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Processo n.º 22/03
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1.A., pronunciada por despacho de 5 de Maio de 2002, proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Oleiros, pela prática de um crime de corrupção passiva para facto lícito sob a forma continuada, pretendeu interpor recurso do despacho de pronúncia para a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra. Por despacho de 16 de Outubro do mesmo ano, o recurso não foi admitido, por a decisão instrutória, que pronunciou a arguida pelos factos constantes da acusação, ser irrecorrível, nos termos do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Inconformada, reclamou então a arguida para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, desde logo suscitando a inconstitucionalidade material do artigo
310º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Após sustentação do despacho, a reclamação foi decidida, e indeferida, por decisão de 12 de Dezembro de 2002, com invocação da jurisprudência do Tribunal Constitucional, alguma dela posterior já à IV revisão constitucional, no sentido da inexistência de inconstitucionalidade da referida norma.
2.Veio então a arguida interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 310º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sustentando que esta viola o artigo 32º, n.ºs 1e 4 da Constituição, e desde logo salientando que, com a autonomização de um certo entendimento deste artigo como parâmetro, enfocava o problema numa perspectiva
“inovadora”.
Notificado para produzir alegações, a recorrente, para além de extensas considerações “prévias de carácter genérico”, centrou a sua argumentação, em suma, na compreensão do artigo 32º, n.º 4, da Constituição como consagrando um direito fundamental autónomo dos restantes previstos nesse artigo, sendo estes outros direitos (incluindo o direito ao recurso) também aplicáveis à instrução, para afirmar, a fechar, que:
“A referida inconstitucionalidade, bem vistas as coisas, resulta da leitura integrada das normas dos n.ºs 1 e 4 do artigo 32º da Constituição e do n.º 1 do art. 286º do CPP, por força da restrição arbitrária do direito ao recurso no que toca à decisão judicial que derime uma fase processual cuja existência é imposta pelo diploma fundamental e que, repete-se, materializa um direito fundamental.” E concluiu:
“B1: O conceito de instrução, de iure constituto, resulta da leitura integrada das disposições do n.º 4 do art. 32º da Constituição da República e do artigo
286º, n.º 1 do Código de Processo Penal, por o legislador constituinte ter cometido a definição funcional desta fase que o processo penal tem obrigatoriamente de facultar, ao direito ordinário. Com efeito, B2: nos termos do n.º 4 do artigo 32º referido, o direito à existência de uma fase processual da competência de um Juiz constitui um direito fundamental B3: fase processual esta que, genericamente, a um enfoque ‘fisiológico’, tem uma
‘decisão final’ que pode caracterizar-se por um despacho judicial de pronúncia, com a consequente devolução da questão para o tribunal do julgamento, ou de não pronúncia, o qual, após transitado, comunga de todas as características de uma decisão final, após julgamento, quanto ao fundo da causa. Por conseguinte e tendo em consideração o exposto, B4: é constitucionalmente ilegítimo o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 31oº do Código de Processo Penal, ao vedar o direito ao recurso, ele próprio também um direito fundamental, nos termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República, caso a decisão judicial de pronúncia seja absolutamente concordante, no que toca aos factos, com aquela do Ministério Público de acusação. Porém, B5: se perspectivadas as ‘coisas’ a uma luz ligeiramente diferente daquela que vem de figurar-se, quando a instrução é requerida pelo arguido, no intuito de obter uma decisão de não pronúncia, assim obtendo, desde logo, a declaração da sua irresponsabilidade criminal, a conclusão é forçosamente a mesma. Com efeito, B6: o referido sector do n.º 1 do artigo 310º acima referenciado é igualmente inconstitucional, por violador das duas normas que definem a competência para a instrução e a teleologia desta fase processual, pois é disso que se trata. B7: uma vez que não há razão de fundo de qualquer espécie para distinguir entre uma ‘decisão final’ e após julgamento, de uma outra que tendo a mesma apetência, por força de um direito fundamental, só o não terá sido por erro judicial na apreciação dos factos indiciariamente criminosos. Como assim, B8: e partindo dos pressupostos estabelecidos quanto ao referido direito fundamental, padecem de desigualdade de tratamento duas decisões que visam ou podem visar o mesmo escopo: a inocentação do arguido. Na verdade, B9: se da ‘decisão final’ após julgamento cabe sempre direito de recurso nos termos do artigo 399º do Código de Processo Penal a mesma tem de ser a solução em todos os casos do artigo 310º, n.º 1, do mesmo diploma, qualquer que seja o conteúdo da decisão instrutória, pois se esta for suscitada a requerimento do assistente, dela cabe sempre recurso, nos termos do s artigos 310º, n.º 1e
399º, ambos do diploma penal adjectivo. Como tal, B10: a ilaqueação do direito ao recurso, por parte do arguido, nos casos de
‘dupla conforme’ quanto aos factos constantes de uma peça de certa entidade – o Ministério Público – e de outra diferente, independente dela e sua fiscalizadora, para estes efeitos, o Juiz, conduz a menorizar a funcionalidade do referido direito fundamental. Por conseguinte, B11: a decisão judicial, seja ela de que jaez o for, que julgue a instrução, terá de ser sempre recorrível, sob pena de se assim não acontecer, a norma que obstaculiza o direito ao recurso sem peias de qualquer ordem, para plena reapreciação da decisão judicial, se tornar materialmente inconstitucional, face ao disposto nas disposições conjugadas do artigo 286º, n.º1, do Código de Processo Penal, 32º, n.º 4 e 32º, n.º 1 estes da Constituição da República. Como tal, B12: deverão V.as Exas. declarar materialmente inconstitucional, por violador dos citados preceitos, aquele da primeira parte do n.º 1do artigo 310º do Código de Processo Penal B13: uma vez que o mesmo obliterou o cariz de direito fundamental da instrução e que é credor de igualdade de tratamento relativamente a qualquer decisão judicial que, como ele, seja passível de pôr fim à causa.”
Por sua vez, o Ministério Público contra-alegou nos seguintes termos:
“Como dá nota a decisão recorrida, a questão da constitucionalidade da restrição ao direito ao recurso, ínsita na norma objecto do presente recurso para o Tribunal Constitucional, está amplamente tratada na jurisprudência constitucional, que sempre entendeu que não ocorre a dita inconstitucionalidade
(cfr. Acórdãos n.ºs 265/94, 610/96, 468/97, 45/98, 101/98, 156/98, 238/98,
266/98, 299/98, 300/98 e 463/02, nomeadamente). A extensa argumentação do recorrente não coloca qualquer questão nova, que não haja já sido ponderada e decidida no âmbito de tão extensa corrente jurisprudencial, para que inteiramente se remete. Conclusão: Nestes termos e pelo exposto conclui-se
1º – Conforme jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal Constitucional, não padece de inconstitucionalidade a norma constante do n.º 1do artigo 310º do Código de Processo Penal, enquanto restringe o direito ao recurso, relativamente ao despacho de pronúncia do arguido.
2º – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 310º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na parte em que não admite recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação. Trata-se, como se nota correctamente nas contra-alegações do Ministério Público, de norma já objecto de abundantes decisões deste Tribunal, todas no sentido da inexistência de inconstitucionalidade. É o caso, designadamente, dos Acórdãos n.ºs 265/94 ,
610/96, e, mais recentemente, 299/98 e 300/98 e 463/02 (publicados os dois primeiros, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., págs. 751 e segs., e 33º vol., págs. 841 e segs.).
O recorrente vem impugnar a constitucionalidade daquela norma invocando uma perspectiva nova, ou novos argumentos, nesse sentido. Das alegações que pôde produzir nesse sentido retira-se que tal argumentação se funda no artigo 32º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, enquanto este consagra a obrigatoriedade da instrução, como um direito fundamental autónomo dos restantes, e aquele n.º 1 consagra o direito ao recurso, também aplicável à instrução, bem como a tentativa de equiparar, para efeitos de recurso, a decisão de pronúncia à decisão final.
Trata-se, porém, de parâmetros – e, mesmo, de argumentos – constitucionais já considerados, explicita ou implicitamente, na extensa jurisprudência constitucional devotada ao tema.
Assim, por exemplo, no citado Acórdão n.º 463/02 concluiu-se não se ver que “a irrecorribilidade da decisão instrutória (...) ponha em causa o disposto no artigo 32º n.º 4 e, por via deste, o artigo 32º n.º 1, ambos da CRP”, dizendo:
“Com efeito, o que o artigo 32º n.º 4 da CRP garante é que a instrução (quando tem lugar) seja dirigida por um juiz, podendo aceitar-se que esta direcção constitua uma garantia de defesa do arguido. Mas daí não se segue que, tendo havido instrução dirigida por um juiz (não está em causa esta garantia), o artigo 32º n.º 1, ao consagrar que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa incluindo o recurso, imponha o recurso de todo e qualquer tipo de decisão instrutória, designadamente a que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação (o arguido não ficou privado do direito a uma decisão judicial), cobrando aqui inteira legitimidade a jurisprudência que o Tribunal Constitucional tem proferido sobre a constitucionalidade do artigo 310º n.º 1 do CPP.”
E no Acórdão n.º 300/98 – subscrito também pelo ora relator – pode ler-se, confrontando o direito ao recurso, expressamente referido no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, com a referida jurisprudência constitucional:
“Sempre, porém, se entendeu nos mesmos acórdãos que ‘a faculdade de recorrer em processo penal (constitui) uma tradução da expressão do direito de defesa’, correspondendo mesmo a uma imposição constitucional a consagração do recurso de sentenças condenatórias ou ‘de actos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais’ (citado Acórdão n.º 265/94 e Acórdão n.º 31/87 in ‘Acórdãos do Tribunal Constitucional’, 9º vol., pág. 463). Simplesmente, o que sempre se recusou foi que a CRP impusesse a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal. Não o impunha antes, nem o impõe depois da revisão de 1997 onde o segmento aditado ao artigo 32º n.º 1 apenas explicita o que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já entendia compreendido nas ‘garantias de defesa’ em processo penal (...). Em suma, o ‘direito de recurso’, como imperativo constitucional, hoje expressamente consagrado no artigo 32º n.º 1 da CRP, deve continuar a entender-se no quadro das ‘garantias de defesa’ – só e quando estas garantias o exijam – o que, pelas razões repetidamente apontadas nos anteriores acórdãos deste Tribunal, não compreende a impugnação do despacho de pronúncia.”
No presente caso há, pois, apenas que remeter para os fundamentos dos citados arestos – cfr. também os fundamentos que foram considerados decisivos no citado Acórdão n.º 610/96 –, concluindo que a norma em questão não se afigura violadora da Constituição da República, e que, por conseguinte, deve ser negado provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Não julgar inconstitucional o artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita; c) Condenar a recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Outubro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos