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Processo n.º 430/2012
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa recurso de apelação da decisão proferida pelo 1º juízo de execução de Lisboa, que julgara totalmente improcedente a oposição, por si deduzida, à execução que lhe movera B., S.A.
O 1º juízo de execução de Lisboa, porém, não admitiu o recurso, por intempestivo.
O despacho de não admissão dizia o seguinte:
“(…)conforme decorre do artigo 11.º do D.L: n.º 303/2007 de 24/08 as alterações introduzidas no regime dos recursos por aquele diploma (designadamente quanto ao prazo e ao modo de interposição do recurso) não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (…) incluindo as respetivas oposições e incidentes (…)sendo certo que estamos caídos fora do âmbito do disposto nos n.ºs 2 do arts. 11.º e 12.º do sobredito Decreto-lei. (.) Donde, sendo certo que a execução deu entrada em janeiro de 2005, mesmo contabilizando o prazo adicional que resulta do disposto no artigo 145.º, n.º5, do CPC, o recurso é intempestivo.”
Deste despacho reclamou A. para o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 688.º do Código de Processo Civil (CPC), dizendo, inter alia:
Acresce que o artigo 11.º do DL 303/2007 ao referir que se não aplica aos processos pendentes, sem ressalvar a sua aplicação aos atos desse processos praticados a partir da data da sua entrada em vigor, como sucede “in casu”, viola os princípios da igualdade e da equidade, consignados respetivamente nos artigos 13.º. 20.º-4 e 282.º-4 todos da CRP.
É assim inconstitucional aquele artigo 11.º do DL 303/2007 quando interpretado, como é feito no douto despacho de que se reclama, no sentido de que as alterações que determina relativamente ao modo e prazos de interposição do recurso, não são aplicáveis aos incidentes e apensos dos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, por violação das citadas normas da CRP.
2. Por decisão datada de 27 de abril de 2012 o Tribunal da Relação indeferiu a reclamação, apresentando para tanto os seguintes fundamentos:
A situação destes autos, em nosso entender, afigura-se clara e simples e por isso não nos merece grandes considerações. Nos termos do disposto nos artigos 11.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1 do referido Decreto-Lei n.º 303/2007, este entrou em vigor em 1 de janeiro de 2008 e o regime de recursos introduzidos por este mesmo diploma não se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
Temos entendido – e continuamos a entender – que este mesmo regime se aplica aos apensos a estes autos ainda que iniciados depois da entrada em vigor deste novo regime de recursos, desde que tais apensos tenham autonomia por si mesmos.
No caso concreto estamos perante uns autos de oposição a uma execução que se iniciou em 2005. E estes autos de oposição à execução, embora com tramitação processual própria, são um apenso totalmente dependente da própria ação executiva. Aliás, eles próprios se destinam a extinguir ou modificar a ação executiva de que são seu apenso.
Estamos assim, no caso concreto perante uns autos aos quais não é aplicável o regime, para efeitos de recursos, introduzidos por aquele diploma legal sendo antes aplicável o que vigorava à data da ação executiva.
O prazo para a interposição do recurso então em vigor era de dez dias e era este o prazo aplicável a estes autos. No caso concreto é manifesto que o prazo de dez dias (artigo 685.º do Código de Processo Civil) há muito se havia esgotado aquando da apresentação do requerimento de interposição de recurso.
3. Desta decisão recorreu A. para o Tribunal Constitucional:
A., reclamante nos autos à margem identificados, não se conformando com a aliás douta decisão proferida da reclamação do despacho de não admissão do recurso que interpôs, porque está em tempo e tem legitimidade vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional nos termos prescritos no art.º 70º-1-b) da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro.
O recurso tem efeito meramente devolutivo e sobe imediatamente mos próprios autos (art.º 78º-1 da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro e art.º 724º do CPC).
Efetivamente, conforme se sustenta na reclamação apresentada a V. Exa. daquele douto despacho de não admissão do recurso, o art.º 11.º do DL n.º 303/2007 ao referir que se não aplica aos processos pendentes, sem ressalvar a sua aplicação aos atos praticados a partir da sua entrada em vigor, como sucede com o art.º 8.º da Lei n.º 7/2013 de 13 de fevereiro de 2012, viola grosseiramente os princípios da igualdade e da equidade, consignados respetivamente nos artºs 13.º, 20.º - 4 e 282.º - 4 todos da CRP.
Na verdade, a aplicação aos atos dos processos pendentes da lei em vigor à data da sua prática é a que melhor se coaduna com o princípio da aplicação imediata da lei processual que em homenagem aos referidos princípios Constitucionais da igualdade e da equidade, tem por escopo mitigar as dificuldades de interpretação que sempre se deparam quando subsistem diversos regimes aplicáveis ao mesmo tipo de ato processual.
Sendo certo que a invocação das referidas Inconstitucionalidades tão só se mostrou tempestiva na reclamação ora apresentada a V. Exa..
4. Admitido o recurso, foram apresentadas as alegações no Tribunal. O recorrente reiterou essencialmente o que já havia dito durante o processo. Em seu entender, o artigo 11.º do Decreto-lei n.º 303/2007, quando interpretado no sentido de determinar que aquele diploma legal se não aplica aos processos pendentes no que respeita aos atos praticados a partir da sua entrada em vigor, é inconstitucional, uma vez que “viola grosseiramente os princípios da igualdade e da equidade”. E isto porque
Como se sustenta no requerimento de interposição do presente recurso, o art.º 11.º do DL 303/2007 quando interpretado no sentido de determinar que aquele diploma legal não se aplica aos processos pendentes no que respeita aos atos praticados a partir da data da sua entrada em vigor em 1 de janeiro de 2008, viola grosseiramente os princípios da igualdade e da equidade, consignados respetivamente nos artºs 13.º, 20.º - 4 todos da CRP, dado não ocorrerem diversidades significativas e relevantes relativamente aos processos iniciados antes daquela data que justifiquem a não aplicação da lei em vigor à data em que tais atos são praticados.
Na verdade, quer relativamente aos processos iniciados quer antes quer depois da entrada em vigor do citado DL n.º 303/2007, trata-se de situações idênticas sob a perspetiva de interposição de recurso, o que em nome dos princípios da igualdade e da equidade impõe o mesmo tratamento legal, como aliás sucede com o art.º 8.º da Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro que por aquela razão ressalva a aplicação da Lei aos atos dos processos pendentes praticados após a data da sua entrada em vigor.
De facto, não se vislumbram razões que justifiquem a existência de regimes diversos relativamente a atos processuais praticados depois da entrada em vigor da lei que determinou a alteração do regime de recurso, em clara oposição ao princípio da imediata aplicação da lei processual, o qual em homenagem aos princípios constitucionais de igualdade e equidade tem por escopo mitigar as dificuldades que sempre se deparam quando subsistem diversos regimes aplicáveis ao mesmo tipo de ato processual, como “in casu” se passa.
Na realidade, daquela injustificável diversidade de regimes com diferentes prazos de interposição de recursos, resulta inequivocamente um tratamento desigual para situações idênticas e daí a violação dos princípios da igualdade e da equidade, como se disse.
Efetivamente, tal diversidade mostra-se assim materialmente irrazoável e infundada, para além de indutora de interpretações dispares com a inerente consequência de tornar o sistema de interposição de recurso impreciso e inseguro para quem pretenda exercer o direito respetivo.
O recorrido não contra-alegou.
Importa apreciar e decidir
II – Fundamentação
5. O Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, procedeu a mais uma alteração ao Código de Processo Civil. Dessa alteração resultou uma nova redação para o n.º 1 do artigo 685.º do Código, nos termos da qual “[o ]prazo para a interposição do recurso é de 30 dias, salvo nos processo urgentes e nos demais casos expressamente previstos na lei, e conta-se a partir da notificação da decisão.” Na redação anterior do mesmo preceito era de 10 dias o prazo para a interposição do recurso. O seu alargamento para 30 dias, consagrado pela reforma do Código aprovada pelo Decreto-lei n.º 303/2007, explica-se pela opção, então feita, de alteração do modo de interposição do recurso. Na versão anterior a 2007, o Código previa a interposição do recurso e a apresentação das respetivas alegações como dois atos separados, a praticar em tempos diferidos. Por isso estabelecia para a prática do primeiro um prazo relativamente curto (dez dias a contas da notificação da decisão recorrenda). Com a reforma de 2007, a interposição do recurso e a apresentação das respetivas alegações passaram a ser atos simultâneos, uma vez que o n.º 2 do artigo 684.º -A veio estabelecer que “[o] requerimento referido no número anterior [de interposição do recurso] deve incluir a alegação do recorrente”. Em consequência desta modificação de regime, o prazo para a interposição do recurso passou a ser de 30 dias, a contar da notificação da decisão recorrida.
6. Sob a epígrafe “aplicação no tempo”, estabeleceu ainda o Decreto-lei n.º 303/2007, no seu artigo 11.º, n.º 1, que:
Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
É esta a norma que, no caso, o recorrente considera ser inconstitucional, por “violação grosseira” dos princípios da igualdade e da equidade. Mais precisamente, o que se contesta é a leitura que a decisão recorrida fez desta norma, ao entender que o novo regime se não aplica a processos pendentes, incluindo a atos praticados nesses processos depois da sua entrada em vigor. Subjacente a esta leitura (e conferindo-lhe inteligibilidade) está o entendimento que, no caso, o tribunal a quo adotou sobre a natureza não autónoma dos autos de oposição à execução face à ação executória principal. Como já se viu (cfr. supra, 2) considerou a decisão recorrida que: (i) era de reiterar o entendimento segundo o qual o novo regime do CPC se deveria aplicar a “apensos a (…) autos (…) iniciados depois da entrada em vigor desse mesmo novo regime desde que tais apensos [tivessem] autonomia por si mesmos” ; (ii) no caso, a oposição à execução não tinha qualquer autonomia face à ação principal; (iii) logo, ao caso não era aplicável o novo regime de recursos; (iv) logo, à face do regime “velho”, aplicável, o recurso in casu interposto devia ser considerado extemporâneo.
Não compete ao Tribunal Constitucional sindicar esta qualificação, relativa à “autonomia” ou “não-autonomia” do ato processual em causa. Essa é matéria de direito comum, para a qual são competentes os tribunais comuns. À jurisdição constitucional cabe antes o controlo da conformidade constitucional de normas, sobretudo aquelas emitidas pelo poder legislativo Assim sendo, o que há que decidir é tão somente a questão de saber se é inconstitucional, “por violação grosseira dos princípios da igualdade e da equidade”, o previsto no nº 1 do artigo 11.º do Decreto-lei nº 303/2007, na interpretação segundo a qual a não aplicação das disposições do decreto-lei aos processos pendentes inclui ainda os atos que, nesses processos, sejam praticados depois da entrada em vigor do referido decreto-lei.
7. Ora, sobre questão próxima desta já se pronunciou por diversas vezes o Tribunal Constitucional.
No Acórdão n.º 467/2010, por exemplo, o Tribunal não julgou inconstitucional “a norma extraída dos preceitos conjugados dos artigos 11.º e 12.º do Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, com o sentido de que não é aplicável aos processos pendentes em 1 de janeiro de 2008 o disposto no artigo 685.º do Código de Processo Civil, na redação naquele diploma vertida, segundo a qual o prazo para interpor recurso e apresentar alegações é unificado e passa a ser de 30 dias a contar da decisão recorrenda.” Por outro lado, no Acórdão n.º 429/2010 decidiu o Tribunal não julgar inconstitucional “a norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, quando interpretada no sentido de o prazo para recorrer, previsto no artigo 685.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), na redação emergente do mesmo diploma legal, não ser aplicável aos processos pendentes em 31.12.2007”.
Na fundamentação de ambas as decisões respondeu-se à questão de saber se as normas sub judice violavam o princípio da igualdade.
Quanto a este ponto disse o Tribunal no Acórdão n.º 467/2010:
A exclusão da aplicação do novo regime aos processos pendentes à data da entrada em vigor da nova lei não assenta em qualquer fator arbitrário ou aleatório, mas decorre de um facto processualmente relevante que é o começo de vigência de uma nova lei. O que basicamente está em causa é uma diferença de regimes decorrente da normal sucessão de leis no tempo, havendo que reconhecer ao legislador uma apreciável margem de liberdade no estabelecimento do marco temporal relevante para a aplicação do novo e do velho regime. E nem é sequer possível estabelecer um termo de comparação entre a situação dos sujeitos processuais cujas ações entraram em juízo no domínio da lei precedente e a daqueles outros cujos processos já se iniciaram na vigência da nova lei, e que, por isso, ficam já subordinados ao novo regime legal. A diferenciação de tratamento baseia-se, neste caso, numa distinção objetiva de situações e essa distinção, por sua vez, encontra justificação num fundamento material bastante, qual seja a entrada em vigor de um novo regime processual em matéria de recursos cíveis. De resto, como o Tribunal tem sistematicamente afirmado, o «princípio de igualdade não opera diacronicamente» (acórdão n.º 43/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. pág. 565 e Acórdão n.º 309/93, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) ou, pelo menos, não opera diacronicamente de forma a impedir a sucessão de leis no tempo (acórdãos n.ºs 563/96, 467/03, 99/04 e 222/08, qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Esta fundamentação mantém, para o presente caso, toda a sua validade, uma vez que o que nele está em causa é, ainda e essencialmente, o modo pelo qual o legislador resolveu o problema da sucessão, no tempo, de dois diferentes regimes de recursos em processo civil, em cumprimento de uma tarefa – a de adequar a conformação processual civil a novas exigências, emergentes do devir do tempo – que, aliás, a Constituição lhe impõe.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos o Tribunal decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, na interpretação segundo a qual a não aplicação das disposições do decreto-lei aos processos pendentes inclui ainda os atos que, nesses processos, sejam praticados depois da entrada em vigor do referido decreto-lei.
b) não conceder provimento ao recurso;
c) condenar o recorrente em custas, fixadas em vinte e cinco (25) unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 24 de setembro de 2013. – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro.