., Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti comparatistici, Milão, 1994, pp. 43ss).
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A longa citação que se veio de fazer condensa os critérios doutrinários e jurisprudenciais que hão-de servir à aferição das normas em crise perante o princípio constitucional da igualdade.
Uma dessas normas - a no nº 2º da Portaria nº 393/97 - reporta-se ao número máximo de prémios acumuláveis pelos cidadãos portadores de deficiência que vençam as competições a que alude o nº 1º -, enquanto que o grupo referente às normas dos números 1º e 9º dizem tão só respeito à previsão dos valores dos prémios.
4.1. A colocação do problema, no enfoque do princípio da igualdade, quer relativamente ao primeiro, quer relativamente ao segundo dos grupos de normas acima indicados, e tendo por referência os jogos e campeonatos em presença, não pode, desde logo, escamotear que dificilmente são comparáveis, num prisma objectivo, os universos e as realidades daqueles jogos e campeonatos.
É que, torna-se inquestionável que os Jogos Olímpicos e os Campeonatos do Mundo e da Europa, por um lado, e os Jogos Paraolímpicos, Campeonatos do Mundo e da Europa para Deficientes e a Taça do Mundo de Boccia, por outro, representam realidades diversas, com diferentes universos de concorrentes a uns e a outros e com também diferentes formas de realização das provas em presença, designadamente porque os primeiros são de alcance «geral», enquanto que os segundos são reservados especificamente a atletas portadores de deficiência.
4.2. Colocada esta inicial advertência, volva-se a atenção, em primeiro lugar e especificamente, quanto ao grupos de normas atinente à previsão dos valores dos prémios (números 1º e 9º da Portaria nº
393/97).
Tendo presentes os critérios a que acima se fez referência, a impostação do problema redundará em saber se a distinção no montante dos prémios, comparativamente com aquele que é conferido aos atletas de alta competição não portadores de deficiência, se antolha como o estabelecimento de uma distinção arbitrária ou, o que é o mesmo, se tal distinção repousará numa irrazoável justificação.
Para tanto, necessário seria concluir que não existem diferenças relevantes no tocante à conquista dos três primeiros lugares nas competições internacionais, consoante estejam em jogo, por um lado, os Jogos Olímpicos, os Campeonatos do Mundo e da Europa e, por outro, os Jogos Paraolímpicos, Campeonatos do Mundo e da Europa para Deficientes e a Taça do Mundo de Boccia.
Simplesmente, a notoriedade da diferença é patente.
Efectivamente, a importância atribuída pela opinião pública e pelos media, nacionais e internacionais, à classificação num dos três primeiros lugares nos Jogos Olímpicos não é, seguramente, a mesma da que se atribui a idêntica classificação nos Jogos Paraolímpicos.
E, de igual sorte, os campeonatos do mundo e da Europa em que participam atletas não portadores de deficiência são acontecimentos internacionalmente muito mais participados (em número de países e de atletas presentes), também lhes sendo dado um muito maior relevo em comparação com os Campeonatos do mundo e da Europa para Deficientes.
Justifica-se, pois, que o Estado confira um mais acentuado relevo à conquista de um dos três primeiros lugares nos jogos e campeonatos em que participam atletas não portadores de deficiência, designadamente tendo em conta a contribuição dada à projecção do País que advém das classificações obtidas pelos seus praticantes que alcançaram tais feitos desportivos.
Aliás, é certamente a pensar no contributo para a projecção internacional do País que o legislador veio erigir uma norma como a
ínsita no artº 33º do Decreto-Lei nº 125/95, muito embora esse fundamento para a estipulação de prémios não esteja referido expressamente naquele normativo, o qual só alude ao valor e mérito dos êxitos desportivos.
De facto, se aqueles valor e mérito inequivocamente se ligam ao esforço e nível de excelência na prática desportiva alcançados pelos atletas que se guindaram às mais altas classificações nas aludidas competições internacionais, nem por isso a recompensa traduzida na atribuição de prémios pode ser desligada na projecção do País que lhe é trazida pela conquista, pelos seus atletas, dos lugares cimeiros.
Projecção essa que, como já se anotou, não se reveste da mesma importância quando estão em causa os Jogos Olímpicos, os Campeonatos do Mundo e da Europa e os Jogos Paraolímpicos, Campeonatos do Mundo e da Europa para Deficientes e a Taça do Mundo de Boccia.
Por essa razão se poderá dizer que, na análise da questão, o factor decisivo a considerar, na busca da diferenciação em causa, não se posta apenas no esforço ou mérito intrínseco na obtenção de classificações cimeiras nas competições internacionais por parte dos atletas não portadores de deficiência e por parte dos atletas portadores de deficiência.
A justificação da diferenciação radicará, antes, na diversa relevância nos campos social e cultural da obtenção das mais altas classificações em uns e outros jogos e campeonatos, relevância à qual, devido à já mencionada projecção que essa circunstância dá ao País, o Estado não pode ser alheio.
Desta sorte, bem se pode sustentar a existência de uma diferença de monta entre as situações contempladas na Portaria nº 211/98 e na Portaria nº 393/97, diferença essa que, razoavelmente, é justificativa de um não idêntico tratamento entre umas e outras.
E, por isso, se não divisa violação do princípio da igualdade.
4.3. As considerações antecedentemente tecidas, são, numa primeira linha, transponíveis, mutatis mutandis, quanto à análise do nº 2 da Portaria nº 393/97.
Não se olvida, contudo, um possível entendimento segundo o qual a limitação na acumulação prémios relativamente aos atletas portadores de deficiência, confrontadamente com a falta de previsão dessa limitação na Portaria nº 211/98, não teria por base uma qualquer razão objectiva.
Simplesmente, o argumento que assim seria esgrimido em favor da desconformidade constitucional da norma do nº 2 da Portaria nº 393/97 teria, como é claro, de desconsiderar, à partida, a própria razão da diferenciação dos prémios conferidos a atletas não portadores de deficiência e a atletas portadores de deficiência. Ou seja:- haveria de partir-se de um raciocínio que fosse independente da constatação da existência de diferenças no montante dos prémios e da valoração das razões que, porventura, justificariam, ou não, essas diferenças, para atender tão somente à inexistência de uma causa objectiva que, no fundo, repousava unicamente no valor e mérito desportivos de todos os atletas, não portadores ou portadores de deficiência.
Só que, viu-se já, não é esta última razão o factor decisivo que deve ser considerado na procura de um fundamento razoável e, logo, não arbitrário, da diferença surpreendida quanto às recompensas pela obtenção das altas classificações obtidas nos jogos e campeonatos em causa.
Mas a esta consideração há ainda que aditar que os jogos e campeonatos internacionais reservados a atletas portadores de deficiência, pela menor concorrência de participantes e outros factores, não tem deixado, objectivamente, de apresentar um maior grau de probabilidade de ser alcançada uma mais elevada acumulação de lugares cimeiros por parte desses mesmos atletas relativamente aqueloutra probabilidade a que assiste relativamente aos Jogos Olímpicos, Campeonatos do mundo e da Europa.
Por outro lado, não se deixa passar em claro que existem razões de monta, entre as quais relevam as tendentes à inserção social, que justificam que os clubes e associações desportivas incentivem um cada vez maior número de atletas portadores de deficiência a entrar em competições desportivas.
Ora, a diminuição de acumulação de prémios, não deixa, objectivamente, de incentivar a participação de um maior número de atletas naquelas condições nas competições internacionais (e, note-se, os prémios são também atribuídos às equipas técnicas dos praticantes e aos clubes desportivos ou a outras entidades que assegurem a formação do praticante - cfr. números 3º e
4º da Portaria nº 393/97), a fim de possibilitar a obtenção, pelos atletas nacionais portadores de deficiência, do maior número de altas classificações.
Por isso também no particular referente ao nº 2 da Portaria nº 393/97 se concluiu pela não enfermidade constitucional advinda da violação do princípio da igualdade.
5. Como acima se deixou exposto, o requerente também fundamenta a desarmonia das normas em apreço com o preceituado nos artigos 71º e
79º da Constituição, os quais consagram, respectivamente, o direito a uma protecção especial, por parte do Estado, dos cidadãos portadores de deficiência e das organizações de cidadãos portadores de deficiência (cfr. números 1 e 2 do artigo 71º), e o direito à cultura física e desporto.
Entende-se, porém, que estas normas constitucionais convocadas pelo requerente não poderão servir de parâmetro para a questão que é colocada ao Tribunal.
Na verdade, não se vislumbra minimamente em que é que as normas sub specie possam afrontar o artigo 79º, pois que a mera diferença no montante dos prémios atribuídos a atletas de alta competição, consoante sejam portadores ou não portadores de deficiência, não implica, de todo, um obstáculo a que os poderes públicos promovam, estimulem e orientem a prática e a difusão da cultura física e do desporto.
Pelo que tange ao artigo 71º, e concluído que foi que o fundamento da diferenciação nos montantes dos prémios não radica na deficiência, mas sim na diversa relevância cultural, social e, quiçá económica, dos Jogos Olímpicos e dos Campeonatos do mundo e da Europa e dos Jogos Paraolímpicos, Campeonatos do mundo e da Europa para Deficientes e Taça do Mundo de Boccia, e da consequente diversa dimensão dos êxitos obtidos em uns e outros, torna-se evidente que não é, pelos normativos em análise, posta em causa a protecção dos cidadãos portadores de deficiência.
É bem verdade que, do ponto de vista jurídico-constitucional, poderia o legislador atribuir aos atletas portadores de deficiência prémios de valor igual ou, inclusivamente, superior aos consagrados na Portaria nº 211/98, já que não é alheio a uma tal compensação o apoio a acções de integração, como, aliás, até resulta do preâmbulo da Portaria nº
393/97.
Esse valor igual ou superior era perfeitamente inserível na vertente positiva ou programática que resulta do indicado artigo 71º (cfr., sobre este aspecto, António Araújo, Cidadãos Portadores de Deficiência - o seu lugar na Constituição da República, 2001, 114). Simplesmente, se isso é assim, menos certo não é que a escolha entre as diversas vias para a realização das condições que permitam o efectivo exercício dos direitos e deveres dos cidadãos portadores de deficiência cai, indubitavelmente, no espaço de discricionariedade do legislador ordinário, o qual, se tem por incumbência levar a efeito medidas tendentes àquele desiderato constitucional, é livre na forma concreta como elas se possam efectivar e concretizar.
6. Em face do que deixa dito, não se declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos números 1º, 2º e 9º da Portaria nº 393/97, de 17 de Junho.
Lisboa, 21 de Outubro de 2003
Bravo Serra Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Benjamim Rodrigues Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Gil Galvão (vencido quanto à questão da constitucionalidade do nº 2 da Portaria nº 393/97, de 17 de Junho, nos termos da declaração junta). Maria Fernanda Palma (vencida quanto às duas questões de constitucionalidade, nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos (vencido quanto à questão da constitucionalidade do nº 2 da portaria nº 393/97 de 17 de Junho, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida (vencido, em parte, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos do Exmº Consº Gil Galvão).
Declaração de voto
Votei vencido quanto à questão da constitucionalidade do n.º 2 da Portaria n.º
393/97, de 17 de Junho, no essencial, por entender que as razões que justificam a diferenciação do valor dos prémios não são, de modo algum, transponíveis para justificar a limitação do número de prémios acumuláveis por atletas portadores de deficiência, quando idêntica previsão se não faz em relação àqueles que a não têm. Não considerando como constitucionalmente requerida nem uma regra sobre a acumulação, nem uma sobre a não acumulação de prémios, não encontro qualquer razão objectiva, que não puramente arbitrária, para a diferenciação de tratamento quanto a este ponto, consoante se trate de atletas portadores de deficiência ou não. De facto, se a concorrência de atletas tem sido relativamente menor (nos Jogos Olímpicos de 2000 houve 10651 atletas, concorrendo em 28 modalidades desportivas, representando 199 comités olímpicos, enquanto nos Paraolímpicos do mesmo ano houve 3843 atletas, competindo em 18 modalidades, representando 127 países), já isso não garantiu uma substancial diferenciação na distribuição de medalhas por país (representantes de 80 países foram medalhados nos Olímpicos contra 68 nos Paraolímpicos), nem impediu que determinados atletas olímpicos conseguissem conquistar 4 ou mesmo 5 medalhas nos Jogos. Acresce que o argumento, utilizado no acórdão, relativo ao incentivo à participação é, esse sim, perfeitamente transponível para os casos em que a acumulação beneficia os atletas não deficientes. Votei, assim, conforme originalmente proposto no Memorando, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 da Portaria n.º 393/97, de 17 de Junho, por violação do princípio da igualdade consignado no artigo 13º da Constituição.
Gil Galvão
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão por entender que é efectivamente afectado o princípio constitucional da igualdade, enquanto proibição de discriminações entre cidadãos, que sejam arbitrárias ou desrazoáveis tal como foi sustentado no pedido do Procurador-Geral da República. E entendi-o por discordar, no plano da interpretação da Constituição, do entendimento perfilhado pelo Tribunal Constitucional segundo o qual existiriam razões de interesse geral que tornariam razoável a concessão de prémios com certo valor aos atletas dos jogos olímpicos
“medalhados” que não se verificariam do mesmo modo nos atletas dos jogos para-olímpicos também “medalhados”. Tais razões invocadas pelo Tribunal Constitucional não só não podem proceder no plano dos princípios constitucionais como são até duvidosas na perspectiva de vários critérios de razoabilidade e referentes ao interesse geral. Não podem desde logo proceder no plano de uma Constituição assente no princípio da igual dignidade da pessoa humana e no princípio da não discriminação dos cidadãos deficientes (artigos 1º, 13º e 71º da Constituição). Com efeito, o que é razoável e não arbitrário não depende apenas de qualquer perspectiva de senso comum, de uma visão assente na “consciência do povo”, do interesse geral ou – muito menos ainda – de ideias esteriotipadas sobre a notoriedade internacional do país ou de qualquer ideal de perfeição eugénica. A igual dignidade da pessoa humana e a não discriminação do cidadão deficiente, bem assim como a necessidade de promoção das representações sociais sobre os cidadãos deficientes, não se compatibiliza com uma lógica de premiar a
“normalidade”. O próprio ideal olímpico não se baseia em perspectivas desse tipo, mas, seguramente, no exemplo da capacidade de superar as limitações físicas e psicológicas de cada pessoa. É nesse espírito que surgem também, como emanação de um ideal olímpico, os jogos daqueles que, à partida, nunca poderiam, em termos absolutos atingir as mesmas metas dos atletas olímpicos. De todo o modo, o ideal olímpico é o mesmo nos jogos para-olímpicos. A razoabilidade ou não arbitrariedade de uma distinção de tratamento entre os atletas daqueles diferentes grupos não encontra, assim, qualquer apoio em valores compatíveis com a Constituição. Se é certo que não há uma obrigatoriedade do Estado atribuir sequer prémios, bolsas ou subsídios a quaisquer atletas “medalhados”, a opção legal por essa atribuição de prémios com certo valor arrasta consigo a exigência de um tratamento igual para todos os que realizaram feitos de tal natureza em jogos com dimensão internacional e subordinados ao mesmo ideal olímpico, como são, na verdade, os jogos olímpicos a que os atletas deficientes podem concorrer. Por outro lado, a distinção funciona ainda, implicitamente, como consolidação da discriminação através da lei, suscitando, aliás, um discurso justificativo que é em si mesmo uma forma de discriminação. Não há, na realidade, maneira de encontrar expressões linguísticas que não sejam a pura explicitação de um discurso discriminatório dos cidadãos deficientes efectivamente existente e que a Constituição por certo não autoriza. Trata-se, assim, de um caso em que a explicitação por palavras de argumentos justificativos revela uma lógica não tolerável à luz de qualquer leitura da Constituição. Nesta perspectiva, considero que a segunda questão, relacionada com a acumulação de prémios, deveria ter merecido também uma declaração de inconstitucionalidade. Também aí o discurso de justificação da não inconstitu-cionalidade revela a aceitação de critérios sobre a “facilidade” de acumulação de prémios por deficientes que só podem ser razoáveis à luz de uma menor consideração pelo atleta deficiente. Concluo, pois, que o discurso justificativo de que discordo, por mais isento e aritmético que deseje ser – e não ponho em causa essa intenção –, veicula, objectivamente, uma carga discriminatória que, em consciência, nunca poderia subscrever, por contrariar o objectivo constitucional de desenvolvimento de uma pedagogia “que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade” para com os cidadãos portadores de deficiência (artigo 71º da Constituição).
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido de ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da totalidade das dimensões normativas questionadas pelo requerente, ou seja, quer quanto às normas contidas nos n.ºs
1.º e 9.º da Portaria n.º 393/97, de 17 de Junho, que fixam prémios para os resultados de excelência obtidos na prática desportiva, em competições internacionais, por cidadãos portadores de deficiência de montantes desproporcionadamente inferiores aos que estão previstos para os cidadãos não portadores de deficiência, quer quanto à norma contida no n.º 2.º da mesma Portaria, que estabelece, para os praticantes portadores de deficiência limites
à cumulação de prémios, inexistentes para os praticantes não portadores de deficiência.
O precedente acórdão encontrou justificação para a diferenciação dos valores dos prémios nas circunstâncias de ser diversa “a importância atribuída pela opinião pública e pelos media, nacionais e internacionais, à classificação num dos três primeiros lugares” nos Jogos e Campeonatos para portadores de deficiência e para não portadores de deficiência, de aqueles serem “acontecimentos internacionalmente muito mais participados (em número de países e de atletas presentes)” do que estes, e de lhes ser “dado um muito maior relevo”, concluindo que, assim, se justifica “que o Estado confira um mais acentuado relevo à conquista de um dos três primeiros lugares nos jogos e campeonatos em que participam atletas não portadores de deficiência, designadamente tendo em conta a contribuição dada à projecção do País que advém das classificações obtidas pelos seus praticantes que alcançaram tais feitos desportivos” (sublinhado acrescentado), projecção essa que não se revestiria da mesma importância nos dois tipos de Jogos e Campeonatos (anote-se desde já que nenhuma comparação é possível estabelecer relativamente a uma prova exclusiva dos praticantes desportivos portadores de deficiência, como a Taça do Mundo de Boccia, desporto semelhante à petanca, exclusivamente praticado por atletas portadores de paralisia cerebral).
Salvo o devido respeito pelos subscritores da tese vencedora, considero-a absolutamente inaceitável, desde logo porque confere à atribuição dos prémios em causa uma motivação (a maior ou menor contribuição para a projecção do País) completamente diversa da que explicitamente foi assumida pelo legislador. Não vislumbro qual a legitimidade e qual a razão de ciência de que o Tribunal Constitucional se pode arrogar para afirmar que a justificação da atribuição dos prémios não é a que o legislador expressamente referiu (aliás, em consonância com os princípios e normas constitucionais e as bases do sistema desportivo e da reabilitação e integração das pessoas com deficiência), mas uma outra, que o Tribunal Constitucional decidiu definir autonomamente como sendo a “verdadeira razão” da atribuição dos prémios.
Resulta da Constituição que todos têm direito à cultura física e ao desporto, incumbindo ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto (artigo 79.º, n.ºs
1 e 2), sendo a promoção da cultura física e desportiva um dos modos de realização do direito à protecção da saúde, que a todos assiste (artigo 64.º, n.ºs 1 e 2, alínea b)) e um dos vectores da política de juventude (artigo 70.º, n.º 1, alínea d)).
Destes princípios e normas constitucionais ressalta que a generalização da prática desportiva se apresenta como valor constitucional, quer em si mesma considerada, quer conjugada com outros valores, entre os quais, para além dos prosseguidos pelos já referidos direito à saúde e política de juventude, não pode deixar de relevar o que domina a política de prevenção, tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência, que ao Estado incumbe realizar (artigo 71.º, n.º 1). Ao lado do papel preventivo, reabilitador e integrador que a actividade desportiva desempenha para os cidadãos portadores de deficiência, tem-se vindo a afirmar, com crescentes intensidade e universalidade, o direito desses cidadãos à prática desportiva de alta competição.
É assim que a Carta Europeia do Desporto para Todos, do Conselho da Europa, adoptada em 4 de Dezembro de 1986, visando, em particular, o cidadão portador de deficiência, não só lhe reconhece o direito a participar em todas as actividades físicas e de lazer, como afirma que estes cidadãos podem aspirar ao “desporto de elite” e têm o direito a nele participar de acordo com as suas capacidades (Parte B, n.º 5).
E a Carta do Desporto dos Países de Língua Portuguesa
(concluída em Bissau, em 1993, e aprovada pelo artigo 2.º do Decreto n.º 32/95, de 26 de Agosto) – após proclamar, no seu artigo 1.º, que, tendo em vista a promoção e o desenvolvimento do desporto, os países celebrantes adoptarão as medidas necessárias a levar a efeito as disposições da Carta com o objectivo de, designadamente, tornar a prática do desporto tão acessível quanto possível às suas populações, assegurando àqueles que manifestem o desejo e possuam as aptidões necessárias a possibilidade de melhorar o seu nível de prática e realizar o seu potencial de desenvolvimento pessoal, alcançando níveis qualitativos publicamente reconhecidos –, estabelece no artigo 4.º, n.º 1, como manifestação clara da acessibilidade pretendida, que o acesso ao desporto e às instalações desportivas deve ser assegurado sem distinção de sexo, raça, etnia, religião, opção política, nacionalidade, situação económica ou qualquer outra forma de discriminação, designadamente física ou mental.
No mesmo sentido se podem citar, entre outros instrumentos internacionais, a Carta Internacional de Educação Física e do Desporto, adoptada pela Conferência Geral da UNESCO em 21 de Novembro de 1978
(artigos 1.º, n.ºs 1.1 e 1.3, e 3.º), a Carta Europeia do Desporto, adoptada pelo Conselho da Europa, em 24 de Setembro de 1992 (artigo 4.º), e, ainda no
âmbito do Conselho da Europa, a Resolução (75/2) relativa à intervenção dos poderes públicos no que respeita ao desenvolvimento do desporto para todos, a Resolução (81/5) sobre o desporto para os cidadãos deficientes, a Resolução
(84/7) sobre o desporto para os cidadãos deficientes e outros grupos de pessoas de saúde deficiente, e a Recomendação (99/9) sobre o papel do desporto na promoção da coesão social.
A já mencionada generalização da prática desportiva, assumida pelo texto constitucional, irradia logicamente para a lei quadro do sistema desportivo, a Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de Bases do Sistema Desportivo – LBSD), que constrói o sistema desportivo com base nesse objectivo primário. Tal decorre, desde logo, do seu artigo 1.º, que proclama como objectivo dessa lei a promoção e orientação da generalização da actividade desportiva, como factor cultural indispensável na formação plena da pessoa humana e no desenvolvimento da sociedade. De seguida, quando do enunciado dos princípios fundamentais do sistema desportivo, estabelece-se que este, no quadro dos princípios constitucionais, fomenta a prática desportiva para todos, quer na vertente de recreação, quer na vertente de rendimento (cf. artigos 2.º, n.º 1, e
14.º, n.º 1). E, com especial relevância para a matéria agora em apreço, o n.º 3 do artigo 2.º, tendo sempre em vista o propósito último do sistema desportivo, determina que no apoio à generalização da actividade desportiva é dada particular atenção aos grupos sociais dela especialmente carenciados, os quais são objecto de programas adequados às respectivos necessidades, nomeadamente em relação aos portadores de deficiência. O que tudo se compagina com a Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência
(Lei n.º 9/89, de 2 de Maio), que destaca o contributo do desporto para o desenvolvimento da capacidade de integração social desses cidadãos (artigo 15.º) e determina que a política do desporto crie condições para a participação de pessoas com deficiência (artigo 26.º).
Este propósito de generalização da actividade desportiva, constitucional e legalmente afirmada, é o único fundamento jurídico relevante na apreciação da constitucionalidade das normas questionadas, como razão substancial da medida de apoio aos atletas de alta competição que obtêm resultados de excelência. Afirma-o claramente a LBSD e o diploma que se ocupa da regulamentação das medidas de apoio à pratica desportiva de alta competição, o Decreto-Lei n.º 125/95, de 31 de Maio. Na verdade, em sede de alta competição, a LBSD, no seu artigo 15,º, n.º 2, refere que o desenvolvimento da alta competição
é objecto de medidas de apoio específicas, atendendo a que constitui um factor de fomento desportivo e em virtude das especiais exigências de preparação dos respectivos praticantes. E do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 125/95 de novo se retiram, de forma bem nítida, os contornos da fundamentação das medidas de apoio
à prática desportiva de alta competição – de que os prémios agora em apreço são apenas um exemplo. Em primeiro lugar, afirma-se ser “incontroverso que a alta competição, como paradigma da excelência da prática desportiva, fomenta a sua generalização, mesmo enquanto actividade de recreação, e particularmente entre a juventude”. Por outro lado, adita-se, “o desenvolvimento da sociedade não pode ignorar a actividade desportiva que é cada vez mais um factor cultural indispensável na formação da pessoa humana” e “daí que a prática desportiva de alto rendimento deva ser objecto de medidas de apoio especifico, em virtude das particulares exigências de preparação dos respectivos praticantes”.
Surge, pois, por demais evidente que as medidas de apoio
à prática desportiva de alta competição, e entre elas a atribuição pelo Estado de prémios por obtenção de resultados desportivos de excelência, apresentam juridicamente dois claríssimos fundamentos: (i) a generalização da actividade desportiva; e (ii) as particulares exigências de preparação dos praticantes desportivos.
Sendo esta a motivação expressamente assumida pelo legislador e a única conforme aos princípios e preceitos constitucionais, convencionais e legais referenciados, não se compreende como é possível sustentar a abissal desigualdade de prémios a atribuir a praticantes não portadores de deficiência e a portadores de deficiência e ainda o diferente regime para as situações de pluralidade de êxitos de um mesmo atleta, com base numa pretensa “verdadeira justificação da atribuição dos prémios”, que o Tribunal Constitucional decidiu, com total autonomia (“sem lei, para além da lei e contra a lei”), vislumbrar na diferente “contribuição para a projecção do País”, tendo por critério aferidor a “repercussão mediática” dos diversos sucessos desportivos, “impressionisticamente” avaliada. Mesmo que esta
“impressão” corresponda à realidade, o que é inadmissível é que critérios jornalísticos possam ser erigidos em parâmetro de aferição da violação do princípio constitucional da igualdade.
À distorção da realidade resultante das prioridades próprias dos órgãos de comunicação social se referem as seguintes afirmações do Ministro da Segurança Social e do Trabalho, na Assembleia da República, em 16 de Outubro de 2003, a propósito do Ano Europeu das Pessoas com Deficiência: “A propósito do desporto não posso deixar de aqui, mais uma vez, enaltecer a notável contribuição de atletas portugueses em várias competições mundiais e europeias que muito honraram e prestigiaram o nosso país. Foram êxitos notáveis que a todos nos devem servir de exemplo e modelo de acção, mas que infelizmente
– mesmo neste Ano especial – não tiveram o justo eco na comunicação social e na sociedade em geral mais propensas a olhar para o lado miserabilista dos problemas. Noticia-se até à náusea um qualquer e efémero facto desportivo profissional e marginaliza-se até à indiferença o esforço, o carácter, a dignidade e os êxitos destes nossos heróis. É que não há vitórias de primeira e de segunda ou terceira categorias. E se as houvesse, então seriam os atletas com deficiência os primeiros.”
Os critérios jornalísticos não podem ser erigidos em barómetro de princípios e normas constitucionais.
A redução dos “prémios de alta competição” a uma especial forma de pagamento de serviços excepcionais prestados ao País, uma espécie de recompensa por se guindar “bem alto” o nome de Portugal, para além de desconforme com a expressa justificação legal dessa medida, revela uma visão negativa do papel do desporto na sociedade, assentando numa ideia de desporto de Estado, de “guerras das medalhas”, tão presente em momentos históricos bem recentes das relações internacionais, e deixando mesmo entrever, no fundo, uma compreensão filosófica de base transpersonalista.
Os prémios de alta competição – repete-se – não visam retribuir ou compensar um qualquer momento de afirmação do nome de Portugal no contexto internacional, mas antes potenciar uma crescente generalização da prática desportiva e possibilitar os meios necessários às especiais e onerosas condições de preparação para os eventos desportivos internacionais. E, quanto a este último aspecto, julga-se não ser objectivamente desmentível que essas condições se afiguram, por via de regra, mais penosas para os cidadãos portadores de deficiência do que para os não portadores de deficiência.
A isto acresce que não se afigura legítimo que o Tribunal ajuíze a relevância de eventos desportivos mediante a produção de afirmações que não se sedimentam em qualquer credível fonte de informação. Lendo o acórdão, fica-se com a enganosa crença que, por exemplo, os Jogos Paraolímpicos vão pouco mais além de que uma mera manifestação desportiva de recreação, agrupando um número muito limitado de atletas participantes, o que justificaria – ao contrário do que sucede nos Jogos Olímpicos – que os atletas portugueses portadores de deficiência tivessem maior facilidade em alcançar resultados desportivos de excelência. Sucede, contudo, que a realidade paraolímpica é bem diversa da assim esboçada. Cingindo-nos às duas últimas realizações, constata-se que nos Jogos de Atlanta, em 1996, participaram 3500 praticantes desportivos e estiveram representado 100 países, entre os quais Portugal, com 35 atletas (em quatro modalidades desportivas), que obtiveram 14 medalhas (6 de ouro, 4 de prata e 4 de bronze); e nos Jogos de Sidney, em 2000, entre 3824 praticantes desportivos, de 122 países representados e ainda uma delegação de Timor-Leste, estando 550 medalhas em disputa, com cobertura assegurada por 2300 órgãos de comunicação social, dos 68 países que conquistaram medalhas, Portugal ocupou o 26.º lugar (6 medalhas de ouro, 5 de prata e 4 de bronze).
Aliás, regista-se em diversos países uma tendencial equiparação entre o movimento olímpico e o movimento paraolímpico, estabelecendo-se, para além do reconhecimento expresso dos Comités Paraolímpicos nas leis de bases dos respectivos sistemas desportivos (por exemplo: em Espanha e no Brasil), uma igualdade de direitos e deveres (ao nível estatutário e de relacionamento com os poderes públicos) entre os Comités Olímpicos Nacionais e os Comités Paraolímpicos, orientação em que se insere, entre nós, a Proposta de Lei n.º 80/IX (Lei de Bases do Desporto), em apreciação na Assembleia da República (cf. artigo 29.º, que manda aplicar ao Comité Paraolímpico de Portugal, com as devidas adaptações, o disposto no artigo anterior, a propósito do Comité Olímpico de Portugal, relativamente aos praticantes desportivos portadores de deficiência e aos jogos paraolímpicos e estende àquele o regime tributário deste).
Por outro lado, a propósito da não cumulação de prémios dos atletas portadores de deficiência, surge como totalmente inaceitável, de um ponto de vista constitucional, a tese sustentada no acórdão de que uma evidente diminuição de direitos constitui estímulo e incentivo à prática desportiva (só válida, no entanto, para os cidadãos portadores de deficiência). Aliás, se o critério de diferenciação (tido por aceitável) fosse o da maior ou menor facilidade na obtenção de medalhas, haveria que atender às diversas modalidades desportivas, sendo extremamente variável o número de medalhas ao alcance de cada especialista (por exemplo: salto à vara e natação).
Por todas estas razões e ainda pelas expostas nas declarações de voto da Conselheira Maria Fernanda Palma e, quanto à segunda questão, dos Conselheiros Rui Moura Ramos e Gil Galvão, votei pela declaração da inconstitucionalidade de todas as normas questionadas pelo recorrente, essencialmente pelos fundamentos pelo mesmo aduzidos. Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
1. Acompanhei o acórdão do Tribunal quanto à decisão de não inconstitucionalidade das normas da Portaria nº 393/97 que fixam, quanto aos cidadãos portadores de deficiência que alcancem resultados de excelência em competições desportivas internacionais, prémios inferiores aos atribuídos pela Portaria nº 211/98, de 3 de Abril, aos praticantes em regime de alta competição que obtiverem resultados desportivos correspondentes aos níveis máximos de rendimento da modalidade.
Considero, em todo o caso, que o fundamento dessa diferenciação não deve buscar-se – como o faz o acórdão – na «importância atribuída pela opinião pública e pelos media, nacionais e internacionais, à classificação num dos três primeiros lugares nos Jogos Olímpicos», adiantando-se que ela «não é, seguramente, a mesma da que se atribui a idêntica classificação nos Jogos Paraolímpicos». Tão-pouco deve o Tribunal afirmar que se justifica «que o Estado confira um mais acentuado relevo à conquista de um dos três primeiros lugares nos jogos e campeonatos em que participam atletas não portadores de deficiência, designadamente tendo em conta a contribuição dada à projecção do País que advém das classificações obtidas pelos seus praticantes que alcançaram tais feitos desportivos».
A «projecção do País» não constitui, seguramente, um elemento que o legislador haja erigido como factor de atribuição de prémios no campo desportivo. Da referência ao «valor e mérito» dos êxitos desportivos, constante no artigo 33º, nº 1, do Decreto-Lei nº 125/95, de 31 de Maio, não pode inferir-se, de forma alguma, que aí se inscreve ainda a «projecção do País» no plano internacional. Pelo contrário, poder-se-ia mesmo dizer que a referência ao «valor e mérito» dos
êxitos desportivos pretende enaltecer essas qualidades qua tale, em si mesmas consideradas, sem retirar daí quaisquer implicações para a afirmação e projecção de Portugal no mundo. Parece mesmo que a valorização do esforço e do mérito do atleta – o único elemento a que a lei atende – é dificilmente compatível com concepções do desporto que transcendam o interesse da autorealização pessoal em nome de outros valores.
Para mais, a tentativa, empreendida pelo acórdão, de comparar as competições em causa – os Jogos Olímpicos, de um lado, e os Jogos Paraolímpicos, de outro – surge desacompanhada de elementos (v.g., em dados estatísticos) que permitam sustentar a afirmação de que «os campeonatos do mundo e da Europa em que participam atletas não portadores de deficiência são acontecimentos internacionalmente muito mais participados (em número de países e de atletas)». E sempre se dirá que o número de países ou atletas participantes não é um critério que em lugar algum o legislador eleja como fundamento da concessão de prémios, nem deve o Tribunal apoiar-se em supostos dados de senso comum, que não explicita, para alicerçar aquela suposição.
De todo o modo, recordar-se-á, a este último propósito, que os Jogos Paraolímpicos realizados em Sydney em 2000 contaram com a presença de atletas integrando 123 delegações (dados in: http://www.paralympic.org/). Se é verdade que nos Jogos Olímpicos realizados nesse ano estiveram presentes 199 delegações
(dados in: http://www.olympic.org) não é menos certo que os Jogos Paraolímpicos, iniciados em 1948, são muito mais recentes do que as Olimpíadas e que a “taxa de crescimento” daqueles, em número de países e de atletas participantes, é muito superior à dos Jogos Olímpicos.
A razão da minha divergência quanto à fundamentação do acórdão situa-se ainda no que considero serem os limites funcionais da jurisdição constitucional no confronto com o espaço da liberdade própria do legislador democrático. Por outras palavras, não deve o Tribunal Constitucional indagar dos possíveis fundamentos de medidas adoptadas pelo legislador quando este, claramente, enuncia os seus propósitos. Com efeito, no caso em apreço, em lugar de considerações em torno da «projecção do País», entende o legislador, no preâmbulo da Portaria nº 393/97, de 17 de Junho, que os prémios «apresentam a dupla natureza de saudar o êxito desportivo do praticante e de apoiar as (...) acções de integração» do mesmo na comunidade. Há, pois, um fundamento específico, distinto daqueloutro aplicável ao desporto em geral, para apoiar os cidadãos portadores de deficiência que pratiquem actividades desportivas: o apoio à sua integração. É esse – e só esse – o fundamento distintivo entre os dois tipos de atletas. Quanto ao mais, pretende-se, em ambos os casos, sublinhar o valor e o mérito dos êxitos desportivos – ou, para usar as palavras da Portaria nº 393/97, «saudar o êxito desportivo do praticante».
Nesse sentido, entende-se que a integração do desportista com deficiência,
«reflexo das acções desenvolvidas em apoio da sua inserção social» (nos dizeres da Portaria nº 393/97), não é só um fundamento suplementar mas o fundamento específico que, no contexto particular das pessoas com deficiência, assume, naturalmente, um lugar central para o desenvolvimento das suas personalidades. Quanto ao desporto em geral – categoria de onde, de resto, não estão excluídos os portadores de deficiência – o preâmbulo do Decreto-Lei nº 125/95, diploma que regulou o estatuto do atleta de alta competição, enuncia outros valores a prosseguir, nomeadamente a generalização da prática desportiva entre a juventude. Como se refere naquele texto, «é incontroverso que a alta competição, como paradigma da excelência da actividade desportiva, fomenta a sua generalização, mesmo enquanto actividade de recreação, e particularmente entre a juventude».
Ora, é manifesto que o universo dos jovens susceptíveis de serem atraídos para a prática do desporto se situa maioritariamente, por uma pura razão estatística, objectivamente comprovável, no seio de jovens não portadores de deficiência (a taxa nacional de deficiência é de 9,16%, nos termos do Inquérito Nacional às Incapacidades, Deficiências e Desvantagens, Lisboa, 1998). E, nesse sentido, havendo um critério objectivo para aferir da razoabilidade da diferenciação – e, mais ainda, encontrando-se esse critério expresso no preâmbulo do diploma que regula o estatuto do atleta de alta competição – creio que é aí que tem de buscar-se a solução para o problema de constitucionalidade colocado ao Tribunal. A questão, singelamente, não é a de uma suposta «projecção do País» mas da
«projecção do desporto» nas diversas camadas da população, em especial no seio da juventude.
Finalmente, mas não menos importante, considero que não poderia o Tribunal prescindir de uma avaliação das regras de acesso e competição aos diversos tipos de competições em presença, dando relevo, nomeadamente ao carácter restritivo das normas que permitem a participação nos Jogos Olímpicos, em confronto com as que regulam as provas dos Jogos Paraolímpicos e as outras competições em que participam pessoas com deficiência. A diversidade das condições de acesso a umas e outras, além das diferentes regras das próprias competições, seriam, em meu entender, os motivos mais sólidos – ou, mais razoáveis – para justificar a disparidade do montante dos prémios atribuídos pelas normas impugnadas.
2. Votei vencido quanto à não inconstitucionalidade da norma que estabelece limites à acumulação de prémios desportivos por parte das pessoas com deficiência – a norma do nº 2 da Portaria nº 393/97.
Com efeito, não se vislumbra qualquer fundamento que permita justificar, com razoabilidade, que os desportistas com deficiência, ao contrário do que sucede com os demais, não possam acumular tantos prémios quantos as vitórias alcançadas na modalidade ou nas modalidades a que concorrem. Se o que está em causa é, ao cabo e ao resto, premiar a excelência desportiva, não podem estabelecer-se limites à acumulação de prémios. E, muito menos, não podem estabelecer-se limites quando eles não existem em relação aos desportistas não deficientes.
Nem se afirme, em contrário, que a justificação para tais limites pode ainda buscar-se nos motivos que fundamentam a diferença do montante dos prémios. Não se vê, mesmo recorrendo ao argumento da «projecção do País», em que medida a existência de diferenças entre as provas – no fundo, entre as pessoas que concorrem, deficientes e não deficientes – pode legitimar o estabelecimento de um qualquer «tecto» à acumulação de prémios. E não pode, de modo algum, acompanhar-se o acórdão quando diz, a dado passo, que os jogos reservados a atletas com deficiência, «pela notória menor concorrência de participantes, não deixam, objectivamente, de ser perspectivados como apresentando um menor grau de dificuldade relativamente aos Jogos Olímpicos, Campeonatos do mundo e da Europa».
Considera-se ser este um argumento logicamente inadmissível se não for acompanhado de uma indagação objectiva que permita, com segurança, concluir pela maior «facilidade» dos jogos para deficientes. Para avançar tal argumento, era necessário saber se a menor afluência aos jogos para pessoas com deficiência – menor afluência que, de resto, também carecia de ser demonstrada – se traduz efectivamente numa maior possibilidade de alcançar vitórias. O facto de, nos
últimos Jogos Olímpicos, terem concorrido 10.651 atletas e, nos últimos Jogos Paraolímpicos, terem estado presentes 3.843 atletas não comprova, por si só, uma maior «facilidade» destes últimos. Essa maior «facilidade» só pode ser demonstrada, em termos lógicos, se se tivessem realizado, em todas as modalidades, exactamente o mesmo número de provas (ou um número aproximado de provas) do que nos Jogos Olímpicos. Aí, na verdade, as probabilidades de êxito de cada um dos participantes seriam maiores. Só que o acórdão não demonstra que nos Jogos Paraolímpicos ou noutras provas para pessoas com deficiência o leque de modalidades em presença – e o número de provas em cada modalidade – seja igual ao dos Jogos Olímpicos. Apenas dessa forma seria possível concluir por um
«menor grau de dificuldade» das competições para pessoas com deficiência. Na ausência dessa demonstração, o argumento claramente não procede.
Não colhe igualmente a afirmação – absolutamente indemonstrada – que o limite à acumulação terá como efeito um incentivo à participação de um maior número de atletas. Não se vê, de facto, que incentivo a participar resultará de uma norma que, precisamente, torna menos favorável a prática desportiva de deficientes no confronto com o universo das pessoas sem deficiência. O argumento do acórdão é, aliás, reversível. Na verdade, sempre se poderia dizer que a possibilidade de os atletas poderem acumular prémios, sem a existência de limites, é um incentivo - um incentivo financeiro - a que mais pessoas concorram e se dediquem à prática do desporto. E essa hipótese é bem mais provável do que a que fundamenta a decisão do Tribunal. De facto, não concebo como de uma norma que limita o montante dos prémios aos desportistas se pode retirar um incentivo à prática do desporto. Acresce que, se por absurdo assim se devesse entender, seria dificilmente compreensível que, atentos os fins por si prosseguidos, o legislador não tivesse utilizado tal método para assim potenciar também o crescimento do universo dos desportistas não deficientes.
Por essa razão – e em síntese –, votei vencido quanto à não inconstitucionalidade da norma do nº 2 da Portaria nº 393/97, de 17 de Junho.
Rui Manuel Moura Ramos