Imprimir acórdão
Processo n.º 661/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Nos presentes autos A. propôs ação de investigação de paternidade, com processo ordinário, contra B., pedindo que o tribunal reconhecesse judicialmente que este era seu pai.
Foi proferida sentença, que julgou a ação procedente, declarando o Autor como filho do Réu.
Os herdeiros habilitados do Réu, entretanto falecido, C. e outros, interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão proferido em 18 de outubro de 2011, julgou o recurso improcedente.
Os herdeiros habilitados do Réu vieram interpor recurso de revista excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual foi admitido, tendo sido proferido acórdão em 16 de outubro de 2012 que negou a revista.
Os herdeiros habilitados do Réu interpuseram recurso de uniformização de jurisprudência, o qual não foi admitido por despacho do Conselheiro Relator proferido em 21 de janeiro de 2013.
Os herdeiros habilitados do Réu reclamaram deste despacho, tendo a reclamação sido indeferida por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 21 de março de 2013.
Os herdeiros habilitados do Réu requereram o julgamento do recurso pelo pleno das Secções Cíveis, o que foi indeferido por despacho do Conselheiro Relator proferido em 16 de abril de 2013.
Os herdeiros habilitados do Réu interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“…a) O tribunal valorou a recusa do pretenso pai em realizar o exame hematológico, cominando-lhe a inversão do ónus da prova.
b) Operando tal inverso, o Tribunal da Relação fixou que a mãe do A., durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor, manteve relações de cópula completa exclusivamente com o Réu.
c) Os herdeiros do A. interpuseram recurso para uniformização de jurisprudência acerca da consequência legal daquela recusa, defendendo que deveria ser julgado no sentido da livre apreciação pelo Tribunal.
d) O recurso foi rejeitado por este Supremo Tribunal, em decisão singular, posteriormente confirmada pela conferência e novamente pelo Relator, após requerimento dos herdeiros do A. no sentido de a questão vir a ser apreciada pelo Pleno.
e) A este percurso jurisprudencial subjaz a aplicação da norma da alínea e) do nº 1 do art. 1871º do CC que ordena presunção da paternidade quando se prove que o pretenso pai teve relações com a mãe durante o período legal da conceção.
f) A recusa do pretenso pai em realizar o exame biológico prende-se com a factualidade provada no ponto X que diz o seguinte:
A imputação feita pelo A. ao R. através da propositura da presente ação, num momento em que o R. dada a sua avançada idade, se encontrava já bastante fragilizado, física e psiquicamente, provocou nele forte abalo psíquico e moral (resposta ao quesito 200).
g) O Réu foi prejudicado em razão da sua idade e condição e recusou-se ao exame para não ver o seu bom nome, reputação e reserva da sua vida privada e familiar vilipendiados e violados.
h) A essa recusa cominou o Tribunal a inversão do ónus da prova, isto é, o ter ele que provar que não teve relações sexuais com a mãe do A., para ver afastada a paternidade.
i) A presunção da alínea e) do nº 1 do art. 1871º do CC viola os direitos pessoais do A. e ofende o princípio da igualdade constitucional.
i) Pelo que, a citada norma da al. e) do nº 1 do art. 1871º do CC é inconstitucional por violar o art. 26º-1 da Constituição da República Portuguesa e ofender o princípio da igualdade exposto no art. 13º-2 da mesma CRP, conforme foi já suscitado nos recursos de revista excecional e para uniformização de jurisprudência (Cfr. alegações”.
O Conselheiro Relator não admitiu este recurso por ter considerado que a questão de constitucionalidade colocada não havia sido suscitada durante o processo, por despacho proferido em 28 de maio de 2013.
Os Recorrentes reclamaram desta decisão, com os seguintes argumentos:
1. O douto despacho indeferiu o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional por entender que a inconstitucionalidade invocada não fora suscitada no processo.
2. Os recorrentes vieram, então invocar a inconstitucionalidade da presunção resultante de inversão do ónus da prova que levou o Tribunal da Relação de Coimbra a dar como provado o quesito 7º: relações sexuais da mãe do A. com o R. no período legal da conceção.
3. É esta presunção que, no entender dos recorrentes viola os direitos pessoais do A. e ofende o princípio da igualdade constitucional.
4. A questão já tinha sido aflorada nas alegações de recurso de revista excecional, na pág. 6: após expor a forma como fora obtida a resposta do quesito 7º, alegam os recorrentes que o estabelecimento da filiação é um direito constitucional e tem subjacente um interesse de ordem pública.
5. Pelo que o princípio da igualdade impõe que o estabelecimento da filiação não seja averiguado através da inversão do ónus da prova dos factos.
6. Em razão da sua situação (pessoa de avançada idade, já bastante fragilizado física e psiquicamente, conforme resposta ao quesito 20º), o R. foi prejudicado pela aludida presunção resultante da inversão do ónus da prova.
7. A paternidade do R. presumiu-se não pela prova da existência de re1ações com a mãe do A. no período legal da conceção, mas sim pela não prova que se inverteu em desfavor do R.
8. Na conclusão 14 do recurso de revista excecional, conclui o R.: Deverá, pois, o Supremo Tribunal pronunciar-se sobre a questão, proferindo jurisprudência uniforme que desonere o investigando da inversão do ónus da prova quando, como é o caso dos autos, não tome impossível a prova ao onerado.
9. Embora de forma não muito clara, a questão da inconstitucionalidade da referida alínea e), ou seja, da presunção resultante da inversão do ónus da prova, foi suscitada nos aludidos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitado previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Os Recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional fiscalize a norma constante da alínea e,) do n.º 1, do artigo 1871.º do Código Civil, aplicada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em sede de recurso de revista excecional proferido em 16 de outubro de 2012.
Para terem legitimidade para o fazer deveriam ter suscitado essa questão perante aquele Tribunal nas alegações que a ele dirigiram no âmbito desse recurso, pois só assim o vinculariam ao conhecimento dessa questão de constitucionalidade.
Ora, lendo essas alegações, não se vislumbra que essa questão tenha sido colocada e dai que também não tenha sido objeto de qualquer decisão.
A simples referência a que “o estabelecimento da filiação é um direito constitucional (artigo 26.º) e tem subjacente um interesse de ordem pública”, para justificar a relevância jurídica das questões colocadas naquele recurso, é manifestamente insuficiente para se considerar que os Recorrentes suscitaram adequadamente perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie.
Não se mostrando cumprido este requisito essencial ao conhecimento do recurso de constitucionalidade, deve a reclamação ser indeferida.
*
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada pelos Recorrentes do despacho que não admitiu o recurso por eles interposto para o Tribunal Constitucional.
*
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de setembro de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.