Imprimir acórdão
Proc. n.º 20/03
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, na 2ª Secção deste Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A., identificado com os demais sinais dos autos, recorre para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal Militar, de 14 de Novembro de 2002, que, concedendo parcial provimento ao recurso do acórdão, de
06 de Junho de 2002, do Tribunal Militar da Marinha que o havia condenado como autor material de um crime de corrupção, pp. pelo art.º 191.º, n.os 1 e 2 do CJM, na pena de um ano de prisão militar, o condenou, como autor material de um crime pp. pelo art.º 167.º, n.os 1 e 2 do Código de Justiça Militar (doravante designado apenas por CJM), na pena de seis (6) meses de prisão militar.
2. O recurso vem interposto ao abrigo do disposto no art.º 70.º, n.º
1, alíneas b) e g) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na actual versão, pretendendo o recorrente a apreciação da constitucionalidade das seguintes normas e com os seguintes fundamentos:
a) ao abrigo da alínea b) do n.º 1 deste artigo: - das normas dos art.os 309.º e 313.º do CJM, por violação dos art.os 213.º e 165.º, n.º 1, al. p) da Constituição da República Portuguesa; - do art.º 377.º, n.º 1 do CJM, por violação dos art.ºs 219.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa; - do art.º 191.º, n.os 1 e 2 do CJM, por violação dos art.º 13.º da Constituição, ao criar um tipo legal de crime em função de critérios funcionais e subjectivos;
- do art.º 167.º, n.os 1 e 2 do CJM, por violação do art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Estas inconstitucionalidades foram todas suscitadas na alegação do recurso da sentença proferida pela 1ª instância para o Supremo Tribunal Militar (doravante designado apenas por STM), à excepção da última que o foi apenas no requerimento de arguição da nulidade do acórdão recorrido por a mesma haver sido inovadoramente invocada apenas no acórdão recorrido.
b) Ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do mesmo artigo 70.º da LOTC, da norma do art.º 418.º do CJM, enquanto “norma que foi, por evidente violação dos princípios do contraditório e do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, ao convolar a moldura penal aplicável sem conferir ao arguido oportunidade de se defender da mesma, quando aplicada naquele sentido e com aquela interpretação (já julgada) inconstitucional pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional de 7.5.1992, 31.5.1995, 27.6.1995, 17.4.1996, 14.1.1997 e
5.3.1997, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de
18.9.1992, 28.7.1995, 16.11. 1995, 6.7.1996, 28.2.1997 e 19.4.1997”.
3. O recorrente sustenta a sua pretensão nas razões expostas nas suas alegações e que condensou nas seguintes conclusões:
“a) Os art.os 309.º e 313.º do CJM, ao atribuírem competência aos Tribunais Militares para julgarem crimes que se encontram igualmente previstos na jurisdição penal comum, revelam-se inconstitucionais, por violarem os art.os
213.º e 165.º, n.º 1, al. p) da Constituição da República Portuguesa, chamando para a jurisdição militar situação dela excluídas constitucionalmente;
b) de facto, aos tribunais militares cabe, exclusivamente, o julgamento dos crimes estritamente militares, ou seja, daqueles próprios e que apenas em sede militar têm previsão legal em função da especificidade das situações (nomeadamente, a vigência de estado de guerra), o que se compreende em virtude de, sendo a lei penal militar especial, a mesma cede lugar à lei penal comum;
c) ao ponto da própria Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, no seu artigo 197.º, falar em crimes estritamente militares e não essencialmente militares;
d) aplicando-se a lei penal geral aos funcionários, logo, também aos militares, que o são em termos legalmente uniformes;
e) do mesmo modo, o art.º 377.º, n.º 1 do CJM, ao atribuir competência ao promotor público, sob ordem superior, para deduzir a acusação, viola o princípio da exclusividade do Ministério Público para a dedução da acusação, consagrado no art.º 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa;
f) constituindo a autonomia do Ministério Público uma componente essencial das garantias de defesa dos arguidos, evitando o exercício da justiça penal privada e de interesse, não se pode conceber que um subalterno hierárquico, sem autonomia e com completa dependência, se veja constrangido
(coagido) a deduzir uma acusação que, de imediato, determina o julgamento criminal do arguido, à revelia dos ditames mais elementares componentes do Estado de direito democrático;
g) também os art.os 191.º, n.os 1 e 2 e 167.º. n.os 1 e 2 do CJM, ao estabelecerem uma moldura penal mais gravosa do que a lei penal comum para a prática de um mesmo facto, violam o art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, quando este consagra o princípio da legalidade e da universalidade da lei;
h) de facto, a condição militar ou a posse militar do bem protegido não constituem uma diferença objectiva legitimadora de uma mais grave punição, pois que as pessoas e bens inseridos na estrutura militar, que mais não são do que uma componente inserida na estrutura do funcionalismo público, não revestem maior dignidade ou interesse público que as demais estruturas desse mesmo funcionalismo;
i ) a convolação efectuada pelo acórdão recorrido ao abrigo do art.º 418.º, n.º
2 do CJM, para além de violar as garantias do arguido em processo penal e de confrontar o princípio do contraditório, com especial consagração no art.º 32.º, n.os 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, faz aplicar norma julgada inconstitucional pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional de 7.5.1992,
31.5.1995, 27.6.1995, 17.4.1996, 14.1.1997 e 5.3.1997, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 18.9.1992, 28.7.1995, 16.11. 1995,
6.7.1996, 28.2.1997 e 19.4.1997”.
4. O Ministério Público contra-alegou, defendendo, por um lado, a inverificação dos pressupostos do recurso fundado na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 (questão prévia) e, por outro, o não provimento do recurso, concluindo assim as suas alegações:
“1 - A decisão recorrida não aplicou a norma constante do art.º
418.º, n.º 2 do CJM no sentido julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional através do acórdão n.º 173/92, já que a convolação jurídica realizada implicou a subsunção dos factos a crime punido cm pena menos grave que a correspondente à qualificação que constava do libelo acusatório, não se verificando os pressupostos do recurso fundado na alínea g) do n.º 1 do art.º
70.º da Lei n.º 28/82.
2 – Perante a norma transitória do art.º 197.º da Lei Constitucional n.º 1/97, não padece de inconstitucionalidade a aplicação transitória das normas
- substantiva ou adjectiva - que constam do CJM, até à publicação da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do art.º 211.º da Constituição da República Portuguesa.
3 – Não é inconstitucional a tipificação, como crime essencialmente militar, do facto ou comportamento lesivo de bens ou valores conexionados directamente com a Defesa Nacional e as Forças Armadas e a respectiva punição, em medida diferenciada da estabelecida no direito penal comum, desde que não ocorra desproporção intolerável ou excessiva nas molduras penais”.
5. O recorrente respondeu à alegação da referida questão prévia, dizendo que “dos Acórdãos invocados como elemento condicionante da interposição de recurso não decorre, salvo o devido respeito, a questão nos termos em que o Ministério Público a equaciona” e que “de facto, não apenas se poderá limitar a questão à condenação efectiva, mas à convolação em crime abstracto, como ainda se analisa a convolação em si, como meio de, em violação do contraditório, afastar os mais elementares meios de defesa do arguido, condenado de surpresa e de chofre”.
B – A fundamentação
6. Da questão prévia da inexistência dos pressupostos do recurso fundado na al. g) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC
Como deflui do relatado, o recorrente baseou a sua pretensão de conhecimento da inconstitucionalidade do art.º 418.º, n.º 2 do CJM na alínea g) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC ou seja, no preceito que prevê a possibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais “que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”.
A situação só existirá quando se pretenda questionar constitucionalmente uma norma com o mesmo sentido com que a mesma já foi anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Está, assim, pressuposta uma identidade de sentidos normativos. Se, não obstante o preceito ser o mesmo, houver divergência entre o sentido normativo que foi anteriormente julgado inconstitucional e aquele cuja constitucionalidade se pretende ver agora apreciada, não estamos no domínio de aplicação desta alínea g).
Ora, o recorrente questiona a constitucionalidade do art.º 418.º, n.º 2 do CJM quanto à sua dimensão, aplicada no caso concreto, de permitir a convolação, com violação das garantias do arguido em processo penal e do princípio do contraditório, consagrados em especial no art.º 32.º, n.os 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Todavia, o único aresto do Tribunal Constitucional que se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade do mesmo artigo foi o Acórdão 173/92, publicado no DR, II Série, de 18 de Setembro de 1992, tendo julgado inconstitucional o regime (ou dimensão interpretativa aí prevista) - na parte em que permite ao tribunal condenar por infracção diversa daquela que o arguido foi acusado, caso os factos que preenchem o respectivo tipo incriminador constem do libelo acusatório - quando a diferente qualificação jurídico-penal dos factos pode conduzir à condenação do arguido em pena mais grave, sem se prever o exercício do contraditório quanto a tal inovatória subsunção jurídica.
Não foi, porém, com este sentido, já julgado inconstitucional, que a norma em causa foi aplicada no acórdão recorrido. Na verdade, a convolação, cuja legitimidade se pressupôs, foi efectuada, aqui, para “crime menos grave do que o previsto no libelo acusatório” (fls. 288 verso e 301).
7. Do mérito do recurso das diversas questões de constitucionalidade acima precisadas.
Antes de passar à sua análise, não pode deixar de anotar-se que o recorrente, embora se dê conta, nas suas alegações de recurso, da norma de direito transitório do artigo 197.º da Lei de Revisão Constitucional n.º 1/1997, nos termos da qual “os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do artigo 211.º da Constituição”, deixa, porém, de retirar dela as devidas consequências jurídicas.
De acordo com os seus termos e a sua teleologia, o art.º 197.º da Lei Constitucional n.º 1/97 visou manter transitoriamente, quer a competência dos tribunais militares, quer as normas do CJM que não padecessem já então de inconstitucionalidade.
Segundo António de Araújo [A jurisdição militar (do Conselho de Guerra è revisão constitucional de 1997)], in AAVV, O direito de Defesa Nacional e das Forças Armadas, Lisboa, 2000, pp. 529 e ss.], “realizou-se (com a revisão de 1997) uma extinção “cautelosa dos tribunais militares, visto que: a) circunscreve-se apenas ao tempo de paz e não é, como pretendiam alguns projectos de revisão, uma extinção total, para todas as circunstâncias (cfr. art.º 213.º); b) a extinção dos tribunais militares foi acompanhada da previsão de juizes militares nos tribunais de qualquer instância que julguem crimes estritamente militares (art.º
211.º, n.º 3); c) a extinção dos tribunais militares foi acompanhada da previsão de formas especiais de assessoria junto do Ministério Público nos casos de crimes estritamente militares (art.º 219.º, n.º 3), d) a extinção dos tribunais militares foi acompanhada de uma norma transitória, destinada a impedir hiatos ou vazios legais”.
Abordando, precisamente, esta problemática escreveu-se, no Acórdão deste Tribunal n.º 392/99, publicado no D. R., II Série, de 9 de Novembro de
1999, que “a competência dos tribunais militares encontra-se depois da última revisão constitucional restringida no artigo 213º da Constituição da República ao julgamento de crimes estritamente militares e apenas durante a vigência do estado de guerra' ('No entanto nos termos do artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 «os tribunais militares aplicando as disposições legais vigentes permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do artigo 211.º da Constituição» pelo que se mantém transitoriamente inalterada a competência daqueles tribunais até à data da entrada em vigor da legislação que vier regulamentar a composição dos tribunais judiciais que julguem crimes de natureza estritamente militar. Esse o sentido da permanência em funções dos tribunais militares aplicando as disposições legais vigentes o que só pode significar a manutenção do Código de Justiça Militar (em tudo o que não fosse já inconstitucional face à versão anterior da Lei Fundamental)” (sublinhado acrescentado).
E, precisando a ratio histórica deste regime, afirmou-se no Acórdão n.º 225/02, publicado no D. R., II Série, de 8 de Julho de 2002, que
«discutindo-se no seio dos trabalhos preparatórios para a revisão de 1997 a inserção de uma disposição transitória na lei de revisão constitucional propriamente dita sobre o 'regime transitório a vigorar até à extinção dos Tribunais Militares', o Presidente da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (in acta da reunião n.º 119 de 11 de Julho de 1997 – Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom de José Magalhães) sugeriu a redacção dessa disposição (do referido art.º 197º- precise-se) esclarecendo que a 'referência de que permanece em funções aplicando as disposições legais vigentes é porque também terá que haver adaptações justamente quanto à natureza legal dos crimes que deixarão de ser essencialmente militares para ser estritamente militares' (o que significa que foi no fundo para permitir a continuação da punição dos crimes essencialmente militares pelos tribunais militares ainda em funções)».
Na mesma linha daquele primeiro aresto vai, também, o Acórdão n.º 64/2001, publicado no D. R., II Série, de 27 de Março de 2001, em que se apreciou a inconstitucionalidade dos artigos 377.º, 251.º a 257.º e 282.º a 287º do Código de Justiça Militar.
7.1. Da alegada inconstitucionalidade das normas dos artigos 309.º e 313.º do CJM, por violação dos artigos 213.º e 165.º, n.º 1, al. p) da Constituição da República Portuguesa.
Os artigos 309.º e 313.º do CJM dispõem sobre a competência dos tribunais militares, estabelecendo o primeiro preceito que “aos tribunais militares compete, além de quaisquer outras funções determinadas na lei, o conhecimento dos crimes essencialmente militares e dos crimes dolosos que, por lei, vierem a ser equiparados àqueles” e o segundo que “aos tribunais militares territoriais compete conhecer dos crimes essencialmente militares ou equiparados cometidos na área da respectiva jurisdição por pessoal militar ou civil pertencente ao Exército e às forças militarizadas, bem como por quaisquer outras pessoas integradas ou não nas forças armadas, com excepção do pessoal mencionado no artigo seguinte”.
A constitucionalidade destas normas atributivas, aos tribunais militares, das competências nelas referidas não é de repudiar em face do estatuído no referido art.º 197.º da Lei de Revisão da Constituição de 1997, acima transcrito, dada a sua natureza de preceito constitucional, embora com efeitos a termo incerto, e à posição tomada por este Tribunal nos acórdãos acabados de referir.
Desta sorte, tem-se por improcedente o fundamento alegado de que tais normas afrontam o disposto nos art.os 213.º e 165.º, n.º 1, al. p) da Constituição.
Só quando entrar em vigor a legislação a que o mesmo preceito transitório se refere - legislação essa a ser emitida de acordo com as regras de competência constantes do art.º 165º (corpo do preceito) e alínea p) da Constituição e que regulará o disposto no n.º 3 do art.º 211.º da mesma Lei Fundamental -, é que mudará o parâmetro de avaliação da sua conformidade constitucional.
Nesta linha decidiu igualmente o Acórdão n.º 392/99, publicado no DR, II Série, de 9 de Novembro de 1999, tendo-se aí considerado “que se mantém transitoriamente inalterada a competência daqueles tribunais [militares] até à data da entrada em vigor da legislação que vier regulamentar a composição dos tribunais judiciais que julguem crimes de natureza estritamente militar” [...],
“não podendo invocar-se - para contrariar tal conclusão – o disposto no art.º
213.º da Constituição” (sublinhado acrescentado)
7.2. Da alegada inconstitucionalidade do art.º 377.º n.º 1 do CJM, por violação dos art.ºs 219.º e 32.º da Constituição
O artigo em causa do CJM dispõe sobre o exercício da competência do promotor de justiça para instaurar a acusação ou deduzir o libelo acusatório, embora sujeito a ordem do superior, e os termos em que esse acto de processo penal militar deve ser elaborado.
Em primeiro lugar, não é de afastar valerem, nesta matéria, mutatis mutandis, as razões acima aduzidas como parâmetro de constitucionalidade do referido art.º 197.º.
Por outro lado, é de considerar que, ao prescrever que “os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções...”, o mesmo preceito deixa entender a possibilidade de se manter a organização judiciária militar prevista no CJM ou em leis avulsas (cfr. art.os 210.º e ss. do CJM e, quanto a estas, os DL. n.º 145-A/77, de 9 de Abril, DL. n.º 319-A/77, de 5 de Agosto, DL. n.º 28/78, de 27 de Janeiro e, relativamente a Macau, o DL. n.º
224/78, de 4 de Agosto) e de cujo desempenho funcional, segundo os termos previstos nessas leis, se torna possível que os tribunais militares permaneçam em funções ou seja, desempenhem a função jurisdicional militar que lhes está por enquanto cometida. Entre esses órgãos conta-se o promotor de justiça que funciona junto de cada tribunal militar (art.º 251º do CJM) e a quem a lei ainda vigente atribui diversas competências (cfr. art.os 254.º e ss., 283.º a 287.º e
377.º, todos do CJM). E entre estas conta-se a de deduzir a acusação ou o libelo acusatório, prevista no art.º 377.º, n.º 1 do CJM, a fazer de acordo com as exigências aí apontadas e obtida que seja ordem do superior hierárquico.
Foi segundo esta linha de pensamento que discorreu o referido Acórdão n.º 64/2001.
Poderá, porém, questionar-se se a legitimidade do promotor para o exercício da acção penal militar será exclusiva ou pertencerá, também, ao Ministério Público.
A pertinência de uma tal pergunta poderá justificar-se na existência de um aparente paralelismo com a situação sobre que versou o referido Acórdão n.º
225/02.
Pondo-se, aí, a questão de saber se a norma constante do art.º 4º, n.º 1, alínea a) do Estatuto do Ministério Público, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, na parte em que estabelece que “O Ministério Público é representado junto dos tribunais: a) [...] no Supremo Tribunal Militar
[...] pelo Procurador-Geral da República”, seria constitucionalmente compatível com a Lei Constitucional n.º 1/1997, o aresto veio a dar-lhe resposta positiva, entendendo que “o legislador ordinário tem toda a liberdade de alterar o regime vigente quanto aos tribunais militares conquanto o faça com respeito pelas normas e princípios constitucionais e da provisoriedade desse regime não se pode chegar à sua intocabilidade”, que “tais alterações não colidem com o regime transitório da norma do art.º 197º” e que “mesmo que se entenda [...] que a liberdade de conformação do legislador foi restringida pelo art.º 197º essa restrição só pode ter sentido em relação às alterações que levem a uma completa inoperacionalidade do sistema por forma a ocorrer aquilo que aquele preceito visava precisamente evitar”.
Há que notar, todavia, que este Acórdão não deixou de tomar posição no sentido de que “[...] resulta que à luz do citado artigo 197º mantendo-se em funções os actuais tribunais militares também se mantêm em funções os promotores de justiça com as competências que lhes são atribuídas pelo Código de Justiça Militar”.
Seja como for não existe qualquer paralelismo entre a questão ora posta e a que foi objecto de resposta no referido Acórdão n.º 225/02, uma vez que neste último não tinha intervindo o Promotor de Justiça mas sim Ministério Público e era a constitucionalidade dessa intervenção que estava precisamente em questão.
Não tendo ocorrido, posteriormente à Lei Constitucional n.º 1/1997, qualquer alteração, ao nível da legislação ordinária, relativamente à competência para o exercício da acção penal militar, cuja conformidade constitucional se possa discutir à luz do referido art.º 197º daquela Lei, evidente se torna que essa legitimidade terá de ser aferida apenas em função do Código de Justiça Militar e dos parâmetros constitucionais.
Deste modo, estando o exercício da acção penal militar ainda cometido, segundo a lei vigente, ao promotor de justiça e não estando em vigor sistema legal que o desloque, incondicionada ou condicionadamente (como poderá suceder no caso de estarem em causa crimes estritamente militares - art.º 213.º da CRP), para o
âmbito, dentro de tal sistema, da competência do Ministério Público nos termos que estão estabelecidos no n.º 3 do art.º 219º da CRP, não há que invocar este preceito como parâmetro constitucional da legislação anterior e, nomeadamente, do Código de Justiça Militar.
Por outro lado, não se vê que o sistema actual não assegure todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (art.º 32.º, n.º 1 da CRP), pelo simples facto de ser o promotor de justiça a deduzir o libelo acusatório.
Desde logo, porque as funções de promotor de justiça estão rodeadas de cautelas de imparcialidade, nos termos dos art.os 215.º e 216.º do CJM.
Depois, porque a dedução do libelo está sujeita a toda uma tramitação processual posterior, que se inicia com a entrega da nota de culpa ao arguido e a indicação dos elementos úteis á sua defesa enunciados no art.º 380.º do CJM e termina numa audiência de julgamento pública, sujeita ao princípio do contraditório, que propicia ao arguido o exercício das suas garantias de defesa.
É certo que a dedução do libelo está sujeita a ordem do superior hierárquico e que esse condicionamento poderá sugerir uma restrição às garantias de defesa do arguido por contraposição com o estatuto de independência objectiva de que goza o Ministério Público [cfr. art.º 219.º, n.º 1 da Constituição e art.º 12.º, n.º
2, al. b) do Estatuto do Ministério Público - Lei n.º 143/99, de 31 de Agosto]. Mas não estamos perante uma conclusão forçosa.
Equacionando a questão paralela de saber se o arguido em processo penal militar vê de algum modo diminuídas as suas garantias em virtude de a entidade que interpõe o recurso (o promotor de justiça) o fazer por ordem de um superior hierárquico, assim lhe respondeu, em termos que inteiramente se aceitam, o citado Acórdão n.º 64/2001:
«Quanto a este aspecto impõe-se uma resposta negativa. Na verdade o recurso será apreciado por um tribunal (o Supremo Tribunal Militar) sendo certo que o próprio tribunal recorrido admitiu até que o promotor de justiça podia recusar-se a formular o requerimento de interposição do recurso se entendesse haver inconstitucionalidade da norma que o impõe incompetência da entidade que dá a ordem ou ilegitimidade desta (cfr. acórdão de fls. 216 e seguintes). As funções de promotor de justiça são ainda rodeadas de cautelas de imparcialidade nos termos dos artigos 215º e 216º do Código de Justiça Militar. Não se vendo que a ordem prevista no artigo 427º alínea e) do Código de Justiça Militar possa de algum modo violar as garantias de defesa do arguido resta concluir que ela é um natural reflexo de uma especificidade da organização judiciária militar transitoriamente subsistente: a promotoria de justiça. Organização judiciária essa que nas palavras de Figueiredo Dias (in Justiça Militar (Colóquio Parlamentar) Lisboa 1995 p. 21) decorre do 'carácter profundamente específico da instituição que lhe dá base dos problemas de que ela cura e sobretudo da importância decisiva que assume na defesa das condições de todo o tipo – políticas sociais económicas e culturais – indispensáveis à subsistência e ao desenvolvimento das livres condições de vida comunitária'».
Deste modo é de concluir que uma tal intervenção da hierarquia é facilmente explicada, no foro militar, pela especificidade da instituição militar ao nível da organização das suas estruturas humanas em torno de uma forte dependência na actuação tendo em conta a prossecução dos objectivos (legítimos) que constituem o acervo funcional de cada órgão militar. Ora, a exigência de uma acção fortemente concertada em função dos objectivos legítimos, como é de presumir no caso, não é idónea para permitir o levantamento de qualquer suspeição séria de parcialidade.
7.3. Da alegada inconstitucionalidade do art.º 191.º, n.os 1 e 2 e do art.º 167.º, n.os 1 e 2 do CJM, por violação do art.º 13.º da Constituição
Como se vê dos autos, o recorrente foi condenado por acórdão, de 06 de Junho de 2002, proferido pelo Tribunal Militar da Marinha como autor material de um crime de corrupção, pp. pelo artigo 191.º, n.os 1 e 2 do CJM na pena de um ano de prisão militar. Todavia, o Supremo Tribunal Militar, no recurso que para ele interpôs o arguido, concedendo-lhe parcial provimento, convolou, nos termos do art.º 418.º n.º 2 do CJM, a acusação para o crime de extravio de documentos militares pp. pelo art.º 167.º, n.os 1 e 2 do CJM, e condenou-o, pelo acórdão ora recorrido, na pena de seis meses de prisão.
Tendo desaparecido juridicamente a condenação do arguido que havia sido decretada pelo Tribunal Militar da Marinha resultante da aplicação do artigo 191.º, n.os 1 e 2 do CJM e tendo ele sido condenado por um tipo de crime diverso, mediante convolação da acusação - o crime pp. no art.º 167.º, n.os 1 e 2 do mesmo Código -, deixou de haver qualquer interesse jurídico na apreciação da conformidade constitucional daquela norma com o parâmetro constitucional do art.º 13.º da Constituição. A pretensa inconstitucionalidade ficou evidentemente precludida pela diferente qualificação jurídica e consequente aplicação de uma diferente lei incriminadora aos factos acusados. Por isso não há que conhecer dessa questão.
Falta, porém, apreciar a questão da inconstitucionalidade relativa ao tipo legal de crime previsto e punido pelo referido artigo 167.º, n.os 1 e 2 do CJM e, nomeadamente, a sua conformidade constitucional com o art.º 13.º da Constituição.
O crime pelo qual o recorrente foi condenado insere-se nos crimes qualificados pelo CJM como crimes essencialmente militares. Como refere o Acórdão n.º 606/99, publicado no DR, II Série, de 16 de Março de 2000, “o que seja um crime essencialmente militar, ou então, de acordo com os termos da 4ª revisão constitucional, um crime de natureza estritamente militar, é tarefa que o texto constitucional deixou ao cuidado do legislador ordinário, que obviamente, não pode concretizá-la arbitrariamente, devendo optar, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, um critério definido que seja concordante com a função do instituto, ou seja, que se traduza na protecção por meios próprios (a justiça e os tribunais) da organização militar (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, pp. 816). ”
E continua o mesmo aresto:
“ O conceito de crime essencialmente militar - reportando-nos ao texto constitucional vigente - é um conceito aberto ou indeterminado, a preencher pela lei ordinária, que, no entanto, há-de respeitar o sentido da indiciação e da função constitucional, sendo certo, consoante a orientação jurisprudencial seguida por este Tribunal - cfr., Acórdãos n.os 347/86 e 680/94, publicados no DR, II Série, de 6 de Março de 1987 e de 25 de Fevereiro de 1995, respectivamente - que a ideia fundamental a reter neste domínio é a de que a Constituição exige que o legislador se mantenha no plano estritamente castrense, só podendo sujeitar à jurisdição militar aquelas infracções que «afectem inequivocamente interesses de carácter militar», infracções que, por isso mesmo, hão-de ter uma conexão relevante com a instituição castrense, quer pela existência de um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque se estabeleça um nexo com os interesses militares da defesa militar”.
No dizer de Figueiredo Dias, tratam-se de crimes que protegem essencialmente bens jurídicos militares que se traduzem (n)”aquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à instituição militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão” (cfr. “Justiça Militar”, in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República, 1995, pp. 25/26).
Ora, deixando de parte as querelas sobre se este Tribunal poderá conhecer da correcção da definição dos elementos do tipo criminal que foi efectuada pelo tribunal recorrido, bem como da subsunção a ele dos factos praticados, por dever ser encarada ou não como questão normativa, dado que tais matérias não estão questionadas, parece ser de concluir, - situando-nos no plano abstracto da estruturação dos tipos criminais, e seja qual for a
“sensibilidade” que se tenha quanto ás exigências para a qualificação de certos bens jurídicos, dignos de tutela penal, como bens jurídicos militares ou essencialmente militares -, que o crime tipificado no art.º 167.º, n.os 1 e 2 do CJM tem, segundo os seus termos e a sua axiologia, um íntima conexão com os bens jurídicos militares e com os valores que andam indissociadamente ligados à Defesa Nacional e às Forças Armadas. Tratou-se, na verdade, de subtracção de documentos relativos a bens de equipamento destinados especificamente à organização militar enquanto tal.
Tal circunstância justifica materialmente a diferenciação de tratamento relativamente ao crime “homólogo”, de natureza não militar, que se encontra previsto no art.º 259.º do Código Penal e, consequentemente, o respeito pelo princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da Constituição, entendido na sua função negativa ou de controlo, de proibição de arbítrio ou de tratamentos discriminatórios e arbitrários, por desprovidos de fundamento material bastante, atenta a especificidade da situação e dos efeitos tidos em vista face ao conjunto de valores e fins constitucionais (cfr., sobre a matéria, e entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.os 39/88 e 157/88 e 662/99, publicados, respectivamente, os dois primeiros, no DR, I Série, de 3 de Março de
1988 e de 26 de Julho de 1988 e o último no DR, II Série, de 24 de Fevereiro de
2000).
Por outro lado, não se vê, igualmente, que a punição prevista no tipo incriminador militar previsto no art.º 167.º do CJM se apresente como manifestamente excessiva ou desproporcionada, na perspectiva dos bens jurídicos a defender, para que possa ser censurada pelo Tribunal Constitucional. E a não se verificar tal situação, há, então, que respeitar a liberdade normativo-constitutiva do legislador, pois é a ele que a Constituição confia o poder de definir os crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos [ art.º 165.º, n.º 1, al. c) ].
Basta notar que, afora o limite máximo da moldura penal militar que se encontra prevista, no tipo de crime militar, a aplicar, evidentemente, de acordo com o princípio da culpa e dos demais critérios legais de determinação e dosimetria da pena, tão só aos casos mais graves (cfr. art.os 4.º, 12.º e 20.º do CJM e 70.º e
71.º do C. Penal) e que neles encontra inteira justificação material, acaba por existir ainda um círculo bastante alargado de coincidência ou de sobreposição das penas que estão previstas nos dois diferentes tipos penais.
Falta confrontar a norma em causa com o princípio da necessidade das penas. Mas seguindo de perto o que o Acórdão n.º 108/99, publicado no DR, II Serie, de 1 de Abril de 1999, observar-se-á que «a necessidade de lançar mão desta ou daquela reacção penal cabe, obviamente, em primeira linha o legislador, em cuja sabedoria tem de confiar-se, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de discricionariedade». E, usando os termos do referido Acórdão n.º 606/99, concluir-se-á que «a limitação da liberdade de conformação legislativa, neste domínio... só pode ocorrer quando a sanção se apresente manifestamente excessiva
(cfr. Acórdãos 634/93, 83/95 e 480/98, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 31 de Março de 1994, suplemento, e de 16 de Junho de 1995, mantendo-se o último inédito)”. Ora, tal não acontece como houve já ocasião de dizer.
C – A decisão
8. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do recurso relativamente à norma do art.º 418.º, n.º 2 do CJM, por a decisão recorrida não a ter aplicado no sentido anteriormente julgado inconstitucional pelo Acórdão 173/92 e não se verificarem os pressupostos do recurso fundado na al. g) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º
28/82;
b) Não conhecer da suscitada questão de inconstitucionalidade da norma do art.º 191.º, n.os 1 e 2 do CJM, em virtude da sua apreciação estar precludida pela circunstância do acórdão do Supremo Tribunal Militar ter subsumido ao crime pp. pelo art.º 167.º, n.os 1 e 2 do CJM os factos que o acórdão do Tribunal Militar da Marinha havia qualificado àquele tipo penal militar;
c) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 309.º, 313.º,
377.º, n.º 1 e 167.º, n.os 1 e 2 do CJM;
d) Negar, consequentemente, provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 15 de Outubro de 2003
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto unta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida no presente acórdão, entendendo que a norma do artigo 167º, nºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar, enquanto permita qualificar como crime de extravio de documento militar uma situação em que o agente intercepta um fax de uma empresa dirigido ao serviço em que é funcionário na Marinha relacionado com um negócio de aquisição de velas de navio e o utiliza para sugerir ao sócio-gerente dessa empresa que aumente o valor indicado na proposta de negócio, não consubstancia qualquer crime essencialmente militar. Com efeito, entendo, na linha de orientação seguida em vários arestos deste Tribunal, que em casos deste tipo não há qualquer específico atentado a um bem essencial para a Defesa Nacional que possa fundamentar a qualificação como crime essencialmente militar. Não me parece correcto confundir o plano do mero perigo para interesses patrimoniais da Instituição Militar na gestão funcional dos seus meios, isto é, a utilização desses meios para obtenção de vantagens patrimoniais para o agente (através de um documento de gestão corrente de um organismo sem qualquer significado para a missão específica da Marinha) com a directa afectação de fins específicos das Forças Armadas. Também não posso deixar de entender que o artigo 377º, nº 1, do Código de Justiça Militar, viola os artigos 219º e 32º da Constituição. Julgo que o artigo
197º da Lei Constitucional nº 1/97 não autoriza toda e qualquer incompatibilidade da organização destes tribunais com a Constituição, apenas os preservando na medida da sua compatibilidade com a estrutura acusatória, princípios e garantias essenciais da estrutura constitucional do Processo Penal e outros valores fundamentais consagrados na Constituição. Ora, entre esses princípios constitucionais situa-se a própria competência para exercer a acção penal atribuída ao Ministério Público (artigo 219º, nº 1, da Constituição) em articulação com a estrutura acusatória do Processo Penal
(artigo 32º, nº 5, da Constituição). Esta articulação não só assegura a separação material efectiva e não meramente formal entre a entidade que acusa e a que julga como também garante que a entidade que exerce a acção penal está, pela sua estrutura e organização, orientada exclusivamente pela legalidade democrática, isto é, tem condições institucionais para não confundir tal orientação com interesses específicos, ainda que públicos, da Administração. Ora, a confusão entre o titular do exercício de acção penal e uma entidade administrativa remete-nos para uma estrutura do Processo Penal que não é desenhada na Constituição Portuguesa, subtraindo, assim, em concreto, ao Ministério Público, fora de qualquer delegação de competência, o exercício da acção penal para que tem competência constitucionalmente atribuída.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão de não julgar inconstitucional a norma do artigo 167.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar (CJM), pelas seguintes razões:
1. A revisão constitucional de 1997 procedeu à extinção dos tribunais militares em tempo de paz, prevendo a sua constituição apenas durante a vigência do estado de guerra e, mesmo aí, com competência restrita ao julgamento de crimes de natureza estritamente militar (artigo 213.º da Constituição da República Portuguesa – CRP), enquanto anteriormente lhes era atribuída competência para o julgamento dos crimes essencialmente militares (e dos crimes dolosos equiparáveis aos crimes essencialmente militares que a lei, por motivo relevante, incluísse na jurisdição desses tribunais) e para a aplicação de medidas disciplinares (originário artigo 218.º, a que correspondeu, após a revisão de 1989, o artigo 215.º). Dispôs, contudo, o n.º 3 do artigo 211.º da CRP que “da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei”. É neste contexto que surge a disposição transitória do artigo 197.º da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, segundo o qual: “Os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do artigo 211.º da Constituição”.
Considerando que a justificação desta norma transitória assenta na necessidade de reestruturação dos tribunais judiciais quando viessem a julgar crimes de natureza estritamente militar, nada tendo a ver com a competência disciplinar dos tribunais militares, que a revisão constitucional de 1997 aboliu em termos absolutos e definitivos, o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 19 de Fevereiro de 1998, processo n.º 42 249, entendeu que a permanência em funções dos tribunais militares, “aplicando as disposições legais vigentes”, ressalvada no artigo 197.º da Lei Constitucional n.º 1/97, não abrangia a competência em matéria disciplinar. Consequentemente, julgou supervenientemente inconstitucional o segmento normativo do artigo 59.º, n.º 4, da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro), que atribuía competência ao Supremo Tribunal Militar para conhecer dos recursos dos actos dos Chefes de Estado-Maior dos ramos das Forças Armadas em matéria de disciplina militar, passando tal competência a caber à Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo.
Centrando-nos agora na competência criminal dos tribunais militares, e sabido que o conceito de crimes de natureza estritamente militar, introduzido pela revisão constitucional de 1997, é mais restritivo do que o anterior conceito de crimes essencialmente militares (cf. José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1999, pág.
195; e Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João de Brito Fernandes, Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, págs. 473 e 474, que referem que a nova fórmula constitucional realça a ideia de “relação exclusiva com a instituição militar”, de “crimes exclusivamente militares, insusceptíveis de constar da lei penal comum”, retomando uma concepção já sustentada, mesmo quanto à noção de crimes essencialmente militares, no voto de vencido do Cons. José de Magalhães Godinho aposto ao Acórdão n.º 347/86 deste Tribunal Constitucional), coloca-se, similarmente, a questão de saber se a disposição transitória do citado artigo
197.º não deverá ser entendida como ressalvando apenas a competência dos tribunais militares para o julgamento dos crimes de natureza estritamente militar, pois só quanto a estes é que, devendo passar a ser julgados por tribunais judiciais integrando juízes militares, se compreende que enquanto não estiver em vigor a legislação que possibilite o funcionamento destes tribunais
“especiais”, se mantenha provisoriamente a competência dos tribunais militares. Mas esta razão já não vale quanto aos crimes que, sendo anteriormente considerados “essencialmente militares”, já não merecem agora o qualificativo de crimes “de natureza estritamente militar”. Estes crimes, em tempo de paz, serão sempre julgados por tribunais judiciais “comuns”, sem intervenção de juízes militares, pelo que nenhuma justificação existe para que se aguarde pela entrada em vigor da legislação que regulará o funcionamento dos tribunais judiciais
“especiais” (com intervenção de juízes militares), pois – repete-se – estes tribunais nunca serão competentes para julgar crimes de natureza não estritamente militar.
Não se ignora que este Tribunal Constitucional já decidiu (cf. Acórdãos n.ºs 392/99 e 325/02) que a mencionada disposição transitória ressalvou a manutenção, na íntegra, da anterior competência dos tribunais militares em matéria criminal, continuando a caber-lhes o julgamento de todos os crimes essencialmente militares.
Apesar das reservas que, pelos motivos indicados, me suscita esta orientação jurisprudencial, acontece que, no caso, nem sequer se torna necessário tomar posição aberta quanto a ela, pois que, em meu entender, o crime pelo qual o recorrente foi condenado não pode ser considerado nem essencialmente militar nem, muito menos, de natureza estritamente militar (no novo Código de Justiça Militar, recentemente aprovado pela Assembleia da República – cf. Decreto n.º 135/IX no Diário da Assembleia da República electrónico, em www.parlamento.pt – não existe tipo legal similar ao ora em causa).
2. O recorrente – acusado da autoria de um crime de
“corrupção”, previsto e punido pelo artigo 191.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar – foi condenado como autor de um crime de “extravio de documento militar”, previsto e punido pelo artigo 167.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código, que dispõe:
“1. Aquele que queimar, dilacerar, extraviar ou por qualquer modo inutilizar livros, documentos originais, cópias ou minutas dos arquivos de qualquer corpo, navio, aeronave, estabelecimento ou repartição militar, será condenado a prisão maior e dois a oito anos.
2. A pena poderá ser substituída pela de prisão militar se da perda do livro ou do documento inutilizado ou extraviado não resultar prejuízo algum para o Estado, para o serviço ou para terceiro.”
A apreciação da adequação do crime pelo qual o recorrente foi condenado ao conceito constitucional de crime essencialmente militar não deve ser feita tendo apenas em conta a definição abstracta do tipo legal em causa, mas antes a concreta materialidade que, no caso, o preencheu
(independentemente do juízo que possa merecer a correcção da subsunção efectuada pelo acórdão recorrido – cf. declaração de voto de vencido de um dos juízes togados).
Ora, essa materialidade consistiu, em síntese, em o recorrente, exercendo funções na Direcção de Abastecimento da Marinha, ter interceptado um fax, endereçado a esse serviço, através do qual uma empresa privada apresentou proposta de preços de ----- velas a fornecer para o navio
-----------, no valor global de 12 337 970$00, e, de posse do mesmo, ter contactado o sócio gerente dessa empresa, sugerindo-lhe que aumentasse o valor indicado até 15 000 000$00, mais lhe dizendo que, depois do negócio concretizado, não deveria ser esquecido o favor que estava a fazer à empresa, sugestão que foi rejeitada pelo referido sócio gerente, que remeteu novo fax, com valores idênticos aos inicialmente propostos. O acórdão recorrido não deu por verificado o acusado crime de corrupção, por inexistência quer de solicitação de dádiva, quer de efectivação ou promessa de dádiva, quer de acto
(justo ou injusto) das atribuições do recorrente que este praticou ou deixou de praticar, mas entendeu que ocorria extravio de “documento original da administração militar”, do qual só não resultou prejuízo para o Estado e para a Marinha por a firma em causa, sabedora do desvio, ter remetido novo fax igual ao anterior.
O ilícito criminal assim cometido pelo recorrente não preenche, a meu ver, o conceito constitucional de crime essencialmente militar
(nem, muito menos, o de crime de natureza estritamente militar).
Como refere Jorge de Figueiredo Dias (em Justiça Militar
– Colóquio Parlamentar, edição da Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República, Lisboa, 1995, pág. 26): “O direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão”. Ou, conforme defendeu Luís Nunes de Almeida em intervenção no mesmo Colóquio (obra citada, págs. 77 e 78):
“O crime essencialmente militar foi qualquer coisa que se utilizou durante dezenas de anos e que, provavelmente, a maioria dos circunstantes conhece. Eram crimes cuja característica era a da defesa do que era específico da instituição militar. Não bastava uma qualquer conexão, nomeadamente uma conexão pessoal ou uma conexão de lugar, para se qualificar um crime como essencialmente militar. Para que um crime fosse essencialmente militar não tinha de ser praticado por um militar, tinha que atingir bens jurídicos específicos da instituição militar, que lhe são essenciais: essenciais e específicos! Foi isto que, durante décadas, se considerou como crimes essencialmente militares ou, na linguagem dos penalistas, o crime militar próprio. A estes crimes o Código de Justiça Militar (CJM) acrescentava os denominados «crimes acidentalmente militares», isto é, aqueles a que, embora tendo um tipo próximo, idêntico ao dos crimes comuns, acrescia uma especial conexão com a instituição militar, como seja o facto de serem praticados por militar no exercício dessas funções ou em local militar – o furto, o abuso de confiança, o peculato.
Estes crimes nunca foram considerados essencialmente militares, e em
1976 a Constituição restringe a competência dos tribunais militares ao conhecimento dos crimes essencialmente militares. Não quero dizer com isto que o legislador ordinário tenha ficado obrigado a só considerar estes crimes como os que constavam da tabela de crimes essencialmente militares do Código de 1925, mas uma coisa é segura: este era um conceito pré-constitucional com uma certa determinação, tal como o conceito de pena maior, relativamente ao qual não era possível introduzir uma alteração substancial na sua identificação.
O Código de Justiça Militar de 1977 considerou, pois, os antigos crimes essencialmente militares, os antigos crimes acidentalmente militares – que, com uma varinha de condão, foram convertidos em crimes essencialmente militares – e mais: como o foro pessoal tinha desaparecido, e aí não havia dúvidas, converteu alguns crimes, que antigamente caíam na alçada dos tribunais militares devido ao foro militar, pelo simples facto de serem praticados por militares, em locais militares ou com objectos militares – neste caso com uma dupla varinha de condão –, em crimes essencialmente militares, como foi o caso do homicídio culposo, das ofensas corporais culposas e até – pasme-se! – do dano culposo (que deixou de ser punido quando o Código Penal também o deixou de punir), que tinha como único objectivo fazer julgar em tribunal militar os acidentes de viação. Estes acidentes, mesmo quando não havia ofensas corporais, passaram a ser considerados crimes essencialmente militares.
Todavia, continuo fiel à ideia básica que crime essencialmente militar é o que atinge de forma específica a instituição militar, aquele que, na lógica de décadas, era considerado crime essencialmente militar.”
No caso presente, a materialidade imputada ao recorrente não se diferencia substancialmente da que poderia ser imputada, em direito penal comum, a qualquer outro funcionário público ou a qualquer empregado de empresa privada, que tivesse acesso a propostas de preços de fornecedores do serviço ou do estabelecimento em que encontrasse inserido. A circunstância de os bens a que respeitavam os preços propostos se destinarem, no futuro, e caso o negócio se concretizasse, a um navio da Armada, é claramente insuficiente para se considerarem directamente em causa interesses ou valores especificamente militares. O “objecto militar”, a par da “condição militar” do autor ou do
“local militar” onde ocorreu o extravio são elementos acidentais, inidóneos a transfigurar um crime comum em crime essencialmente militar.
Por estas razões, votei no sentido de ser julgada inconstitucional a norma do artigo 167.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar, tal como foi aplicada no acórdão recorrido, por violação do artigo
197.º da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro.
Lisboa, 15 de Outubro de 2003.
Mário José de Araújo Torres