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Proc. n.º 745/02
2.ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A- O relatório
1. A., identificado com os demais sinais dos autos, foi condenado pelo Tribunal do Círculo de Ponta Delgada pela prática de um crime de falsificação, na forma continuada, p. e p. pelos art.os 256º, n.os 1 e 3, 30º e 79º, todos do Código Penal; de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 300º, n.º 2, alínea b) do mesmo Código (versão de 1982); de um crime de infidelidade, p. e p. pelo art.º 224º do mesmo Código (versão de 1995) e de um crime de burla, p. e p. pelos art.os 313º, n.º 1 e 314º, alínea c) do mesmo Código (redacção de 1982), em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 4 meses de prisão.
2. Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o arguido, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 2001.07.12, confirmado o julgado recorrido.
3. Dizendo-se ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
4. Verificando a secção de processos que o prazo de recurso tinha sido excedido e que o recorrente não havia efectuado o pagamento tempestivo da taxa de justiça devida, notificou-o para efectuar o pagamento omitido, com o respectivo acréscimo, tendo o recorrente liquidado apenas a multa correspondente (fls. 486 e 487).
5. Na resposta às alegações do arguido, apresentadas no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público suscitou a questão prévia do recurso dever ser dado sem efeito, nos termos do n.º 3 do art.º 80º do Código das Custas Judiciais, em consequência da falta de pagamento da taxa de justiça estabelecida no seu n.º 2.
6. Notificado de tal requerimento, o arguido respondeu-lhe, ao abrigo do disposto no art.º 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sustentando:
«Sendo certo que o arguido não pagou a taxa de justiça - porquanto julgava beneficiar de apoio judiciário - poderá sempre beneficiar do disposto no n.º 4 do art.º 80º, na medida em que a rejeição do recurso conforme pretende o M.º P.º conduz à perda imediata da liberdade.
[...] Na verdade, a rejeição do recurso implicará a perda - imediata - de liberdade por parte do arguido. Ora, o disposto no n.º 4 do art.º 80º do CCJ, parece ter como fim preservar a liberdade do arguido, sem que se esgotem as hipóteses de recurso ordinário, ainda que este não cumpra as obrigações previstas naquele mesmo Código.
[...] Por outro lado, uma vez admitido o recurso com menção expressa de que o foi ao abrigo do disposto no art.º 80º, n.º 4, o M.º P.º poderia recorrer ou reclamar, mas já não levantar a questão prévia da sua rejeição noutra instância [...]. Aliás entendimento diverso, na nossa opinião, enferma de inconstitucionalidade material por violação do disposto no art.º 13º da CRP - princípio da igualdade -
e por violação do disposto no art.º 32º, n.º 1, ambos de aplicabilidade directa por força do art.º 18º, n.º 1 da Lei Fundamental. Inconstitucionalidade que é desde já arguida.».
7. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2002.04.10, ora recorrido, julgou procedente a questão prévia, dando sem efeito o recurso interposto, abonando-se nas seguintes considerações:
«Respondeu o M.º P.º junto do Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando questão prévia cuja resolução, em seu juízo, conduzirá a que o recurso seja declarado sem efeito, porquanto, encontrando-se o recorrente em liberdade, e não beneficiando de apoio judiciário, não deu cumprimento ao estatuído nos n.os 1 e
2 do art.º 80º, do C.C. Judiciais, deixando de satisfazer no prazo legal, apesar de notificado para tal, o pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso, com o acréscimo de igual montante. Neste Supremo Tribunal de Justiça o M.º P.º emitiu parecer em que subscreve a posição [por si] assumida [...] na 2ª instância, considerando igualmente que,
«estando o arguido em liberdade e não tendo sido decretada a sua prisão preventiva com a prolação do acórdão condenatório, o recurso, com efeito suspensivo, não tem “por efeito manter a liberdade do arguido” de forma a haver lugar à aplicação do preceituado no n.º 4 do art.º 80º do C. C.J», deve considerar-se sem efeito o requerimento de interposição do recurso, já que apenas se satisfez a sanção devida pela omissão, que não a própria taxa de justiça. Cumpriu-se o disposto no art.º 417°, n.º 2, do C.P.P, tendo o recorrente respondido consoante texto de fls. 517 e ss., pugnando pela manutenção do julgado. Colhidos os vistos legais, remeteram-se os autos à Conferência para apreciação da questão prévia levantada, havendo agora que apreciar e decidir.
2. O Acórdão sob censura, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, tem a data de 12 de Julho de 2001, e foi notificado ao arguido, na pessoa do seu mandatário, através de carta registada expedida em 13 do mesmo mês e ano (fls.
451). Dele interpôs recurso o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, remetendo, em 01.10.03, e por 'fax-telecópia', a respectiva motivação, que foi recebida no mesmo dia pelas 17h06, enviando nessa data e por carta registada, o original (cfr. fls. 453 e ss. e 485). Verificando que o prazo de recurso (15 dias) tinha sido excedido e que o recorrente, independentemente de despacho, não havia efectuado, no tempo da lei, o pagamento da taxa de justiça devida (art.º 80°, n.º 1, do C.C.) - cfr. fls.
486 e 488 v.º -, a secretaria desencadeou o expediente constante do n.º 2 do referido art.º 80°, com referência ao disposto nos art.os 107°, n.º 5, do C.P.P. e 145° do C.P.C., notificando o faltoso para, em 5 dias, efectuar o pagamento omitido, com o acréscimo de igual montante, o que não foi feito, liquidando apenas a multa correspondente (cfr. fls. 487).
É esta, pois, a questão a decidir . A lei é clara quanto à solução. Com efeito, preceitua o n.º 3 do falado art.º 80° do C.C.J. que a omissão do pagamento das quantias referidas no número anterior determina que o recurso seja considerado sem efeito, a menos que esse mesmo recurso vise manter a liberdade do arguido, caso em que será recebido independentemente desse pagamento (n.º 4 do mesmo art.º 80°). Ora, na situação presente, como reflecte o M.º P.º junto deste Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente encontra-se em liberdade, tendo o recurso efeito suspensivo, pelo que o mesmo não tem por objectivo manter o arguido em liberdade, o que o obriga, pois, a satisfazer o pagamento da taxa de justiça em dobro, para que a impugnação deduzida possa prosseguir. Como o não fez, o recurso não poderá ter andamento.
3. Face ao que exposto fica, decide-se considerar sem efeito o recurso interposto, que assim não é admitido, por o recorrente não reunir as condições necessárias para tal, decisão que não é prejudicada pelo anterior despacho que o admitiu, uma vez que o mesmo não vincula o Tribunal Superior (cfr. art.º 414°, n.os 2 e
3, do C.P.P.)».
8. A. arguiu a nulidade deste Acórdão, sustentando que o mesmo padecia de omissão de pronúncia relativamente à questão de inconstitucionalidade por si suscitada em resposta ao referido articulado do M.º P.º.
Por Acórdão de 2002.10.09, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de nulidade, considerando ter sido implicitamente desatendida a questão de inconstitucionalidade ao ter-se considerado que o despacho de admissão do recurso não vinculava o tribunal superior e ao dar-se sem efeito o recurso interposto, posto que de todo o modo não haveria que discorrer-se sobre o mérito da inconstitucionalidade por o recorrente não haver desenvolvido e explicado
“como, onde e porquê é que o art.º 13º da CRP, que se reporta ao princípio da igualdade, foi violado com a rejeição do recurso, em ainda como e onde e porquê
é que o foi também o art.º 32º, n.º 1, do mesmo texto, que assegura aqui o princípio do recurso”.
9. Notificado desta decisão, o arguido interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do art.º 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro (doravante designada apenas por LTC), pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade do referido art.º 80º, n.º 4 do Código das Custas Judiciais, por violação do disposto no art.º 13º e 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante indicada por CRP).
10. Admitido o recurso, o arguido veio nele a apresentar as suas alegações, concluindo-as com a seguinte síntese:
«a) O ora recorrente, que aguardou julgamento sujeito a termo de identidade e residência e apresentação periódica na PSP, foi condenado em pena de prisão efectiva. Apenas o efeito suspensivo dos recursos interpostos o manteve e mantém em liberdade. b) O recorrente, por lapso, não pagou a taxa de justiça devida pela interposição do recurso do acórdão da Relação de Lisboa que manteve a decisão da primeira instância para o STJ, nem a liquidação em dobro. c) Todavia, o recurso foi recebido no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, por aplicação do n° 4 do art.º 80º do CCJ, justamente porque como diz a norma, o recurso tem por efeito manter o arguido em liberdade. d) A manutenção do arguido em liberdade advém inequivocamente do efeito
– suspensivo – do recurso. e) Assim não o entendeu a, aliás douta, decisão recorrida. Numa interpretação que, salvo o devido respeito e melhor opinião, nem acolhimento na letra da lei, nem espírito do legislador e fere dois princípios constitucionais:
f) Desde logo o princípio da igualdade – consagrado no art.º 13° da C.R.P., na sua formulação material de 'tratamento igual ao que é igual e desigual ao que é desigual, na justa proporcionalidade dessa desigualdade'. g) Esta desigualdade, tem como termo de comparação o disposto no art.º
14° n° 1 do Decreto-lei n° 329-A/95, de 12 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto Lei n° 180/96, de 25 de Setembro, consagrando o princípio da proibição de sanções e/ou cominações que impliquem a proibição da prática de actos processuais devido ao não pagamento de taxa de justiça. h) O legislador, no processo civil, fundado no princípio do dispositivo, consagrou expressamente que o não cumprimento de disposições tributárias relativas às custas, não poderia cominar a proibição da prática de actos processuais – desde logo recursos. i) Por maioria de razão, no processo penal e sobretudo quando está em causa a liberdade do arguido, tal princípio deveria ser reforçado. j) Sendo certo que, no nosso modesto entender é esse o sentido do n° 4 do art.º 80º do CCJ, é justamente consagrar o princípio da proibição de sanções ao nível da prática de actos processuais pelo não cumprimento de disposições de natureza tributária. k) Contudo, tal não foi o entendimento da norma do art.º 80 ° n.° 4 do CCJ, dado pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se considera violador do princípio da igualdade, na sua vertente material de princípio que contém uma ideia de justiça, de reposição das desigualdades. l) Ao que acresce a desigualdade material e concreta perante outros casos análogos, cujos recursos foram recebidos, e bem, ao abrigo desta norma. m) Por outro lado, o art.º 32°, n.° 1 da C.R.P. consagra o direito de defesa, incluindo o direito ao recurso. Entendendo o direito processual penal como um 'due process of law', numa perspectiva material por oposição à meramente formal, como de resto tem entendido este tribunal, a interpretação contida na decisão recorrida viola essas mesmas garantias de defesa. n) Ou seja, por um aspecto formal, de natureza tributária, obsta-se ao conhecimento de um recurso que poderá culminar , como de resto se espera, numa alteração da condenação sofrida. o) Assim sendo, a interpretação dada ao art.º 80° n.° 4 da C.R.P. não é conforme a Constituição e viola o art.º 32° n.° 1 da C.R.P., na medida em que é contrária à solução preconizada pelo legislador, ou seja a solução mais garantística – a recepção do recurso, porquanto este tem como efeito manter o arguido em liberdade. p) Aliás, liberdade essa que até poderá ser definitiva se fossem procedentes os argumentos aduzidos no recurso interposto para aquela instância. q) Assim não foi respeitado o princípio da igualdade e por isso violado o art.º
13° da C.R.P., bem como não foram asseguradas todas as garantias de defesa do arguido, com violação do disposto na parte final do n.° 1 do art.º 32° da C.R.P., sendo a interpretação contida na decisão recorrida, contrária à Constituição.».
11. O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1 - Estando plenamente assegurado o acesso ao beneficio do apoio judiciário pelos economicamente carenciados, não ofende qualquer preceito ou princípio constitucional o regime estabelecido pela lei de custas, que condiciona o seguimento do recurso interposto pelo arguido ao pagamento de taxa de justiça, devendo a secretaria, nos casos de não pagamento imediato, notificar o recorrente para proceder à liquidação respectiva, sob pena de o recurso ficar precludido.
2 - Não viola os princípios da igualdade e das garantias de defesa a aplicabilidade deste regime geral nos casos em que o arguido/recorrente foi condenado em pena privativa da liberdade, dependendo da preclusão do recurso o trânsito em julgado da decisão condenatória e – em termos indirectos ou imediatos – podendo tal vicissitude processual afectar a liberdade do arguido condenado.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.».
Com os vistos dos senhores juizes cumpre decidir.
B – A fundamentação
12. A questão decidenda
É a de saber se o n.º 4 do art.º 80º do Código das Custas Judiciais padece de inconstitucionalidade material por violação do disposto nos art.os 13º e 32º, n.º 1 da CRP.
13. Preliminarmente importa, todavia, apurar se deve tomar-se conhecimento do recurso, não impedindo esta análise o facto do recurso haver sido admitido, pois que este despacho não vincula o Tribunal Constitucional, como se prescreve no art.º 76º, n.º 3 da LTC.
E a questão suscita-se na medida em que, segundo o disposto no n.º 2 do art.º
70º da LTC, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da mesma Lei apenas cabe de decisões que não admitam recurso ordinário e está pressuposto nesse esgotamento dos meios do recurso que o recorrente haja colocado a questão de inconstitucionalidade de modo funcionalmente adequado de forma a que o Tribunal recorrido dela pudesse conhecer.
Ora, como se disse, a decisão recorrida considerou que o recorrente na resposta dada à contra-alegação do Ministério Público “não desenvolve nem explica
[...]como, onde e porquê é que o art.º 13º da CRP, que se reporta ao princípio da igualdade, foi violado com a rejeição do recurso, nem ainda como e onde e porquê é que o foi também o art.º 32º, n.º 1, do mesmo texto, que assegura aqui o princípio do recurso” e que, sendo assim, não caberia ao Supremo “discorrer sobre o mérito da inconstitucionalidade invocada quando se não sabia sequer em que razões a mesma assentava”.
À face desta fundamentação da decisão recorrida poderá questionar-se se o recorrente terá colocado, ao tribunal recorrido, a questão de inconstitucionalidade, em termos funcionalmente hábeis, de modo que este pudesse decidi-la e, consequentemente, também se este Tribunal Constitucional poderá conhecer do objecto do recurso.
Na verdade, vem-se entendendo que a questão de constitucionalidade tem de ser colocada de forma clara e perceptível (cf., entre outros os Acórdãos n.os
269/94, in DR, II Série, de 18 de Junho de 1994 e 178/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º volume, pp. 1118).
Ora segundo as palavras deste último aresto que remete igualmente para o primeiro “ a questão de inconstitucionalidade só se suscita de forma clara e perceptível, quando se indica - além da norma (ou segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que se tem por inconstitucional - também «o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando[-se], ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido».
Denota-se, todavia, que a ratio decidendi do indeferimento do pedido de nulidade do Acórdão que havia dado sem efeito o recurso interposto do Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça residiu apenas em que a questão de inconstitucionalidade havia ficado implicitamente resolvida em sentido negativo ao ter-se considerado que o despacho de admissão de recurso não vinculava o Tribunal Superior e ao dar-se sem efeito o recurso interposto, havendo aquelas considerações sido invocadas apenas como argumento ad ostentationem deduzido a título cautelar, como se intui do seguinte discurso:
«De todo o modo não caberia a este Supremo Tribunal de Justiça discorrer sobre o mérito da inconstitucionalidade invocada quando se não sabia sequer em que razões a mesma assentava...» (itálico acrescentado). De qualquer forma considera-se que o recorrente colocou a questão de inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 80º do C. C. J. em termos que se consideram suficientemente perceptíveis na resposta que deduziu à questão prévia levantada pelo Ministério Público, maxime quanto aos parâmetros constitucionais do art.º 32º, n.º 1 e 18º, n.º 1 da CRP.
14. O preceito cuja inconstitucionalidade é defendida pelo recorrente tem a seguinte redacção [para efeitos de melhor compreensão transcreve-se todo o preceito, utilizando o itálico na parte que é sindicada constitucionalmente]:
«Artigo 80.º
1. O pagamento da taxa de justiça que seja condição de abertura da instrução ou de seguimento de recurso deve ser efectuado no prazo de 10 dias a contar da apresentação do requerimento na secretaria ou da sua formulação no processo, independentemente de despacho.
2. Na falta de pagamento no prazo referido no número anterior, a secretaria notificará o interessado para, em cinco dias, efectuar o pagamento omitido, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante.
3. A omissão do pagamento das quantias referidas no número anterior determina que o requerimento para abertura da instrução ou o recurso sejam considerados sem efeito.
4. O recurso que tenha por efeito manter a liberdade do arguido é recebido independentemente do pagamento da taxa de justiça, aplicando-se-lhe o disposto nos números anteriores.».
Como resulta do relatado, o Acórdão recorrido interpretou o n.º 4 do art.º 80º do C. C. J. enquanto sendo aplicável directamente apenas aos casos em que a liberdade do arguido depende de forma imediata da interposição do recurso, arredando do âmbito da sua hipótese normativa, para os situar nos n.os 2 e 3º do mesmo artigo para os quais aquele n.º 4 remete, os casos idênticos aos dos autos em que tal efeito jurídico consequente da interposição do recurso é meramente indirecta ou reflexa, derivando de a preclusão do recurso, advinda da falta de pagamento em dobro da taxa de justiça, implicar o ulterior trânsito em julgado da sentença condenatória em pena privativa de liberdade.
Não obstante a interpretação restritiva do citado n.º 4 do art.º 80º do C. C. J., levada a cabo pelo Supremo, não cabe a este Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a sua correcção. A sua tarefa cinge-se em saber se o critério normativo achado relativamente à referida possibilidade da preclusão do recurso e, por via reflexa, da perda de liberdade consequente do trânsito em julgado da sentença condenatória que tenha aplicado esse tipo de pena viola ou não as normas ou princípios constitucionais.
Como já tem sido reafirmado por várias vezes por este Tribunal, a nossa Lei Fundamental não consagra o direito a uma justiça gratuita. Ao legislador ordinário é lícito exigir o pagamento de custas judiciais, podendo optar por um sistema de custas mais barato ou mais caro ou conceder o benefício do apoio judiciário em termos mais ou menos generosos. Ponto é que, no delineamento do sistema de custas judiciais, se não torne impossível ou particularmente oneroso o direito de acesso aos tribunais, sob pena de violação deste direito fundamental consagrado no art.º 20º da CRP.
Tal baliza funciona como limite à restrição constitucionalmente permitida de tal direito ou garantia fundamental, de acordo com o disposto no art.º 18º, n.os 2 e
3 da CRP (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 352/91, 467/91 e 646/98, publicados no D. R. II Série, respectivamente, de 17 de Dezembro de 1991, 2 de Abril de 1992 e 3 de Março de 1999).
O reconhecimento da possibilidade constitucional de exigir o pagamento de custas conduz, por outro lado, a admitir que o legislador possa igualmente, dentro dos mesmos e de outros limites constitucionais, prever a utilização de instrumentos jurídicos que tendam à sua efectiva arrecadação, entre eles se contando, pela sua eficácia e imanente força persuasiva, a preclusão do direito de praticar os actos aos quais está associado o momento de constituição da obrigação tributária.
Assim, num caso em que estava em causa a apreciação da legitimidade constitucional da norma do art.º 192º, n.º 2 do C. C. J., na versão decorrente do Decreto-Lei n.º 44 329, de 8 de Maio de 1962, aplicável ao processo criminal, segundo a qual «o recurso não terá seguimento se o imposto devido pela sua interposição não for acompanhado do depósito das quantias que o recorrente deva nesse momento garantir», o Acórdão deste Tribunal n.º 160/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, págs. 275, considerou não ser passível de censura constitucional o efeito preclusivo aí estabelecido, por, então, estar previsto um sistema de assistência judiciária na modalidade de dispensa de pagamento ou depósito de preparos, custas e outras importâncias devidas do qual poderia lançar mão a pessoa que estivesse em situação de insuficiência económica.
Afirmou-se neste aresto de forma impressiva que “a norma em causa apenas poderá ser julgada inconstitucional quando, por insuficiência de meios económicos, impeça o acesso aos tribunais, no caso concreto, o seguimento da via de recurso aberta por lei».
Mas logo de seguida obtemperou-se que:- “Ora, há-de dizer-se que, não existindo qualquer obstáculo constitucional à vigência de um sistema de custas judiciais, como é óbvio e a todos os títulos evidente, o não pagamento das custas condicionadoras daquele acesso, nas situações de insuficiência económica definidas por lei, está dependente da prévia concessão de tal benefício (cf., neste sentido, o Acórdão n.º 30/88, Diário da República, I Série, de 10 de Fevereiro de 1988, e toda a jurisprudência citada).
Não havendo o recorrente requerido semelhante dispensa - a certidão que juntou não o habilita à fruição desse benefício - estava sujeito ao pagamento de custas, sem que tal exigência se possa considerar colidente com qualquer princípio ou preceito constitucional».
Não foi então questionada a conformidade constitucional da previsão do automatismo do efeito da preclusão do recurso, em processo criminal, uma vez verificada a falta do pagamento das custas.
Mas encarando este problema, a propósito do art.º 192º do C. C. J., na redacção saída do Decreto-Lei n.º 387-D/87, de 29 de Dezembro, vieram, entre outros, os Acórdãos n.os 575/96 (publicado no D. R. II Série, de 19 de Julho de
1996), 691/96 (inédito), 956/96 (publicado no D. R. II Série, de 19 de Dezembro de 1996) e 957/96 (inédito) a julgar inconstitucional tal norma, por violação das disposições combinadas dos artigos 18º, n.os 2 e 3 e 32º, n.º 1 da CRP, na medida em que previa que a falta de pagamento no tribunal a quo no prazo de sete dias da taxa de justiça devida pela interposição do recurso determinava como irremediável efeito preclusivo a deserção fiscal e isto sem que se procedesse à prévia advertência dessa cominação ao arguido recorrente.
Para chegar a esta conclusão, considerou-se, - e reproduzem-se sincopadamente os argumentos do referido Acórdão n.º 575/96 -, que “com a consagração constitucional do princípio da defesa nos amplos termos previstos no art.º 32º, n.º 1 pretende-se garantir que o Estado assegure aos cidadãos uma protecção e segurança efectivas perante o exercício do jus puniendi inclusivamente contra sentenças injustas” e que “o direito ao recurso de sentenças penais condenatórias integra necessariamente o núcleo de tais garantias pelo que tem o recurso penal merecido tratamento diversificado relativamente ao recurso noutros domínios processuais seja ele o civil, o laboral ou o administrativo”.
Obtemperou-se, todavia, que apesar «de dever ser considerado como um direito fundamental o direito ao recurso das decisões judiciais se não podia configurar como um direito “absoluto” ou “ilimitado”» pelo que o seu «preciso conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário com maior ou menor amplitude, como se refere no Acórdão n.º 287/90 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º volume, págs. 159), sendo, não obstante, verdade que “ele pressupõe o duplo grau de jurisdição no caso de sentenças condenatórias em matéria penal para garantir que o arguido tenha à sua disposição de forma eficaz e efectiva todas as garantias de defesa como este Tribunal também vem uniformemente assinalado desde o Acórdão n.º 40/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º volume, págs. 241)”.
Porém, – continuou a ajuizar o referido aresto -, ao “ditar a imediata deserção do recurso pelo simples não cumprimento do ónus de pagamento da taxa [...], em determinado prazo, sem que ocorra qualquer formalidade de aviso ou comunicação ao arguido sobre as consequências desse não pagamento a norma em apreço procede a uma intolerável limitação do direito de recurso e consequentemente ao direito de defesa em processo penal”.
E o Acórdão fundamenta a necessidade de uma tal advertência “[...] no modo como muitas vezes se processa na prática no âmbito do processo penal o sistema de acesso ao direito que ainda opera aí com muitas deficiências aliado às dificuldades que frequentemente os arguidos manifestam quanto ao entendimento das decisões que os afectam bem como às respectivas consequências jurídicas
[...]”.
A revisão de 1997 veio consagrar expressamente, na nova redacção dada ao art.º 32º, n.º 1 da CRP, aquilo que a jurisprudência constitucional já havia definido de forma unânime, incluindo o direito ao recurso entre todas as garantias de defesa aí reconhecidas ao arguido. Mas as coisas são, porém, diferentes no caso da norma em apreço no que respeita ao efeito preclusivo do não pagamento da taxa de justiça.
É que, como decorre do n.º 2, mandado aplicar pelo n.º 4, antes de o recurso ser dado sem efeito, nos termos do n.º 3, todos os números do art.º 80º do C. C. J., deve a secretaria notificar o “interessado para, em cinco dias, efectuar o pagamento [da taxa de justiça], com acréscimo de taxa de justiça de igual montante”.
Quer isto dizer que se encontra hoje vertido em lei o instrumento jurídico que era tido por necessário pelos Acórdãos acabados de referir para que
a preclusão decorrente do não pagamento da taxa de justiça estabelecida no art.º 192º do C. C. J. respeitasse os limites constitucionais do direito ao recurso penal - a advertência ao arguido para proceder ao pagamento da taxa de justiça, conquanto aqui com acréscimo.
Pese, embora, se tenha de pagar com acréscimo a taxa de justiça para se evitar a preclusão do recurso interposto pelo arguido, não pode tal circunstância ser vista como uma limitação desproporcionada ou intolerável do direito ao recurso e, consequentemente, ao direito de defesa em processo penal.
Na verdade, em caso de insuficiência económica, o arguido poderá socorrer-se do apoio judiciário cuja concessão está prevista e regulada na lei (cf. art.os 15º e 16º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, diploma sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º 391/88, de 26 de Outubro e pela Lei n.º 46/96, de
3 de Setembro).
Operando hoje a preclusão tributária do recurso interposto pelo arguido apenas após a notificação para pagar, no prazo de cinco dias, a taxa de justiça não paga antes no prazo de 10 dias após a apresentação do requerimento do recurso na secretaria, conquanto com acréscimo, e estando garantida ao mesmo arguido a possibilidade de socorrer-se do apoio judiciário no caso de insuficiência económica para suportar o seu custo, não se vê que possa, ainda assim, defender-se existir aqui qualquer violação das garantias de defesa reconhecidas no art.º 32.º, n.º 1 da CRP.
Reconhecer ao arguido todas as garantias de defesa não significa abandonar, por completo, o princípio da auto-responsabilização das partes - que
é um dos corolários do princípio dispositivo -, segundo o qual são as partes que conduzem o processo redundando, por isso em seu prejuízo, a sua inépcia ou negligência.
Dada a natureza do direito que está em causa - o direito ao recurso de uma sentença condenatória penal - justificar-se-á um certo grau de tolerância com a inépcia ou negligência pelo não pagamento da taxa de justiça dentro do prazo inicial e a não preclusão do recurso sem uma prévia advertência de que sobrevirá esse efeito caso não seja efectuado o pagamento da taxa de justiça num prazo adicional, mas não uma atitude de completa desresponsabilização perante uma chamada especial de atenção para esse facto e consequente efeito jurídico.
Conclui-se, assim, não ofender a norma em causa as garantias de defesa do arguido, nelas se incluindo o direito ao recurso, consagradas no art.º
32º, n.º 1 da CRP.
Defende, porém, o recorrente que o efeito preclusivo estabelecido na norma questionada viola o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP, dado o regime actualmente estabelecido para o processo civil.
Na verdade, o art.º 14º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, na redacção do Decreo-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, revogou todas as disposições que estabeleciam “cominações ou preclusões de natureza processual como consequência do não pagamento nos termos do Código das Custas Judiciais de quaisquer preparos ou custas com ressalva dos efeitos da não efectivação do preparo para despesas e do disposto no n.º 3”.
O efeito cominatório foi substituído nos processos cíveis pelo regime constante do n.º 2 do mesmo artigo 14º, estabelecendo-se aí que “sem prejuízo do pagamento das quantias em dívida as cominações e preclusões processuais revogadas por esta disposição são substituídas por uma multa fixada pelo juiz consoante as circunstâncias entre o triplo e o décuplo das quantias em dívida não podendo todavia exceder vinte unidades de conta”, acrescendo, nos casos abrangidos pelo referido n.º 3 do mesmo artigo, que a “falta de pagamento de preparo inicial pelo autor, requerente de procedimento cautelar ou exequente o processo não terá andamento enquanto não forem pagos o preparo em falta e a multa a que se refere o número anterior, podendo ainda ser requerido o cancelamento do registo da acção que entretanto tenha sido efectuado”.
Mas o recorrente não tem razão. Como acentuou o referido Acórdão n.º
575/96 “não será [...] por paralelismo com o regime estipulado no processo civil que se fundamentará qualquer pretensão de excessiva sanção ou cominação processual mas antes pela lógica e princípios intrínsecos ao processo penal ou seja concretamente pela aplicação prática do artigo 32º da Constituição naquilo que ele tem vinculativamente orientador para o legislador”.
E já se viu que, nesse domínio, a interpretação da norma cuja inconstitucionalidade se questiona, feita pelo acórdão recorrido, não merece censura.
O processo civil move-se em terrenos axiológico-constitucionais diferentes, tendo aí maior expressão o princípio dispositivo e da autoresponsabilização das partes e da celeridade processual.
Por outro lado, o objecto do processo, na maior parte dos casos, diz respeito, aí, a bens económicos que pelo facto de o serem constituem por si próprios uma garantia da futura cobrança da dívida de custas.
Compreende-se, deste modo, que o legislador construa, aí, um sistema de garantia de efectivo pagamento da taxa de justiça assente em outros pressupostos.
Assim sendo a diversidade de tratamento ou de regulação do sistema de pagamento da taxa de justiça e das custas, no processo penal, por si só não ofende o princípio da igualdade, pois que não se trata de uma diferenciação discriminatória ou arbitrária e aquilo a que o princípio da igualdade obriga é ao tratamento por igual daquilo que é essencialmente igual.
Ora, no caso, estamos perante situações diferentes como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Junho de 1988 (publicado no BMJ, n.º 378, págs. 639) e nos Acórdãos deste Tribunal já referidos n.º 646/98 e
575/96.
C – A decisão
15. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 22 de Outubro de 2003 Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos