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Processo n.º 693/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro vem reclamar para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da Decisão Sumária n.º 430/2013 de 29 de julho que não conheceu do objeto do recurso interposto pelo recorrente, com fundamento na falta de utilidade do recurso e na natureza não normativa do objeto do recurso.
2. O teor da fundamentação da Decisão Sumária n.º 430/2013 de 29 de julho é o seguinte:
«7. (…) cabe questionar da eventual utilidade do presente recurso. De facto, ao julgar inconstitucional a norma objeto do presente recurso, tal como é (ainda que imperfeitamente) delineada pelo recorrente - as normas dos artigos 61º als. a) e b), 123º e 215º, n.º 3 e n. 4, todos do CPP, quando interpretadas e aplicadas “no sentido de permitir que em caso de ser declarado irregular o despacho que declarou os autos de excecional complexidade por omissão de audição do arguido, ainda assim, produz efeitos quanto à elevação dos prazos da prisão preventiva até ao mesmo estar sanado com a audição do arguido e prolação de novo despacho que a considere” -, qual seria o efeito da reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão da constitucionalidade?
Esse efeito seria a revogação do despacho que declarou os autos de excecional complexidade sem prévia audição do arguido – i.e., o despacho de 01 de fevereiro de 2013. No entanto, como resulta dos autos, foi entretanto proferido um novo despacho, emanado no respeito pelo princípio do contraditório, em 01 de março de 2013. E é esse o despacho que se encontra agora em vigor.
8. Neste ponto importa recordar a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, adotada pelo sistema jurídico português. Conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado, o recurso de inconstitucionalidade tem uma função instrumental. O Tribunal Constitucional português (e diferentemente do que sucede noutros ordenamentos constitucionais da Europa) julga em recurso, que é interposto de decisão proferida por um tribunal comum. Embora o recurso seja restrito à questão da invalidade da norma (artigo 280.º, n.º 6, da CRP), a decisão que nele se profere não pode deixar de ter efeitos sobre a decisão recorrida (artigo 80.º da LTC). Isso significa, como se afirmou no Acórdão n.º 498/96, “que o interesse no conhecimento de tal recurso há de depender da repercussão da respetiva decisão na decisão final a proferir na causa. Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso”. Carece, por isso, de utilidade o julgamento do recurso quando a solução a dar pelo Tribunal Constitucional à questão de inconstitucionalidade é insuscetível de se projetar na solução dada ao caso concreto, que se manterá inalterada qualquer que venha a ser o julgamento da questão jurídico-constitucional.
Ora, é o que sucede no presente caso. De facto, uma decisão de eventual inconstitucionalidade da norma objeto do presente recurso já não produzirá efeitos úteis. O efeito pretendido – revogação do despacho datado de 01 de fevereiro de 2013 sem prévia audição do arguido – seria inconsequente, uma vez que entretanto foi emanado um novo despacho, previamente procedido da referida audição, e cujos efeitos se mantêm intocados (de resto, este último despacho não se encontra sindicado neste recurso).
Assim sendo, seria desnecessária a pronúncia do Tribunal Constitucional quanto à questão de inconstitucionalidade, uma vez que, mesmo revogando-se o despacho viciado, sempre se manteria o despacho entretanto emanado.
9. Por fim, é ainda irrelevante para os presentes autos, que se pretendam reportar efeitos ao período de tempo decorrido entre o primeiro e irregular despacho e o despacho atualmente em vigor, durante o qual o recorrente se manteve em prisão preventiva, uma vez que o arguido se encontra atualmente preso preventivamente ao abrigo de uma decisão cuja validade se mantém (o despacho proferido em 1 de março de 2013). A decisão de elevação dos prazos de prisão preventiva confirmou-se num despacho posterior, em relação ao qual a questão de inconstitucionalidade objeto do presente recurso já não foi levantada pelo arguido. Neste ponto, refere Carlos Lopes do Rego: “a consumpção de certo despacho judicial – incidente sobre a imposição ao arguido da prisão preventiva e questionada por vícios estritamente procedimentais (…), por outro e ulterior decisão, não impugnada pelo interessado, que – reapreciando tal medida de coação – entende dever mantê-la, por não se verificarem circunstâncias supervenientes relevantes, “consumindo” a precedente decisão – poderá conduzir à inutilidade do recurso em que se questionava o despacho inicialmente proferido” (Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, p. 55).
Termos em que se considera que o presente recurso, atenta a sua natureza instrumental, não produz efeitos úteis no presente processo, pelo que não se verifica assim verificado um pressuposto de admissibilidade do mesmo.
Tanto basta para que o presente recurso não possa ser conhecido.
10. Sempre se dirá, ainda, que o objeto do presente recurso não constitui uma questão normativa.
De facto, a questão de inconstitucionalidade aqui suscitada pelo recorrente não possui um mínimo de conexão literal com os preceitos invocados pelo recorrente. O recorrente invoca a inconstitucionalidade das normas dos artigos 61º als. a) e b), art. 123º e 215º, n.º 3 e n. 4, todos do CPP, quando interpretadas e aplicadas no sentido de permitir que em caso de ser declarado irregular o despacho que declarou os autos de excecional complexidade por omissão de audição do arguido, ainda assim, produz efeitos quanto à elevação dos prazos da prisão preventiva até ao mesmo estar sanado com a audição do arguido e prolação de novo despacho que a considere.
Ora, a verdade é que a decisão chegada pelo tribunal a quo não decorre diretamente do artigo 123.º. Mas se assim é, o que o recorrente pretende na realidade ver contestada é o juízo subsuntivo do tribunal a quo, que entendeu que a omissão de audiência do arguido se tratava de uma mera irregularidade, cuja sanação por despacho posterior produzia efeitos à data em que o primeiro despacho fora emitido.
Ora, neste ponto importa referir, em primeiro lugar, que não incumbe ao Tribunal Constitucional substituir-se ao juízo feito pelo tribunal a quo, questionando da bondade da qualificação do vício de omissão de audição do arguido como irregularidade sanável.
Por outro lado, se assim é, i.e., se no fundo o que o recorrente pretende ver sindicada é a própria decisão do tribunal recorrido, isso significa que o presente recurso não possui um cariz normativo. Em suma, o que o recorrente questiona é o juízo subsuntivo do tribunal a quo, que aplicou ao caso concreto o art. 123.º, e não a inconstitucionalidade de uma norma.
Ora, nos termos do artigo 72º, nº 2, da LTC, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º do mesmo diploma respeita à constitucionalidade de normas. O sistema português de fiscalização da constitucionalidade confere ao Tribunal Constitucional competência para exercer um controlo de constitucionalidade de natureza estritamente normativa – que exclui a apreciação da constitucionalidade de decisões, incluindo as decisões administrativas e judiciais – pelo que os recursos para o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, interpostos de decisões dos tribunais só podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade e por isso passíveis de aplicação a outras situações independentemente das particularidades do caso concreto, sob pena de inadmissibilidade. Assim decorre da jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, como se pode ver, em particular, no Acórdão n.º 526/98 deste Tribunal (II, 3): «A competência para apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas - que é própria de sistemas que consagram o recurso de amparo - não a detém, entre nós, o Tribunal Constitucional.
Pelo que, também por este motivo não é possível conhecer do objeto do recurso».
3. O recorrente reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
«1.º O conhecimento do objeto deste recurso produziria efeitos ao nível do autos, nomeadamente, na liberdade do recorrente,
Entende a douta decisão sumária agora reclamada, que mesmo revogando-se o despacho viciado – 1.º despacho que declarou os autos de excecional complexidade sem ouvir o arguido – sempre se matéria o despacho proferido mais tarde – que depois de ouvido o arguido declarou os autos de excecional complexidade.
A questão que deve agora ser ponderada, é caso fosse revogado o 1º despacho em consequência deste recurso o que aconteceria à prisão preventiva do arguido?
Necessariamente se extinguiria por decurso do seu máximo legal.
É que entre estes dois despachos, passaram 6 meses desde que o recorrente foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva, pelo que deixando de existir o 1º, necessariamente por via do n.º 2 do art. 215º e n.ºs 1 e 2 do art.º 217º, ambos do CPP, a duração máxima da prisão preventiva ocorreria, com a consequente libertação imediata do recorrente.
A questão pode estar em saber se o 2º despacho ocorrido vários dias depois, sana a não libertação do arguido – repete-se, caso fosse revogado o 1.º por via deste recurso.
Pensamos que não, porque, desde logo, não foi proferido qualquer despacho – não obstante a excecional complexidade declarada mais tarde – a sujeitar novamente o arguido à prisão preventiva, mas tão só, a estender o prazo de duração máxima da prisão preventiva de 6 para 12 meses.
A este respeito, em todo o caso, parece ser de convocar a jurisprudência deste Tribunal Constitucional.
Tendo por referência o acórdão 13/2004 deste TC, que aliás analisa uma questão muito semelhante a esta, e que a coloca assim:
Isso significa que, volens nolens, o Supremo Tribunal de Justiça, no feito ora em apreciação veio a conferir aos normativos ínsitos nos artigos 215º, números 1 a 3, e 217º, uma dimensão normativa de acordo com o qual a prolação de despacho judicial a declarar de excecional complexidade do procedimento por um dos crimes referidos no 2 daquele artº 215º, prolação essa efetuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva previsto nos números 1 e 2 do mesmo ortigo, não implica a extinção
Coloquemos a questão como a coloca a decisão sumária agora reclamada, isto é, revogado o 1º despacho que declarou os presentes autos de excecional complexidade – por via deste recurso caso assim viesse a final ser decidido – seria inconsequente, uma vez que foi emanado novo despacho intocado.
Ora, a questão, é que revogado o 1º despacho, a duração máxima da prisão preventiva ocorreria antes da emanação do novo despacho, pelo que o arguido teria de ser restituído à liberdade.
E se assim fosse, teria que o 2º despacho ter um efeito retroativo quanto à medida de coação de prisão preventiva do recorrente.
Como refere mais à frente este acórdão deste Tribunal
Seguramente que o legislador constituinte, ao afirmar no nº 4 do artigo 28º da Lei Fundamental que a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei ordinária, não desejou que, esgotados que fossem eles em face dos preceitos nesta consagrados, pudesse manter-se a mais penalizante medida de coação por efeito de uma (re)apreciação posterior que viesse a conferir ao procedimento uma característica que, aquando do esgotamento do prazo, ainda não estava declarada.
Terminado com um juízo de inconstitucionalidade:
Julgar inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 28º da Lei Fundamental, as normas constantes dos artigos 215º, números 1 a 3, e 217º, ambos do Código de Processa Penal, uma dimensão interpretativa de acordo com a qual a prolação de despacho judicial a declarar de excecional complexidade do procedimento por um dos crimes referidos no nº 2 daquele artº 215º, prolação essa efetuada após ter decorrido o prazo máxima de duração da prisão preventiva previsto nos números 1 e 2 do mesmo ortigo, não implica a extinção daquela medida de coação;
Esta questão é discutida no ponto 9 da decisão sumária, que, defende o recorrente, diretamente contende com o julgado e decidido no acórdão deste TC 13/2004 - quando entendeu ser irrelevante o tempo que mediou entre o 1º e 2º despacho pois a prisão preventiva foi mantida por despacho posterior.
Este é o ponto fundamental do objeto deste recurso, pelo que uma alteração por via desta reclamação deve implicar o seu conhecimento, independentemente da resposta à 2ª questão.
Pelo que, salvo sempre o devido respeito, este recurso teria sempre um efeito no processo, nomeadamente na liberdade do recorrente.
2º Mas também pela 2ª questão apreciada na douta decisão sumária agora reclamada – sem embargo de que a resposta positiva que pretendemos agora para a 1ª questão implique o conhecimento do objeto do recurso – devia merecer outro entendimento que possibilitasse o conhecimento do objeto do recurso.
De facto já por várias vezes o Tribunal Constitucional se pronunciou quanto à qualificação de um vício como irregularidade ou nulidade.
Na verdade, por ocasião do acórdão 350/2006 foi objeto a seguinte questão de inconstitucionalidade:
Constitui, assim, objeto do presente recurso a questão de constitucionalidade da interpretação das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b) (“1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, dos direitos de: (...) b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete; (...)”, 118.º, n.ºs 1 e 2 (“1. A violação ou a inobservância dos disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. 2. Nos casos em que a lei não cominar o nulidade, o ato ilegal é irregular. (...)”), 119.º (que enumera as nulidades insanáveis, referindo, na alínea c), “a ausência do arguido ou do seu defensor, nas casos em que o lei exigir a respetiva comparência”), 120.º (que enumera as nulidades dependentes de arguição), 123.º, n.º 1 (“1. Qualquer irregularidade do processa só determina a invalidade da ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado”), e 194.º, n.º 2 (“2. A aplicação referida no número anterior [aplicação de medida de coação, por despacho do juiz, sob promoção do Ministério Público] é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no ato do primeiro interrogatório judicial”), do CPP, no sentido de que constitui mera irregularidade, a arguir no próprio ato, a prolação de despacho judicial a determinar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva do arguido, na sequência de promoção do Ministério Público, sem que ao arguido representado por mandatário constituído, presente ao ato, tenha sido dado oportunidade de se pronunciar sobre essa promoção, e sem se invocar razão justificativa da impossibilidade ou inconveniência dessa audição.
Estava em causa a classificação de um vício pelo Tribunal da Relação num determinado acórdão como irregularidade, quando o recorrente afirmava em recurso que atentos os valores constitucionais em causa deveria ser tratada como nulidade.
Ou seja, o tribunal constitucional já se pronunciou diretamente quanto à classificação de determinado vício como irregularidade ou nulidade, que a douta decisão sumária não admite.
O mesmo aconteceu em vários outros acórdãos deste Tribunal ali citados:
- 429/2005 - o se face aos princípios do contraditório e garantias de defesa, determinada nulidade deveria ser sanável ou não;
- 208/2003 - o se a omissão da documentação das declarações orais até final da audiência constituía ou não uma mera irregularidade;
- 203/2004 - o que estava em causa a arguição no próprio ato de irregularidade.
Nestes termos e nos demais de direito, deve em conferência, esta reclamação ser julgada procedente».
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação nos termos seguintes:
«5.º Ora, concorda-se inteiramente com a argumentação utilizada pelo Ilustre Conselheiro Relator, atrás transcrita, na Decisão Sumária ora impugnada.
(…)
6º Na sua reclamação para a conferência considera, porém, o arguido que uma apreciação positiva do seu recurso, por parte deste Tribunal Constitucional, não seria irrelevante para a sua situação, como tal, inútil, uma vez que, no seu entender, tal apreciação positiva conduziria à sua libertação imediata, por se ter, entretanto, esgotado a duração máxima da prisão preventiva a que se encontrava sujeito.
7ºNo entanto, relativamente a tal argumentação, o Tribunal da Relação de Évora já havia, muito justamente salientado (cfr. fls. 18-20 dos autos), como referido na Decisão Sumária em apreciação (destaques do signatário):
“(…)
a Mmª Juíza de Instrução determinou a audição do arguido, sanando a irregularidade suscitada, e considerou que a invocação da mesma não afetava a validade do despacho que havia declarado a especial complexidade do processo.
A Mmª Juíza, com essa sua decisão, deixou pressuposto, obviamente (entendemos nós), que a irregularidade detetada não afetava, nesse momento, a validade (e os fundamentos) do despacho em questão, mas que tal validade (tais fundamentos) iria, de novo, ouvido que fosse o arguido, ser reapreciada.
Ouvido o arguido, a Mmª Juíza a quo, ponderando o alegado pelo mesmo, proferiu um outro despacho, que, de novo, decidiu pela excecional complexidade dos autos (mantendo, assim, o inicialmente determinado).
Este novo despacho está já, pois, indemne à invocada irregularidade
Aliás, a não ser assim, o recurso interposto pelo arguido, relativamente à declaração da excecional complexidade do processo, seria extemporâneo (tal como alegado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso).
No fundo, e bem vistas as coisas, a Mmª Juíza, invocada que foi pelo arguido uma determinada irregularidade, e verificando que a mesma ocorria, sanou-a, procedendo à audição do arguido e decidindo de novo, ou seja, substituindo o anterior despacho (onde havia ocorrido a irregularidade) por um novo despacho.
Por isso é que o arguido está, a nosso ver, ainda em tempo para recorrer da substância da decisão proferida - a declaração da especial complexidade do processo -, muito embora não tenha apresentado o recurso no respetivo prazo legal, se contado este prazo (sem mais) a partir da notificação do despacho inicial (proferido em 01 de fevereiro de 2013).
Dito de outro modo: O despacho essencial, ou seja, aquele que declarou a excecional complexidade do processo, foi como que proferido em dois tempos, sendo que, num primeiro momento (01 de fevereiro de 2013), por não audição do arguido, ficou afetado de irregularidade, e, num segundo momento (01 de março de 2013), sanada que foi essa irregularidade, ficou completo e inteiramente válido.
Improcede, nos termos expostos, esta primeira vertente dos recursos.”
8ºAliás, a argumentação do ora reclamante não logra, sequer, responder à afirmação seguinte, do Ilustre Conselheiro Relator deste Tribunal Constitucional, na Decisão Sumária ora impugnada (cfr. supra nº 3 do presente Parecer):
“9. Por fim, é ainda irrelevante para os presentes autos, que se pretendam reportar efeitos ao período de tempo decorrido entre o primeiro e irregular despacho e o despacho atualmente em vigor, durante o qual o recorrente se manteve em prisão preventiva, uma vez que o arguido se encontra atualmente preso preventivamente ao abrigo de uma decisão cuja validade se mantém (o despacho proferido em 1 de março de 2013). A decisão de elevação dos prazos de prisão preventiva confirmou-se num despacho posterior, em relação ao qual a questão de inconstitucionalidade objeto do presente recurso já não foi levantada pelo arguido.”
Acresce que, relativamente ao segundo despacho judicial que apreciou a especial complexidade do processo, foi inteiramente satisfeito o direito ao contraditório, por parte do arguido, que sobre tal complexidade expressamente se pronunciou.
9ºInvoca, também, o arguido, na sua reclamação para a conferência, que “o Tribunal Constitucional já se pronunciou diretamente quanto à classificação de determinado vício como irregularidade ou nulidade, que a douta decisão não admite” (cfr. fls. 75 dos autos).
No entanto, o Ministério Público junto da 1ª instância já se havia pronunciado sobre a qualificação do vício invocado no primeiro recurso do arguido, referindo, a este propósito (cfr. fls. 5 dos autos):
“3. No que respeita ao primeiro dos recursos, importa considerar que, como decidiu o Tribunal a quo, a omissão de audição prévia do arguido sobre a declaração de especial complexidade do processo constitui uma irregularidade, que não afeta a validade do ato, como, aliás, já foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 4 de fevereiro de 2009 (vd. in www.dgsi.pt).”
10º Tese, essa, sufragada, como se viu, pelo Tribunal da Relação de Évora (cfr. supra nº 7 do presente Parecer):
“A não audição do arguido, antes da decisão proferida sobre a excecional complexidade do processo, configura uma irregularidade (aliás, na motivação do recurso, o próprio recorrente assim a configura).
A sanação dessa irregularidade segue o regime estabelecido no artigo 123º, nºs 1 e 2, do C. P. Penal, podendo ser ordenada a sua reparação.
ln casu, foi isso que sucedeu. “
11º Crê-se, assim, que a presente reclamação para a conferência não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 430/13, de 29 de julho, que determinou a respetiva apresentação».
II – Fundamentação
5.1 O recorrente reclama para a conferência da decisão sumária que não conheceu do objeto do recurso de fiscalização concreta interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que negou provimento ao recurso jurisdicional deduzido do despacho judicial proferido nos autos de inquérito nº 3/12.2GCAL, pendentes na Comarca do Alentejo Litoral, datado de 14 de fevereiro de 2013, que lhe indeferiu o pedido de revogação do despacho de 1 de fevereiro de 2013, o qual declarou a especial complexidade dos autos, com o consequente alargamento do prazo de prisão preventiva.
Manifesta a sua discordância relativamente aos dois fundamentos arvorados na decisão reclamada como obstáculos ao conhecimento do objeto do recurso: (i) a falta de interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada no recurso interposta para a Relação; (ii) o recurso de constitucionalidade não tem por objeto uma questão normativa, mas a própria decisão judicial.
Relativamente ao primeiro fundamento, argumenta que o conhecimento do recurso produziria efeitos nos autos, designadamente, a libertação do recorrente, pois, se o despacho que declarou a excecional complexidade dos autos - o de 1 de fevereiro de 2013 - fosse revogado, a prisão preventiva extinguir-se-ia pelo decurso do prazo da sua duração máxima. Refere que “a questão pode estar em saber se o 2º despacho ocorrido vários dias depois, sana a não libertação do arguido – repete-se, caso fosse revogado o 1.º por via deste recurso. Pensamos que não, porque, desde logo, não foi proferido qualquer despacho – não obstante a excecional complexidade declarada mais tarde – a sujeitar novamente o arguido à prisão preventiva, mas tão só, a estender o prazo de duração máxima da prisão preventiva de 6 para 12 meses”. Ora, se fosse revogado o 1º despacho, a duração máxima da prisão preventiva ocorreria antes da emanação de novo despacho, pelo que o arguido teria que ser restituído à liberdade. Invocando o julgado e decidido no acórdão do Tribunal Constitucional nº 13/2004, de 8 de janeiro, considera que o despacho que declarou a excecional complexidade do processo, com preterição da audiência prévia do arguido, deveria ter sido declarado inválido pelo despacho recorrido. Como assim não foi decidiu, o despacho teve um “efeito retroativo” relativamente à medida de coação de prisão preventiva do recorrente, o que constitui uma violação do nº 4 do artigo 28º da Lei Fundamental.
E em relação ao segundo fundamento de não admissibilidade do recurso, sem explicitar com clareza suficiente a razão da discordância, limita-se a argumentar que o Tribunal Constitucional já se pronunciou por diversas vezes “quanto à qualificação de um vício como irregularidade ou nulidade”.
O recurso vem reportado à aplicação pelo acórdão recorrido das normas dos artigos 61º, alíneas a) e b), 123º e 215º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal (na redação dada pela Lei 48/2007, de 29 de agosto), “quando interpretadas e aplicadas no sentido de permitir que em caso de ser declarado irregular o despacho que declarou os autos de excecional complexidade por omissão de audição do arguido, ainda assim, produz efeitos quanto à elevação dos prazos da prisão preventiva até ao mesmo estar sanado com a audição do arguido e prolação de novo despacho que a considere”.
5.2. Na decisão sumária argumentou-se que o eventual julgamento de inconstitucionalidade dessa interpretação normativa não é suscetível de se poder projetar, de forma útil e eficaz, na decisão recorrida, de modo a modificar a solução jurídica que o acórdão recorrido tomou quanto ao despacho que declarou a excecional complexidade dos autos, implicando a sua reponderação pelo tribunal “a quo”.
Para melhor compreensão do que aí se decidiu, importa mencionar, ainda que forma sintética, o iter processual que conduziu à decisão tomada no acórdão recorrido.
- Em 1 de fevereiro de 2013 foi proferido despacho judicial a declarar a especial complexidade do processo, atentas as dificuldades de investigação relacionadas com o modo de organização da atividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida e com o número de pessoas envolvidas, e, consequentemente, a elevar para um ano o prazo da medida de coação de prisão preventiva a que o recorrente se encontrava sujeito.
- Em 11 de fevereiro de 2013, o recorrente arguiu a irregularidade desse despacho, por falta de audição prévia do arguido, requerendo a sua revogação e a concessão de prazo para se poder pronunciar sobre a complexidade do processo.
- Em 14 de fevereiro de 2013, sobre esse requerimento, foi emitido um despacho a reconhecer que a não audição prévia do arguido constituía uma irregularidade, mas porque que tal irregularidade não afetava a validade do despacho que declarou a especial complexidade do processo, indeferiu a requerida revogação e determinou a notificação do arguido para se pronunciar sobre a declaração de especial complexidade do processo.
- Em 1 de março de 2013, após audição do recorrente, foi proferiu novo despacho, no qual se decidiu manter integralmente o despacho de 1 de fevereiro de 2013.
- Em 4 de março de 2013, o ora recorrente arguiu a irregularidade deste despacho, por falta de fundamentação.
- Em 14 de março de 2003, foi indeferiu a referida arguição dessa irregularidade, considerando-se que os motivos e fundamentos subjacentes à declaração de especial complexidade do processo já constavam do despacho que a determinou – o proferido em 1 de fevereiro - e que os mesmos em nada tinham sido afetados face ao alegado pelo arguido.
- De todos os despachos, o recorrente interpôs dois recursos: um, referente aos despachos de 1 e 14 de fevereiro de 2013 e outro referente aos despachos de 1 e 14 de março de 2013.
No primeiro recurso, invocou que o despacho de 1 de fevereiro havia sido emanado sem prévia audição do arguido, como se exige no n.º 4 do artigo 215.º do CPP, e que o despacho de 14 de fevereiro, apesar de ter aceite que a falta de audição do arguido constitui uma irregularidade, manteve a validade do primeiro, numa interpretação que “diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas do artº 27º e 28º, nº 4, nega garantias de defesa previstas no artº 32º e afronta o princípio da proporcionalidade ínsito no artº 18º, todos da Constituição da República Portuguesa”.
No segundo recurso, invocou que o despacho de 1 de março era irregular por falta de fundamentação e por erro quanto aos pressupostos determinantes da declaração excecional complexidade dos autos, violando os artigos 28.º, 32.º e 205.º da CRP, vício que não foi atendido no despacho de 14 de março de 2013.
- O acórdão recorrido apreciou os dois recursos, negando-lhes provimento: o primeiro, pelo facto da irregularidade consubstanciada na omissão de audição prévia do arguido seguir o regime do artigo 123º do CPP, podendo ser ordenada a sua reparação, o que aconteceu através de um novo despacho que “substituiu” o anterior, sem que tenha sido violado qualquer regra e princípio constitucional, porque o tribunal só se pronunciou “em termos definitivos” sobre a questão da declaração da excecional complexidade do processo após a audição do arguido; o segundo, com o argumento de que não há falta de fundamentação, porque se mantiveram os fundamentos do despacho inicial, estando preenchidos os pressupostos para a declaração da excecional complexidade do processo.
5.3. No enquadramento feito pelo recorrente, o despacho de 14 de fevereiro, ao não invalidar o anterior despacho que irregularmente declarou a especial complexidade do processo, com a consequente ampliação do prazo de prisão preventiva, fez uma aplicação efetiva das normas conjugadas dos artigos 61º, alíneas a) e b), 123º e 215º, nº 3 e 4 do CPP, no sentido de que a irregularidade consubstanciada no vício procedimental da falta de audição prévia do arguido não determina a “revogação” daquela declaração.
Simplesmente, ainda que se tivesse por seguro que a verdadeira ratio decidendi do acórdão recorrido assentou na aplicação daquelas normas, na interpretação normativa referida, e se concluísse que essa dimensão interpretativa é violadora dos artigos 28.º, 32.º e 205.º da CRP, em termos de impor ao tribunal a quo a reforma do acórdão impugnado em consonância com o juízo de inconstitucionalidade, tal reforma é insuscetível de contagiar a validade do despacho de 1 de março, que o acórdão recorrido considerou impecável, e relativamente ao qual o recorrente não imputou qualquer juízo de desconformidade constitucional.
Na verdade, o despacho de 14 de fevereiro, que ordenou a reparação da irregularidade detetada na decisão sobre a excecional complexidade do processo, foi “consumido” pelo despacho de 1 de março que, após sanação do vício procedimental, convalidou aquela decisão.
Ora, relativamente a este despacho, o recorrente apenas apontou, em recurso próprio, o defeito da falta de fundamentação, formal e substancial, mas sem qualquer êxito no tribunal superior.
Daqui resulta que a eventual reforma do acórdão recorrido, na parte em que reexaminou o despacho de 14 de fevereiro, não se comunica à validade e eficácia do despacho de 1 de março. Mantendo-se no processo este despacho, que tornou definitiva a declaração de excecional complexidade do processo, carece de utilidade o julgamento do recurso, pois, qualquer que fosse a solução a dar ao recurso, ela seria insuscetível de afetar a validade daquela declaração. De nada vale anular o despacho de 14 de fevereiro, com a consequente prática de um ato de sinal contrário que determine a “revogação” do despacho de 1 de fevereiro, se se mantém incólume o despacho de 1 de março, que sanou a irregularidade praticada.
Questão diferente seria se o recorrente tivesse questionado a conformidade constitucional dos efeitos produzidos por este último despacho. A decisão de 1 de março foi tomada após ter sido eliminado o vício de que padecia a decisão de 1 de fevereiro, ou seja, após ter sido dada oportunidade ao arguido de se pronunciar sobre os pressupostos determinantes da excecional complexidade do processo. Mas, segundo o raciocínio exposto no acórdão recorrido, os efeitos da sanatória produziram-se ex tunc, isto é, reportados ao momento constitutivo do ato convalidado – o despacho de 1 de fevereiro.
Esta retroação poderia eventualmente encontrar limites constitucionais, caso legitimasse a manutenção da prisão preventiva quando a mesma já se encontrava extinta.
Nessa situação ainda poderia invocar-se o raciocínio interpretativo feito no acórdão do Tribunal Constitucional nº 13/04, citado pelo recorrente, que considerou inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 28º da Lei Fundamental, “as normas constantes dos artigos 215º, números 1 a 3, e 217º, ambos do Código de Processo Penal, numa dimensão interpretativa de acordo com a qual a prolação de despacho judicial a declarar de excecional complexidade do procedimento por um dos crimes referidos no nº 2 daquele artº 215º, prolação essa efetuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva previsto nos números 1 e 2 do mesmo artigo, não implica a extinção daquela medida de coação”.
Simplesmente, para além da diferença de no caso concreto a declaração de excecional complexidade do processo ter sido emitida antes do termo do prazo de prisão preventiva, a questão de constitucionalidade que integra o objeto do recurso não só foi suscitada no recurso interposto do despacho de 14 de fevereiro – e não no recurso interposto do despacho de 1 de março – como é relativamente a esse despacho que se imputa a aplicação efetiva da interpretação normativa que se pretende ferida de inconstitucionalidade.
Assim sendo, tendo em conta a função instrumental dos recursos de fiscalização concreta, reiteradamente afirmada pelo Tribunal Constitucional, é inútil conhecer do objeto do recurso, pois, mesmo que fosse revogado o despacho viciado, sempre se manteria o despacho atualmente em vigor, que o recorrente não sindica.
Diferentemente do alegado na reclamação, a apreciação positiva por parte do Tribunal Constitucional não poderia levar à sua libertação imediata, uma vez que, na eventualidade de ser declarada a inconstitucionalidade da norma ou dimensão normativa aplicada pelo despacho de 14 de fevereiro, o despacho de 1 de março, ao abrigo do qual a prisão se mantém, não seria atingido por tal declaração.
Afigura-se-nos, pois, que é de manter o juízo da inutilidade do presente recurso de inconstitucionalidade, tal como foi formulado na decisão sumária.
5.4. A não admissibilidade do recurso alicerçou-se ainda num outro fundamento que o recorrente também contesta, com o argumento que o Tribunal Constitucional, por diversas vezes, já se pronunciou quanto à qualificação de um vício como irregularidade ou nulidade.
Na decisão sumária, sustenta-se que o objeto do recurso não constitui propriamente uma questão normativa, consubstanciando antes uma impugnação do “juízo subsuntivo” efetuado pelo tribunal a quo, que considerou que a omissão de audiência do arguido se tratava de uma mera irregularidade, cuja sanação por despacho posterior produz efeitos à data em que o primeiro despacho fora emitido.
Efetivamente, quer a decisão do tribunal de primeira instância, quer o acórdão recorrido apontam ao ato processual o defeito de ter sido praticado com preterição da formalidade de audição do arguido – imposta pelo nº 4 do artigo 215º do CPP – mas julgaram que tal irregularidade não afeta a sua validade nem a sua eficácia.
Independentemente da correção ou não do juízo efetuado, questão que não cumpre apreciar neste recurso, ambas as instâncias consideram, por um lado, que houve violação da lei processual, e por outro, que essa irregularidade não é causa de invalidade e de ineficácia.
O acórdão recorrido é bem explícito em qualificar o vício procedimental como “irregularidade” – e não como “nulidade” processual – e em qualificar essa irregularidade como uma das que não tem qualquer influência sobre a validade e eficácia do ato processual penal imperfeito.
Refere o acórdão que «no fundo, e bem vistas as coisas, a Mmª Juíza, invocada que foi pelo arguido uma determinada irregularidade, e verificando que a mesma ocorria, sanou-a, procedendo à audição do arguido e decidindo de novo, ou seja, substituindo o anterior despacho (onde havia ocorrido a irregularidade) por um novo despacho»; de modo bem mais incisivo, explica-se o nexo funcional existente entre os dois despachos: «o despacho essencial, ou seja, aquele que declarou a excecional complexidade do processo, foi como que proferido em dois tempos, sendo que, num primeiro momento (01 de fevereiro de 2013), por não audição do arguido, ficou afetado de irregularidade, e, num segundo momento (01 de março de 2013), sanada que foi essa irregularidade, ficou completo e inteiramente válido»; e noutra passagem, torna-se a afirmar que «o tribunal recorrido só se pronunciou, em termos definitivos, sobre a questão da declaração da excecional complexidade do processo depois da prévia audição do arguido».
Aceite-se ou não esta construção, o que dela resulta é que no período que medeia entre a prática do ato processual irregular e a sua sanação, as instâncias consideram que aquele ato produziu efeitos precários, os quais se tornaram definitivos com a ocorrência da sanação. Nesta construção, declaradamente assumida pelo acórdão recorrido, o ato irregular e o evento posterior que sanou a irregularidade integram uma fattispecie complexa, à qual são atribuídos os mesmos efeitos do ato, desde o início, válido.
Ora, a inconstitucionalidade da interpretação normativa que o recorrente diz ter sido aplicada pelo acórdão recorrido está desfocada da ratio decidendi da solução que foi dada ao litígio: enquanto o acórdão recorrido julgou que a eficácia do ato irregular não ficou paralisada, porque os efeitos, ainda que precários, se normalizaram com a sanação da invalidade, o recorrente discorda que o ato irregular tenha ficado num estado de precariedade, porque não dá qualquer relevo à remoção sucessiva do vício que afetava o ato irregular.
Por conseguinte, em aplicação do artigo 123º do CPP, o acórdão recorrido considerou que a sobrevivência do ato irregular resultou da sanação do vício formal que o afetava, o que comportou a normalização, ex tunc, dos efeitos práticos produzidos. O efetivo fundamento de direito da decisão proferida pelo tribunal “a quo” foi a sanação ou possibilidade de sanação do ato irregular e não a questão do efeito invalidante do ato irregular, na dimensão normativa alegada pelo recorrente. É que, mesmo que fosse equacionada a invalidade do ato, como ele pretende, daí não resultava necessariamente a improdutividade dos seus efeitos, pois existem atos processuais inválidos que são eficazes.
O que se verifica é que o acórdão recorrido considerou que a irregularidade consentiu uma convalidação que produz efeitos reportados ao momento em que se constitui o ato convalidado. Embora sem o dizer de modo expresso, o acórdão recorrido interpreta o artigo 123º do CPP no sentido de admitir a distinção entre irregularidades que provocam efeitos invalidantes e irregularidades que não têm qualquer influência sobre a validade e eficácia do ato processual irregular, classificando a dos autos como uma destas últimas.
Diferente interpretação tem o recorrente, para quem a irregularidade praticada é uma das que afeta a validade do ato imperfeito. Pondo em sombra a convalidação, operada pela eliminação da causa do vício que o infetava, invoca a aplicação de uma interpretação normativa do artigo 123º do CPP que na realidade não aparece como motivo principal da decisão tomada. O acórdão recorrido caracteriza a irregularidade como não geradora de invalidade, por suscetível de reparação, e o recorrente caracteriza como invalidante.
Como é sabido, não cumpre ao Tribunal Constitucional tomar posição sobre a natureza da irregularidade, se é uma das que provocam efeitos invalidantes ou se é uma das que não tem influência na validade e eficácia do ato irregular, optando por uma interpretação do artigo 123º do CPP. Ao Tribunal Constitucional cumpre apenas decidir se a norma que se extrai desse preceito, na interpretação por que efetivamente optou a decisão recorrida, está ou não de acordo com a Constituição.
Ora, no presente caso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a bondade do juízo subsuntivo feito pelo tribunal a quo, que julgou que o vício de falta de audição do arguido constituía, no presente caso, uma irregularidade reparável, bem como sobre os efeitos que, atentos os contornos concretos do caso, essa irregularidade deveria produzir. Requer, assim, que o Tribunal Constitucional tome posição quanto à interpretação que se deve fazer dos preceitos que constituíram a ratio decidendi, quer no que toca à qualificação do vício, quer no que toca aos efeitos que do mesmo devem decorrer. Trata-se, em suma, de questionar a bondade da decisão recorrida, como se de um recurso de amparo se tratasse, e não de questionar a constitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal a quo.
Termos em que se considera que o objeto do presente recurso não possui um caráter normativo e, também por esse motivo, não pode ser conhecido.
III – Decisão
6. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 29 de agosto de 2013. – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral.