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Proc. n.º 282/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, de 5 de Julho de
2002, foi o ora recorrente, M..., condenado, pela prática de um crime de fraude fiscal e pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 meses de prisão, a qual foi suspensa por três anos sob a condição de, em três anos, pagar ao Estado, solidariamente com outro co-arguido, a quantia de 71.576.76 Euros.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu dela para o Tribunal da Relação de Évora, tendo, a concluir a sua alegação, dito, designadamente e para o que agora importa, o seguinte:
“[...]
21 – É, por outro lado, claramente inconstitucional o art.º 14 º do RGIT, designadamente o seu n.º 2, em que o Acórdão recorrido se apoiou para subordinar a suspensão das penas aplicadas ao pagamento de 71.576,76 Euros (que o recorrente [...] manifestamente não tem, nem pode obter ou garantir), na parte em que prevê a revogação obrigatória da suspensão da pena se não forem prestadas garantias, nem obtido pagamento, expirado o prazo de prorrogação que, porventura, tiver sido concedido, por ofensa ao princípio constitucional de igualdade vertido no art. o 13º da CRP que garante a igualdade de todos perante a lei e proíbe que alguém seja prejudicado em razão da sua situação económica ou condição social. Na verdade,
22 - Nos termos da citada disposição do RGIT, os arguidos mais desfavorecidos económica e socialmente teriam que cumprir prisão se a suspensão da pena lhes tivesse sido concedida na condição de pagamento de quantias fora do seu alcance
- como seguramente aconteceu ao recorrente [...] - enquanto os de melhor situação económica poderiam conservar a sua liberdade, unicamente por disporem de meios de pagamento, ou forma de garantir a quantia que a sentença tiver declarado estar em dívida.
23 - Desigualdade que a Constituição não permite e que faria ressuscitar , no caso dos autos, a odiada prisão por dívidas cuja memória ainda hoje nos envergonha por clamorosa ofensa aos princípios do Estado de Direito Democrático que nos esforçamos por ser, mas que a legislação fiscal, pelo que respeita aos métodos de cobrança, não rara vezes ignora”.
3. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 11 de Março de 2003, julgou o recurso improcedente. Sobre a alegada inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT, ponderou aquele Tribunal:
“[...] Porém, o tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada no caso de verificação dos pressupostos aludidos no artigo 50°, n.º 1 do Código Penal, entre 1 e 5 anos, - n.º 5 do preceito - e, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, pode subordinar a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou observância de regras de conduta, ou determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova – n.º 2 do preceito. Na verdade, o artigo 51°do CP, dispõe no seu n.º 1 que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente “ a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida reparar o mal do crime, nomeadamente ' a) no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou da pena decretada, garantir o seu pagamento por meio de caução idónea.' Ora tendo em conta o exposto, é de manter a suspensão da execução da pena decretada subordinada à condição imposta na decisão, uma vez que não vem provado que o dever imposto represente para o arguido obrigação cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, atendendo aliás ao prazo de cumprimento concedido e à actividade e encargos do arguido [...], na consideração de que perante tal factualidade, poder concluir-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tal obrigação a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena, não representa qualquer ofensa ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa, uma vez que a aplicação de tal obrigação e, nos termos em que o foi, ao arguido, não o descrimina em relação aos demais cidadãos e, aos que estejam em iguais circunstâncias e, nada tem a ver nem equivale a prisão por dívidas, uma vez que entronca num fundamento penal inerente ao mal do crime, cuja reparação se pretende, sendo certo que no sistema jurídico deixou de existir a prisão por dívidas. Não há, assim, que tentar esgrimir com o que não existe nem pretender-se chamar
à colação argumentos de equivalência, quer porque os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que 51° o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento v. art.º51, n° 3 do C. Penal, quer ainda porque a falta de cumprimento culposo das condições da suspensão não gera automaticamente o cumprimento de pena de prisão – v. art.º 55º do C. Penal. Tal desiderato encontra-se perspectivado no artigo 14º do RGIT, que, apesar do disposto no n.º 1, não se configura como inconstitucional pois que na falta de pagamento das quantias condicionantes da suspensão da execução da pena de prisão, o tribunal não revoga automaticamente a suspensão da pena de prisão, já que pode exigir garantias de cumprimento ou prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível. (v. n.º 1 e alíneas). E, se dúvidas houvesse, seriam resolvidas pela filosofia do Código Penal, já que são aplicáveis subsidiariamente quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar. – art.º 3° a) do RGIT [...]”.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade “das normas contidas no art. 14º do RGIT na parte em que referem que a suspensão da pena é sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, determinando, implícita e em última análise, a falta de pagamento a revogação automática da suspensão, não sendo prestadas garantias e decorrido o prazo de prorrogação que, porventura, tiver sido concedido, por ofensa ao princípio constitucional da igualdade vertido no art. 13º da CRP que proíbe que alguém seja prejudicado em razão da sua situação económica”.
5. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1ª - É conhecida a fragilidade dos Tribunais comuns em matéria fiscal o que determina que não raras vezes que os impostos e outras prestações tributárias sejam calculados de forma obscura, por vezes incompreensível e sem qualquer espécie de rigor ou critério; Circunstância que,
2 ª - Este processo ilustra exemplarmente na parte em que o Tribunal decidiu sem razões técnicas, legais ou sequer lógicas que o lucro do exercício de 1996 da empresa N... seria o correspondente a 10% da facturação da empresa naquele período; Para agravar a situação,
3ª - O art.º 14º do RGIT estabeleceu dois princípios complementares de grande rigidez e falta de flexibilidade directamente relacionados com a cobrança de dívidas tributárias que, por um lado, condicionam imperativamente a suspensão de qualquer pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos e, por outro, impõem a revogação automática da suspensão da pena sempre que o pagamento não se mostrar feito ou garantido no prazo fixado ou no período de prorrogação eventualmente concedido.
4ª - Criando-se, assim, uma situação de clara desigualdade relativamente a um direito essencial que é a liberdade todas as vezes que - e não serão raras - os pagamentos dos impostos calculados pela forma supra descrita estejam fora o alcance dos devedores, como é, seguramente, o caso dos autos;
5ª - Ressuscitando-se, desta forma e em certos casos, a odiada prisão por dívidas, há muito banida do nosso pensamento e sistema legal, mas que a legislação fiscal, de que o art.º 14º do REGIT é um bom exemplo, não raras vezes ignora pelo que respeita aos métodos de cobrança;
6ª - Felizmente em clara rota de colisão com os princípios inseridos no art.º
13º da CRP que garante a igualdade de todos perante a lei e proíbe que alguém seja prejudicado em razão da sua situação económica ou condição social”.
6. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o Ministério Público, a concluir:
“1- A norma do n° 1 do artigo 14° do R.G.I.T., aprovado pela Lei n° 15/01, de 5 de Junho, ao exigir sempre como factor determinativo condicionador para a suspensão da execução da pena, o pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, inviabilizando uma adequada ponderação da culpa concreta do agente e da sua real situação económica e financeira, com reflexos na transformação da ameaça de prisão no seu cumprimento efectivo, colide com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade.
2 - Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentação.
7. O artigo 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, dispõe como segue:
“Artigo 14º Suspensão da execução da pena de prisão
1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) Exigir garantias de cumprimento; b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
8. O Tribunal Constitucional teve, muito recentemente, oportunidade de se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que agora, mais uma vez, vem colocada à sua consideração. Fê-lo, concretamente, no Acórdão n.º 256/03 (ainda inédito), onde concluiu pela não inconstitucionalidade daquele artigo 14º do RGIT (bem como do artigo 11º, n.º 7 do RJIFNA, preceito que antecedeu este artigo 14º). Para decidir dessa forma, o Tribunal escudou-se na seguinte fundamentação:
“[...]
10.4. Comparando o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14º do RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida. Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado. De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do Código Penal, prevista no artigo 3º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55º e
56º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14º, n.º 2, do RGIT, quando se refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português / Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse respeito).
[...]
10.7. A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma outra que já foi discutida no Tribunal Constitucional. Assim, no acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º volume, 1987, p. 521), o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 49º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva, o seguinte:
“(...)nos termos do artigo 50º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v.g., o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» [artigo 49º, n.º 1, alínea a), primeira parte]. Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a prática de um «facto punível» (artigo 48º do Código). Como se escreveu no acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente». Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas ao tribunal pelo citado artigo 50º para o caso de, durante o período da suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença: – na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência [alínea a)], exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou
«prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano» [alínea c)].” Por outro lado, no acórdão n.º 596/99, de 2 de Novembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600), o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do artigo 27º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“(...) 8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março. Dispõe o artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal que «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea». Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição. Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se extrai do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27º, n.º 1 da Constituição). Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela – suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.(...).” Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional (à luz dos princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma obrigação que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento impossível pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353, aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria, quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão por dívidas”. De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
10.8. A questão em análise tem também algumas afinidades com a questão da conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a propósito dos artigos 24º, n.º 1, e 23º, n.º 4, do RJIFNA (cfr., por exemplo, os acórdãos n.ºs 548/01, de 7 de Dezembro, e 432/02, de 22 de Outubro, respectivamente publicados no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de Julho de 2002, p. 12639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, p. 21183). Neste último aresto, disse-se nomeadamente o seguinte:
“(...) Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. (...).” Desta passagem retira-se uma importante consideração para o problema que nos ocupa.
É ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal [...] não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida.
[...]
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos. Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer. Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir [...] –, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou. Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena. Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível. Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente. Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida. A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever
(cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação. Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra,
10.4.). Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14º do RGIT.
[...]”. Esta conclusão, e a fundamentação que a sustenta, além de aplicáveis ao caso que ora nos ocupa, merecem concordância, pelo que, reiterando-a, importa concluir, uma vez mais, pela não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT. Agora apenas se acrescenta – porque o recorrente coloca expressamente a questão nessa perspectiva – que também não se vislumbra que a norma em apreço possa violar o artigo 13º, n.º 2, da Constituição, na parte em que refere que “ninguém pode ser prejudicado [...] em razão [...] da sua situação económica”. Como resulta do que já se disse, nem a falta de cumprimento da obrigação pecuniária determina, automática e necessariamente, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, nem, no caso de o tribunal optar por essa revogação, o cumprimento da pena a que o agente fora condenado resulta da falta de condições económicas, mas antes do facto por si culposamente praticado.
III - Decisão.
Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma contida no artigo
14º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e, consequentemente, negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 quinze) unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida