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Processo n.º 555/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Ministério Público recorreu, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante “LTC”), do Acórdão n.º 11/2013-3, proferido pela 3.ª Secção do Tribunal de Contas em 9 de maio de 2013, o qual, dando por verificada a extinção do procedimento com base na alínea d), do n.º 2, do artigo 69.º da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, com as alterações subsequentes, adiante designada “LOPTC”), não conheceu do recurso por falta de objeto. Esta decisão foi proferida na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público da sentença proferida no âmbito de um processo autónomo de multa em que José António Freitas foi condenado, pela prática da infração p. e p. nos artigos 52.º, n.ºs 1 e 4, 66.º, n.º 1, alínea a), e 67.º da LOPTC (falta injustificada de remessa tempestiva das contas da sociedade a que presidia), na multa de € 525 (quinhentos e vinte e cinco euros). Na verdade, o Ministério Público junto da Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas havia recorrido da citada condenação, alegando, em síntese, que, sendo aplicável aos processos atinentes às função de fiscalização do Tribunal de Contas, a título de legislação subsidiária, o Código de Processo Civil e, quanto à matéria sancionatória, o Código de Processo Penal, e possibilitando qualquer um desses diplomas a prática do ato até ao terceiro dia útil após o termo do prazo, daí resultaria que, no caso concreto, a remessa das contas era tempestiva não se verificando, por conseguinte, a prática da infração pela qual o demandado havia sido condenado. No entender do recorrente, ora reclamante, a norma do artigo 69.º, n.º 2, d), da LOPTC, quando interpretada - como no acórdão recorrido - no sentido de considerar que o pagamento voluntário da multa, admitido e realizado ainda antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, determina a «extinção do procedimento» e a «perda de objeto» do recurso já, contra ela, interposto pelo Ministério Público», é inconstitucional por violar “os princípios e determinações constantes dos artigos 3.º, n.º 3, 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, 2 e 10 e 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa”
Pela Decisão Sumária n.º 442/2013 decidiu-se não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade, com base nos seguintes fundamentos:
« 1. […]
A fls. 18 dos presente autos, a Conselheira Relatora no Tribunal de Contas ordenou a remessa dos autos à Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas, a título devolutivo, a fim de que fossem juntos todos os documentos remetidos àquela Secção após a prolação da sentença. Solicitou ainda informação detalhada no sentido de saber se os montantes devidos a título de multa e emolumentos já haviam sido pagos e, em caso afirmativo, por quem. Com interesse para os presentes autos, ordenou ainda que o teor de tal despacho, bem como da informação a ser prestada, fosse notificado ao Ministério Público junto da Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas, bem como ao demandado.
A fls. 34 dos autos consta a seguinte cota:
”Em 19 de março de 2013 juntei ao presente processo os documentos de fls. 20 a 33.
O pagamento da multa no montante de 525,00 € foi efetuado em 21/12/2012, conforme comprovativo a fls. 30.
Os emolumentos foram pagos em 24/12/2012 cfr. fls. 33.
O documento comprovativo da titularidade da conta encontra-se a fls. 32.
A Assistente Técnica
Lídia Silva.”
A notificação ao Ministério Público consta de fls. 35 e foi efetuada em 21 de março de 2013.
Devolvidos os autos à sede do Tribunal de Contas, e após vistos legais, foi proferido o acórdão já mencionado, tendo a Relatora originária ficado vencida por entender que “o pagamento da multa e em emolumentos só extinguiria o procedimento após o trânsito em julgado da sentença, ou seja, quando a sentença se tornasse exequível, o que não foi o caso”. Acrescentou ainda, na sua declaração de voto, que “qualquer interpretação em contrário, por coartar o direito ao recurso por parte do M. P., é, a meu ver, ilegal” (cfr. fls. 50).
2. [No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o Ministério Público alegou que] a questão da inconstitucionalidade só agora pode ser suscitada, pois nunca antes, durante todas as fases do processo, ela podia ter sido invocada, uma vez que apenas resultou do sentido dado já na decisão final à referida norma pelo Acórdão de que ora se recorre.
No teve, por isso, o Ministério Público outra oportunidade de suscitar a questão, ou ainda de, posteriormente a tal decisão, o fazer perante a 3.ª Secção do Tribunal de Contas, uma vez que o Acórdão recorrido já não admite recurso perante o próprio Tribunal que o proferiu.
[…]
5. No que respeita à questão de constitucionalidade que ora pretende ver apreciada, o recorrente refere expressamente, no requerimento de interposição de recurso, que “a questão da inconstitucionalidade só agora pode ser suscitada, pois nunca antes, durante todas as fases do processo, ela podia ter sido invocada, uma vez que apenas resultou do sentido dado já na decisão final à referida norma pelo Acórdão de que ora se recorre”. Acrescentou ainda que “[n]ão teve, por isso, o Ministério Público outra oportunidade de suscitar a questão, ou ainda de, posteriormente a tal decisão, o fazer perante a 3.ª Secção do Tribunal de Contas, uma vez que o Acórdão recorrido já não admite recurso perante o próprio Tribunal que o proferiu (…)” (cfr. fls. 53).
5.1. Conforme se referiu, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade durante o processo, isto é, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC). A questão de inconstitucionalidade deve, portanto, ser suscitada antes de se mostrar esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre tal questão, na medida em que o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal recorrido sobre a questão de inconstitucionalidade que é objeto do recurso.
Só em casos muito particulares – em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar tal questão antes de ser proferida a decisão recorrida, ou tendo tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de inconstitucionalidade, ou em que, por força de preceito específico, o poder jurisdicional não se tivesse esgotado com a prolação da decisão final – é que será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
Uma das situações em que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido exceções à regra que obriga a suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da prolação da decisão recorrida, prende-se com as situações em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de ser proferida a decisão recorrida por se tratar de “decisão-surpresa”, de conteúdo insólito ou imprevisível, tornando inexigível a prévia suscitação de tal questão, antes de a parte ser confrontada com o teor da decisão proferida.
5.2. Contudo, importa salientar que a jurisprudência constitucional vem fazendo uma interpretação bastante rigorosa desta exceção, só a admitindo nos casos – absolutamente anómalos – em que o recorrente é efetivamente confrontado com uma concreta aplicação ou interpretação normativa de todo imprevisível e inesperada, não lhe sendo razoavelmente exigível impor a antecipação de que o tribunal iria optar pela convocação ou interpretação da norma. Para que uma decisão possa ser qualificada como “decisão-surpresa” de modo a considerar-se o recorrente constitucional dispensado do ónus de suscitação atempada (i.e. durante o processo) da questão de constitucionalidade, é necessário que a aplicação do preceito em causa – ou a aplicação do preceito numa determinada interpretação – surja como absolutamente inesperada e imprevisível de um ponto de vista objetivo.
Neste sentido se tem vindo a pronunciar, de modo reiterado, a jurisprudência constitucional. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de abril de 1992,
“ […D]esde logo terá de ponderar-se que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adotarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada). E isso – acrescentar-se-á também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excecionais (voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os interessados da exigência de invocação ‘prévia’ da inconstitucionalidade perante o tribunal ‘a quo’.”
6. Vejamos então se in casu o condicionalismo ocorrido é suscetível de integrar uma situação de tal modo excecional e insólita que se possa considerar que não impendia sobre o recorrente o ónus de suscitar, perante o tribunal a quo, o problema de constitucionalidade que vem agora colocar a este Tribunal Constitucional. A citada situação excecional não se verificará, caso se constate: (a)que o sentido conferido ao artigo 69.º, n.º 1, alínea c), da LOPTC pelo acórdão recorrido é, de um ponto de vista objetivo, previsível e antecipável; e (b)que o recorrente dispôs de oportunidade processual efetiva para confrontar o tribunal recorrido com a questão de constitucionalidade em tempo, constituindo-o num dever de decisão quanto à mesma.
(a) Quanto ao sentido atribuído ao artigo 69.º, n.º 1, alínea c), da LOPTC
6.1. No caso em apreço, o acórdão recorrido, uma vez comprovado o pagamento voluntário da multa e emolumentos em que o demandado havia sido condenado, limitou-se a julgar o procedimento extinto em consonância com o regime que decorre, literalmente, do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea d), da LOPTC. Estatui-se nesse preceito que o procedimento por responsabilidades sancionatórias nos termos dos artigos 65.º e 66.º se extingue pelo pagamento. A redação atual da norma foi introduzida pela Lei n.º 48/2006, de 29 de agosto. Na redação anterior da referida alínea d), previa-se apenas a extinção do procedimento por via do pagamento ocorrido na fase jurisdicional.
A nova redação do artigo 69.º, n.º 1, alínea d), salientou, por conseguinte, a relevância do pagamento enquanto causa de extinção do procedimento pelas responsabilidades sancionatórias previstas naquele artigo, independentemente do momento em que o mesmo venha a ocorrer. É certo que este alargamento temporal da relevância do pagamento resultou da necessidade de enquadrar os casos de pagamento ocorridos antes do início da fase jurisdicional propriamente dita (e não de situações em que, como ocorre nos presentes autos, o pagamento vem a ocorrer após a decisão condenatória e antes do respetivo trânsito).
Sendo certo que o mencionado sentido pode, de facto, suscitar a perplexidade de se julgar extinto um procedimento, e consequentemente deserto o recurso de decisão condenatória interposto pelo Ministério Público a favor do demandado, em casos como o dos autos, o que interessa apurar neste momento é se o mesmo se podia ter, face aos autos, como absolutamente imprevisível ou insólito para efeitos de se considerar que a decisão aqui recorrida é uma «decisão surpresa» e, consequentemente, comprovar-se a inexigibilidade da invocação da questão de constitucionalidade durante o processo, ou seja, antes da prolação do acórdão recorrido.
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Na verdade, face à redação do artigo 69.º, n.º 1, alínea d), da LOPTC, quer na versão inicial quer na formulação resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 46/2006, de 29 de agosto, o primeiro efeito que se pode atribuir ao pagamento da multa e dos emolumentos é, precisamente, o da extinção do procedimento, independentemente do momento em que ocorra esse pagamento. Ou seja, mesmo que tal pagamento ocorra após proferida sentença condenatória e antes do respetivo trânsito, face à letra do preceito, na sua abrangência, o sentido imediato que o intérprete atribui à letra da lei é, precisamente, o de que tal pagamento fará extinguir o procedimento.
Isso mesmo é comprovado pelo teor da declaração de voto de vencida aposta ao acórdão recorrido. Nesse voto colhe-se, a dada altura, o seguinte trecho (v. fls. 49-50):
« [É] certo que o artigo 69.º, n.º 2, alínea d), da LOPTC, estatui que o procedimento por responsabilidades sancionatórias se extingue pelo pagamento. Esta norma deve, contudo, ser interpretada tendo em conta o sistema jurídico em que a mesma se insere, designadamente o disposto nas normas acima referidas. Entendo, por isso, que o pagamento da multa e em emolumentos só extinguiria o procedimento após o trânsito em julgado da sentença, ou seja, quando a sentença se tornasse exequível, o que não foi o caso.»
Significa isto, por conseguinte, que o sentido imediato seria, precisamente, o de atribuir ao pagamento a consequência da extinção do procedimento. Uma tal interpretação – imediata ou literal – não poderia, no entanto, prevalecer, no entender daquela Conselheira, uma vez que criaria distorções sistémicas traduzidas na restrição do direito ao recurso do Ministério Público interposto em defesa da legalidade. De todas estas considerações resulta, sem margem para dúvidas, que o sentido com que o artigo 69.º, n.º 2, alínea d) da LOPTC foi aplicado não era, de todo, inesperado ou insólito.
Tal sentido não podia, por conseguinte, deixar de ser previsível e expectável para o recorrente.
Assim, o que pode questionar-se in casu é se seria exigível ao Ministério Público antecipar a aplicabilidade de tal preceito e se, perante tal antecipação, o mesmo teve oportunidade processual para suscitar a inconstitucionalidade. É sobre esses aspetos que nos debruçaremos de seguida.
(b) Quanto à oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido
6.2.É aceitável que, no momento em que interpôs o recurso da decisão proferida em primeira instância, o recorrente não suspeitasse da possibilidade de os autos virem a ter o desfecho que conheceram na decisão ora recorrida. Com efeito, a tramitação processual nos autos conheceu a seguinte cronologia:
- Recurso da decisão de primeira instância entrado em 17 de dezembro de 2012 (fls. 7) e admitido por despacho de 18 de dezembro de 2012 (fls. 9);
- Recurso distribuído em 14 de janeiro de 2013 (fls. 12);
- Pedido de informação à Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas em 5 de março de 2012 (fls. 18);
- Pagamento da multa feito inicialmente pela EM em 7 de agosto de 2012, conforme informação de fls. 24 e comprovativo de fls. 28 (ocorrido dentro do prazo de contestação, como decorre de fls. 29);
- Resposta enviada ao demandado em 17 de dezembro de 2012 quanto ao modo como proceder ao pagamento (fls. 27);
- Pagamento da multa pelo demandado em 21-12-2012, conforme resulta de fls. 26 e 32
- Pagamento dos emolumentos pelo demandado em 24-12-2012, conforme resulta de fls. 33 e 32
- Notificação ao MP em 21 de março de 2013.
Quando o recurso foi interposto, o pagamento pelo demandado da multa e emolumentos ainda não tinha ocorrido. Assim sendo, não se pode ter como exigível a antecipação de uma extinção do procedimento por via do pagamento e, por conseguinte, a colocação, em sede de recurso, da questão de constitucionalidade.
Resta, por conseguinte, determinar se, em momento posterior à interposição do recurso, o Ministério Público dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade.
Como se referiu no Relatório supra, antes de proferida a decisão final, e face a dúvidas da Conselheira Relatora, foi ordenada a remessados autos, a título devolutivo, à Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas a fim de que se apurasse se, em concreto, o pagamento da multa havia sido efetuado e por quem. Como é sabido, em processos sancionatórios deste tipo, impende sobre o demandado a obrigação pessoal de proceder ao pagamento de eventuais quantias em que eventualmente seja condenado, não podendo tais quantias ser satisfeitas pela pessoa coletiva em que exerce funções. Assim, apenas o pagamento pelo demandado dos montantes em causa (a título de multa e de emolumentos, uma vez que a isenção de emolumentos apenas está prevista para o caso de o pagamento ocorrer em momento anterior) poderia repercutir efeito útil nos autos, efeito esse precisamente consubstanciado na extinção do procedimento.
Ora, o Ministério Público foi notificado do teor do despacho da Conselheira Relatora (fls. 35). Essa notificação tinha precisamente por base a dúvida quanto à questão do pagamento e abriu, por conseguinte, a possibilidade de o Ministério Público se pronunciar quanto à eventualidade de o procedimento vir a ser julgado extinto, em consonância com jurisprudência reiterada do Tribunal de Contas nesse sentido (cfr. a título exemplificativo as Sentenças n.ºs 4/2007, 3/2009, 1/2011, 2/2011 e 11/2011, bem como o Acórdão n.º 3/2011, todos disponíveis em www.tcontas.pt).
É certo que, em ocasiões anteriores, este Tribunal Constitucional entendeu que não recai sobre o recorrente o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade através da prática de ato ou requerimento atípico, isto é, não previsto e incluído na normal tramitação da causa (cfr. Acórdãos n.ºs 94/88 e 294/99, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O que então disse o Tribunal Constitucional, no entanto, não é transponível para o presente caso. Na verdade, entendeu-se que, naquelas situações, se verificaria situação excecional que dispensaria, fundadamente, o ónus da suscitação atempada da inconstitucionalidade. Tal excecionalidade adveio de um «circunstancialismo especial e não usual» relacionado com a «superveniência, depois da última intervenção normalmente prevista do interessado no processo, de uma modificação legislativa imediatamente aplicável nos processos pendentes» (cfr. Acórdão n.º 94/88). Idêntica situação foi decidida no Acórdão n.º 294/99.
O que então afirmou o Tribunal Constitucional – no sentido de que «a verificação do cumprimento ou incumprimento de tal requisito ou exigência [relativo à suscitação da inconstitucionalidade de norma durante o processo] – e, em situações excecionais como a dos autos, a da eventual impossibilidade desse cumprimento – há de analisar-se tão só à luz da tramitação normal do processo em causa e das oportunidades de intervenção processual nela consentidas ao recorrente», não é transponível para a apreciação da situação que os presentes autos oferecem.
Na verdade, in casu, a própria tramitação normal do processo em causa foi afastada quando a Conselheira Relatora formulou o pedido de informação referido e, adicionalmente, ordenou a notificação do mesmo, bem como da correspondente resposta, ao Ministério Público junto da Secção Regional da Madeira. Com efeito, havia sido aquele magistrado a interpor o recurso e, por conseguinte, uma tal notificação teve precisamente o efeito de conferir ao recorrente a oportunidade processual necessária para, caso assim entendesse relevante, suscitar a questão de constitucionalidade decorrente da eventualidade de se vir a julgar – como efetivamente ocorreu – extinto o procedimento, nos termos do artigo 69.º, n.º 2, alínea d), da LOPTC.
7. Não se pode, por conseguinte, considerar que, como sustenta o recorrente, este não teve “outra oportunidade de suscitar a questão”. Tal oportunidade desdobra-se na dúplice análise que se acabou de fazer: por um lado, uma vez comprovado o pagamento pelo demandado era expectável que o procedimento viesse a ser julgado extinto nos termos da decisão recorrida, com fundamento no disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea d), da LOPTC; por outro lado, tendo sido dado conhecimento ao Ministério Público desse pagamento, por via da notificação de fls. 35, abriu-se, igualmente, a oportunidade processual para que aquele, se assim o entendesse, e face a tal juízo de prognose quanto ao provável desfecho do recurso que havia interposto, suscitasse a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, constituindo-o, portanto, no respetivo dever de pronúncia e decisão. Tal oportunidade processual é, aliás, consonante com a intervenção do Ministério Público prevista no artigo 29.º, n.º 4 da LPTC, nos termos do qual este intervém oficiosamente e de acordo com as normas de processo nas 1.ª e 3.ª Secções do Tribunal de Contas, sendo aplicável, subsidiariamente, em matéria sancionatória, o Código de Processo Penal, nos termos do artigo 80.º, n.º 1, alínea c) da LOPTC.
Não tendo o Ministério Público suscitado a questão de constitucionalidade a seguir à notificação da informação referente ao pagamento feito pelo demandado, a suscitação desse problema no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não pode deixar de se considerar extemporânea.»
2. O Ministério Público vem agora reclamar desta Decisão, com fundamento no disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 442/2013, não se conheceu do objeto do recurso interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2º
O Ministério Público recorreu do Acórdão do Tribunal de Contas de 5 de Maio de 2013, pretendendo ver apreciada a seguinte questão de constitucionalidade:
“1.Requer-se a declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 69.º, n.º 2 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC), quando interpretada, como no Acórdão supra referido, no sentido de considerar que o pagamento voluntário da multa (21/12/2012), admitido e realizado ainda antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (14/11/2012), determina a «extinção do procedimento» e a «perda de objeto» do recurso já, contra ela, interposto pelo Ministério Público (6/12/2012) ao abrigo das disposições combinadas dos artigos 96.º, n.º 1, a), 97.º, n.º 1, b), todos da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas”.
3º
No requerimento apresentado, o Ministério Público justificou a não suscitação “durante o processo” da questão, nos seguintes termos:
“3. A questão da inconstitucionalidade só agora pode ser suscitada, pois nunca antes, durante todas as fases do processo, ela podia ter sido invocada, uma vez que apenas resultou do sentido dado já na decisão final à referida norma pelo Acórdão de que ora se recorre.
Não teve, por isso, o Ministério Público outra oportunidade de suscitar a questão, ou ainda de, posteriormente a tal decisão, o fazer perante a 3.ª Secção do Tribunal de Contas, uma vez que o Acórdão recorrido já não admite recurso perante o próprio Tribunal que o preferiu.”
4º
Na douta decisão reclamada entendeu-se que a interpretação normativa identificada e cuja questão de inconstitucionalidade deveria constituir objecto do recurso, não podia “deixar de ser previsível e expectável para o recorrente” e que o Ministério Público havia tido oportunidade processual de, anteriormente, a suscitar.
5º
O artigo 69.º, n.º 2, alínea b) da LOPTC, estabelece que o procedimento por responsabilidade sancionatória se extingue pelo pagamento.
6º
Ora, sobre este regime, diz-se na douta Decisão Sumária:
“A nova redação do artigo 69.º, n.º 1, alínea d), salientou, por conseguinte, a relevância do pagamento enquanto causa de extinção do procedimento pelas responsabilidades sancionatórias previstas naquele artigo, independentemente do momento em que o mesmo venha a ocorrer. É certo que este alargamento temporal da relevância do pagamento resultou da necessidade de enquadrar os casos de pagamento ocorridos antes do início da fase jurisdicional propriamente dita (e não de situações em que, como ocorre nos presentes autos, o pagamento vem a ocorrer após a decisão condenatória e antes do respetivo trânsito).
Sendo certo que o mencionado sentido pode, de facto, suscitar a perplexidade de se julgar extinto um procedimento, e consequentemente deserto o recurso de decisão condenatória interposto pelo Ministério Público a favor do demandado, em casos como o dos autos, o que interessa apurar neste momento é se o mesmo se podia ter, face aos autos, como absolutamente imprevisível ou insólito para efeitos de se considerar que a decisão aqui recorrida é uma “decisão surpresa” e, consequentemente, comprovar-se a inexigibilidade da invocação da questão de constitucionalidade durante o processo, ou seja, antes da prolação do acórdão recorrido.
7º
Como se vê, na decisão aceita-se expressamente que o sentido interpretativo acolhido no Acórdão do Tribunal de Contas pode suscitar perplexidade.
8º
Ora, essa perplexidade resulta, precisamente, da imprevisibilidade da interpretação.
9.º
Nestas circunstâncias – desconhecendo-se qualquer jurisprudência anterior sobre tal matéria - seria razoável exigir que o Ministério Público quando foi notificado do pagamento da multa, viesse, em requerimento avulso, alertar o Tribunal para que se fosse acolhida a interpretação aqui em causa, ela seria inconstitucional?
10.º
A nossa resposta é negativa.
11º
Assim, entendemos que a situação dos autos se enquadra dentro dos casos excecionais em que os recorrentes estão dispensados do cumprimento ónus da suscitação prévia.
12º
Pelo exposto, deve deferir-se a presente reclamação e ordenada a notificação das partes para alegações.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3. A decisão reclamada determinou o não conhecimento do objeto do recurso pelo facto de não ter ocorrido suscitação da inconstitucionalidade durante o processo. Tendo o recorrente previamente invocado a dispensa, em concreto, do cumprimento deste ónus, começou-se por analisar se lhe assistiria razão nesta pretensão.
O recurso tem por objeto o artigo 69.º, n.º 2, alínea d), da LOPTC, interpretado “no sentido de considerar que o pagamento voluntário da multa (21/12/2012), admitido e realizado ainda antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (14/11/2012), determina a “extinção do procedimento” e a «perda de objeto» do recurso já, contra ela, interposto pelo Ministério Público (6/12/2012)”.
Disse o recorrente, no requerimento de interposição de recurso, que “a questão da inconstitucionalidade só agora pode ser suscitada, pois nunca antes, durante todas as fases do processo, ela podia ter sido invocada, uma vez que apenas resultou do sentido dado já na decisão final à referida norma pelo Acórdão de que ora se recorre”. Acrescentou ainda que “[n]ão teve, por isso, o Ministério Público outra oportunidade de suscitar a questão, ou ainda de, posteriormente a tal decisão, o fazer perante a 3.ª Secção do Tribunal de Contas, uma vez que o Acórdão recorrido já não admite recurso perante o próprio Tribunal que o proferiu […]”.
Esta justificação foi, no entanto, afastada pela decisão ora reclamada, em consonância com a jurisprudência constitucional nesta matéria, a qual, recorde-se, é bastante exigente quanto à verificação de um circunstancialismo concreto suficientemente insólito ou imprevisível de modo a que possa dispensar o pressuposto de suscitação da inconstitucionalidade antes que seja proferida a decisão final.
Tal afastamento teve por base duas premissas: por um lado, considerou-se que o sentido atribuído à norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea c), da LOPTC era previsível e antecipável, face ao próprio teor literal do preceito e à jurisprudência consolidada do Tribunal de Contas nesta matéria; por outro, constatou-se que o recorrente dispôs de oportunidade processual efetiva para suscitar a inconstitucionalidade em momento anterior à prolação da decisão recorrida, face ao teor do despacho da então Conselheira Relatora de fls. 18, e à respetiva notificação constante de fls. 35.
4. O recorrente – ora reclamante – sustenta que é a própria decisão recorrida que aceita expressamente que o sentido interpretativo acolhido na decisão recorrida pode suscitar perplexidade, atribuindo essa mesma «perplexidade» à «imprevisibilidade da interpretação». Estaria assim, portanto, encontrada uma causa de afastamento do ónus de suscitação prévia da inconstitucionalidade normativa.
Não lhe assiste razão.
Na verdade, a perplexidade que se aceita na decisão recorrida advém das circunstâncias concretas do caso, em que, existindo recurso interposto de decisão condenatória pelo Ministério Público a favor do arguido, o procedimento vem posteriormente a ser julgado extinto pelo pagamento, o qual ocorreu antes do trânsito em julgado, embora em momento posterior ao da interposição do referido recurso. Mas daqui não se infere – nem se pode inferir –, de modo automático, a existência de uma situação em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para, em tempo útil, confrontar o tribunal recorrido com o problema de constitucionalidade que se lhe coloca. Com efeito, o que interessa aferir, em situações deste tipo é se, não obstante tratar-se, eventualmente, de um caso pouco comum, culminando num pagamento voluntário pelo arguido não obstante a interposição do recurso em seu favor pelo Ministério Público, este último dispôs de oportunidade efetiva para colocar o tribunal recorrido perante a necessidade de assumir e resolver a eventual inconstitucionalidade normativa que pudesse estar associada a um tal desfecho.
Ora, como se disse na decisão reclamada, não tendo tal sido contestado na presente reclamação,
«[N]ão se pode, por conseguinte, considerar que, como sustenta o recorrente, este não teve “outra oportunidade de suscitar a questão”. Tal oportunidade desdobra-se na dúplice análise que se acabou de fazer: por um lado, uma vez comprovado o pagamento pelo demandado era expectável que o procedimento viesse a ser julgado extinto nos termos da decisão recorrida, com fundamento no disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea d), da LOPTC; por outro lado, tendo sido dado conhecimento ao Ministério Público desse pagamento, por via da notificação de fls. 35, abriu-se, igualmente, a oportunidade processual para que aquele, se assim o entendesse, e face a tal juízo de prognose quanto ao provável desfecho do recurso que havia interposto, suscitasse a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, constituindo-o, portanto, no respetivo dever de pronúncia e decisão. Tal oportunidade processual é, aliás, consonante com a intervenção do Ministério Público prevista no artigo 29.º, n.º 4 da LOPTC, nos termos do qual este intervém oficiosamente e de acordo com as normas de processo nas 1.ª e 3.ª Secções do Tribunal de Contas, sendo aplicável, subsidiariamente, em matéria sancionatória, o Código de Processo Penal, nos termos do artigo 80.º, n.º 1, alínea c) da LOPTC.
Não tendo o Ministério Público suscitado a questão de constitucionalidade a seguir à notificação da informação referente ao pagamento feito pelo demandado, a suscitação desse problema no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não pode deixar de se considerar extemporânea.»
Nestes termos, a presente reclamação não pode proceder.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Sem custas, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 26 de setembro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro