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Proc. nº 288/2003
2ª Secção/Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B., foi proferida Decisão Sumária com o seguinte teor:
1. A. foi condenado por acórdão de 15 de Maio de 2001 do Tribunal Criminal de Famalicão, como autor de um crime de abuso de confiança, de um crime de insolvência dolosa e de dois crimes de burla agravada, na pena única de cinco anos e seis meses de prisão. O arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 29 de Novembro de 2001, se julgou hierarquicamente incompetente para apreciar o respectivo objecto, remetendo os autos para o Tribunal da Relação do Porto. O recorrente, nas respectivas alegações de recurso, sustentou o seguinte:
10ª Os artigos 224° do CCv e os artigos 313° do Código Penal de 1982 e 217° daquele que lhe sucedeu, quando interpretados e aplicados em termos de se fazer coincidir a reserva mental de incumprimento da obrigação contratualmente assumida com o erro ou engano engendrados astuciosamente característicos da burla, são materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 29° da Constituição, pois que assim se projecta o âmbito material de incidência do crime de burla para além dos limites consentidos pelo princípio constitucional da legalidade incriminatória. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 2 de Outubro de 2002, concedeu provimento ao recurso na parte em que vinha impugnada a condenação pela prática dos dois crimes de burla agravada, uma vez que considerou não ter existido
“artifício fraudulento”, quanto a um dos crimes, e entendeu ter-se “verificado o alegado vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão”, quanto ao segundo crime.
2. O Assistente interpôs recurso do acórdão de 2 de Outubro de 2002 para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando que os factos provados consubstanciam a prática dos crimes de burla por cuja prática o arguido havia sido condenado em
1ª Instância. Na resposta à motivação de recurso do assistente, o arguido, apresentando o seu entendimento quanto ao não cometimento dos crimes de burla, não sustentou qualquer questão de constitucionalidade normativa (cf. fls. 1934 e ss.). O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20 de Março de 2003, considerou que a matéria de facto provada consubstancia a prática de um crime de burla, referindo, a esse respeito, que “não se trata de mera reserva mental quanto ao eventual não cumprimento de um contrato-promessa” (cf. fls. 1967, verso, e
1968).
3. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
Norma de habilitação do recurso: artigo 70°, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15.11, com a redacção em vigor).
Norma jurídica cuja inconstitucionalidade material se pretende ver declarar: os artigos 224° do CCv e 313° do Código Penal de 1982 [e 217° do Código Penal que lhe sucedeu], quando fazem coincidir a reserva mental de incumprimento de obrigação assumida contratualmente com o erro ou engano engendrados astuciosamente característico da burla, e assim equiparam aquele conceito civilístico a elemento penal típico essencial.
Aplicação da norma jurídica em causa: a norma jurídica em causa foi aplicada (i) pelo Tribunal da Relação, numa sua dimensão normativa concreta compatível com a Lei Fundamental e (ii) pelo acórdão do STJ numa sua dimensão normativa concreta materialmente inconstitucional.
Norma da Constituição violada: artigo 29° da CRP, pois que a dimensão normativa concreta da norma jurídica em causa projecta o âmbito material de incidência da norma incriminatória para além dos limites consentidos pela regra da tipicidade.
Prevenção da questão: a questão foi prevenida na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, estando consignada na conclusão 10ª dessa peça processual. Trata-se de questão sobre a qual incidiu o acórdão proferido pela Relação do Porto e agora o acórdão em apreço.
Subida e efeitos: imediato, nos autos, suspensivo (artigo 78°, nº 3 da Lei do TC).
4. O recurso interposto pelo recorrente tem por pressuposto processual a aplicação pela decisão recorrida da norma impugnada (cf. artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional).
Ora, nos presentes autos, o recorrente impugna a dimensão normativa retirada dos artigos 224º do Código Civil e 313º do Código Penal, segundo a qual a reserva mental de incumprimento de obrigação assumida contratualmente coincide com o erro ou engano engendrados astuciosamente característicos da burla.
Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu não se ter verificado no caso uma situação de “mera reserva mental”, mas antes um “plano meticulosamente laborado e executado” (cf. fls. 1967 verso). Nessa medida, a dimensão normativa impugnada não foi explicitamente aplicada pela decisão recorrida, isto é, não houve expressa equiparação da reserva mental civilista ao artifício fraudulento característico da burla.
Porém, ainda que se entendesse que implicitamente foi feita tal equiparação, o que é certo é que o recurso de constitucionalidade a que se refere a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional tem também por pressuposto processual a suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, de acordo com o artigo 72º, nº 2, da mesma Lei (explicitamente após a redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada perante o tribunal que tiver proferido a decisão recorrida.
Nos presentes autos, a decisão recorrida é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2003. Nessa medida, a questão de constitucionalidade devia ter sido suscitada nas contra-alegações do recurso interposto perante esse Tribunal.
No entanto, o recorrente apenas suscitou a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada perante o Tribunal da Relação do Porto (como reconhece no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade), sendo manifesto que dispôs de oportunidade processual para suscitar tal questão perante o tribunal a quo, na resposta ao recurso do Assistente, onde foi debatida precisamente, no plano infraconstitucional, a questão agora impugnada, ou seja, a interpretação dos factos que poderá levar à equiparação da reserva mental civilista ao artifício fraudulento exigido pelo crime de burla (cf. fls. 1934 e ss.). Assim, a questão que o recorrente pretende ver apreciada no plano da constitucionalidade teria probabilidade elevada de ser objecto da decisão do recurso, sendo objectivamente previsível e inevitável que o tribunal de recurso se viria a pronunciar sobre a interpretação que o recorrente questiona. O ónus da impugnação perante o tribunal de recurso é, nestes termos, incontornável.
Verifica-se, portanto, que não foi suscitada durante o processo a questão que o recorrente pretende ver apreciada, o que consubstancia igualmente fundamento suficiente do não conhecimento do objecto do presente recurso.
5. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
O recorrente reclamou da Decisão Sumária, concluindo o seguinte:
1ª A dimensão normativa sindicada neste recurso foi aplicada pelo STJ no seu acórdão recorrido, tal como o havia sido pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão de que o assistente recorreu para o STJ, pois (i) se o STJ concluiu que estaríamos não no domínio de uma reserva mental de natureza civil e não perante um artifício fraudulento típico do crime de burla (ii) foi porque relevou as normas incriminatórias em análise neste recurso – o artigo 313° do Código Penal de 1982 e o artigo 217° do que lhe sucedeu [conjugado com o artigo 224° do CCv – numa dimensão concreta que legitima tal conclusão: o que está em causa neste recurso é o acto do legislador ao ter editado tais normas jurídicas com tal dimensão concreta.
2ª O reclamante cumpriu de acordo com o ónus a que estava adstrito em função do estatuído na alínea b) do nº 1 do artigo 70° da Lei nº 28/82, de 15.11, pois que preveniu a questão da constitucionalidade «durante o processo», concretamente na conclusão 10ª da motivação do recurso que interpôs do acórdão condenatório prolatado pela primeira instância.
3ª O reclamante não tendo recorrido de tal acórdão, pois que foi por ele absolvido – e faltava-lhe, assim, interesse em agir – não podia reiterar tal questão.
4ª O reclamante também não o podia fazer na resposta que ofereceu ao recurso que o assistente – desacompanhado do MP – interpôs de tal recurso, pois que nas conclusões de tal recurso o assistente (i) não só não abordou a dimensão normativa concreta da norma jurídica em causa, nomeadamente o artigo 313° do Código Penal de 1982 e o artigo 217° do que lhe sucedeu [conjugado com o artigo
224° do CCv] (ii) como, em decorrência lógica disso mesmo, não consignou como questão integradora do objecto do recurso, o problema da desconformidade daquelas normas jurídicas concretas, naquela concreta dimensão normativa, com a Lei Fundamental.
5ª Suscitada que estava a questão da inconstitucionalidade durante o processo, mormente no recurso interposto pelo reclamante para o Tribunal da Relação, ela estava configurada e havia sido, aliás resolvida – em sentido desfavorável – por este Tribunal, pelo que era uma questão relevante de que o STJ tinha aliás conhecimento, pois que a recusa de aplicação de normas inconstitucionais é um dever oficioso dos tribunais [artigo 204° da CRP] e não decorre de arguição pelas partes;
6ª O artigo 70°, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15.11, na dimensão normativa concreta que está a ser aplicada pela decisão sumária, é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 32°, nº 1 e 280°, nº 1, alínea b) ambos da Constituição.
7ª Nestes termos, não existe qualquer obstáculo processual que precluda o prosseguimento do recurso, para que possa ser julgada a sua substância e restituídas as normas incriminatórias à sua dimensão normativa compatível com a Constituição.
A reclamação foi indeferida pelo Acórdão nº 300/2003, de 18 de Junho (fls. 228 e ss.).
2. O recorrente interpôs recurso do Acórdão nº 300/2003, de 18 de Junho, para o Plenário, ao abrigo do 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando o seguinte:
1ª Está em causa a compatibilidade entre dois acórdãos do Tribunal Constitucional:
(1) o acórdão de 18.06.03, prolatado nestes autos, na sequência de reclamação apresentada para a conferência, o Tribunal Constitucional julgou [página 4] uma questão de inconstitucionalidade, suscitada e prevenida pelo recorrente, atinente ao artigo 70°, nº 1, alínea b) da referida Lei do TC, atinente à competência material do TC e que se desenvolve ante o artigo 72°, nº 2 da mesma lei, no que se refere a uma exigência processual prévia;
(2) e o proclamado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/92 [1ª Secção Processo 347/90] de 15.07.92;
(3) pois que enquanto este último desatendeu a «questão prévia de não conhecimento do recurso por entender que, tendo obtido ganho de causa em primeira instancia, onde alegara a inconstitucionalidade da norma, sobre o recorrente não impende o ónus de alegar esse mesmo vício, quando litigue na situação de recorrido em segunda instância», naquele proferido nestes autos atendeu tal questão prévia ao entender que a norma jurídica em causa fazia impender sobre o recorrente o ónus de prevenir a questão no processo e, como recorrido, reiterá-Ia, ante o tribunal recorrido na resposta a recurso interposto apenas pelo assistente;
2ª A dimensão normativa concreta do citado artigo 70°, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional [complementada, num outro registo com o artigo 72°, nº 2 da mesma lei] que é compatível com a Lei Fundamental, por não violar o disposto nos artigos 32°, nº 1 e 280°, nº 1, alínea b) da mesma, é a consignada no acórdão citado como sendo o que contém doutrina divergente com o ora recorrido.
A Relatora proferiu despacho com o seguinte teor:
“1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que figura como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B., o recorrente vem interpor recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional do Acórdão nº 300/2003, ao abrigo do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, concluindo o seguinte:
1.ª Está em causa a compatibilidade entre dois acórdãos do Tribunal Constitucional:
(1) o acórdão de 18.06.03, prolatado nestes autos, na sequência de reclamação apresentada para a conferência, o Tribunal Constitucional julgou
[página 4] uma questão de inconstitucionalidade, suscitada e prevenida pelo recorrente, atinente ao artigo 70°, nº 1, alínea b) da referida Lei do TC, atinente à competência material do TC e que se desenvolve ante o artigo 72°, n.º
2 da mesma lei, no que se refere a uma exigência processual prévia;
(2) e o proclamado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/92 [1ª Secção, Processo 347/90] de 15.07.92;
(3) pois que enquanto este último desatendeu a «questão prévia de não conhecimento do recurso por entender que, tendo obtido ganho de causa em primeira instância, onde alegara a inconstitucionalidade da norma, sobre o recorrente não impende o ónus de alegar esse mesmo vício, quando litigue na situação de recorrido em segunda instância», naquele proferido nestes autos atendeu tal questão prévia ao entender que a norma jurídica em causa fazia impender sobre o recorrente o ónus de prevenir a questão no processo e, como recorrido, reiterá-la, ante o tribunal recorrido na resposta a recurso interposto apenas pelo assistente;
2.ª A dimensão normativa concreta do citado artigo 70°, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional [complementada, num outro registo com o artigo 72°, n.º 2 da mesma lei] que é compatível com a Lei Fundamental, por não violar o disposto nos artigos 32°, n.º 1 e 280°, n.º 1, alínea b) da mesma, é a consignada no acórdão citado como sendo o que contém doutrina divergente com o ora recorrido.
2. O recurso previsto no artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional tem lugar se o Tribunal vier a julgar a questão de constitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma. O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional o artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Primeiramente, sublinhar-se-á que o fundamento normativo do Acórdão recorrido foi expressamente o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional e não directamente o artigo 70º, nº 1, alínea b), da mesma Lei. Ao contrário do que o recorrente pretende, o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, consagra a exigência da suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, concretizando desse modo o preciso momento em que a questão tem de ser suscitada ao longo do processo (cf., entre vários, o Acórdão nº 292/02 e, a propósito, veja-se Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, 2ª ed., 2002, p. 59). Por outro lado, o Acórdão fundamento invocado pelo recorrente foi proferido em
15 de Julho de 1992. Nessa medida, mesmo admitindo estar em causa uma dada interpretação do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, uma vez que a dimensão normativa aplicada não prescinde da articulação desse preceito com a norma do artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional
(como o próprio recorrente admite no requerimento de interposição do presente recurso para o Plenário), há que concluir que a norma em questão não é a mesma que foi aplicada pelo Acórdão nº 280/92, já que a redacção do referido artigo
72º, nº 2, foi alterada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, o que de resto foi expressamente mencionado e ponderado no Acórdão nº 300/2003.
3. Assim, não se verificam os pressupostos do recurso do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, nomeadamente a norma aplicada pelo Acórdão recorrido não é a mesma que foi aplicada pelo Acórdão fundamento, não se verificando, pois, de modo manifesto, divergência jurisprudencial.
4. Em face do exposto, não se admite o recurso para o Plenário interposto ao abrigo do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional.”
3. A. vem agora deduzir reclamação do despacho que não admitiu o recurso interposto ao abrigo do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, afirmando o seguinte:
“Decisão sob reclamação: o despacho proferido pela Exma. Conselheira Relatora pelo qual não admitiu o recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional interposto pelo ora reclamante com fundamento no artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional. Fundamentação de decisão reclamada: o não se verificarem «os pressupostos do recurso do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, nomeadamente a norma aplicada pelo Acórdão recorrido não é a mesma que foi aplicada pelo Acórdão fundamento, não se verificando, pois, de modo manifesto, divergência jurisprudencial». Fundamento da oposição: são os seguintes:
(1) O recurso previsto no artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe a identidade de norma jurídica aplicada no acórdão recorrido e no acórdão fundamento;
(2) salvo o devido respeito, a identidade normativa mantém-se, mau grado a evolução legislativa citada pela decisão sob reclamação;
(3) como se explicitou já, o que está em causa no recurso interposto pelo ora recorrente é uma dimensão normativa concreta tal como foi aplicada pelo Tribunal Constitucional ao haver rejeitado liminarmente o recurso do ora reclamante com fundamento na não prevenção da questão da constitucionalidade;
(4) essa dimensão normativa concreta era, à data em que foi proferida a decisão recorrida, alcançada através de dois normativos específicos, concorrentes (i) o artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, referente à competência do TC, no qual se enumeram as decisões de que cabe recurso (ii) o artigo 72º, nº 2 da mesma Lei;
(5) a evolução legislativa posterior [Lei nº 13-A/98, de 26.02]à emissão do acórdão fundamento alterou a redacção apenas de um dos normativos – artigo 72º, nº 2 – e não do outro – artigo 70º, nº 1, alínea b) -;
[6] tal evolução legislativa ao não ter alterado a redacção do artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do TC, manteve a identidade normativa que está em causa no que se refere à competência do Tribunal Constitucional pois que em 1992 [data da prolação do acórdão recorrido] como posteriormente a 1998 [data da entrada em vigor da Lei nº 13-A/98] se manteve a previsão legal segundo a qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo«;
(7) houvesse sido intenção do legislador o impor um sistema cerceador do direito ao recurso para o Tribunal Constitucional, limitando-o a questões suscitadas no tribunal recorrido e não no processo e teria modificado a redacção do artigo
70º, nº 1, alínea b) da Lei do TC e não o fez. Nestes termos, e salvo o muito respeito, deve ser revogada a decisão de rejeição liminar do recurso interposto pelo reclamante para o Plenário do Tribunal Constitucional e ordenado o prosseguimento dos autos.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação, nos seguintes termos:
1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade – e como está há muito perfeitamente sedimentado na jurisprudência constitucional – o recurso para o Plenário não é o meio adequado para pôr termo a divergências interpretativas das Secções do Tribunal Constitucional acerca de normas que regem o processo constitucional.
3 – Ora, no caso dos autos, o que está substancialmente em causa é apenas e tão-somente – a interpretação das normas que dispõem acerca de um pressuposto processual específico dos recursos previstos na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82 – e não qualquer decisão de mérito sobre a constitucionalidade de normas.
Cumpre apreciar.
II Fundamentação
4. O reclamante afirma que o conteúdo normativo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional não é, de modo algum, alterado pela Lei nº
13-A/98, de 26 de Fevereiro, que conferiu nova redacção ao artigo 72º, nº 2, da mesma Lei. Com tal afirmação, pretende o reclamante sustentar a identidade das normas aplicadas nos Acórdãos 280/92 e 300/2003.
Como se sublinhou no Despacho sob reclamação, o reclamante pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, por via de um recurso interposto ao abrigo do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, a norma do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
Se é verdade que não existe qualquer impedimento à impugnação, na perspectiva da constitucionalidade, das normas da Lei de Processo no Tribunal Constitucional – assim, as normas do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional poderão, naturalmente, como quaisquer outras, ser submetidas à apreciação do Tribunal Constitucional através de um dos recursos previstos na Lei – no entanto, tal como se demonstrou no Despacho impugnado, não se verificam neste caso os pressupostos processuais do recurso previsto no artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional.
Com efeito, um tal recurso pressupõe identidade normativa entre a norma aplicada
pelo Acórdão recorrido e a norma aplicada pelo Acórdão fundamento, que neste caso se não verifica.
Nos presentes autos, a norma aplicada pelo Acórdão recorrido foi a que resulta dos artigos 72º, nº 2, e 70º, nº 1, alínea b), ambos da Lei do Tribunal Constitucional (na redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), interpretados no sentido de se entender que a questão de constitucionalidade só se considera suscitada durante o processo quando o recorrente invoca a questão perante o tribunal que profere a decisão recorrida.
Tal interpretação resulta actualmente do artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, segundo o qual o recurso de constitucionalidade só pode ser interposto quando a questão de constitucionalidade haja sido suscitada perante o tribunal recorrido.
Esta redacção, introduzida pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, veio pôr fim a uma divergência jurisprudencial existente entre as 1ª e 2ª Secções do Tribunal Constitucional (únicas que então existiam). A 1ª Secção entendia que a questão não tinha de ser suscitada perante o tribunal que houvesse proferido a decisão recorrida, bastando que o tivesse sido em qualquer uma das instâncias; ao invés, a 2ª Secção sempre exigiu que a questão de constitucionalidade normativa fosse suscitada perante o tribunal a quo.
Na actual redacção do artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, foi, incontroversamente, consagrada esta segunda perspectiva.
Tal norma densifica, concretizando, num certo sentido, o segmento do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, que se refere à colocação
“durante o processo” da questão de constitucionalidade normativa, isto é, o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional especifica explicitamente o que se deve entender por suscitação “durante o processo” da questão de constitucionalidade. Essa especificação, introduzida pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, consubstancia, pois, uma definição pelo legislador do próprio conteúdo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da mesma Lei, na parte em que se refere
à colocação ”durante o processo” da questão de constitucionalidade.
É verdade que, do ponto de vista literal, o mencionado artigo 70º, nº 1, alínea b), não foi alterado. No entanto, resulta claramente do artigo 72º, nº 2, dessa Lei a intenção legislativa bem como o sentido da norma que agora resulta da conjugação daqueles dois preceitos.
É, pois, inequívoco que a norma aplicada nos presentes autos é diversa da norma aplicada pelo Acórdão 280/92, sendo manifestamente improcedente a invocação de ausência de alteração literal do artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, quando a alteração do artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, implicou evidentemente uma redução das interpretações possíveis daquele primeiro preceito.
O artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional continuou, naturalmente, a dizer que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, mas o que se deva considerar suscitar “durante o processo” uma questão de constitucionalidade normativa (o que consubstancia neste momento o objecto dos presentes autos) não pode prescindir da convocação dos artigos
72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional na redacção da Lei nº 13-A/98, de
26 de Fevereiro.
5. De todo o modo, decisivamente, segundo a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, o fundamento do recurso previsto no artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional “há-de ser constituído por duas decisões contraditórias das secções de julgamento de uma questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de uma dada norma jurídica, e não já por uma mera divergência quanto ao sentido e alcance de uma norma reguladora dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, sem que quanto a ela se haja suscitado qualquer questão de legitimidade constitucional” (Acórdão nº 729/95, D.R., II Série, de 24 de Maio de 1996, na linha de vários outros Acórdãos, nomeadamente o Acórdão nº 252/93, D.R., II Série, de 21 de Julho de 1993 e Acórdão nº 280/92).
Ora, no presente caso, tal contradição não se verificou, desde logo, porque, como se disse, não há um conteúdo normativo idêntico entre uma norma, cujo sentido foi extraído através de uma interpretação baseada em elementos extra-literais, e uma outra norma cujo sentido está perfeitamente contemplado na letra da lei, após uma alteração legislativa destinada a impedir a interpretação contrária. Mas, independentemente disso, a verdade é que se trataria, ainda assim, de uma hipotética divergência entre normas reguladoras do processo constitucional sem que as decisões contraditórias, na perspectiva do recorrente, fossem referentes à constitucionalidade dessas mesmas normas. Por esta razão não está, assim, de todo em causa o meio processual previsto no artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional.
III Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a Despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s.
Lisboa, 21 de Outubro de 2003
Maria Fernanda Palma Carlos Pamplona de Oliveira Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Bravo Serra Gil Galvão Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida