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Proc. n.º 112/94 Plenário Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1. Requerente - Objecto do pedido
O Procurador-Geral da República, no uso da competência estabelecida no art.º
281º, n.º 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa (doravante designada apenas por CRP), requereu a este Tribunal Constitucional que seja apreciada e declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro, que tem o seguinte teor:
Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro
Tendo em atenção o conteúdo do Acórdão n.º 61/91, de 13 de Março de 1991, do Tribunal Constitucional e a necessidade de dar cumprimento ao artigo 115º da Constituição; Tendo sido publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, para apreciação pública, o projecto de portaria que esteve na base do presente diploma, cujos resultados foram devidamente ponderados : Manda o Governo, pelo Secretário de Estado do Tesouro, ao abrigo do Despacho n.º
18/91-XII do Ministro das Finanças, publicado em 27 de Dezembro de 1991 e nos termos do § único do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 26095, de 23 de Novembro de
1935, o seguinte:
1º São aplicadas as tabelas anexas à Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, ao cálculo do valor do capital de remições autorizadas.
2º A presente portaria entra em vigor na data da sua publicação.
2. Fundamentação do pedido
Fundamentando o seu pedido, o Procurador-Geral da República alegou, em síntese, o seguinte:
- O legislador pretendeu, através da Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro, ultrapassar os vícios formais e procedimentais que haviam conduzido à declaração de inconstitucionalidade, operada pelo Acórdão n.º 61/91 do Tribunal Constitucional, da alínea b), do n.º 3, da Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro.
- Efectivamente, verifica-se que a Portaria refere, no preâmbulo, a audição prévia das entidades representativas dos trabalhadores e, por outro lado, nela não se faz referência à regra da correspondência entre as provisões matemáticas das seguradoras e o capital da remição das pensões, que voltou a constar do Decreto-lei n.º 360/71, de 21 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 304/93, de 1 de Setembro.
- Sucede, porém, que a disciplina instituída pela Portaria n.º 946/93, ao repor em vigor as tabelas anexas à Portaria n.º 760/85, é materialmente inconstitucional, na medida em que determina a redução substancial do capital de remição das pensões por acidentes de trabalho ocorridos antes da sua entrada em vigor.
- A aplicação das tabelas da Portaria n.º 760/85 vai implicar, para os trabalhadores sinistrados com menos de 77 anos de idade, uma substancial diminuição do montante do capital de remição devido, colidindo frontalmente com a tendência ascendente que, pelo menos desde os anos 30, se vinha verificando.
- É legítima a expectativa do sinistrado não ver degradado o nível de protecção social a que teria direito na data do acidente, tendo em conta:
- a) a tendência claramente ascendente das taxas utilizadas ao longo dos
últimos anos - até 1994 - para o cálculo do capital de remição;
- b) a inexistência de problemas financeiros sérios das entidades devedoras;
- c) a evolução positiva da esperança média de vida;
- d) a circunstância de não se vislumbrar - em 1994 - qualquer tendência ascendente na taxa de juros remuneratórios correspondentes às possíveis aplicações financeiras do capital de remição.
- O alcance da Portaria n.º 946/93 – ao mandar aplicar as tabelas anexas
à Portaria n.º 760/85 – é susceptível de colidir com o princípio constitucional da proibição do retrocesso social, porque a Portaria tem como efeito degradar, de forma sensível, a situação dos pensionistas com direito à remição, o que significa um evidente e desrazoável retrocesso da sua protecção social, não fundamentado em pertinentes dificuldades financeiras de quem deve suportar o pagamento do capital de remição.
- Acresce que a aplicação imediata das tabelas postas em vigor pela Portaria n.º 946/93 à remição de pensões por acidentes de trabalho ocorridos quando ainda vigoravam as precedentes disposições regulamentares é susceptível de determinar uma frustração intolerável, arbitrária e desproporcionadamente opressiva de expectativas legitimamente adquiridas pelos sinistrados e, como tal, violadora do princípio constitucional da confiança.
Partindo do princípio de que o direito à remição se constitui no momento do acidente e argumentando pelo modo exposto, o Procurador-Geral da República conclui no sentido da inconstitucionalidade da norma constante da Portaria n.º 946/93.
3. Resposta do Primeiro-Ministro
Notificado para responder (art.º 54º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, doravante designada apenas por LTC), veio o Primeiro-Ministro sustentar a não inconstitucionalidade da norma impugnada pelo requerente, com base, em resumo, nos seguintes fundamentos:
- O Primeiro-Ministro não tem legitimidade para se pronunciar nos presentes autos, por não ser o autor do acto impugnado.
- A eventual existência de um princípio, constitucionalmente consagrado, de proibição do retrocesso em relação aos avanços atingidos nos campos dos direitos económicos e sociais constitui hoje uma tese que se apresenta mais do que duvidosa, face à crise que atravessa, não só a sociedade portuguesa, mas todo o mundo ocidental.
- Na verdade, aquele princípio encontrava-se directamente ligado à ideia do progresso económico de sentido contínuo, compreendendo-se hoje que o progresso não é inelutável e que condições aparentemente estruturais das sociedades actuais, como taxas de crescimento reduzidas ou mesmo negativas, podem constituir factores de degradação permanente das condições de vida, em termos de não ser possível confirmar as anteriores expectativas de progresso infinito.
- De qualquer forma, mesmo que um tal princípio existisse, nunca no caso dos autos se poderia dizer ocorrer a sua violação, uma vez que a norma em causa mais não fez do que adequar os valores das provisões matemáticas, que as companhias seguradoras têm que criar, às novas realidades de natureza económica e financeira verificadas desde 1971, pondo fim a uma distorção que aumentava, sem justificação técnica, o nível das provisões matemáticas das seguradoras, e que feria ainda os objectivos de equidade e igualdade dos cidadãos perante a lei, atentas as diferenças entre os pensionistas que podiam remir o capital das pensões e aqueles que tinham de recebê-las através de rendas vitalícias.
- Quanto ao princípio da protecção da confiança, esclarece-se, desde logo, que só é possível, mesmo em abstracto, falar em expectativas relativamente ao valor do capital de remição das pensões depois de conhecido o grau de revalorização fixado, já que, até aí, o incapacitado não sabe sequer se legalmente poderá haver lugar à remição.
- Quer isto dizer que, para os acidentes ocorridos antes da entrada em vigor da Portaria n.º 946/93 e que determinaram uma incapacidade não superior a
10% fixada antes de 28 de Setembro de 1993, em que a remição é obrigatória, o presente pedido de declaração de inconstitucionalidade apresentado pelo Procurador-Geral da República não apresentará qualquer interesse prático, dado o disposto no n.º 3 do artigo 282º da Constituição.
- Quanto aos casos de desvalorização entre 10% e 20% fixadas anteriormente à entrada em vigor da Portaria n.º 946/93 e em que os pedidos de remição só tenham sido autorizados após a entrada em vigor do diploma, a questão que se põe é a de saber se as expectativas desses sinistrados – de o capital de remição das suas pensões ser calculado segundo as bases anteriormente vigentes – serão juridicamente relevantes.
- A resposta é seguramente em sentido negativo, desde logo porque, nos termos da lei, a remição daquelas pensões não depende exclusivamente da vontade dos interessados, mas igualmente do preenchimento de determinados requisitos legais que têm que ser judicialmente reconhecidos. Só então é que nascerão expectativas merecedoras de tutela jurídica, e não com a ocorrência do sinistro ou com a fixação do grau de desvalorização.
- A expectativa que legalmente deve ser tutelada, no campo da remição das pensões, só pode ser a de que, através do capital obtido com a remição, o sinistrado consiga obter um capital de que possa resultar para ele um rendimento igual ao valor fixado para a pensão.
- Com a elevação das taxas de juro, cujo aumento relativamente às de 1971
é notório, é necessário um capital menor para se obter idêntico rendimento. Assim, o pedido do Procurador-Geral da República teria de demonstrar: a) que a alteração processada no montante da taxa de juro considerada não assenta numa base técnica correcta; b) ou que o rendimento obtido pelo sinistrado com a aplicação normal do seu dinheiro não seria suficiente para garantir um rendimento correspondente ao valor da pensão remida e à correspondente redução na capacidade de ganho sofrida pelo trabalhador sinistrado.
- Não se demonstrando nenhum dos pontos acima referidos não pode nunca falar-se em qualquer frustração de expectativas dos pensionistas e, consequentemente, de qualquer violação do princípio da confiança.
- O princípio de adequação à evolução temporal que presidiu à alteração das taxas de juro técnicas na Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, e que passaram a ser aplicáveis por força da Portaria n.º 946/93, verificou-se igualmente na utilização da tábua de mortalidade 1960-64, que substituiu a de
1946-49, constante da tabela anexa à Portaria n.º 632/71, de 19 de Novembro.
- Ao contrário, pois, do que entende o Procurador-Geral da República, a pretensão de que os pensionistas possam ter expectativas de obter um capital de remição que exceda o necessário à obtenção de um rendimento maior do que o postulado pela redução na capacidade de ganho, ela sim, é que tem como consequência a criação de intoleráveis situações de desigualdade que afectariam todo o equilíbrio do sistema.
- Tal desigualdade em desfavor dos pensionistas afectados com desvalorizações mais graves só pode ser evitada com actualizações que façam corresponder o capital remido ao valor de rendimento da pensão.
Como decorrência de tudo o alegado, o Primeiro-Ministro conclui que a norma constante da Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro, não viola, pois, a Constituição.
4. A falta de legitimidade do Primeiro-Ministro para se pronunciar sobre o pedido
Na sua resposta, o Primeiro-Ministro suscitou, como já se relatou, a questão da sua falta de legitimidade para se pronunciar sobre o pedido, uma vez que o autor da portaria em causa é o Secretário de Estado do Tesouro.
Tal questão foi resolvida pelo Acórdão (interlocutório) deste Tribunal Constitucional n.º 476/94, transitado em julgado, publicado nos ATC, Vol. 28º, págs. 139 e segs., no sentido do indeferimento da questão prévia suscitada pelo Primeiro-Ministro, tendo ordenado o prosseguimento dos autos. Relativamente a tal matéria, apenas é de lembrar, aqui, que o Tribunal considerou, aí, que a questão em apreço não é verdadeiramente a de determinação do autor da norma questionada mas antes tão-só uma questão de representação processual e que, no caso dos autos, a notificação feita ao Primeiro-Ministro tem o sentido, não de pôr a seu exclusivo cargo o ónus de subscrever e apresentar a resposta, mas tão-só o de promover a apresentação desta.
B – Fundamentação
Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional nos termos do art.º 63º da LTC, e fixada pelo Tribunal a orientação sobre as questões a resolver, e distribuído que foi o processo, cumpre dar-lhe cumprimento, formulando a respectiva decisão por ela postulada.
5. Delimitação do objecto do pedido
Antes de mais importa proceder à delimitação do objecto do pedido. Referiu-se acima como sendo o objecto do pedido a norma constante da Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro, mas tal indicação comporta alguma ambiguidade que se torna necessário esclarecer.
É que, desde logo, a Portaria em causa tem duas normas
(correspondentes aos n.os 1 e 2) e não apenas uma, conforme parece decorrer do pedido do Procurador-Geral da República que pede a fiscalização da norma constante da Portaria n.º 946/93, sem concretizar se se trata do n.º 1, do n.º 2 ou de ambos.
Por outro lado, verifica-se que o Requerente, na exposição dos termos e dos fundamentos do pedido, não questiona a conformidade constitucional de todo o regime criado pela Portaria mas apenas, e de forma mais precisa, a parte da “disciplina instituída pela Portaria n.º 946/93 [que] - ao repor em vigor as tabelas anexas à Portaria n.º 760/85 – [...] determina a redução do capital de remição das pensões por acidentes de trabalho ‘ocorridos’ antes da sua entrada em vigor”.
Ora, o objecto do pedido - e a apreciação do Tribunal, uma vez que o Tribunal se encontra vinculado ao princípio do pedido, nos termos do n.º 5, do artigo 51º da LTC – não pode deixar de ser fixado senão nos termos precisamente indicados.
Também, aliás, a invocação do “retrocesso” se reporta apenas à
“situação dos pensionistas com direito à remição” – isto é, contraria a interpretação do pedido como limitada à situação dos pensionistas por acidentes de trabalho ocorridos antes da entrada em vigor do diploma em causa.
Assim sendo, o pedido do Requerente deverá ser interpretado como incidindo sobre as normas constantes dos n.os 1 e 2 da Portaria n.º 946/93, de
28 de Setembro, mas apenas na estrita medida em que a sua conjugação determina a aplicação das tabelas anexas à Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, ao cálculo do valor do capital de remição de pensões relativas a acidentes de trabalho ocorridos antes da entrada em vigor da Portaria n.º 946/93, ou seja, antes de 28 de Setembro de 1993.
6. A revogação da Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro
Para se fazer, hoje, uma análise cabal do caso sub iudice, é indispensável compreender a evolução legislativa que, entretanto, se operou na matéria em questão. De facto, o regime que regula a possibilidade e os critérios de remição de pensões por acidentes de trabalho é agora muito diferente daquele que se encontrava em vigor à data do pedido de declaração de inconstitucionalidade da Portaria n.º 946/93, feito pelo Procurador-Geral da República. Dada a inequívoca importância deste facto para a determinação da existência ou não de interesse na apreciação do pedido, vejamos, então, as mudanças ocorridas.
7.1 - O regime vigente em 1994
Em 1994, data do pedido de declaração de inconstitucionalidade da portaria em questão, o regime das pensões por acidentes de trabalho era regulado, em primeiro lugar, pela Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965. Este diploma constituiu por mais de 30 anos a base jurídica da reparação dos acidentes de trabalho e doenças profissionais a que se encontravam sujeitos os trabalhadores por conta de outrem. A lei determinava, na sua base XXXIX, a remição obrigatória das pensões de reduzido montante, podendo ainda ser autorizada a remição de outras pensões se se considerasse economicamente mais
útil o emprego judicioso do capital.
O Decreto-Lei n.º 360/71, sucessivamente alterado em 1979 e 1985, veio regulamentar a lei anterior. Tal era, na verdade, indispensável, face às profundas alterações por ela trazidas relativamente ao anterior sistema de protecção das vítimas de acidentes de trabalho que fizeram com que a vigência de todo o regime ficasse dependente da emissão do decreto-lei regulamentar. O artigo 64º do diploma estabelece a obrigatoriedade da remição de pensões correspondentes a desvalorizações não superiores a 10%, sendo, nesse caso, de acordo com o disposto no artigo 65º, o valor da remição de 95% do valor correspondente ao da respectiva provisão matemática, valor esse calculado de harmonia com as bases oficialmente adoptadas para o cálculo das reservas matemáticas das sociedades de seguros.
Na sequência do anterior diploma, a Portaria n.º 632/71, de 19 de Novembro, aprovou as tabelas de taxas para o cálculo das reservas matemáticas das pensões por acidentes de trabalho. Utilizou, na elaboração das tabelas, a tábua de mortalidade PF 1946-49, uma taxa de juro técnica de 3,5% e ainda uma carga de gerência de 4%.
À portaria de 1971 seguiu-se uma outra, a Portaria n.º 760/85, que alterou as tabelas anteriormente estabelecidas, baseando-se na tábua de mortalidade de 1960-64, numa taxa de juro técnica de 6% e numa carga de gerência de 4%.
Pretendia-se com este novo diploma actualizar os valores constantes das referidas tabelas à evolução da esperança média de vida e, essencialmente, à alta verificada nas taxas de juro.
Acontece, porém, que a norma constante do artigo 65º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, na redacção do Decreto-Lei n.º 466/85, de 5 de Novembro [que dispunha que: “1 - o capital de remição de uma pensão será igual a
95% do valor correspondente ao montante da respectiva provisão matemática, calculada de acordo com as tabelas em vigor para o cálculo das provisões matemáticas das empresas de seguros. 2 - No cálculo da provisão matemática para efeitos do disposto no número anterior não serão, no caso da pensão ser da responsabilidade de empresas de seguros, consideradas as alterações verificadas em pensões anteriormente a 1 de Outubro de 1979, em consequência da aplicação da redacção dada ao art.º 50º do presente decreto pelo Decreto-lei n.º 459/79, de
23 de Novembro, nem tão pouco a atribuição de prestações suplementares pagáveis no mês de Dezembro de cada ano”], foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, ‘enquanto conjugado com o n.º 1 da Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, por violação do preceituado nos art.os 55º, alínea d), e 57º, n.º
2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa (versão de 1982)’ - não audição prévia dos representantes dos trabalhadores, obrigatória no âmbito da legislação do trabalho - pelo Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 61/91, publicado nos ATC, Vol. 18º, págs. 139 e segs..
Anote-se, aqui, ainda, que este mesmo Acórdão n.º 61/91 declarou igualmente a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea b) do n.º 3 da Portaria n.º 760/85 - que determinava que as tabelas anexas relativas ao cálculo das provisões matemáticas das pensões de acidentes de trabalho, aprovadas pelo n.º 1 da mesma Portaria, eram aplicáveis
‘ao cálculo, nos termos legais em vigor, do valor do capital de remições autorizadas a partir do primeiro dia do mês seguinte ao da data da publicação da
[...] portaria’ -, ‘por violação do princípio da precedência da lei, - decorrente, designadamente, dos n.os 6 e 7 do art.º 115º e do art.º 202º, alínea c), da Constituição (versão de 1982) - e também por violação do artigo 201º, n.º
1, alínea a)’.
Por força daquela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, a matéria da remição das pensões passou a ficar regulada pela
legislação repristinada que havia sido revogada, ou seja, pelo art.º 65º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto (versão originária), e pela Portaria n.º
632/71, de 19 de Novembro.
É na sequência daquela referida declaração de inconstitucionalidade que surge a Portaria n.º 946/93, aqui em apreciação. Com ela, mais não se pretende do que repor as tabelas práticas de cálculo do capital de remição por acidentes de trabalho estabelecidas no diploma anterior, superado que foi agora o vício formal que levou à eliminação daquele do ordenamento jurídico.
7.2 - O regime actualmente em vigor
Actualmente, porém, encontra-se em vigor um regime distinto quanto
à possibilidade e regras de cálculo do capital de remição de pensões por acidentes de trabalho.
Em primeiro lugar, a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, veio constituir a nova base de regulamentação, substituindo a anterior Lei n.º 2127 e revogando igualmente toda a legislação complementar. O novo regime alarga o leque de pensões de remição obrigatória (todas as pensões vitalícias de reduzido montante e ainda todas as correspondentes a incapacidade permanente parcial inferior a 30%). Maior é, também, o número de pensões cuja remição parcial passa a poder ser autorizada (caso de todas as pensões correspondentes a uma incapacidade igual ou superior a 30%, desde que a pensão sobrante seja pelo menos 50% do valor da remuneração mínima mensal garantida mais elevada). O novo regime é, no entanto, aplicável apenas aos acidentes de trabalho ‘ocorridos’ após a entrada em vigor desta lei e do decreto-lei que a regulamenta.
O Decreto-Lei n.º 143/99 surge, assim, para regulamentar o diploma anterior e nele encontramos várias disposições com relevo para a compreensão do caso em apreço. Em primeiro lugar, prevê-se a fixação por meio de portaria das novas bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição das pensões, bem como das tabelas práticas de cálculo desse mesmo capital (veja-se o artigo
57º). Em segundo lugar, estipula-se a data de entrada em vigor das disposições do novo regime (1 de Janeiro de 2000, por força do artigo 71º, na redacção do Decreto-Lei n.º 382-A/99), assim como um regime transitório, destinado a fazer face ao aumento extraordinário do número de pensões a remir, por força do disposto na Lei n.º 100/97 (atente-se no artigo 74º, igualmente na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A/99).
Em relação a este regime transitório, importa assinalar que ele em nada interfere com a questão ora em apreço. É certo que se trata de um regime aplicável somente aos acidentes de trabalho ocorridos antes da entrada em vigor da Lei n.º 100/97, mas respeitante apenas à possibilidade de remição de pensões e não à forma de cálculo do capital dessa mesma remição (como resulta aliás do Acórdão do STJ, de 6 de Novembro de 2002, in www.dgsi.pt, e do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 468/2002, de 13 de Novembro, publicado no DR, II Série, de 4 de Janeiro de 2003). Como pode ler-se neste último Acórdão:
«No domínio da Lei n.º 2127 não era imposta a obrigatoriedade da remição das pensões vitalícias [embora fossem obrigatoriamente remíveis as pensões de reduzido valor]. (...) Uma tal imposição veio a decorrer da disposição legal vertida no n.º 1 do artigo 33º da Lei n.º 100/97. (...) Ora a consagração deste direito não foi imediatamente “estendida”, numa leitura literal dos n.º 1 e 2 do artigo 41º da Lei n.º 100/97, às situações em que as pensões eram pagas antes da entrada em vigor da mesma lei (e, consequentemente, foram fixadas no domínio da Lei n.º 2127), o que porventura se compreende em face do regime até então existente (que, como se disse, não impunha a obrigatoriedade da remição) e do número avultado dessas situações que, seguramente, iria acarretar um acentuado dispêndio imediato por banda das seguradoras.
Daí que, sensível a esse circunstancialismo, tivesse o legislador de 97 entendido, relativamente às pensões anteriormente fixadas, que se havia de gizar, para efeitos do pagamento do capital remido que agora se impunha, um sistema transitório que, de certo jeito, tornasse menos onerosa para as seguradoras a obrigação que advinha do pagamento daquele capital, tornado agora obrigatório.».
Fica, então, claro que não estão em causa, no que respeita ao regime transitório descrito, quaisquer tabelas de cálculo do capital de remição, mas sim a própria possibilidade de remição quanto às pensões relativamente às quais tal hipótese só se abriu com o novo regime.
Quanto às tabelas de cálculo do capital de remição, problemática que por ora nos ocupa, surgiu a Portaria n.º 11/2000, que aprova as bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição das pensões de acidentes de trabalho e aos respectivos valores de caucionamento. Baseando-se na tábua de mortalidade TD 88/90 e numa taxa de juro técnica de 5,25%, aprova ainda as tabelas práticas para cálculo daquele capital. Vem, pois, substituir as tabelas práticas da Portaria n.º 760/85, aplicáveis por força da Portaria n.º 946/93.
Assim, e embora tal não esteja expressamente previsto, resulta inequívoco de uma análise atenta da Portaria n.º 11/2000, que a Portaria n.º
946/93, ora em causa, se encontra revogada, já que a matéria regulada por ambas as portarias é exactamente a mesma, aplicando-se, pois, o princípio de que a lei posterior derroga a anterior (como resulta do artigo 7º, n.º 2, in fine, do Código Civil).
Importante é ainda referir que todo o regime exposto será revogado com a entrada em vigor das normas regulamentares do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto de 2003 [conforme resulta do artigo 21º, n.º 2, alíneas g) e l), do diploma preambular que aprovou o Código do Trabalho].
Em face da revogação operada, importa agora averiguar se existe utilidade no conhecimento do mérito do pedido, uma vez que o “princípio do pedido”, previsto no n.º 5 do artigo 51º da Lei do Tribunal Constitucional, impede a “convolação” do objecto do processo e, com isso, a possibilidade de o Tribunal apreciar a constitucionalidade da portaria que veio a suceder à Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro. Vejam-se, a este propósito, por exemplo, os Acórdãos n.º 57/95, n.º 671/99, n.º 140/00 e n.º 531/00, publicados nos ATC, respectivamente, nos Vol. 30º, págs. 141 e segs., Vol. 45º, págs. 67 e segs., Vol. 46º, págs. 59 e segs., e Vol. 48º, págs. 47 e segs..
8. Questão prévia - a inutilidade no conhecimento do pedido
Constitui entendimento pacífico deste Tribunal que a circunstância de uma norma se encontrar revogada não conduz automaticamente à inutilidade do conhecimento do pedido de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a data da entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (cfr. artigo 282º, n.º 1, da Constituição), havendo, desta forma, interesse na emissão de tal declaração, quando ela seja indispensável para eliminar os efeitos produzidos pela norma questionada durante o tempo em que esta vigorou (cfr. Acórdãos n.º 17/83 e n.º 98/2000, publicados nos ACT, respectivamente, nos Vol. 1º, págs. 93 e segs., e Vol. 46º, págs. 41 e segs.).
Porém – também de acordo com reiterada jurisprudência do Tribunal
- não basta que a norma revogada tenha produzido um qualquer efeito, exigindo-se que exista um interesse jurídico relevante para que se proceda à referida apreciação (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 465/91, n.º 116/97 e n.º 673/99, publicados nos ATC, respectivamente, nos Vol. 20º, págs. 279 e segs., Vol. 36º, págs. 67 e segs., e Vol. 45º, págs. 83 e segs.).
A propósito do interesse na emissão da declaração de inconstitucionalidade, refere o Acórdão n.º 238/88, publicado nos ATC, Vol. 12º, págs. 273 e segs.:
«Há-de [...] tratar-se de um interesse 'com conteúdo prático apreciável', pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, 'seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de
índole genérica e abstracta, como é a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade' [...], para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo. Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade. O fim que, em primeira linha, se visa atingir com a declaração de inconstitucionalidade, que é o de expurgar o ordenamento jurídico da norma inquinada, esse já foi conseguido com a revogação. Eliminar os efeitos produzidos por essa norma não passa, pois, de uma finalidade marginal, só se justificando, por isso, a utilização daquele mecanismo quando estejam em causa valores jurídico-constitucionais relevantes.».
Há, portanto, que averiguar se, no caso em apreço, os efeitos produzidos pelas normas questionadas (no sentido de que delas resulta a aplicação das tabelas anexas à Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, ao cálculo do valor do capital de remição de pensões relativas a acidentes de trabalho ocorridos antes da entrada em vigor da Portaria n.º 946/93) justificam o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Em ordem a determinar o universo de casos de remições de pensões abrangidas pela Portaria n.º 946/93, relativas a acidentes de trabalho ocorridos antes de 28 de Setembro de 1993, importa saber qual a lei aplicável ao cálculo da remição da pensão.
Ora o cálculo do capital da remição de pensões por acidentes de trabalho deve ser feito de harmonia com as regras vigentes no momento em que nasce o direito à remição.
Assim, no que respeita ao cálculo do capital das remições obrigatórias, há que ter em conta que se aplicam as normas em vigor no início do vencimento da pensão, uma vez que os pressupostos – cumulativos - da remição são a incapacidade fixada ao sinistrado e a pensão que lhe é atribuída sendo o momento relevante aquele em que estejam fixadas as condições estabelecidas na lei (cfr. Carlos Alegre, anotação ao artigo 64º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, Acidentes de Trabalho, Almedina, 1995, pág. 222; e Acórdão de 16 de Maio de 1994 do Tribunal da Relação do Porto, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, quanto ao cálculo do capital das remições facultativas, porque estas não dependem exclusivamente da vontade dos interessados, mas também do preenchimento de determinados requisitos legais, que têm que ser judicialmente reconhecidos, aplicam-se as normas em vigor na data da autorização judicial (veja-se, neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Maio de 1994, 11 de Julho de 1994 e 22 de Maio de 1995, in
www.dgsi.pt).
Assim sendo, e à face do que vem de dizer-se, os casos abrangidos pelas normas da Portaria n.º 946/93 (nos termos visados pelo pedido) são os seguintes:
a) Pensões por acidentes de trabalho ocorridos antes de 28 de Setembro de
1993, remíveis obrigatoriamente (à luz do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto) em que o vencimento teve início depois da entrada em vigor da Portaria n.º
946/93 e antes da substituição desta pela Portaria n.º 11/2000;
b) Pensões por acidentes de trabalho ocorridos antes de 28 de Setembro de
1993, remíveis facultativamente (de acordo com o Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto) cuja remição foi autorizada após 28 de Setembro de 1993 (e, no limite, até 18 de Janeiro de 2000 – data em que entrou em vigor a Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro, que veio substituir a Portaria n.º 946/93).
Verifica-se, de acordo com o exposto, que os efeitos produzidos pelas normas revogadas (nos termos em que foram postas em crise pelo requerente e que são objecto de apreciação pelo Tribunal) são constitucionalmente pouco relevantes, tendo em conta que estão apenas em causa situações de remição de pensões por acidentes de trabalho ocorridos antes de 1993 e que as situações acima descritas na alínea a) não serão muito numerosas.
É de assinalar, nesta perspectiva, que, até à data, o Tribunal Constitucional não registou nenhum processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, tendo por objecto a Portaria n.º 946/93.
Deste modo, afigura-se excessivo e desproporcionado continuar o presente processo de fiscalização abstracta, uma vez que os litígios emergentes da aplicação das normas revogadas podem ser objecto de recurso no
âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.º 397/93, n.º 120/95, n.º 453/95, n.º 116/97 e n.º 270/00, publicados nos ACT, respectivamente, nos Vol. 25º, págs. 235 e segs., Vol. 30º, págs. 283 e segs., Vol. 31º, págs. 221 e segs., Vol. 36º, págs. 67 e segs., e Vol. 47º, págs. 27 e segs.).
.
Conclui-se, portanto, pela inexistência de interesse jurídico relevante e consequente inutilidade no conhecimento do pedido.
C - Decisão
9. Destarte, atentos os fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide, por falta de interesse jurídico relevante, não tomar conhecimento do pedido de declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 2 da Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro, na medida em que determinam a aplicação das tabelas anexas à Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, ao cálculo do valor do capital de remição de pensões relativas a acidentes de trabalho ocorridos antes de 28 de Setembro de 1993.
Lisboa, 21 de Outubro de 2003
Benjamim Rodrigues Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Bravo Serra Gil Galvão Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quer quanto à operada delimitação do objecto do pedido, quer quanto à decisão de não conhecimento do pedido, por pretensa falta de interesse jurídico relevante, pelas razões a seguir enunciadas.
1. Quanto à delimitação do objecto do pedido, constata-se que o requerente solicitou que o Tribunal Constitucional apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade “da norma constante da Portaria n.º 946/93, de 28 de Setembro”, sem que, na formulação do pedido, expressa ou implicitamente o restringisse – como o precedente acórdão veio a entender – à “estrita medida em que a sua conjugação determina a aplicação das tabelas anexas à Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, ao cálculo do valor do capital de remição de pensões relativas a acidentes de trabalho ocorridos antes da entrada em vigor da Portaria n.º 946/93, ou seja, antes de 28 de Setembro de 1993”.
É certo que, a determinado passo da fundamentação do pedido, o requerente refere que a norma questionada “é materialmente inconstitucional na medida em que determina redução substancial do capital de remição das pensões por acidentes de trabalho ocorridos antes da sua entrada em vigor”. Porém, não se afigura legítimo ver nesta passagem da fundamentação do pedido uma delimitação do objecto do mesmo, desde logo porque essa pretensa delimitação é incongruente com o discurso fundamentador da tese de inconstitucionalidade, globalmente considerado.
O requerente baseia o pedido de declaração de inconstitucional na violação de dois princípios constitucionais: o da protecção de confiança e o da proibição do retrocesso social. A referida passagem compreende-se no contexto da explanação do primeiro fundamento: a violação do princípio da protecção da confiança, por frustração de legítimas expectativas, só poderia valer em relação aos beneficiários de pensões emergentes de acidentes de trabalho ocorridos antes da entrada em vigor da Portaria questionada, pois as vítimas de acidentes ocorridos já na vigência desta Portaria nenhuma expectativa poderiam ter de que à remição das pensões deles emergentes fossem aplicáveis as tabelas aprovadas pela Portaria n.º 632/71, de 19 de Novembro, repristinada por força da declaração de inconstitucionalidade, pelo Acórdão n.º
61/91 deste Tribunal Constitucional, do n.º 1 da Portaria n.º 760/85. Mas relativamente ao segundo fundamento (violação do princípio da proibição do retrocesso social), não faz nenhum sentido restringir o pedido aos acidentes ocorridos antes da entrada em vigor da Portaria n.º 946/93: a alegada drástica redução do patamar de protecção social atingido neste domínio – contrariando uma tendência ascendente verificada desde a década de 1930, sem superveniência de razões, designadamente económicas, justificadoras desse retrocesso, nem ocorrência de quaisquer dificuldades financeiras de quem deve suportar o pagamento do capital de remição – abrange todas as situações a que venham a ser aplicáveis as tabelas decorrentes dessa Portaria, quer respeitem a acidentes ocorridos antes ou depois de 28 de Setembro de 1993 (como se sabe, o regime jurídico aplicável às remições de pensões por acidentes de trabalho é, no caso de remições obrigatórias, o vigente no dia seguinte ao da alta, por ser nesta data que nasce o direito à remição, e, no caso de remições facultativas, o vigente à data da decisão judicial que autoriza a remição).
Entendi, assim, ter sido incorrecta a delimitação do alcance do pedido, operada pelo precedente acórdão. A meu ver, o pedido abrange, não apenas a aplicação da Portaria n.º 946/93 a acidentes ocorridos antes da sua entrada em vigor (em 28 de Setembro de 1993), mas todo o período de vigência dessa Portaria, que só viria a ser revogada pela Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro.
2. Quanto ao interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido, mesmo que se aceite a valia do invocado “princípio de adequação e proporcionalidade”, segundo o qual “seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade, para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo”, nunca, no presente caso, os efeitos jurídicos que uma eventual declaração de inconstitucionalidade produziriam poderiam ser qualificados de pouco relevantes, nem se afigura que seja mais fácil ou eficiente a obtenção dos mesmos efeitos através da multiplicação de recursos no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade.
É que, como é sabido, a jurisprudência largamente dominante é no sentido de que o despacho judicial que autoriza a remição de pensão por acidente de trabalho e ordena se proceda ao cálculo do respectivo capital não constitui caso julgado, ainda que implícito, sobre o montante encontrado pela secretaria do Tribunal, pois tal despacho não se pronuncia sobre as regras do cálculo a efectuar, e, assim, a posterior decisão judicial que ordena a alteração desse cálculo é insusceptível de configurar ofensa de caso julgado. Essa jurisprudência foi desenvolvida a propósito dos numerosos casos em que a secretaria calculara o montante consequente da remição de harmonia com os critérios da alínea b) do n.º 3 da Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, que veio a ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 61/91 do Tribunal Constitucional, tendo-se entendido nada impedir a rectificação do cálculo efectuado por forma a serem atendidos os elementos constantes das tabelas anexas à repristinada Portaria n.º 632/71, de
19 de Novembro.
Essa orientação jurisprudencial foi reafirmada no acórdão da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Setembro de
2002, processo n.º 2909/02, de que fui relator, e que, a propósito, desenvolveu a seguinte fundamentação:
“Pelo acórdão n.º 61/91, de 13 de Março de 1991, do Tribunal Constitucional (Diário da República, I Série-A, n.º 75, de 1 de Abril de 1991, pág. 1625; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 405, pág. 91; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18.º volume, pág. 139), foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade «da norma constante da alínea b) do n.º 3 da Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, por violação do princípio da precedência da lei – decorrente, designadamente, dos n.ºs 6 e 7 do artigo 115.º e do artigo 202.º, alínea c), da Constituição – e também por violação do artigo
201.º, n.º 1, alínea a)», e «da norma constante do artigo 65.º do Decreto n.º
360/71, de 1 de Agosto, na redacção do Decreto-Lei n.º 466/85, de 5 de Novembro, enquanto conjugado com o n.º 1 da referida portaria, por violação do preceituado nos artigos 55.º, alínea d), e 57.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (versão de 1982)». Para tanto, considerou-se que: (i) apesar de o texto constitucional não definir o que seja legislação do trabalho, esta há-de ser a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações ou a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição; (ii) os diplomas legais respeitantes a acidentes de trabalho e doenças profissionais, matéria de segurança social dos trabalhadores, constituem legislação do trabalho, para efeitos de aplicação das normas constitucionais que asseguram a participação das organizações representativas dos trabalhadores na sua elaboração; (iii) nem a Portaria n.º 760/85, nem o Decreto-Lei n.º 466/85 fazem qualquer referência a uma eventual participação daqueles organismos na sua elaboração, o que consequencia que se presume que tal participação não ocorreu; portanto, há-de concluir-se que as normas impugnadas se encontram feridas de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 55.º, alínea d), e
57.º, n.º 2, da Constituição (versão de 1982), o que não oferece qualquer dúvida relativamente ao artigo 65.º do Decreto n.º 360/71, na redacção do Decreto-Lei n.º 466/85, uma vez que nos encontramos aí, inquestionavelmente, perante legislação do trabalho; (iv) quanto à norma da Portaria n.º 760/85, a circunstância de se encontrar num acto regulamentar não excluiria, de per si, a sua qualificação como legislação do trabalho, pois a participação das organizações representativas dos trabalhadores sempre haveria de ser exigida, pelo menos, no caso de diplomas secundários que acabem por revestir-se de um conteúdo equiparável, na sua natureza e no seu alcance ou efeito prático, ao de uma norma «legal»; (v) a norma da alínea b) do n.º 3.º da Portaria n.º 760/85, estabelecendo disciplina inicial, uma vez que não existia, à data da sua edição, norma legal que suportasse o seu conteúdo, viola os artigos 115.º, n.ºs 6 e 7,
201.º, n.º 1, alínea a), e 202.º, alínea c), da Constituição, prevalecendo, por razões de ordem lógica, tal vício sobre o que resultaria da violação dos artigos 55.º, alínea d), e 57.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
Tendo sido junto ao processo onde foi emitido o acórdão que vimos sumariando um parecer jurídico, remetido pela Associação Portuguesas de Seguradoras, onde se sustentava que, caso fosse declarada a inconstitucionalidade das normas impugnadas, o Tribunal Constitucional deveria limitar os efeitos dessa declaração, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo
282.º da Constituição, por forma a ressalvar os casos já definitivamente decididos, foi consignado, no mesmo acórdão, que tal limitação de efeitos não se justificava, porque já resulta do n.º 3 desse artigo 282.º que quando existem declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral «ficam ressalvados os casos julgados», e, por isso, a declaração de inconstitucionalidade a emitir pelo Tribunal Constitucional «não pode influir sobre as remições já efectuadas, ou seja, com sentença de homologação transitada em julgado», acrescentando-se: «só terá, pois, eficácia relativamente aos incidentes de remição ainda pendentes – nos tribunais de trabalho ou em recurso; mas, quanto a estes, seria inadequado proceder a qualquer limitação de efeitos».
Relativamente ao alcance da eficácia desta declaração de inconstitucionalidade foi suscitada nos tribunais do trabalho, em inúmeros processos, a questão da formação, ou não, de caso julgado, quanto ao regime jurídico aplicável ao cálculo do capital de remição, pelas decisões judiciais que autorizassem essa remição. Embora inicialmente algumas decisões do Tribunal da Relação de Lisboa tivessem considerado existir, nessa hipótese, caso julgado insusceptível de ser afectado pela declaração de inconstitucionalidade (cfr. acórdãos de 6 de Maio de 1992, processo n.º 7585, e de 21 de Outubro de 1992, processo n.º 7911, Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, 1992, tomo III, pág. 259, e tomo IV, pág. 221), o certo é que a generalidade da jurisprudência das Relações adoptou solução oposta e este
último foi o entendimento desde sempre seguido, de forme uniforme e unânime, por este Supremo Tribunal de Justiça.
Esse entendimento baseou-se na consideração de que, no incidente de remição de pensão, o juiz só intervém para decidir da sua viabilidade, deferindo ou indeferindo (artigo 151.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981), sendo o respectivo cálculo efectuado, sem a sua intervenção, pela secretaria (n.º 4 do mesmo artigo 151.º). Sendo assim, não havendo qualquer intervenção do juiz no cálculo da remição, é óbvio que não há caso julgado, podendo esse cálculo ser alterado, sem ofensa deste. Com efeito, o cálculo do capital de uma pensão, a realizar pela secretaria, e a entrega do mesmo sob a égide do Ministério Público (n.º 5 do artigo 151.º e artigo 152.º do mesmo Código) não constituem decisões judiciais que possam adquirir força de caso julgado, pois só as decisões judiciais, transitadas em julgado, gozam de força de caso julgado. Assim, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma que serviu de base ao cálculo da remição da pensão, o despacho do juiz que determinou se procedesse à reformulação do cálculo do capital da remição não ofende caso julgado, porque o anterior cálculo do capital de remição não resultara de decisão judicial. Em suma: o despacho judicial que ordena se proceda ao cálculo da importância correspondente à remição de pensão anual, fixada por acidente de trabalho, não forma caso julgado, ainda que implícito, sobre o montante encontrado pela secretaria do Tribunal; deste modo, tendo a secretaria calculado o montante consequente da remição de harmonia com os critérios da alínea b) do n.º 3 da Portaria n.º 760/85, de 4 de Outubro, que veio a ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 61/91 do Tribunal Constitucional, nada impede a rectificação do cálculo efectuado por forma a serem atendidos os elementos constantes das tabelas anexas à Portaria n.º 632/71, de 19 de Novembro.
Neste sentido decidiram os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça:
– de 25 de Março de 1992, processos n.ºs 3365 e 3389;
– de 14 de Abril de 1993, processo n.º 3663 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, 1993, tomo II, pág. 264);
– de 16 de Junho de 1993, processo n.º 3736;
– de 20 de Outubro de 1993, processo n.º 3770;
– de 26 de Outubro de 1993, processo n.º 3785 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, 1993, tomo III, pág. 285);
– de 16 de Dezembro de 1993, processos n.ºs 3850 e 3853;
– de 26 de Janeiro de 1994, processo n.º 3852 (Acórdãos Doutrinais, n.º 390, pág. 765);
– de 18 de Maio de 1994, processo n.º 3978 (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, 1994, tomo II, pág. 266);
– de 26 de Maio de 1994, processos n.ºs 3884, 3995, 3996, 3999,
4000, 4009, 4012, 4014 e 4019;
– de 1 de Junho de 1994, processos n.ºs 4010, 4013, 4015, 4017
(Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, 1994, tomo II, pág. 277), 4023 (Acórdãos Doutrinais, n.º 394, pág. 1187) e
4026;
– de 8 de Junho de 1994, processos n.ºs 3979, 3998, 4002, 4039 e
4040;
– de 12 de Junho de 1994, processos n.ºs 4032, 4033, 4034, 4035,
4041, 4043, 4044 e 4046;
– de 22 de Junho de 1994, processos n.ºs 3944, 4011, 4016, 4037,
4038, 4050 e 4057;
– de 28 de Junho de 1994, processos n.ºs 4018, 4021, 4022, 4036,
4042, 4045 (Acórdãos Doutrinais, n.º 397, pág. 95), 4051, 4062, 4066, 4067,
4069, 4071, 4072, 4073, 4075, 4078 e 4080;
– de 6 de Julho de 1994, processos n.ºs 4084 e 4088; e
– de 28 de Março de 1995, processos n.ºs 4156 e 4164.”
Aplicando esta orientação jurisprudencial à situação ora em apreço, constata-se que a prática totalidade (só se excluirão as hipóteses, seguramente de extrema raridade, em que o despacho judicial tenha explicitamente determinado a aplicação das tabelas reintroduzidas pela Portaria n.º 946/93) das situações em que a secretaria calculou o capital de remição com base na Portaria n.º 946/93 não estão cobertas por qualquer caso julgado e que, portanto, uma eventual declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada nestes autos implicará a reformulação desses cálculos, com base nas tabelas aprovadas pela Portaria n.º 632/71, tal como sucedeu na sequência da declaração de inconstitucionalidade da Portaria n.º 760/85.
Neste contexto, não vejo como se possa sustentar a inexistência de efeitos constitucionalmente relevantes decorrentes de eventual declaração de inconstitucionalidade que permita ao Tribunal Constitucional considerar “inadequado” e “desproporcionado” o accionamento da fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade das normas em causa, nem se afigura que seja mais “fácil” ou “eficiente” a remoção desses efeitos através da interposição de largas centenas de recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade. A circunstância de, até ao momento, não haver notícia da interposição de qualquer um destes recursos é obviamente irrelevante: a não formação de casos julgados permite ainda a suscitação da questão nos processos concretos, e uma justificação para essa ausência de litigiosidade pode encontrar-se no conhecimento da pendência no Tribunal Constitucional, desde
1994, deste pedido formulado pelo Procurador-Geral da República, sendo conhecido o papel especialmente relevante que, nos processos por acidentes de trabalho e na remição das pensões deles emergentes, assumem os magistrados do Ministério Público.
Por todas estas razões, votei no sentido do conhecimento do pedido.
3. Conhecendo-se do pedido, o meu voto, quanto ao mérito do mesmo, seria no sentido da declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada, por violação do princípio da proibição do retrocesso social, pelos fundamentos expendidos pelo requerente.
Como se refere no requerimento inicial, a disciplina instituída pela Portaria n.º 946/93, ao repor em vigor as tabelas anexas à Portaria n.º 760/85, determina uma redução substancial do capital de remição das pensões por acidentes de trabalho, implicando, para os trabalhadores sinistrados com menos de 77 anos de idade, uma redução que pode mesmo atingir a percentagem de 30% do valor que seria devido em consequência da aplicação das tabelas de
1971 (cf. Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho – Disposições legais mais recentes, Cadernos da Revista do Ministério Público, 1986, págs. 86 a 90). Tão drástica redução das taxas que determinam o montante de capital colide frontalmente com a tendência ascendente que, pelo menos desde a década de 1930, se vinha verificando no nosso ordenamento jurídico. Tomando como referência um sinistrado com a idade de 30 anos, o requerente demonstra que a taxa aplicável passou sucessivamente de 17,357 (para os sinistros ocorridos até 31 de Dezembro de 1936) para 18,463 (para os sinistros ocorridos até 31 de Dezembro de 1942),
20,890 (para os sinistros ocorridos até 31 de Dezembro de 1971) e 23,117 (para os sinistros ocorridos desde 19 de Novembro de 1971), passando a ser de 16,287, em consequência da aplicação da tabela anexa à Portaria n.º 760/85, reposta em vigor pela Portaria n.º 946/93.
Esta drástica redução das taxas aplicáveis ao cálculo do capital de remição – prossegue o requerente – não pode ser explicada em função de passarem a ter subjacentes os mais recentes índices de mortalidade
(correspondentes ao período de 1960/1964, em substituição dos correspondentes ao período de 1946/1949, em que se baseara a Portaria n.º 632/71), pois o aumento da esperança de vida sempre conduziria irremediavelmente ao acréscimo das importâncias devidas a título de remição, que mais não representa que uma antecipação do pagamento das pensões a que o beneficiário teria direito até ao fim da sua vida. É, assim, incongruente que o aumento da longevidade que desde
1971 se tem verificado, e que deveria conduzir ao acréscimo do capital de remição, determine a regressão das taxas a valores que expressam uma realidade estatística (e social) anterior à década de 1930.
Por outro lado, a ponderação de uma taxa de juro técnica de 6% (enquanto a Portaria de 1971 assentara numa taxa de juro técnica de 3,5%) não é, por si só, suficiente para justificar e legitimar aquela substancial degradação da situação jurídica dos pensionistas, já que se não perspectivava nem perspectiva um aumento da taxa de juros remuneratórios correspondentes às possíveis aplicações financeiras do capital de remição, uma vez que a taxa de juros remuneratórios tem acompanhado, nos últimos anos, a descida da inflação, sem que se haja notado ou seja de prever acréscimo no nível, quer da “taxa nominal”, quer das “taxas reais” (obtidas após a dedução da taxa de inflação verificada): bem pelo contrário, a elevação para 6% da referida taxa de juro técnica ocorre num período (1993) em que é manifesta a tendência para a descida das taxas de remuneração correspondentes aos depósitos bancários.
Finalmente, a sensível degradação da situação dos pensionistas com direito à remição não se fundamenta em pertinentes dificuldades financeiras de quem deve suportar o pagamento do capital de remição, o que – face à precedentemente demonstrada improcedência dos argumentos fundados na alegada desadequação das tábuas de mortalidade e das taxas de juro técnicas em que assentara a Portaria n.º 632/71 – permitiu ao requerente concluir pela evidente desrazoabilidade do retrocesso da protecção social dos sinistrados por acidentes de trabalho (e seus familiares), que colide com o princípio constitucional da proibição do retrocesso social.
Quanto ao argumento que, na resposta do Primeiro-Ministro, se pretende extrair dos valores das provisões matemáticas que as seguradoras têm de manter, importa considerar que as tabelas das provisões matemáticas não visam directamente regular a forma de cálculo do capital de remição, sendo sua função primordial (cf. Acórdão n.º 468/95) a de garantir as pensões a cargo das seguradoras, fornecendo o modo de determinação dos montantes proporcionais ao valor, número e natureza dos riscos assumidos, que a seguradora deverá, para garantia das pensões que hipoteticamente poderá ter se suportar, mobilizar (isto é, subtrair à sua política de investimentos). Na verdade, a referência às reservas no procedimento de cálculo de remição expressa apenas uma utilização derivada das tabelas para uma finalidade que não é aquela que basicamente justifica a sua existência, nada impedindo a existência de tabelas expressando valores diversos para as duas operações.
Este Tribunal Constitucional teve oportunidade de, no Acórdão n.º 509/2002 (Diário da República, I Série-A, n.º 36, de 12 de Fevereiro de 2003, pág. 905), recensear a doutrina e jurisprudência mais relevantes sobre o alcance do princípio da proibição do retrocesso social (cf., por último, sobre este princípio, Jorge Pereira da Silva, Dever de Legislar e Protecção Jurisdicional Contra Omissões Legislativas – Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade por Omissão, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2003, págs. 247 a 285), não se justificando agora retomar o tema. Basta reconhecer que, no mínimo, ocorrerá violação desse princípio quando, para além de outras situações, a alteração redutora atinja o conteúdo de um direito social cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade. Ora, a evolução histórica registada, apontando inequivocamente para uma lógica de crescente protecção ao sinistrado laboral (e os métodos de cálculo do capital de remição são disso exemplo), dá por adquirida na “consciência jurídica dominante” uma ideia de avanço nas prestações devidas ou, pelo menos, de garantia de estabilidade (manutenção) destas, pois boas e más conjunturas económicas foram atravessadas desde a década de 1930 e, não obstante, sempre se foi assistindo, concretamente no que respeita ao quantum do capital de remição, a épocas longas de estabilidade das prestações, intercaladas sempre por ligeiras subidas destas. Assim, mesmo adoptando uma visão menos aberta à ideia de proibição constitucional de retrocesso social, o regredir das prestações em causa, de forma tão substancial (atingindo, como se viu, uma redução de 30%), sem fundamento económico ou social relevante – designadamente, à luz da
“reserva económica do possível”, com base em impossibilidade ou especial dificuldade de as seguradoras manterem os níveis resultantes da Portaria de 1971
– não pode deixar de considerar-se constitucionalmente ilegítima.
Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
Votei vencido na questão prévia relativa à inutilidade do conhecimento do pedido por inexistência de interesse jurídico relevante por não poder acompanhar o acórdão quando nele se afirma, para sustentar a tese que fez vencimento, que os efeitos produzidos pelas normas revogadas (tal como sujeitas
à apreciação do Tribunal) “são constitucionalmente pouco relevantes, tendo em conta que estão apenas em causa situações de remição de pensões por acidentes de trabalho ocorridos antes de 1993” e que os casos desse tipo em que as pensões seriam remíveis obrigatoriamente e cujo vencimento teria tido lugar entre 1993 e
2000 não seriam muito numerosos. Nada verdade, nada há no acórdão que permita alicerçar esta conclusão que se me afigura pois carecida de fundamento.
Na verdade, a circunstância de não se ter registado qualquer pedido de fiscalização concreta de constitucionalidade relativo à Portaria nº 946/93 não se me afigura relevante, sendo certo que tal situação se pode ter ficado precisamente a dever à circunstância de, logo desde 1994, se encontrar pendente o pedido de fiscalização abstracta de que ora se não toma conhecimento.
Por outro lado, a invocação da tese de que uma eventual declaração de inconstitucionalidade teria efeitos apenas quanto aos incidentes de remição ainda pendentes não parece ser pertinente quando se reconhece logo a seguir que tal tese (acolhida num acórdão da Relação de Lisboa) é expressamente contrariada por diversos acórdãos da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça também aliás citados na decisão de que dissentimos.
Temos pois por indemonstrada a conclusão de que “seria assim excessivo e desproporcionado continuar o presente processo de fiscalização abstracta uma vez que os litígios emergentes da aplicação das normas revogadas podem ser objecto de recurso no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade”.
Acresce que, se bem entendemos, quando assim concluiu em casos anteriores o Tribunal foi mais longe na fundamentação de sua posição. Fê-lo designadamente no caso dos Acórdãos nº 397/93, 116/97 e 270/00 citados na decisão, onde o Tribunal logrou demonstrar que as situações afectadas pelas normas em crise que se não haviam consolidado ( e em relação às quais portanto a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produziria efeitos práticos) se encontravam pendentes de decisão judicial, pelo que sempre nos respectivos processos se poderia suscitar a questão de inconstitucionalidade. E do Acórdão nº 120/95, onde o Tribunal pôde afirmar em relação às normas (do regime disciplinar do batalhão de sapadores bombeiros da Câmara Municipal de Lisboa) que se entenderam revogadas não existir evidência da sua eventual aplicação. Ou ainda do Acórdão nº 453/95, em que o tempo máximo de produção de efeitos das normas cuja constitucionalidade se sindicava em claramente inferior ao da situação sub judicio (cerca de dez anos), não chegando a ultrapassar escassos meses.
Nestas circunstâncias, cremos que a invocação do requisito do interesse processual na pronúncia do Tribunal – entendido como um “interesse com conteúdo prático apreciável que justifique accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta” (Acórdão nº 453/95) - nos termos em que é feita na decisão de que dissentimos excede a relevância que lhe deve ser reconhecida nos processos de fiscalização abstracta de constitucionalidade.
Rui Manuel Moura Ramos