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Proc. nº 550/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. foi pronunciada pela prática de dois crimes de difamação previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 180º, nº 1, 182º e 189º, do Código Penal. A arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra sustentando o seguinte:
a) A recorrente restringe o presente recurso à parte do despacho em que é pronunciada pela prática de dois crimes de difamação agravada, p.p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 180°, nº 1, 182° e 184°, por referência ao disposto no art. 132°/2 al. j), todos do Código Penal; b) A assistente B., na acusação particular que deduziu contra a arguida A., e para o que ao presente recurso interessa, imputou-lhe a prática de dois crimes de difamação p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 180º nº 1, 182° e
184°, por referência ao disposto no art. 132°/2 al. j), todos do Código Penal; c) Contudo, o Digno Procurador do Ministério Público, no seu despacho de
28/11/2001 (fls. 145), ordenou o arquivamento dos autos quanto ao pretenso crime de denúncia caluniosa que também figurava na acusação particular por inexistência de indícios, e, com especial relevo no âmbito deste recurso, declarou que “... os autos não contêm indícios suficientes ...”, pelo se abstinha de acusar ou acompanhar as acusações particulares, tanto a da aqui recorrente como a da assistente B.; d) A conduta descrita na acusação particular e aceite no despacho de pronúncia tem por referência a actuação da assistente B. no exercício das suas funções de médica no Centro de Saúde d-- C. e por causa delas; trata-se de um aspecto incontroverso, tanto assim que a acusação particular e o despacho de pronúncia referem expressamente a qualidade da assistente e em ambos se conclui pela aplicação do art. 184° do CP (art. 132º, nº 2, al.j), do CP); e) O crime de difamação contra funcionário, no ou por causa do exercício das suas funções, é um crime com natureza semi-pública (art. 188°. nº 1, al. a), do CP); j) Enquanto crime semi-público, a legitimidade para promover o processo ou seja, para acusar, cabe ao Ministério Público, atento o disposto no art. 48° do CPP, ainda que com as restrições impostas pelos arts. 49° a 50° do Código de Processo Penal,. g) A assistente não tem legitimidade para acusar por si só, sem a prévia acusação do Ministério Público, da mesma forma que o Juiz de Instrução não pode pronunciar quando não haja sido precedido da necessária; h) A decisão do tribunal, na parte em que pronunciou a arguida A. pela prática dos factos referidos na acusação particular deduzida pela assistente B., e que integram dois crimes de difamação agravados p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 180º nº 1, 182° e 184º por referência ao disposto no art. 132°/2 al. j), todos do CP, está ferida de nulidade insanável, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art. 119º al. b) e do art. 48º, ambos do Código de Processo Penal;
(...)
O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer com o seguinte teor:
A - Não vem certificado - como nos parece que seria conveniente –, o despacho do Ministério Público que ordenou a notificação dos assistentes para dedução de acusação, de acordo com o disposto no artigo 285°, nº 1, do CPP . Todavia, dado que os elementos dos autos se afiguram inequívocos quanto à sua prolação e conteúdo, passamos à apreciação dos recursos.
B - 1. A recorrente B. apresentou queixa-crime contra A. pelos motivos nela expostos (fls. 63 a 66), com base, inequivocamente, no teor das cartas pela arguida enviadas à Senhora Ministra da Saúde e ao Senhor Dr. D., Presidente da Administração Regional de Saúde d--- ----------, e pelo qual, também inequivocamente, se apontava a prática de dois delitos de difamação previstos nos artigos 180º, nº 1, 182° e 184° (este com referência ao artigo 132°, nº 2, al. j), do CPenal). E assim, portanto, também por via da previsão do artigo 184°, pois que, como se escreveu na queixa - fls. 64 -; “Tais imputações e juízos, como se vê do adjunto documento, acontecem no exercício das funções da ofendida e por causa delas”. O que, face ao disposto no artigo 188° do C Penal, confere aos referidos delitos a natureza de semi-públicos.
2. Na mencionada queixa-crime, contudo, não se faz referência a outro eventual delito de difamação que teria, segundo a queixosa B., sido cometido pela arguida, quando, perante o agente da PSP, ao ser interrogada (fls. 24, al. a), e fls, 74 e 75), declarou que aquela fora arrogante e indelicada (fls. 115, 2° parágrafo) - até porque, como facilmente se verifica, na altura da queixa-crime ainda a arguida não fora interrogada sobre os factos daquela.
3. Nem, ainda, faz a referida queixa-crime alusão a um eventual delito da denúncia caluniosa, previsto no artigo 365°, nº 1, do C Penal, pois, não só não se indicou tal preceito, como não se apontaram os pressupostos do ilícito, nomeadamente o dolo e o dolo específico respectivos.
C. 1. Ora, desde logo, quanto ao eventual delito cometido perante o agente da PSP nos autos de inquérito, verifica-se, então, que não houve a necessária queixa-crime – necessária porquanto o delito seria semi-público, pois constituiria difamação com o mesmo contexto das outras duas. E, com efeito - conforme igualmente se refere na resposta ao recurso - fls. 55 v. e 56 - o momento da queixa e o da acusação são distintos e aquele tem, necessariamente, de preceder esta, pois é com base naquela que se efectua a investigação no inquérito, com base em cujos elementos poderia, depois, vir a ser proferida a acusação. Quando muito, poderia a recorrente B., após ter conhecimento do que considera como mais um delito de difamação, proceder, no prazo legal, a nova queixa-crime.
2. No que se reporta a eventual delito de denúncia caluniosa, trata-se de um crime de natureza pública, pelo que, não tendo sido objecto de acusação pelo Ministério Público, nunca poderia - como foi (fls. 85) - ser objecto de acusação particular, por falta de legitimidade. Anote-se, no entanto, que embora na queixa-crime da recorrente B. não se indique factualidade atinente àquele delito de denúncia caluniosa, constata-se que o Ministério Público, no seu despacho de fls. 121 e 121 v., declarou que do mesmo não havia indícios suficientes e que, por isso, se abstinha de o introduzir em juízo.
3. Por falta de legitimidade, ainda, não poderia a recorrente B. ter deduzido - como deduziu - acusação pelos dois eventuais delitos de difamação primeiramente apontados.
D - Acontece, todavia, que o Ministério Público - afastado o eventual delito de difamação cometido perante o agente da PSP, em que falta o pressuposto inicial para a prossecução do procedimento criminal -, deveria, a nosso ver, e uma vez que a natureza dos outros delitos era semi-pública e pública, ter tomado nos autos posição de acordo com o disposto nos artigos 277° ou 283° do CPP, e não ter mandado notificar a queixosa B. para os fins do art. 285°, nº 1, do CPP - como indicam os autos e o admite o respectivo magistrado a fls. 41 (resposta aos recursos).
E - Pelo que, de acordo com o sucintamente exposto e com os elementos dos autos, parecer ter-se verificado, no âmbito supra mencionado, violação do dever de promoção do processo, nos termos do artigo 48°, como prevê o artigo 119°, al. b), do CPP, com a consequente nulidade insanável. O que se afigura, igualmente, decorrer da doutrina do Assento nº. 1/2000, de 16 de Dezembro de 1999, publicado no DR nº. 4, I-A Série, de 6 de Janeiro de 2000.
F - 1. Nulidade insanável que deve abranger, não só a parte do despacho do Ministério Público que ordenou a notificação da assistente B. para os fins do artigo 285°, nº 1, do CPP, mas, igualmente, a acusação e processado respectivo subsequente, incluindo toda a fase da instrução - e, nesta, a própria pronúncia da arguida B., visto que a mesma apenas foi proferida por ter sido aberta a fase da instrução, embora com objecto diverso do daquela pronúncia.
2. Apenas se devendo manter, a nosso ver, a parte do aludido despacho do Ministério Público que determinou a notificação da assistente A., para os fins do artigo 285°, nº 1, do CPP, e respectiva peça acusatória.
3. E ordenando-se a repetição daquele despacho para conhecimento da eventual indiciação relativa aos factos que tenham a ver com os apontados delitos de natureza pública ou semi-pública e que, como tal, devam ser objecto de apreciação.
4. Efeitos estes da declaração de nulidade que têm por fundamento o disposto no artigo 122°, nºs. 1, 2 e 3 do CPP .
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 6 de Março de 2003, considerou e decidiu o seguinte:
2.1- Defende a recorrente que a acusação da assistente B. e a consequente pronúncia da arguida se encontram feridas de nulidade insanável por falta de promoção do processo pelo Ministério Público que não deduziu acusação. De resto, a sua conduta cingiu-se ao legítimo exercício do direito de participação do comportamento em causa da funcionária do Centro de Saúde d-- C. aos seus superiores hierárquicos. Apreciando, dir-se-á o que se segue. A referida B. apresentou queixa contra a arguida A. nos termos que constam de fls. 63/64, com base no teor da carta que esta enviou à Senhora Ministra da Saúde e ao Presidente da Administração Regional de Saúde d-- ---. Inequivocamente que na queixa se aponta a prática, pela A., de dois crimes de difamação p. e p. pelas disposições legais supra mencionadas. Efectivamente, foi por causa do modo como a arguida foi atendida pela queixosa B. no Centro de Saúde d-- C., onde esta exerce funções como médica, que aquela endereçou tais cartas aos referidos destinatários, por cujos termos esta se sente difamada. Sendo funcionária desse Centro (cfr. art. 386° do C. Penal), tais crimes são de natureza semi-pública ( cfr. art. 188° do C. Penal) pois que -, como refere a própria queixosa a fls. 64 destes autos -, “tais imputações e juízos aconteceram
(..) no exercício das suas funções e por causa delas”. Sendo assim, deveria, no final do inquérito, o Ministério Público ter tomado posição expressa perante os elementos recolhidos nos autos decidindo-se pelo seu arquivamento (art. 277°) ou deduzindo acusação contra a arguida A. (art. 283°), e não ter mandado notificar a assistente B. para os fins do art. 285°/1 -, como indicam os autos e o admite o respectivo Magistrado a fls. 41 na sua resposta aos recursos.
À figura do assistente a lei confere poderes que se traduzem, sobretudo, na prática de actos estimulantes destinados a influir a actividade do Ministério Público, ocupando a posição de colaborador deste. Por isso, face ao actual sistema legal, a questão da legitimidade do assistente para deduzir acusação por crimes públicos e semi/públicos quando o Ministério Público se tenha abstido de a formular não se coloca, pois, como refere Maia Gonçalves -, Código de Processo Penal Anotado,10ª ed., págs. 538/539 -, «é agora inequívoco que os assistentes não podem deduzir acusação por crime público sem que o Ministério Público o faça pelos mesmos factos (...). Perante uma abstenção do Ministério Público por crime público ou semi/público por que tenha havido queixa e constituição de assistente, resta a este requerer a abertura de instrução [art. 287°/1, alínea b)] e pode vir a obter, por esta via, a pronúncia do arguido.» Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 111,
1994, pág.113, «Tratando-se de crime público, a legitimidade para a acusação pertence ao MP» e no item seguinte: «Tratando-se de crime semi/público também a acusação dominante é da competência do MP». Também José António Barreiros refere que «Perante acusação do Ministério Público o assistente deduzirá então a sua acusação (art. 284º). Esta ordem legal de sucessão nas acusações é imperativa (...)».
É, assim, seguro que nos casos de crime público e semi/público, o assistente não pode deduzir acusação sem prévia acusação do Ministério Público, sendo entendimento pacífico na jurisprudência e na doutrina que a titularidade da acção penal pertence exclusivamente a este. Excepto quando o procedimento criminal depender de acusação particular -, o que não é o caso em apreço -, é ao Ministério Público que compete, em especial, deduzir acusação (art. 50° e ss.). Por outro lado, se o Ministério Público não deduzir acusação relativamente a factos pelos quais o procedimento não depende de acusação particular, pode o assistente requerer a abertura de instrução [art. 287°/1 al. b)]. Donde, se o assistente é notificado pelo Ministério Público, findo o inquérito, nos termos e para os efeitos do art. 285° do Código de Processo Penal, apenas lhe é lícito deduzir acusação por crime particular, e acaso o assistente entenda indiciar-se com suficiência a prática pelo arguido de crime público ou semi/público, resta-lhe, tão só, ou arguir perante o próprio agente do MP que ordenou a notificação a omissão da acusação por parte deste pelo crime (público ou semi/público), ou suscitar a intervenção do superior hierárquico do aludido agente do MP (art. 278°) ou requerer a abertura da instrução [art.s 278° e
287°/1, al. c)]. O que está vedado ao assistente, quer por falta de legitimidade para tal, quer por violação da tempestividade do procedimento, é deduzir ele mesmo a acusação pelo crime público ou semi/público. Se o fizer, viola inquestionavelmente as disposições legais citadas. Deste modo violou-se o dever de promoção do processo pelo Ministério Público nos termos do art. 48°, assim se cometendo a nulidade insanável prevista na primeira parte da alínea b) do art. 119°, como ficou clarificado no Assento nº 1/2000 de
16.12.1999 com publicação no DR. I-A de 6.1.2000. Tendo tal nulidade como efeitos o que se dispõe no art. 122º, daqui decorre, como se refere no douto parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, a necessidade de anulação não só da parte do despacho do Magistrado do MP que ordenou a notificação da assistente B. para os fins do art. 285°/1, mas também da acusação desta, do processado respectivo subsequente incluindo toda a fase de instrução que apenas foi determinada por esta acusação e da própria pronúncia das arguidas, isto é, também a da B. pois que tal pronúncia só foi proferida por ter sido aberta a fase instrutória. A declaração da tal nulidade só não tem efeitos sobre a parte do despacho do Ministério Público que determinou a notificação da assistente A. para fins do art. 285°/1 e a consequente respectiva peça acusatória desta assistente. Efectivamente, nesta parte está conforme à lei o decidido pelo respectivo Magistrado.
(...)
III - Decisão Termos em que, dando-se provimento ao recurso da arguida A., se anula o processado a partir do despacho em que o agente do MP ordenou a notificação da assistente B. para que deduzisse, querendo, acusação particular, dele apenas se aproveitando a ordem de notificação da assistente A. para o mesmo efeito e a consequente acusação desta, devolvendo-se os autos à fase de inquérito a fim de que o respectivo Magistrado promova o processo com tomada de posição expressa, em fundamentado despacho, quanto ao destino a dar-lhe relativamente à queixa apresentada por B.. Face ao ora decidido declara-se prejudicada a pronúncia deste tribunal sobre as questões suscitadas no recurso da assistente/arguida B..
2. A. arguiu a nulidade do acórdão de 6 de Março de 2003, afirmando o seguinte:
II - INCONSTITUCIONALIDADE
22. A decisão constante no Douto Acórdão de que ora se reclama, na parte em que reenvia o processo para a fase de inquérito, para além de nula é inconstitucional, por violar as garantias de defesa do arguido, nomeadamente, a paz jurídica do arguido, e o princípio non bis in idem art. 29°, n° 5 CRP .
23. O despacho no qual o Ministério Público declara, uma vez findo o inquérito, que os factos apurados (ou indiciados) não constituem crime, tem a natureza de uma decisão absolutória, constitui a garantia para o arguido que uma vez decorridos os prazos para a instrução ou para a intervenção hierárquica e não surgindo novos elementos de prova, não será perseguido por tais factos.
24. A interpretação dos arts. 410º, 412° e 428°, n° 1, todos do CPP, no sentido de que as mesmas permitem ao Tribunal da Relação extravasar os seus poderes, conhecendo para além das questões que os Recorrentes entenderam dever ser submetidas à apreciação do tribunal ad quem, por forma a que fosse revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo, violam as garantias de defesa do arguido e a sua paz jurídica, bem como o Princípio non bis in idem, constitucionalmente garantidos, estando por isso ferida de inconstitucionalidade.
25. A inconstitucionalidade da interpretação arguida nos pontos antecedentes,
é também ela uma razão adicional para que seja declarada nula a parte do Douto Acórdão que remete os presentes autos para a fase de inquérito, devendo em consequência ser apenas mantida na parte em que declara nula toda a pronúncia e a acusação deduzida pela assistente B., evitando-se dessa forma a manutenção de uma decisão que é manifestamente contrária à Lei Fundamental.
Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, requer-se que seja (i) declarada nula a parte do Douto Acórdão que remete os presentes autos para a fase de inquérito e (ii) declarando-se que se mantém o decidido quanto à nulidade do Douto Despacho de Pronúncia e da Acusação deduzida pela Assistente B., evitando-se dessa forma a manutenção de uma decisão que é contrária à Lei Fundamental.
A arguição de nulidade foi indeferida, por acórdão de 4 de Junho de 2003 (fls.
217).
3. A. interpôs recurso de constitucio-nalidade, ao abrigo dos artigos 280º, nº
1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação das normas dos artigos 410º, 412º e 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, na medida em que permitem ao Tribunal da Relação extravasar os seus poderes, conhecendo para além das questões que a recorrente submeteu à apreciação do tribunal no recurso interposto. Junto do Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
III Conclusões
A) A Recorrente inconformada com o Douto Despacho de Pronúncia proferido pela a Mma. Juiz de Instrução do Tribunal judicial da Comarca de -------------, interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, alegando (i) a falta de promoção do processo pelo Ministério Público e (ii) a inexistência de indícios da prática de alguma conduta subsumível como crime. B) O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra propalou Douto Acórdão em que sufragou o entendimento explanado pela Recorrente, tendo em consequência sido ordenada a anulação da parte do despacho do Ministério Público que ordenou a notificação da assistente para os fins do 285°, n° 1 do CPP, (ii) a acusação desta, e (iii) do processado respectivo subsequente incluindo toda a fase de instrução, C) Esta decisão era a única decisão legalmente admissível, mas, e ao arrepio das questões que a Recorrente submeteu à apreciação do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, o Douto Acórdão foi mais longe, e ordenou o reenvio dos autos para a fase de inquérito, para que o Ministério Público “promova o processo com tomada de posição expressa, em fundamentado despacho, quanto ao destino a dar-lhe relativamente à queixa apresentada por B.”. D) A nulidade arguida pela Recorrente teve por objecto a acusação particular deduzida pela Assistente e o subsequente Despacho de Pronúncia pelo factos referidos naquela Acusação; E) A declaração da nulidade dos actos (Acusação e Pronúncia), e a determinação dos seus efeitos, nos termos e para os efeitos do art. 122° do CPP, não justifica o conhecimento de outras questões, para além daquelas que foram introduzidas em recurso pelas Alegações . F) Em concreto, o Douto Despacho proferido pelo Digno Procurador do Ministério Público não é um acto que se possa considerar como dependente da Acusação Particular deduzida pela Assistente B.. G) No seu Douto Despacho o Digno Procurador do Ministério Público, é bastante claro, deixando expresso que considera inexistirem indícios suficientes para acusar pelo que, este decidiu, como .legalmente tinha que se decidir, pelo arquivamento do processo, nos termos e para os efeitos do n° 2, do art. 277° do CPP. H) Afirmando inexistirem nos autos indícios da prática de qualquer ilícito penal por parte da Recorrida o Ministério Público deixou expresso aquilo que releva e produz efeitos, pelo que é irrelevante a omissão de fundamentação ou a falta da palavra sacramental “arquivamento” que constituem, quanto muito, meras irregularidades (veja-se que estão fora do elenco do art. 119° do CPP). I) Tais irregularidades não foram arguidas. J) Não se afigura admissível que, como se decidiu, o Digno Procurador do Ministério Público possa vir a propalar um novo entendimento; quanto muito, poder-se-ia admitir que a remessa dos autos à fase de inquérito fosse exclusivamente para que a declaração de inexistência de indícios fosse transformada formalmente numa decisão fundamentada de arquivamento. L) O reenvio do processo para a fase de inquérito significa permitir que o Ministério Público se volte a pronunciar sobre o destino a dar à queixa apresentada pela então Assistente, é permitir a reabertura do inquérito fora das situações legalmente admissíveis, isto é, sem que tenham sido trazidos ao processo novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Digno Procurador Ministério Público no seu Douto Despacho de arquivamento (art.
279° do CP) M) É permitir que a Recorrente possa vir a ser acusada e julgada por factos relativamente aos quais o Ministério Público, no uso das suas atribuições exclusivas e no momento próprio (após o encerramento do inquérito), já declarou que não constituem ilícito penal. N) Tudo isto, quando nos autos ninguém pôs em causa, por qualquer forma legalmente admissível - requerendo a abertura da instrução, requerendo a intervenção hierárquica ou carreando para os autos novos elementos de prova - a correcção e conformidade de tal declaração e entendimento. O) Ordenar que o Ministério Público se volte a pronunciar sobre o destino a dar à queixa apresentada pela então Assistente, é permitir a reabertura do inquérito sem que tenham sido trazidos ao processo novos elementos de prova, colocando a Recorrente na expectativa de saber se desta feita. ainda que com a mesma factualidade e com a mesma prova, a decisão do Ministério Público vá no sentido de deduzir acusação, P) O que consubstancia uma violação da garantia de estabilidade na apreciação dos mesmos factos e consequente paz jurídica do arguido, Q) A paz jurídica do arguido adquirida e mantida pela manutenção de uma decisão anterior, no caso do Ministério Público porque proferida em sede de inquérito judicial, que não poderá ser alterada sob pena de o submeter a nova decisão sobre os mesmos factos tem um valor em tudo idêntico ao de uma sentença proferida por um Juiz. R) Ainda que se objecte que a decisão insita no despacho de arquivamento do Ministério Público não é, no sentido técnico-jurídico do termo uma sentença, e que como tal, não haveria qualquer violação do princípio constitucional non bis in idem (art. 29°, n° 5 da CRP), S) A verdade é que a nossa Lei fundamental considerou ser necessário conferir protecção à posição isolada do arguido quando confrontado com o poder do Estado, tendo consagrado que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa
(art. 32°, n° 1 CRP), T) As garantias de defesa ao arguido foram igualmente consideradas no Código de Processo Penal, sendo notória, no que no caso sub judice interessa, nos limites estabelecidos para que seja possível atacar a decisão do Ministério Público de arquivar o processo uma vez terminado o inquérito; U) Tal protecção está garantida nos limites de reacção aquela decisão, só podendo ser atacada pelo requerimento da intervenção hierárquica, da abertura da instrução ou pelo carreamento para os autos de novos elementos de prova que a existirem determinam a reabertura do inquérito, V) A limitação de actuação processual sofre, por seu lado, uma limitação temporal, já que o uso de um destes meios de reacção tem um prazo para ser requerido (cfr. arts. 278°, 286°, 287° e 279º do CPP). X) As limitações processuais determinadas para a situação do Inquérito, são em tudo semelhantes às limitações que permitem pôr em crise as decisões judiciais. Z) Subjacente a estes limites está, no entender da Recorrente, e salvo melhor opinião, a paz e a segurança jurídica que norteiam a CRP. AA) Entender o contrário é admitir que reine a incerteza para todos quantos um dia foram constituídos arguidos num processo e que viram o mesmo ser arquivado por falta de indícios da prática dos factos que lhe eram imputados, mas cuja prescrição ainda não tenha ocorrido, de verem ser reabertos os processos.
(...)
O Ministério Público contra-alegou, suscitando as seguintes questões prévias:
1 - A questão de constitucionalidade invocada, não configurando qualquer
'decisão-surpresa', por insólita e inesperada, não foi adequada e tempestivamente suscitada durante o processo, de modo a que o Tribunal recorrido dela obrigatoriamente devesse conhecer .
2 - As normas, cuja inconstitucionalidade se suscita, não foram aplicadas na dimensão interpretativa que lhes é imputada, nem constituem a 'ratio decidendI' da decisão recorrida.
3 - O excesso de pronúncia alegado radica na aplicação da norma do artigo 122° do Código de Processo Penal, de conhecimento oficioso, cuja inconstitucionalidade não foi invocada.
4 - Termos em que não deverá conhecer-se do recurso.
B. contra-alegou propugnando a improcedência do recurso. A recorrente pronunciou-se sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, sustentando o seguinte:
2. Com o devido respeito, carecem de razão tais argumentos conforme se demonstra infra.
3. A ora Recorrente foi confrontada com a inconstitucionalidade que pretende ver declarada aquando da notificação do Douto Acórdão recorrido, proferido a
11/03/2003, tendo-a logo suscitado no requerimento que apresentou em juízo no dia 28/03/2003, no qual arguiu a nulidade do referido Acórdão;
3.1. Ao invés do que é alegado pelo Recorrido, Digno Procurador do Ministério Público, a decisão constante no Douto Acórdão recorrido, proferido a 11/03/2003,
é uma “decisão-surpresa” por insólita e inesperada, e foi adequada e tempestivamente suscitada durante o processo, isto é, no primeiro momento em que a Recorrida com ela foi confrontada.
4. Na verdade, da interpretação das normas conjugadas dos arts. 410°, 412° e
428°, n° 1, todos do CPP, sufragada no Douto Acórdão recorrido, resultou o reenvio do processo para a fase de inquérito em termos tais que tornará possível ao Digno Procurador do Ministério Público propalar um entendimento diverso do que consta no Douto Despacho de 28/11/2001 (fls. 145), não era legitimamente expectável.
5. Não resulta da decisão, como poderia ser expectável, que a remessa dos autos à fase de inquérito fosse ordenada exclusivamente para que a declaração do Digno Procurador do Ministério Público, no sentido de que inexiste indícios suficientes da prática de alguma conduta subsumível como crime, fosse transformada numa decisão fundamentada de arquivamento.
5.1 Da interpretação das normas conjugadas dos arts. 410°, 412° e 428°, n° 1, todos do CPP, sufragada no Douto Acórdão recorrido, resulta que o Ministério Público se volte a pronunciar sobre o destino a dar à queixa apresentada pela então Assistente.
5.2. O mesmo é dizer, é permitir a reabertura do inquérito sem que tenham sido trazidos ao processo novos elementos de prova, colocando a Recorrente na expectativa de saber se desta feita, ainda que com a mesma factualidade e com a mesma prova, a decisão do Ministério Público vá no sentido de deduzir acusação.
5.3 O mesmo é dizer que a ora Recorrente ficará, uma vez mais, na expectativa de saber se desta feita, ainda que com a mesma factualidade e com a mesma prova, a decisão do Ministério Público irá no sentido de deduzir acusação,
5.4 O que consubstancia uma violação da garantia de estabilidade na apreciação dos mesmos factos e consequente paz jurídica do arguido.
5.5 E não se diga que tal interpretação é a consequência legal da verificação da nulidade insanável, pois como a Recorrente já deixou afirmado nas suas alegações de recurso, no Processo Penal a materialidade ou substância prevalece sobre a forma.
6. Quando o Digno Procurador do Ministério Público afirmou no Douto Despacho de 28/11/2001 (fls. 145) que inexistiam nos autos indícios da prática de qualquer ilícito penal por parte da Recorrida, o Ministério Público deixou expresso aquilo que releva e produz efeitos.
6.1 Entender o contrário é admitir que reine a incerteza para todos quantos um dia foram constituídos arguidos num processo e que viram o mesmo ser arquivado por falta de indícios da prática dos factos que lhe eram imputados, mas cuja prescrição ainda não tenha ocorrido, de verem ser reabertos os processos.
7. Assim, requer-se seja proferido Acórdão que declare a inconstitucionalidade da interpretação das normas conjugadas dos arts. 410°,
412°, e 428°, n° 1, todos do CPP, sufragada no Douto Acórdão recorrido, por considerar que tais normas permitem ao Tribunal da Relação extravasar os seus poderes, conhecendo para além das questões que os Recorrentes entenderam dever ser submetidas à apreciação dp tribunal ad quem, e da qual resultou o reenvio do processo para a fase de inquérito, com inegável violação das garantias de defesa do arguido e a sua paz jurídica, bem como o princípio non bis in idem constitucionalmente garantido (art. 29º, nº 5 e 32º, nº 1 da CRP).
Cumpre apreciar.
II Fundamentação
4. O Ministério Público suscitou neste processo duas questões prévias: por um lado, a recorrente não invocou a inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciada antes da prolação da decisão recorrida, só o tendo feito na arguição de nulidade, o que consubstanciaria uma suscitação intempestiva de tal questão; por outro lado, as normas indicadas pela recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, assim como na arguição de nulidade, não constituem a ratio decidendi do acórdão recorrido. A recorrente sustenta que não teve oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes da prolação do acórdão recorrido, uma vez que esta seria imprevisível e inesperada.
5. A recorrente interpôs recurso do despacho que a pronuncia pela prática de dois crimes de difamação previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 180º, nº 1, 182º e 189º, do Código Penal. O Ministério Público, no final do inquérito, havia notificado a assistente, nos termos e para os efeitos do artigo 285º do Código de Processo Penal (que regula a acusação em caso de crimes cujo procedimento depende de acusação particular). A assistente deduziu a acusação pela prática dos crimes indicados, não tendo o Ministério Público deduzido acusação. Sendo os crimes imputados crimes semipúblicos e não tendo havido acusação pelo Ministério Público, a arguida arguiu a nulidade consistente na falta de promoção pelo Ministério Público, prevista no artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, no parecer emitido ao abrigo do artigo 417º, nº 2, sustentou expressamente que o efeito da nulidade invocada implicaria a repetição do despacho final do inquérito “para conhecimento da eventual indiciação relativa aos factos que tenham a ver com os apontados delitos de natureza pública ou semi-pública” (fls. 168, ponto 3). Este parecer foi notificado ao mandatário da arguida (fls. 171), não tendo sido apresentada qualquer resposta.
6. Em face da factualidade descrita, cabe concluir que a recorrente dispôs de condições objectivas para configurar que os efeitos da nulidade por si arguida implicariam a devolução do processo à fase de inquérito para que o Ministério Público se pronunciasse sobre os indícios recolhidos reportados aos crimes investigados. Com efeito, pelo menos a partir do momento em que foi notificada do parecer emitido pelo Ministério Público, em que a solução agora impugnada foi expressamente invocada e sustentada, a recorrente passou a dispor de elementos que lhe permitiam configurar a possibilidade da devolução dos autos à fase de inquérito para o efeito referido. A recorrente optou por não responder, e apenas suscitou a questão de constitucionalidade na arguição de nulidade do acórdão recorrido. Não se está aqui, por conseguinte, perante uma questão surpresa, relativamente à qual não seria exigível a suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo, antes do recurso para o Tribunal Constitucional (cf, sobre esta matéria, entre outros, os Acórdãos nºs 499/97 – D.R., II Série, de 21 de Outubro de 1997; 151/2003, de 19 de Março; 332/03, de 7 de Lulho; e 372/2003, de
15 de Julho – inéditos). Ora, sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Como se referiu, a questão de constitucionalidade apenas foi suscitada pela recorrente na arguição de nulidade do acórdão recorrido. Desse modo, conclui-se no sentido da intempestividade dessa suscitação. Procede, portanto, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, consistente na não suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa.
7. O Ministério Público sustenta ainda uma segunda questão prévia, consistente na não impugnação, na perspectiva da constitucionalidade, das normas que constituem a ratio decidendi do acórdão recorrido. O Tribunal da Relação de Coimbra foi confrontado com a arguição de nulidade prevista no artigo 119º, alínea b), do Código de Processo Penal. Julgou-a procedente e fixou os efeitos no caso concreto da procedência dessa arguição, nos termos do artigo 122º do Código de Processo Penal. É isso que esteve em causa no presente processo, não sendo, portanto, pertinentes as considerações sobre a verdade formal e sobre a substancialidade que a recorrente desenvolve na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público. A recorrente, pretendendo impugnar a decisão referida, submete à apreciação do Tribunal Constitucional os artigos 410º, 412º e 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, numa dimensão que alegadamente permitiu ao Tribunal da Relação de Coimbra extravasar os seus poderes, conhecendo para além das questões que os recorrentes invocaram. Porém, os recorrentes arguiram a nulidade referida, arguição essa que o tribunal de recurso apreciou e julgou procedente
(conhecendo, portanto, as questões cuja apreciação lhe foi solicitada). A determinação dos efeitos dessa nulidade resulta necessariamente da própria norma que prevê a nulidade invocada articulada com a norma do artigo 122º do Código de Processo Penal, ou antes, de uma dada dimensão dessas normas e não meramente das normas referentes aos poderes de cognição do tribunal de recurso. Os preceitos que contêm a norma referente à nulidade em questão e seua efeitos são os artigo 119º, alínea b), e 122º do Código de Processo Penal. Tais preceitos não foram impugnados pela recorrente nos presentes autos. Verifica-se, portanto, que as normas impugnadas pela recorrente não abrangem a ratio decidendi da decisão recorrida. Assim, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, consistente na não aplicação pela decisão recorrida como ratio decidendi das normas impugnadas, é também procedente. Nessa medida, e ainda por força deste fundamento, não se tomará conhecimento do objecto do recurso, pois qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida, sendo nessa medida inútil.
III Decisão
8. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade normativa.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 UCs.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2004