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Processo n.º 58/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária, com a seguinte fundamentação:
“ (…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Começando a nossa análise pela natureza do objeto do recurso, diremos que o recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, impendendo sobre o recorrente o ónus de enunciar o concreto critério normativo, cuja desconformidade constitucional invoca, reportando-o a uma determinada disposição ou conjugação de disposições legais. A enunciação terá necessariamente de corresponder a um dos sentidos extraíveis da literalidade do(s) preceito(s) escolhido(s) como suporte da norma ou interpretação normativa colocada em crise.
Acresce que tal enunciação deverá ser apresentada, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Ora, no presente caso, resulta do enunciado da primeira questão colocada, pela recorrente, a ausência de uma verdadeira dimensão normativa.
Na verdade, a recorrente, após indicar o arco de disposições legais em que a questão assenta, enuncia a mesma como correspondendo ao sentido interpretativo “de não julgar necessário e imprescindível ter procedido à avaliação do ato administrativo impugnado no Processo em apreço, ao controlo dos erros e da falibilidade com que foi praticado, e em que efetivamente assenta, para que a fundamentação da Decisão possa ser considerada apta, adequada e suscetível de justificar a atuação do seu Autor e, consequentemente, poder constituir sustentação do respetivo conteúdo decisório” ou, numa formulação mais sintética, ao sentido interpretativo “de não julgar imprescindível e obrigatório proceder à especificação dos elementos de facto, com apreciação criteriosa dos mesmos em função das provas, através do respetivo exame crítico, para que a fundamentação possa ser considerada suficiente e adequada a sustentar a Decisão”.
Manifestamente, a questão enunciada pela recorrente – independentemente de a analisarmos na perspetiva da primeira ou da segunda formulação transcrita – não detém um verdadeiro conteúdo normativo, não se traduzindo num sentido interpretativo extraível da conjugação das disposições legais indicadas, asserção facilmente demonstrável pela circunstância de não deter um mínimo de correspondência com a literalidade de tais disposições.
Aliás, o facto de a recorrente indicar várias disposições, nomeadamente duas constituídas por vários números, sem especificação do respetivo excerto ou número relevante para a delimitação do suporte legal da questão, indicia já a inidoneidade do presente objeto do recurso, que resulta plenamente confirmada com a análise da questão enunciada, demonstrativa de que a verdadeira pretensão da recorrente se consubstancia numa expectativa de sindicância da decisão jurisdicional concreta.
Na verdade, a construção do enunciado da questão revela a apreciação subjetiva que a recorrente faz do ato punitivo impugnado bem como das decisões jurisdicionais, cuja nulidade por falta de fundamentação invoca, sem que evidencie qualquer preocupação em autonomizar um verdadeiro critério normativo, suscetível de ser erigido como objeto do recurso de constitucionalidade.
Saliente-se ainda que tal enunciado não encontra reflexo na argumentação utilizada por qualquer uma das decisões recorridas.
Ora, ainda que a recorrente tivesse conseguido enunciar um verdadeiro critério normativo, extraível das disposições legais que indica – o que, reitera-se, não se verifica - o recurso apenas seria admissível se tal critério normativo tivesse sido utilizado como ratio decidendi pela decisão recorrida que, em último lugar e de forma definitiva na ordem jurisdicional administrativa, se pronunciou sobre a questão respetiva.
(…) No tocante à segunda questão - independentemente dos vários enunciados ensaiados pela recorrente e da maior ou menor precisão na seleção das disposições legais indicadas como respetivo suporte legal – resulta que a mesma se centra na constitucionalidade da atribuição de competência ao Procurador-Geral da República para aplicar a pena de demissão a funcionários dos serviços de apoio técnico e administrativo da Procuradoria-Geral da República, no contexto de processo disciplinar.
Nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC, o recurso apenas seria admissível, nesta parte, se a recorrente tivesse cumprido o ónus de suscitação prévia de tal questão, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Era indispensável, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso – necessariamente, de natureza normativa, e por isso depurado das concretas circunstâncias casuísticas - e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que incluísse a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se apercebesse e se pronunciasse sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No presente caso, a recorrente limitou-se a problematizar, previamente, perante o tribunal a quo, a questão da assinalada competência do Procurador-Geral da República, do ponto de vista do direito infraconstitucional, defendendo a correção da sua tese assente no conceito de usurpação de funções, com fundamento na interpretação e conjugação de disposições de direito ordinário. Neste contexto, a referência à violação de normas ou princípios constitucionais apenas surge enquanto vício do concreto ato impugnado e não como decorrência de um determinado e preciso critério normativo, que à recorrente incumbiria autonomizar e enunciar.
Nestes termos, não tendo a recorrente enunciado, previamente, de forma adequada, perante o tribunal a quo, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa atinente à referida competência do Procurador-Geral da República - autonomizando tal questão das concretas circunstâncias do caso e referindo as respetivas disposições legais de suporte, de forma a criar para o tribunal a quo um específico dever de pronúncia - ficou definitivamente prejudicada a possibilidade de vir, ulteriormente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Pelo exposto, não é admissível o recurso, igualmente quanto a esta segunda questão.
Sempre se dirá que a última decisão, relativa à competência do Procurador-Geral da República, nesta matéria, corresponde ao acórdão de 15 de novembro de 2012, pelo que só este aresto consubstancia decisão definitiva, na ordem jurisdicional respetiva, apenas quanto ao mesmo se verificando o requisito da exaustão dos meios impugnatórios ordinários.
(…) No tocante à terceira questão, nenhuma das formulações ou sub-questões ensaiadas pela recorrente corresponde à enunciação de um verdadeiro critério normativo, enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, extraível de determinada disposição ou conjugação de disposições legais.
Ressalta que as questões colocadas são sempre construídas com base em referências ao caso concreto, deixando transparecer que a verdadeira pretensão da recorrente consubstancia uma expectativa de sindicância da concreta decisão jurisdicional que não julgou verificada a prescrição do procedimento disciplinar, no caso dos autos.
Ora, como já referimos, o recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
Assim, o presente recurso é inadmissível, igualmente quanto a esta terceira questão.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. A reclamante manifesta a sua discordância com o conteúdo e sentido da Decisão sumária proferida, afirmando que respeitou as normas que preveem as condições de admissibilidade do recurso.
Para fundamentar tal asserção, refere a reclamante que expôs as interpretações normativas, que pretendia ver apreciadas, explanando as particularidades do caso concreto, para permitir um completo esclarecimento dos elementos de facto pertinentes para a decisão a tomar.
Acrescenta que caberá ao Tribunal Constitucional proceder ao isolamento das questões, com “abstração das particularidades do caso concreto”, realizando o “controlo da inconstitucionalidade normativa”.
Defende ainda a reclamante que “não pode o ónus de suscitação prévia (…) junto do tribunal a quo ser concretizado por aplicação de forma própria antes adequada à produção de Alegações”. Neste contexto, conclui que as questões expostas, no requerimento de interposição do recurso, foram suscitadas junto do Supremo Tribunal Administrativo.
Mais refere que as normas dos artigos 69.º e seguintes da LTC devem ser “interpretadas, em sede de exame preliminar, em sentido que confira a “máxima efetividade” ao núcleo essencial do conteúdo do direito à fiscalização e ao controlo da constitucionalidade que, em realização da norma constitucional do art.º 280.º da CRP, tais normas têm por missão concretizar.”
Assim, argumenta que “a verificação dos requisitos e pressupostos processuais exigidos para que se possa suscitar um incidente de constitucionalidade (…) não pode ser aferida de modo a postergar (…) a relevância das questões de inconstitucionalidade para a decisão da causa, que em atuações consubstanciadas por Decisões sumárias proferidas em exame preliminar, e determinantes do seu não conhecimento, são suscetíveis de provocar autêntica “denegação de Justiça constitucional” (…) que se concretiza outrossim se a Jurisprudência do Tribunal Constitucional não for aplicada também, tal como as Leis, com a adequada ponderação da respetiva aplicação no tempo que exige a consideração do momento que rege a prática do ato administrativo (…)”.
Conclui, pelo exposto, peticionando a procedência da reclamação e a consequente admissão do recurso.
4. Notificado o recorrido, foi apresentada resposta, no sentido do indeferimento da reclamação, porquanto a reclamante não demonstra a existência de objeto normativo do recurso interposto.
Acrescenta que o que está em causa não é o “assumido excesso de alegação reportada ao caso concreto”, como pretende a reclamante, mas a ausência de enunciação de verdadeiros critérios normativos, reportados a uma disposição ou conjugação de disposições legais, suscetíveis de constituírem objeto do recurso de constitucionalidade.
Mais refere que a reclamante não logrou demonstrar o cumprimento do ónus de suscitação prévia, relativamente à questão envolvendo a competência do Procurador-Geral da República.
Nestes termos, conclui pela manutenção da decisão sumária proferida.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. A reclamação apresentada não contém qualquer argumentação suscetível de infirmar a correção do juízo efetuado na decisão reclamada, consubstanciando-se, essencialmente, numa manifestação de discordância relativamente à mesma.
Na verdade, a reclamante parece partir do pressuposto de que é ao Tribunal Constitucional que incumbe a tarefa de extrair um sentido normativo da exposição apresentada no requerimento de interposição de recurso, reconhecidamente feita “de forma exaustiva” e com “pormenorizada explanação das particularidades do caso concreto”.
De modo idêntico, discorda a reclamante das exigências relativas ao cumprimento do ónus de suscitação prévia.
Centrando a reclamação na sua particular compreensão dos pressupostos de admissibilidade do recurso, conclui a reclamante que o recurso por si interposto deverá prosseguir.
A tese da reclamante, quanto a tais pressupostos, diverge, porém, do sentido da jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, que é reiterado e explicitado na decisão sumária proferida.
Assim e sendo certo que a decisão sumária proferida merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da presente reclamação.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 28 de maio de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 8 de outubro de 2013. Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral