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Processo n.º 923/12
Plenário
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., recorrido nos presentes autos em que figura como recorrente o Ministério Público, executado por reversão fiscal em processo de execução fiscal instaurado originariamente contra “CIF Centro Interdisciplinar de Formação” por dívidas relativas à reposição de comparticipações do Fundo Social Europeu e do Estado Português, deduziu oposição judicial junto do Tribunal Tributário de Lisboa.
2. O referido Tribunal Tributário de Lisboa veio a desaplicar o n.º 2 do artigo 53.º do Decreto Regulamentar n.º 84-A/2007, de 10 de dezembro, que determina a aplicação aos processos pendentes, entre outros, da possibilidade de responsabilidade subsidiária em sede de execução fiscal nomeadamente de administradores e gestores por dívidas da pessoa coletiva por consubstanciar uma violação do princípio da proteção da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Fundamentou o Tribunal a sua decisão da seguinte forma:
“(…)Ou seja, por força do DR 84-A/2007, e concretamente do disposto nos seus artigos 45.º, n.º 12 e 53.º, passa a aplicar-se retroactivamente a factos ocorridos entre 1987 e 1989 o regime da reversão aplicável às dívidas tributárias consagrado na LGT, maxime no seu art. 24.º — e que, como foi já referido, até hoje não se aplica a dívidas não tributárias, como é o caso - e na redação atual do preceito, sendo certo que a aplicação deste regime a “todas as pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados” apenas se passou a prever por força da redação introduzida no art. 24.º da LGT pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro (recorde-se que no caso a devedora originária é uma associação, como resulta do ponto 19, da fundamentação de facto).
Pelo exposto, a primeira conclusão a retirar é que ocorreu uma alteração na ordem jurídica com a qual o oponente não podia razoavelmente contar, não sendo de todo expectável que por força de uma norma publicada em 2007 lhe fosse aplicado o regime de reversão da responsabilidade tributária em vigor a factos ocorridos no final da década de 80, sendo certo, além do mais, que o regime assim imposto se revela mais oneroso do que o que seria aplicável caso estivesse em causa um divida tributária.
Com efeito, se em causa estivesse uma dívida tributária, o que seria expectável nos termos da supracitada jurisprudência constante do STA, era que ao caso se aplicasse o regime em vigor à data do facto gerador da responsabilidade subsidiária, a saber, o art. 13.º do CPT, visto que a LGT apenas entrou em vigor em 1 de janeiro de 1999.
Por outro lado, repita-se, até à presente data o regime do art. 24.º da LGT não é aplicável a dívidas não tributárias, apenas tendo passado a abranger no seu âmbito as associações, como é o caso da devedora originária, a partir da alteração que lhe foi introduzida em 2000.
Donde é de concluir que o oponente tinha uma legítima expectativa de não ver perseguido o seu património pessoal para o pagamento de dívidas da devedora originária, consubstanciando o disposto no art. 53.º, conjugado com o disposto no art. 45.º, ambos do DR 84-A/2007, uma alteração da ordem jurídica com a qual não podia razoavelmente contar, assim se verificando uma “afetação de expectativas extraordinariamente onerosa”, na expressão utilizada no citado acórdão do TC n.º 287/90, proferido em 30 de outubro de 1990.
Para concluir pela violação do princípio da confiança importa no entanto apreciar se a onerosidade em causa se revela intolerável, não se justificando, e assim se revelando desproporcionada.
Ora, como foi já referido, em causa estão objetivos ressarcitórios e sancionatórios, pretendendo-se com a aplicação ao caso do regime de reversão da responsabilidade tributária assegurar o pagamento da dívida da devedora originária com recurso ao património pessoal do responsável subsidiário, persuadindo a que seja feito o respetivo pagamento pelo revertido, e simultaneamente sancionando-o pelo seu não pagamento atempado.
Com efeito, e tratando-se da aplicação retroativa ao caso do referido regime, ficam por natureza excluídos os citados objetivos “garantísticos” do mesmo, pois tal regime em nada contribuiu para prevenir a falta de pagamento em causa.
Ainda que considerando o facto de a dívida em causa se reportar à reposição de comparticipações financeiras indevidamente recebidas do Fundo Social Europeu, e à importância de que se reveste o objetivo de conseguir a respetiva reposição, o facto é que a aplicação retroativa ao caso do regime de reversão se revela injustificada e desproporcionada.
Com efeito, não se revela justificada nem proporcional ao fim pretendido a aplicação de um regime com um forte pendor sancionatório (aproximando-se materialmente a situação em apreço neste aspeto ao domínio penal, e ao domínio fiscal, relativamente aos quais a constituição condiciona decisivamente a retroatividade), através do qual se legitima a perseguição do património pessoal do oponente para saldar o pagamento de uma dívida da devedora originária, assim se pretendendo, além do mais, sancionar o não pagamento atempado da mesma, que era devido por esta última e cujo não pagamento atempado o ora oponente não podia razoavelmente esperar que lhe viesse a ser pessoalmente imputado.
Por outro lado, o facto de o oponente desconhecer que lhe iria ser aplicado o regime de reversão da responsabilidade tributária é passível de ter condicionado o seu comportamento, designadamente as escolhas que fez em termos de recurso aos meios graciosos e contenciosos a que de outro modo poderia ter recorrido, designadamente para impugnar o ato que determinou a execução coerciva.(…)”
3. Em face dessa decisão, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante LTC).
4. Notificadas as partes para o efeito, veio o Ministério Público apresentar alegações com as seguintes conclusões:
“1.ª) O Ministério Público interpôs recurso, obrigatório, da douta sentença proferia a fls. 304ss dos autos de processo de oposição n.º 1121/11.11.0BELRS, 2.ª UO, do Tribunal Tributário de Lisboa, para este Tribunal Constitucional, nos termos “da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15-11 (….) e restrito à parte em que foi recusada a aplicação da mencionada norma do n.º 2 do artigo 53.º do Decreto Regulamentar n.º 84-A/2007, de 10 de dezembro (….) com fundamento na violação do princípio da proteção da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, previsto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa”.
2.ª) A norma objeto do presente recurso por inconstitucionalidade é formada, na sua expressão básica, pelas disposições conjugadas dos artigos 53.º, n.º 2, e 45.º, n.º 12, e tem por conteúdo a responsabilidade subsidiária pela restituição dos montantes em dívida, no caso ao Fundo Social Europeu e ao Estado português, decorrente da verificação da “inexistência de bens penhoráveis do devedor e seus sucessores”, no sentido dos artigos 148.º, n.º 2, al. a), 153.º, n.º 2, al. b) e do CPPT.
3.ª) A solução legislativa em causa não é de reputar “inadmissível, arbitrária ou excessivamente onerosa”, consideradas as circunstâncias do caso e à luz dos dois critérios identificados pela jurisprudência constitucional para emitir tal juízo, a saber: a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, por constituir uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas não possam contar; e ainda quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam ser considerados prevalecentes.
4.ª) Por uma parte, atentas as circunstâncias do caso não se constituiu qualquer expetativa legitima de permanência do quadro legislativo, sendo certo que a história legislativa recenseada na decisão recorrida demonstra cabalmente a paulatina instituição, expansão (quer objetivamente, para abranger, além dos tributos, todas as demais dívidas, reembolsos e reposições; quer subjetivamente, para abranger as todas as pessoas coletivas e entes fiscalmente equipados) e consolidação da “responsabilidade subsidiária” em causa.
5.ª) Por outra parte, há prevalência em concreto do interesse público na imediata (retrospetiva) aplicação da lei nova, pois se trata de obter, provado que a associação em causa não é titular de quaisquer bens penhoráveis, a repetição de verbas adiantadas por autoridades públicas, nacionais e europeias, em virtude da contribuição do Fundo Social Europeu não ter sido utilizada nas condições fixadas pela decisão de aprovação, e também de obviar a que o Estado português responda, em via subsidiária, pela repetição dessas verbas perante União Europeia, na parte que respeita ao cofinanciamento das ações em causa.
6.ª) Portanto, atentas as circunstâncias do caso, não se podem dar por verificados os dois pressupostos da proteção constitucional da confiança, pelo que no caso deve predominar o princípio da liberdade de conformação do legislador e da “autorevisibilidade da lei”.”
Por seu lado, o recorrido veio apresentar alegações, com as seguintes conclusões:
“(…)a) O artigo 53°, n° 2 do referido Decreto Regulamentar manda aplicar aos processos pendentes o previsto no seu artigo 45°, aqui se incluindo o n° 12 deste normativo, ou seja, a partir de 10/12/2007 o legislador ordinário dá a saber que existe um novo responsável por dívidas constituídas anteriormente pela pessoa coletiva que as contraiu e desenhando essa responsabilidade nos moldes previstos na Lei Geral Tributária.
b) Nos presentes autos verifica-se que a decisão da Comissão Europeia é de 02/02/2003 pelo que é a partir deste momento que se terá de aferir da conformidade constitucional da alteração legislativa com o princípio da proteção da confiança ínsito no artigo 2° da CRP e é, em consequência, com este enquadramento que se pode concluir se estamos perante uma situação de retroatividade ou de retroconexão.
c) Que é a partir de 02/02/2003 que a situação tem de ser apreciada dúvidas não podem subsistir pois que é tal marco temporal que traduz o putativo incumprimento da CIF e em que o direito ressarcitório podia ser exercido.
d) De acordo com o regime da responsabilidade subsidiária, em particular o previsto na LGT, que o próprio artigo 45°, n° 12 do Decreto Regulamentar manda aplicar, bem ao contrário do pretendido pelo Recorrente, não é no momento da constatação de inexistência de bens penhoráveis na esfera da CIF, e subsequente reversão, constatação essa ocorrida na vigência da lei nova que desencadeia o regime da responsabilidade subsidiária por factos ocorridos na vigência da lei antiga, pois que tal significaria confundir, por completo, entre disposições de caráter substantivo atinentes aos pressupostos da responsabilização e as de caráter processual.
e) E neste sentido se manifestam a Doutrina e Jurisprudência supra citadas no corpo alegatório.
f) Assim sendo, como o Recorrido inegavelmente entende que o é, então o cenário será o seguinte:
I) O incumprimento legitimador da ordem de restituição é do ano 2003;
II) A citação da CIF ocorreria em data aproximada a agosto de 2007;
III) A possibilidade de responsabilização na esfera do Recorrido nasce no ordenamento jurídico em 10/12/2007.
g) Em suma todos os factos passíveis de serem geradores de responsabilidade ocorrem no domínio da vigência da Lei Antiga e apenas a parte procedimental ocorre no domínio da Lei Nova só que no domínio da Lei Antiga não existia a responsabilidade subsidiária prevista para ser aplicada ao aqui Recorrido, o que coloca desunda o facto de não se estar perante uma situação de retroconexão mas perante verdadeira retroatividade violadora do princípio da confiança ínsito no artigo 2° da CRP e, logo, ocorrendo uma situação de inconstitucionalidade material.
h) Ao Recorrido não pode ser imposta a sua constituição como responsável em 2007 de um alegado incumprimento da CIF constatado 4 anos antes, ou seja, em 2003 pois que admitir tal hipótese seria admitir, ainda e para além do princípio da tutela da confiança, uma intolerável retroatividade da lei violadora de direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias, o que o artigo 18°, n° 3 da CRP também veda.
i) Por outro lado, e ainda que de retroconexão se tratasse não se pode olvidar que estamos face a uma situação análoga aos direitos, liberdades e garantias pelo que os limites à retroatividade decorrentes da Lei Fundamental se estenderiam àquela retrospetividade.
j)tudo visto e sopesado, estando-se perante uma questão de retroatividade e não face a uma retroconexão os alicerces da tese do recurso apresentado pelo Ministério Público desmoronam-se por completo, pois todo o seu raciocínio assentava em algo que claramente se não verifica.
k) Pelo que, por tudo quanto vem de se contra - alegar, bem andou a sentença recorrida ao desaplicar o constante do artigo 53°, n° 2 do Decreto Regulamentar n° 84-A/2007, de 10 de dezembro devido à sua inconstitucionalidade material por violação do princípio da proteção da confiança ínsito no artigo 2° da CRP, devendo-se, assim, a mesma manter ereta na ordem jurídica com a inerente improcedência do recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – ou seja, trata-se do recurso da decisão de um tribunal que recusa a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
A decisão do tribunal a quo incide sobre o artigo 53.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 84-A/2007, de 10 de dezembro, mais especificamente sobre uma dimensão normativa desse preceito – trata-se de uma disposição transitória que manda aplicar um conjunto de preceitos do Decreto Regulamentar a processos pendentes. Mais concretamente, o preceito foi desaplicado pelo tribunal a quo por inconstitucional na medida em que dele resulta a aplicação do n.º 12 do artigo 45.º do mesmo Decreto Regulamentar, que estabelece a responsabilidade subsidiária, em sede de execução fiscal, nomeadamente de administradores e gestores da entidade beneficiária, pela restituição dos montantes em dívida, aos processos pendentes dos períodos de programação anteriores ao QCA III. De facto, o que foi recusado pelo Tribunal a quo, por inconstitucionalidade, foi esta aplicação aos processos pendentes do regime de reversão da responsabilidade prevista na lei geral tributária.
Assim sendo, entende-se que o objeto de recurso incide apenas sobre a referida dimensão normativa do artigo 53.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 84-A/2007, de 10 de dezembro.
6. O preceito que está em causa é, portanto, o n.º 2 do artigo 53.º do Decreto Regulamentar n.º 84-A/2007, de 10 de dezembro. A redação deste preceito é a seguinte:
Artigo 53.º
Processos pendentes
1 — (…).
2 — Aos processos pendentes dos períodos de programação anteriores ao QCA III aplica -se o disposto na alínea f) do n.º 1 e no n.º 3 do artigo 42.º, n.ºs 5, 8, 9, 11 e 12 do artigo 45.º, no artigo 46.º e no n.º 2 do artigo 47.º.
Por sua vez, a redação do n.º 12 do artigo 45.º é a seguinte:
«Em sede de execução fiscal são subsidiariamente responsáveis pela restituição dos montantes em dívida os administradores, diretores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão de pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados, nos termos previstos na lei geral tributária».
7. O tribunal a quo desaplicou o preceito em causa por violação do princípio da proteção da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2.º da CRP.
Fê-lo por considerar que existiu uma alteração na ordem jurídica com a qual o oponente não poderia razoavelmente contar.
8. A questão controvertida nos autos enquadra-se no âmbito dos procedimentos de apoio financeiro por parte de fundos europeus – in casu, o Fundo Social Europeu (FSE). Trata-se de um procedimento administrativo complexo, envolvendo decisões de entidades administrativas nacionais, bem como da (atual) União Europeia, que regula as contribuições do FSE para ações de formação profissional, previsto, à época, no Regulamento (CEE) n.° 2950/83, do Conselho, de 17 de outubro de 1983, que aplica a Decisão n.º 83/516/CEE, relativa às funções do Fundo Social Europeu.
Neste âmbito, é de notar que o Estado-Membro é subsidiariamente responsável pelo reembolso à UE de quantias indevidamente pagas, nos termos do artigo 6.º do Regulamento (CEE) n.° 2950/83, do Conselho, de 17 de outubro de 1983.
Foi no âmbito desse processo que uma entidade formadora, representada pelo recorrido, na qualidade de presidente da respetiva direção, veio a ser beneficiária de apoio financeiro a ações de formação cofinanciadas pelo FSE, responsabilizando-se por estas. Em 5 de julho de 2007 foi emitida certidão de dívida pelo Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão do Fundo Social Europeu, I.P., extraída de ofício, em execução de Decisão da Comissão Europeia de fevereiro de 2003 que determinou a restituição de comparticipações financeiras indevidamente recebidas do FSE. A administração nacional atua, assim, em execução das vinculações de Portugal pelo Direito da UE.
Não está, portanto, em causa nos autos a execução de uma dívida tributária – no sentido de uma prestação impositiva unilateral. Trata-se, isso sim, da execução, através do processo de execução fiscal, da obrigação de restituição de uma prestação pecuniária atribuída por ato administrativo a pedido dos interessados, sob determinadas condições, por estas não terem sido respeitadas. Estamos, portanto, perante uma situação de caráter sinalagmático estabelecida entre duas entidades, distante do domínio do Direito Tributário.
9. O facto de a dívida em causa não ter um caráter tributário unilateral é significativo para a discussão sobre se a norma em causa é retroativa ou retrospetiva. Como se afirma no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 559/98, «tratando-se de um domínio em que a retroatividade da lei não está constitucionalmente vedada (ela é apenas proibida no domínio penal, e, ainda assim se a retroatividade não for in melius; no domínio fiscal e no das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), quer a lei seja retroativa, quer seja retrospetiva, ela só é inconstitucional, se violar princípios constitucionais autónomos» (cfr., no mesmo sentido, o Acórdão n.º 355/2013).
Assim, no caso, encontramo-nos num âmbito onde prevalece a liberdade de conformação do legislador democraticamente legitimado, desde que respeite os limites constitucionais. Como afirmado pelo Acórdão n.º 287/90:
«Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime do casamento, do arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes. (…) Valem aqui, por maioria de razão, as considerações que a jurisprudência deste Tribunal (…) tem feito ao negar uma proibição genérica de retroatividade.»
10. A questão deve ser colocada, portanto, a um outro nível – o de saber se a norma em causa afeta, de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, traduzindo uma violação daquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito – i.e. uma violação do princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da CRP (cfr., v.g., Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 11/83, 10/84, 287/90, 330/90, 486/96, 559/98, 556/2003, 128/2009, 188/2009, 399/2010, 3/2011, 396/2011 e 355/2013, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Conforme afirmado recentemente pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 355/2013, «fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” (cfr. Acórdão n.º 556/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt)».
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a estabilizar os critérios que devem ser utilizados para aferir se a afetação da confiança legítima dos cidadãos deve ser considerada “inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa” (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.os 287/90, 303/90, 399/2010, 396/2011 e 355/2013, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). De acordo com o Acórdão n.º 287/90, «a ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:
Afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).»
Numa primeira fase, a análise do Tribunal deve, assim, fundar-se na formulação de um juízo sobre a legitimidade das expectativas dos cidadãos visados. Neste âmbito, é necessário que i) as expectativas dos particulares sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, que ii) o Estado (em especial, o legislador) tenha atuado de forma a gerar nos particulares expectativas de continuidade, e que iii) os particulares tenham feito planos de vida tendo em conta essa expectativa de continuidade de comportamento estadual materializados ou traduzidos em atuações concretas (cfr. Acórdão n.º 355/2013). De facto, é necessário aferir, tendo em conta os dados do caso em presença, «o merecimento e dignidade objetiva de proteção da confiança que o particular depositava no sentido de inalterabilidade de um quadro legislativo que o favorecia» (Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2011, p. 264).
Só após ser comprovada a legitimidade da confiança é que se deve avançar para o segundo momento de análise, em que se formula um juízo quanto à prevalência (ou não) do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual (a expectativa legítima) sacrificado pela mesma (cfr. Acórdãos n.os 556/2003 e 355/2013). Este juízo implica também a aferição da medida da afetação da confiança – relativamente a interesses públicos prevalecentes – no sentido de esta não poder ser desrazoável ou excessiva (Cfr. Acórdão n.º 355/2013).
11. Atente-se, perante este enquadramento, ao caso dos autos, para efeitos do primeiro juízo que deve ser feito: o da legitimidade da expectativa.
Recorde-se que o recorrido praticou, na qualidade de presidente da direção da entidade em causa, com poderes para a obrigar, direta e reiteradamente, atos promovendo o pedido de subvenções do FSE que tinham como contrapartida uma série de condições, como a responsabilidade por ações de formação cofinanciadas. Era claro que o incumprimento das referidas condições acarretaria a necessidade de devolução do valor das subvenções. Foi isso, de facto, que ocorreu: a restituição das verbas percebidas de autoridades públicas nacionais e europeias foi determinada, por resolução das mesmas, por se verificar o incumprimento das condições em que foram atribuídas. Esse incumprimento terá ocorrido durante o período em que o recorrido ainda exercia funções de presidente da direção na entidade beneficiária.
O presidente da entidade beneficiária não podia ignorar a eventual responsabilização desta, pela restituição das subvenções. Afigura-se, no mínimo, questionável, atento este quadro, que o recorrido formasse expectativas, legítimas e fundadas em boas razões, de que jamais pudesse ser chamado a responder subsidiariamente, em virtude da inexistência de bens penhoráveis da entidade que dirigia, pelo incumprimento de condições assumidas por si, enquanto presidente da entidade em causa – que terá ocorrido durante o período em que permanecia responsável pela entidade.
De facto, como já foi referido no Acórdão n.º 355/2013, «a legitimidade das expectativas dos cidadãos não está dependente do apuramento de uma mera convicção psicológica destes na estabilidade de um dado regime jurídico, antes carece de ser escrutinada à luz de um filtro objetivo, que teste a repercussão que a conduta estadual possa razoavelmente ter produzido nos cidadãos afetados, e à luz de um filtro normativo, o qual, mais do a que licitude das expectativas, deve determinar a validade-legitimidade (as “boas razões”) destas tendo em conta os princípios jurídico-constitucionais vigentes».
Assim, podendo-se admitir que o decurso do tempo tenha fornecido ao recorrido uma expectativa psicológica de estabilidade do regime legal aplicável, certo é que a legitimidade dessa expectativa surge inelutavelmente afetada. Tendo em conta que, como já foi referido, Portugal é subsidiariamente responsável pelo reembolso à UE de quantias indevidamente pagas e que a evolução legislativa vai no sentido do recurso ao processo de execução fiscal no âmbito da execução coerciva de atos administrativos de imposição de prestações pecuniárias (artigo 155.º do CPA), não é objetivamente razoável que o recorrido tivesse a expectativa de continuidade do regime anterior. A reação estadual afigurava-se, assim, como objetivamente expectável. Por outro lado, não é legitimamente expectável que o ordenamento jurídico tutele a confiança do recorrente de não ser chamado a responder subsidiariamente por dívidas da pessoa coletiva de que foi presidente, no âmbito de compromissos por si assumidos, incumpridos durante o período em que dirigia essa entidade. Independentemente da não ilicitude do comportamento, a verdade é que a situação em causa não é merecedora de tutela face aos valores jus-constitucionalmente protegidos. As expectativas não se achavam fundadas em boas razões, isto é, em razões compatíveis com a teleologia normativa do ordenamento jurídico-constitucional.
Não se verificando a legitimidade da expectativa, não poderá ter aplicação o princípio invocado pelo tribunal a quo para desaplicar a norma em causa.
III – Decisão
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional o artigo 53.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 84-A/2007, de 10 de dezembro, na parte em que manda aplicar aos processos pendentes no momento da sua entrada em vigor o regime de responsabilidade subsidiária previsto no artigo 45.º, n.º 12, do mesmo Decreto Regulamentar, e
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte) UC.
Lisboa, 24 de setembro de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro