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Processo n.º 204/12
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
(Conselheiro Pedro Machete)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos a A., S.A. e o Município de Sintra, foi interposto recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Em 5 de dezembro de 2012, a 2.ª secção acordou em «não julgar inconstitucional, quando aplicável a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada, o artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, na versão publicada pelo Aviso n.º 26235/2008 no Diário da República, II Série, de 31 de outubro de 2008, e mantido em vigor, sem qualquer atualização, no ano de 2009, por deliberação da Assembleia Municipal de Sintra, de 27 de fevereiro de 2009, conforme o n.º 1 do Aviso n.º 5156/2009, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de março de 2009» (Acórdão n.º 581/2012, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
3. Notificada desta decisão, a recorrida A., S.A. dela interpôs recurso para o plenário, ao abrigo do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, invocando o Acórdão n.º 24/2009, proferido pela 3.ª secção, que decidiu «julgar inconstitucional a norma do artigo 69.º, ponto 1.1., da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra, aprovada pela respetiva Câmara Municipal, em 6 de Novembro de 2001, e publicada na II Série do Diário da República, de 1 de Outubro de 2001, quando interpretada no sentido da sua aplicação a posto de abastecimento instalado totalmente em terreno privado, por violação do disposto na alínea i) do nº 1 do artigo 165.ºda Constituição da República Portuguesa» (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Segundo a ora recorrente, os dois acórdãos «analisaram e apreciaram uma mesma norma e com idêntico teor (pese embora a diferença de numeração existente entre ambas e ainda a substituição da expressão “da inerente degradação e utilização ambiental dos recursos naturais pela do impacto ambiental negativo da atividade nos recursos naturais), tendo tomado diferentes posições sobre a mesma».
4. Por despacho do relator, de 7 de janeiro de 2013, o recurso não foi admitido. Entendeu-se que «não se pode dar como verificado que o acórdão de fls. 568 e seguintes – o Acórdão n.º 581/2012 - e o acórdão invocado como fundamento – o Acórdão n.º 24/2009 deste Tribunal n.º 24/2009 (…) – tenham decidido “em sentido divergente questões de inconstitucionalidade quanto à mesma norma”, nos termos e para os efeitos daquele preceito [artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC]», com a seguinte fundamentação:
«Desde logo, porque, como resulta do teor das respetivas decisões, no primeiro daqueles arestos foi apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, na versão publicada pelo Aviso n.º 26235/2008 no Diário da República, II Série, de 31 de outubro de 2008, e mantido em vigor, sem qualquer atualização, no ano de 2009, por deliberação da Assembleia Municipal de Sintra, de 27 de fevereiro de 2009, conforme o n.º 1 do Aviso n.º 5156/2009, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de março de 2009, quando aplicável a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada; enquanto, no segundo, a questão de inconstitucionalidade respeitava à norma do “artigo 69.º, ponto 1.1., da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra, aprovada pela respetiva Câmara Municipal, em 6 de Novembro de 2001, e publicada na II Série do Diário da República, de 1 de Outubro de 2001”, quando interpretada no sentido da sua aplicação a posto de abastecimento instalado totalmente em terreno privado. Deste modo, as normas consideradas constam de atos normativos distintos.
Mas, mais decisivamente – já que, conforme referido no Acórdão n.º 581/2012, existe na parte dispositiva dos enunciados daquelas normas, com ressalva das epígrafes e dos montantes, uma correspondência “quase ipsis verbis” – porque ocorreram alterações legislativas relevantes entre a data de aprovação da Tabela mais antiga e a data de aprovação da Tabela mais recente, e que são expressamente referidas e ponderadas no Acórdão n.º 581/2012. Tais alterações legislativas impedem que aqueles dois arestos se possam ter como proferidos no «domínio da mesma legislação» e, por força do elemento sistemático de interpretação, afetaram necessariamente o sentido de cada uma das normas constantes das referidas Tabelas, não obstante a sua quase identidade, do ponto de vista literal. Deste modo, não é exato que os dois acórdãos em questão tenham decidido a questão da inconstitucionalidade quanto a uma única norma, ou quanto à mesma norma, conforme se exige como requisito de admissibilidade do recurso para o plenário no citado artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC. Aliás, atenta a não consideração das alterações legislativas em causa pelo acórdão fundamento, não é possível saber como teria decidido este Tribunal em tal ocasião, caso tivesse tido oportunidade de considerar os novos dados jurídico-positivos. Consequentemente, também não é possível afirmar a existência de qualquer divergência jurisprudencial justificativa da abertura da via de recurso para o plenário.
São os seguintes os diplomas legais considerados no Acórdão n.º 581/2012, que, por serem posteriores à aprovação da Tabela de 2001, não relevaram na decisão tomada por este Tribunal no seu Acórdão n.º 24/2009:
1) O Decreto-Lei n.º 302/2001, de 23 de novembro – diploma que estabelece o quadro legal para a aplicação do «Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis»;
2) A Portaria n.º 131/2002, de 9 de fevereiro, que aprovou o (novo) «Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis»;
3) O Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro (com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 195/2008, de 6 de outubro), que estabelece os procedimentos e disciplina as competências para efeitos de licenciamento e fiscalização de instalações de abastecimento de combustíveis líquidos e gasosos derivados do petróleo, também legalmente designadas «postos de abastecimento de combustíveis»;
4) A Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro, que aprovou o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais e que, de acordo com o entendimento expresso no Acórdão n.º 581/2012, é o único diploma legal que habilitou o Município de Sintra a criar os tributos constantes da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra, aprovada no ano de 2008, uma vez que só ele permite dar cumprimento ao princípio da legalidade das taxas e demais contribuições financeira decorrente da norma de reserva relativa de competência legislativa consignada no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição; de resto, este diploma é expressamente referido na epígrafe do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da citada Tabela».
5. Notificada, a ora recorrente reclamou deste despacho, com os fundamentos seguintes:
«3 – Em primeiro lugar, não poderá deixar de se fazer ressaltar que, ao contrário do vertido no douto despacho reclamando, não se mostra conforme com a realidade que o Acórdão nº 24/2009 não tenha atendido (e relevado) as disposições vertidas na Lei nº 53-E/2006.
4 – Com efeito, conforme se deixa dito no mencionado acórdão: (…)
5 – Conclui-se, assim, que ao contrário do que é doutamente referido no despacho sob reclamação “é possível afirmar a existência de divergência jurisprudencial justificativa da abertura da via de recurso para o Plenário”, pois que, quer o acórdão fundamento, quer o acórdão nº 581/2012 tiveram em conta os mesmos preceitos normativos e, não obstante, manifestaram divergência de entendimentos.
6 – Em segundo lugar, é verdade que no período que mediou entre a prolação de um e outro acórdão foram publicados (naturalmente) diversos diplomas e, entre eles, os primeiros três indicados pelo Exmo. Sr. Conselheiro Relator (a saber decreto-lei 303/2001, de 23 de Novembro, portaria 131/2002, de 9 de Fevereiro e Decreto-Lei nº 267/2002, de 26 de Novembro).
7 – Contudo, salvo devido respeito, não se poderá afirmar que os referidos três diplomas relevaram na decisão tomada pelo Tribunal, no sentido de se entender que, por eles e através deles, foi retirada qualquer consequência ao nível da fundamentação de um outro entendimento jurisprudencial.
8 – Como se verifica pela leitura do douto acórdão nº 581/2012, os três diplomas invocados em nada influem sobre o entendimento que o Tribunal Constitucional retirou da análise dos autos num e noutro caso. No primeiro caso (acórdão nº 24/2009), o Tribunal limita-se a afirmar que o fundamento para a declaração de inconstitucionalidade “surge com evidência reforçada, pois o Tribunal deu como não provados os factos alegados pela autoridade recorrida em ordem a demonstrar que o tributo corresponda a consequências na utilização e aproveitamento de bens no domínio público e a diligências de fiscalização e intervenção pelos serviços do município”. Já no acórdão nº 581/2012, o Tribunal desconsidera tal «evidência», assumindo “(…) que o dever legal de fiscalização dos postos de abastecimento por parte das Câmaras Municipais cria uma presunção suficientemente forte no sentido que a simples localização (…) é causa de uma atividade de vigilância” (sublinhado nosso).
9 – Contudo, não é a «evidência de ausência de fiscalização», por um lado, e a «presunção» amplamente reiterada no acórdão nº 581/2012, por outro, - que, aliás, foi negada à ora requerente a possibilidade de a afastar através de julgamento – o motivo pelo qual não existe divergência jurisprudencial.
10 – Como também não são os diplomas invocados no acórdão nº 581/2012, os quais em nada divergem dos anteriores quanto à questão concreta da inconstitucionalidade a que o Tribunal Constitucional é chamado a pronunciar-se. E, caso assim fosse, o acórdão nº 581/2012 ter-se-ia «bastado» pelo ponto 14.
11 – A questão é uma, é de direito, é de inconstitucionalidade: na utilização de bens particulares é ou não é conforme à Constituição a possibilidade de um Município aplicar uma taxa, bastando para tanto «a mera declaração de finalidade ou justificação geral do tributo, sem uma descrição que corresponda a qualquer uma das hipóteses de imposição que, pela presença de contraprestação pública e individualizável satisfaça o conceito de «taxa»;
12 – E, num e noutro acórdão, o Tribunal adotou entendimentos completamente distintos».
6. Notificado desta reclamação, o Ministério Público veio dizer, entre o mais, o que segue:
«24º
Ora, desde logo, assiste razão, formal, ao Ilustre Conselheiro Relator, quando considera que a norma, analisada no Acórdão 24/09, não é a mesma, que foi analisada no Acórdão 581/12.
Essa, aliás, a principal razão pela qual este Ministério Público entendeu não recorrer, ele próprio, para o Plenário deste Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 79º-D, nº 1 da LTC.
25º
Com efeito, muito embora as Tabelas, apreciadas em ambos os Acórdãos, possam ter objeto idêntico, o que é facto é que o Acórdão 24/09 analisou o art. 69º, nº 1, 1.1, do Regulamento e Tabelas de Taxas e Licenças do Município de Sintra, de 2001, enquanto o Acórdão 581/12, analisou o art. 70º, nº 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008.
Trata-se, pois, de normas formalmente diferentes, que constam de atos normativos distintos e com distinta aplicação temporal.
O que, só por si, permitiria afastar a possibilidade de recurso ao art. 79º-D da LTC
26º
Por outro lado, também assiste razão, ao Ilustre Conselheiro Relator (cfr.), quando considera que o enquadramento legal das duas versões do referido Regulamento é significativamente diferente (cfr. …), uma vez que, posteriormente à aprovação da Tabela de 2001, analisada no Acórdão 24/09, foram publicados novos diplomas que poderiam influenciar – e influenciam, realmente, pelo menos no entendimento deste Ministério Público – a solução a dar ao recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, e em que é recorrida a ora reclamante, A., S.A.
Na verdade, foram, entretanto, publicados, designadamente, o Decreto-Lei 302/01, de 23 de Novembro, a Portaria 131/02, de 9 de Fevereiro e o Decreto-Lei 267/02, de 26 de Novembro.
Factos, esse, que a ora reclamante não deixa igualmente de reconhecer, pelo menos quanto a estes três diplomas, agora citados (cfr. ...).
27º
No entanto, e apesar do acabado de referir, se se atender, fundamentalmente, às dimensões normativas consideradas (…), já a conclusão poderá ser diferente, afigurando-se, sob este ponto de vista, legítimas, as dúvidas explanadas pela ora reclamante.
Com efeito, como atrás referido:
“A admissibilidade de recurso para o Plenário pressupõe naturalmente uma real e integral identidade ou coincidência normativa entre as «normas» ou «dimensões normativas» objeto de apreciações antagónicas e incompatíveis (cfr., as situações versadas nos Acórdãos nºs 419/02, 457/02, 573/05, 107/07, 220/07, 343/07 e 551/08) – podendo, todavia, bastar uma pronúncia incidente sobre norma que coincida, pelo menos em parte, com a que previamente havia sido apreciada, com decisão em sentido inverso, pelo acórdão fundamento (Acórdão nº 614/05)”.
28º
Ora, não parece haver dúvidas que a questão de constitucionalidade subjacente, a ambos os Acórdãos, se afigura idêntica – a aplicação de taxas, pelo Município de Sintra, a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada.
A redação de ambos os preceitos analisados é, com efeito, muito semelhante e de idêntico sentido (cfr. ...), como o Ilustre Conselheiro Relator do Acórdão 581/12 não deixou de reconhecer, ao referir que “existe na parte dispositiva dos enunciados daquelas normas, com ressalva das epígrafes e dos montantes, uma correspondência «quase ipsis verbis» (...).
29º
Sendo certo, por outro lado, que as decisões de ambos os Acórdãos, embora por razões diferentes, como é natural, se apresentam como divergentes: uma delas, no seguimento, aliás, de jurisprudência anterior deste Tribunal Constitucional, considerou a aplicação de tal taxa inconstitucional (…), a outra, considerou-a não inconstitucional (…).
Um dos Acórdãos, com efeito, considerou não haver uma contraprestação pública individualizável que satisfaça o conceito de taxa (Acórdão 24/09), enquanto o outro (Acórdão 581/12), ao invés, chegou, designadamente, à conclusão de que, no caso dos autos, um comportamento sujeito a licenciamento constitui o Município de Sintra numa dada obrigação de suportar impactes negativos da atividade licenciada, não considerados na atribuição da licença, pelo que a taxa é, assim, contrapartida específica de tal obrigação passiva.
Por outras palavras, como o Ilustre Conselheiro Relator do último Acórdão – Acórdão 581/12 – acabou por reconhecer (…), “a questão que se coloca no presente recurso é a de saber se este entendimento [defendido no Acórdão 24/09] deve ser mantido”.
E não foi.
30º
Não se crê, por isso, que se possa acompanhar a conclusão do mesmo Ilustre Conselheiro Relator, quando este afirma que “Aliás, atenta a não consideração das alterações legislativas em causa pelo acórdão fundamento, não é possível saber como teria decidido este Tribunal em tal ocasião, caso tivesse tido oportunidade de considerar os novos dados jurídico-positivos. Consequentemente, também não é possível afirmar a existência de qualquer divergência jurisprudencial justificativa da abertura da via de recurso para o plenário” (…).
O facto de se reconhecer que se não sabe como “teria decidido este Tribunal em tal ocasião, caso tivesse tido oportunidade de considerar os novos dados jurídico-positivos”, parece pressupor que, de facto, existe, afinal, uma possibilidade de “divergência jurisprudencial justificativa da abertura da via de recurso para o plenário”.
31º
Como referido em anterior jurisprudência deste Tribunal Constitucional (…) “a existência de oposição entre dois acórdãos quanto ao julgamento da mesma questão de inconstitucionalidade não pode aferir-se em função do teor literal das decisões, mas em função das razões de decidir num caso e no outro”.
Decisões, essas – as dos Acórdãos 24/09 e 581/12 -, que acabam, afinal, por se revelar, de facto, divergentes, em sentido já apreciado por este Tribunal Constitucional (…):
“Importa, por conseguinte, apurar se, no caso sub judice, se encontra preenchido aquele pressuposto, o que vale dizer se a questão de inconstitucionalidade subjacente é substantivamente idêntica e, sendo-o, se foi julgada em sentido divergente no aresto sob recurso e no acórdão fundamento.”
Crê-se, por isso, que, nesta parte, poderá assistir alguma razão à ora reclamante.
32º
Acresce o facto de o Acórdão 24/09 ter tido uma votação tangencial, como atrás referido, e a composição do Tribunal Constitucional ser hoje diferente da composição existente em 2009.
Sendo, por isso, duvidoso, que a jurisprudência, fixada pelo Acórdão 24/09, possa ainda refletir o atual sentir deste Tribunal, como será disso exemplo, justamente, a prolação do Acórdão 581/12.
33º
Por esse motivo, atendendo aos interesses em conflito, designadamente a necessidade de adequada proteção e preservação do meio ambiente, não repugna a este Ministério Público que a questão de constitucionalidade, subjacente ao presente recurso de constitucionalidade, seja submetida ao Plenário deste Tribunal, tendo em vista definir o atual sentir do mesmo Tribunal sobre esta questão».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Segundo o artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, se o Tribunal Constitucional vier julgar a questão da inconstitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adotado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal.
Face ao conteúdo do despacho que não admitiu o recurso para o plenário e à presente reclamação, importa decidir, por referência aos Acórdãos n.ºs 24/2009 e 581/2012, se estamos ou não perante uma mesma norma relativamente à qual tenha sido decidida questão de inconstitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adotado.
No Acórdão n.º 24/2009 foi julgada inconstitucional a norma do artigo 69.º, 1.1., da Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra, aprovada em 6 de novembro de 2001, quando interpretada no sentido da sua aplicação a posto de abastecimento instalado totalmente em terreno privado. Este artigo 69.º (Equipamento de abastecimento de combustíveis líquidos) tem a seguinte redação:
«1 - Por cada um e por ano:
1.1. Em virtude dos condicionamentos no plano do tráfego e acessibilidades, da inerente degradação e utilização ambiental dos recursos naturais (ar, águas e solos) e da consequente atividade de fiscalização desenvolvida pelos serviços municipais competentes……………….. 306,50
1.2. À taxa prevista no ponto 1.1. acresce, ainda, a seguinte taxação:
1.2.1. Instalados inteiramente na vida pública …………………… 715,10
1.2.2. Instalados na via pública, mas como depósito em propriedade privada …………………………………………………………….... 459,80
1.2.3. Instalados em propriedade privada, mas com depósito na via pública ………………………………………………………………. 613,00
1.2.4. Instalados inteiramente em propriedade privada, mas abastecendo na via pública …………………………………………………….. 153,50
2 - …».
Por seu turno, no Acórdão n.º 581/2012 não foi julgado inconstitucional o artigo 70.º, n.º 1, 1.1., da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, na versão publicada pelo Aviso n.º 26235/2008, quando aplicável a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada. Este artigo 70.º (Equipamento de abastecimento de combustíveis líquidos – Alínea d) do n.º 7 do artigo 64.º da Lei 169/99 de 1 de janeiro, com a redação introduzida pela Lei 5-A/2002, de 11 de janeiro; RMOVPMS; Reg. Obras Trabalhos no Subsolo de Domínio Público, n.º 2 do artigo 6.º da Lei 53-E/2006 de 29 de dezembro; Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87 de 7 de abril) tem a seguinte redação:
«1 – Por cada um e por ano: € 80,00 (d).
1.1 – Em virtude dos condicionamentos no plano do tráfego e acessibilidades, do impacto ambiental negativo da atividade nos recursos naturais (ar, águas, solos) e da consequente atividade de fiscalização desenvolvida pelos serviços municipais competentes:
1.2 – À taxa prevista no ponto 1.1. acresce, ainda, a seguinte taxação:
1.2.1 – Instalados inteiramente em domínio público - € 590 (d).
1.2.2 – Instalados em domínio público, mas com depósito em propriedade privada - € 416,50 (d).
1.2.3 – Instalados em propriedade privada, mas com depósito em domínio público - € 518,50 (d).
1.2.4 – Instalados inteiramente em propriedade privada, mas abastecendo em domínio público - € 233 (d). (d) – IVA não sujeito».
2. Importa notar, desde logo, que é irrelevante saber se os Acórdãos n.ºs 24/2008 (decisão fundamento) e o Acórdão 581/2012 (decisão recorrida) foram ou não proferidos no domínio da mesma legislação. Se, por um lado, a exigência da prolação no domínio da mesma legislação não decorre do artigo 79.º-D da LTC, nisto se distinguindo este recurso para o plenário dos recursos para uniformização de jurisprudência previstos na lei processual civil e na lei processual penal (artigos 763.º do Código de Processo Civil e 437.º do Código de Processo Penal); por outro, as alterações legislativas relevantes entre a data de aprovação da Tabela de 2001 e a data de aprovação da Tabela de 2008, expressamente referidas no Acórdão n.º 581/2012, não relevam no plano da norma que foi objeto de apreciação naqueles dois acórdãos, mas sim ao nível da fundamentação do juízo de não inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido.
Este acórdão louva-se em duas linhas de fundamentação distintas, tendo uma delas a ver com aquelas alterações legislativas – com a Portaria n.º 131/2002, de 9 de fevereiro, e com o Decreto-Lei n.º 267/2002, de 25 de novembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 195/2008, de 6 de outubro –, por delas decorrer que o tributo previsto no artigo 70.º, n.º 1, 1.1., da Tabela de 2008 é uma verdadeira taxa. Decorrendo de tal legislação que o tributo em causa assenta na prestação concreta de um serviço público local, correspondendo este serviço à atividade de vigilância permanente por parte dos serviços camarários dirigida especificamente aos equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada, afastou-se a qualificação do tributo como imposto e, consequentemente, o vício de inconstitucionalidade orgânica e formal imputado à norma (cf. pontos 12., 13. e 14. do Acórdão n.º 581/2012. No ponto 15. é desenvolvida a outra linha de fundamentação, a partir da jurisprudência constante do Acórdão deste Tribunal n.º 177/2010, conducente também a um juízo de não inconstitucionalidade).
3. Independentemente de estarem em causa atos normativos distintos – a Tabela de Taxas e Licenças do Município de Sintra de 2001 e a Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra de 2008 – o Tribunal apreciou a mesma norma quer no acórdão fundamento quer no acórdão recorrido: a norma segundo a qual é devido um tributo por equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada. No primeiro, julgou-a inconstitucional, por ter entendido que tal tributo era um imposto e não uma taxa; no segundo, julgou aquela norma não inconstitucional, porquanto entendeu tratar-se da previsão de uma taxa e não de um imposto.
É de concluir, pois, que o Acórdão n.º 581/2012 julgou a questão de inconstitucionalidade em sentido divergente do adotado quando à mesma norma no Acórdão n.º 24/2009, podendo dar-se como verificados os requisitos de que depende o recurso para o plenário previsto no artigo 79.º-D da LTC. Consequentemente, é de deferir a reclamação apresentada.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se deferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Setembro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano (vencido, nos termos da declaração que junto) – Fernando Vaz Ventura (vencido, nos termos da declaração de voto do Sr. Conselheiro Pedro Machete, a que adiro) – Pedro Machete (vencido, nos termos da declaração que junto) – Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da posição maioritária por entender que a norma que não foi julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 581/12 não coincide inteiramente com a norma que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 24/2009.
Essa não coincidência não resulta de tais normas constarem de atos normativos distintos – A Tabela de Taxas e Outras receitas do Município de Sintra aprovada em 2008, onde consta no artigo 70.º, n.º 1, ponto 1.1., e a mesma Tabela aprovada em 2001, onde consta no artigo 69.º, ponto 1.1. – uma vez que a sua redação permaneceu idêntica.
A não coincidência resulta do facto de entre a data da aprovação da Tabela de 2001 e a data de aprovação da Tabela de 2008 terem ocorrido alterações legislativas que conferiram competências de fiscalização aos serviços municipais, relativamente à atividade desenvolvida pelos equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos em terrenos privados (v.g. Portaria n.º 131/2002, de 9 de fevereiro e o Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, com a redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 195/2008, de 6 de outubro), que foram decisivas para o Acórdão 581/12, diversamente do Acórdão n.º 24/2009, qualificar os tributos constantes daqueles preceitos como verdadeiras taxas.
Desta circunstância resulta que o conteúdo normativo dos referidos preceitos, sendo integrado por diversa legislação é diferente, pelo que me pronunciei pela inadmissibilidade do recurso previsto no artigo 79.º-D, da LTC.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. No presente acórdão o Tribunal reconhece expressamente que o acórdão recorrido se louva “em duas linhas de fundamentação distintas” (itálico aditado). Em meu entender, porém, a necessária conjugação do artigo 70.º, n.º 1.1, da Tabela de 2008 com outros diplomas, nomeadamente com o Decreto-Lei n.º n.º 267/2002, de 26 de novembro – que não foram, nem podiam ter sido, considerados no acórdão fundamento, conduz, por força do elemento sistemático da interpretação, à autonomização de uma dimensão normativa diferente daquela que resultaria da consideração isolada do citado artigo. Assim sendo, a divergência entre os dois acórdãos é apenas parcial. Por outras palavras, a diferença entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não respeita apenas à fundamentação, mas também ao próprio objeto, o mesmo é dizer, à dimensão normativa «alojada» ou «sediada» no enunciado linguístico constante do referido artigo 70.º, n.º 1.1.
2. Para o compreender, importa começar por recordar que está em causa o conceito de taxa das autarquias locais, hoje consagrado no artigo 3.º da Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro: as «taxas» são tributos devidos como contrapartida (i) da prestação concreta de um serviço público local; (ii) da utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais; ou (iii) da remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias locais, nos termos da lei.
Este conceito evidencia que um concreto tributo pode merecer a qualificação de taxa por mais do que uma razão. Assim, também não pode excluir-se que da sua consagração numa fonte de direito positivo se extraiam diferentes interpretações ou a que à mesma fonte sejam imputadas diferentes dimensões normativas. Na verdade, é de admitir que um qualquer tributo, consoante os termos da sua previsão, possa ser perspetivado como contrapartida de um único, ou de mais do que um, dos benefícios típicos e individualizados auferidos pelo respetivo sujeito passivo ou, em alternativa, pura e simplesmente não possa ser perspetivado como contrapartida de qualquer benefício daquela natureza. Ocorrendo pluralidade de benefícios, é possível imputar à fonte de direito consagradora do tributo outras tantas dimensões normativas correlacionadas com o conceito de taxa; não ocorrendo qualquer benefício, o tributo em causa não poderá valer como taxa.
Por outro lado, e conforme referido no n.º 9 do Acórdão n.º 581/2012, “uma vez que o tributo aplicado pelo Município de Sintra […] se funda exclusivamente num regulamento municipal aprovado ao abrigo do artigo 56.º, n.º 2, da Lei das Autarquias Locais (a Lei n.º 169/99, de 1 de janeiro) e do artigo 8.º do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (a Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro, adiante referida simplesmente como “RGTAL”); e, uma vez que inexiste qualquer outro diploma legal que contenha uma habilitação genérica para a aprovação pelos municípios de outro tipo de tributos, das duas uma: ou o tributo previsto no artigo 70.º, n.º 1, ponto 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra, aprovada no ano de 2008, e aplicada à recorrida, se pode reconduzir ao conceito de «taxa» consagrado no citado RGTAL, e, por conseguinte, aquele preceito regulamentar não é inconstitucional; ou, diversamente, correspondendo o tributo previsto no artigo 70.º, n.º 1, ponto 1.1, daquela Tabela a um «imposto» ou a uma «outra contribuição tributária com contornos paracomutativos», o mesmo preceito não poderá deixar de ser tido como incompatível com o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição”.
Ora, a pronúncia do citado Acórdão n.º 581/2012, como é evidenciado pelo introito do respetivo n.º 15 – “A mesma conclusão [ou seja: a consagração no artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008, quando aplicado a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada, de uma verdadeira taxa] pode ser alcançada a partir da consideração da própria licença de exploração de postos de abastecimento de combustíveis” -, baseou-se na consideração de duas dimensões normativas distintas e autónomas entre si extraídas do enunciado constante do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008, tendo entendido que qualquer uma delas por si só é suficiente para sustentar a conclusão consubstanciada no juízo de não inconstitucionalidade. Por outras palavras, nesse Acórdão considerou-se que aquele preceito regulamentar consagrava uma taxa, e não um imposto, tendo em conta duas razões normativas diferentes.
2.1. A primeira foi a seguinte: o tributo previsto no mencionado artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008, quando aplicada a equipamentos de abastecimento de combustíveis líquidos inteiramente localizados em propriedade privada, é uma verdadeira taxa, porque assenta na prestação concreta de um serviço público local, correspondendo este serviço à atividade de vigilância permanente por parte dos serviços camarários dirigida especificamente àquele tipo de instalações e ao seu modo de funcionamento, conforme exigido na legislação especialmente aplicável, nomeadamente a Portaria n.º 131/2002, de 9 de fevereiro (que aprova o Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis) e o Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 195/2008, de 6 de outubro (que, além do mais, cometeu no seu artigo 25.º aos municípios o dever de fiscalizar a construção e a exploração dos postos de combustíveis não localizados nas redes viárias regionais e nacionais, de acordo com os regulamentos aplicáveis). Como se sumaria na parte final do n.º 13 e no início do n.º 14 do Acórdão n.º 581/2012,
« [I]ncumbe aos municípios o dever de proteção dos interesses acautelados na legislação e regulamentação própria dos postos de abastecimento de combustíveis. E esse dever legal é permanente e específico, porque dirigido à garantia de regras especiais, de modo a, por exemplo, detetar situações de “perigo grave para a saúde, a segurança de pessoas e bens, a higiene e a segurança dos locais de trabalho e o ambiente” e “tomar imediatamente as providências que em cada caso se justifiquem para prevenir ou eliminar a situação de perigo” (cfr. o artigo 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro); ou situações de infração às regras de exploração de postos de abastecimento (cfr. o artigo 45.º e seguintes do Regulamento de Construção e Exploração de Postos de Abastecimento de Combustíveis).
Há aqui manifestamente um plus, relativamente aos deveres gerais de polícia administrativa. Com efeito, não é indiferente para um qualquer município, ter ou não ter postos de abastecimento de combustíveis localizados na sua circunscrição, já que, em caso de acidente, a omissão de uma fiscalização diligente pode ser considerada como tendo contribuído para o mesmo e, assim, ser causa de danos para o próprio município e fonte de obrigações de indemnização de danos de terceiros.
14. É a existência deste dever legal de fiscalização especificamente imposto às câmaras municipais com referência aos postos de abastecimento de combustíveis, para mais pautado por requisitos técnicos especiais previstos em legislação própria, que torna menos plausível – para não dizer completamente implausível – a inexistência de atividades de fiscalização e a adaptação das estruturas e serviços municipais nos planos da proteção civil e da defesa do ambiente.»
2.2. O mesmo Acórdão, contudo, toma em consideração uma segunda dimensão normativa do mesmo enunciado linguístico constante do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008 que se autonomiza da primeira. Esta segunda dimensão - correspondente à abordagem do problema feita pelo tribunal de primeira instância, e contrariada pelo acórdão então recorrido - desenvolve a jurisprudência em matéria de taxas vertida no Acórdão n.º 177/2010 do Plenário deste Tribunal: o tributo consagrado no referido artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008 é uma taxa, igualmente porque ainda tem correspondência com a remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares concretizada na relação jurídica de direito administrativo constituída entre o Município de Sintra e o titular da licença de exploração de postos de combustíveis. Nesse sentido, pode ler-se no n.º 15 do citado Acórdão n.º 581/2012:
« Com efeito – e abstraindo agora dos aspetos conexionados com a «fiscalização do cumprimento de deveres específicos», considerados autonomamente no número anterior do presente acórdão – a verdade é que a licença de exploração de postos de combustíveis, enquanto ato administrativo de execução continuada (ou de eficácia duradoura), também não esgota os seus efeitos num só momento, através de um ato ou facto isolado. Bem pelo contrário, constitui uma relação jurídica duradoura no quadro da qual o licenciado adquire o direito de exercer uma atividade que, mesmo cumprindo os deveres específicos impostos pela legislação e regulamentação técnica aplicável, interfere permanentemente com a conformação de bens públicos, como o ambiente (ar, águas e solos), o urbanismo e o ordenamento do território e a gestão do tráfego.
[…]
Considerando conjuntamente todos estes aspetos, a interrogação que se pode formular é a de saber se um município, obrigado a suportar permanentemente no seu espaço público interferências decorrentes de uma atividade económica sujeita a procedimentos públicos de licenciamento previstos em legislação especial e igualmente aplicável à Administração municipal e à Administração central, que, todavia, não considera nem faz relevar tais impactes negativos para efeitos de fixação das taxas aplicáveis, pode, por sua iniciativa, e em ordem à prossecução das suas atribuições nos domínios afetados pela atividade licenciada, tributá-la, tomando como referência as licenças previamente atribuídas. Noutros termos: será que a «remoção do obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares» a que se refere o artigo 3.º do RGTAL, como pressuposto das taxas, é necessariamente específico de uma dada taxa, ou pode ser comum e, por conseguinte, valer para outras taxas conexionadas com dimensões da atividade licenciada não consideradas na fixação da taxa que remove o obstáculo jurídico em causa?
O caso sub iudicio exemplifica bem a importância da questão: será compatível com o princípio da autonomia das autarquias locais admitir que estas não possam impor taxas sobre atividades que interferem de forma relevante com bens jurídicos que lhes cabe tutelar apenas porque na legislação especial respeitante ao licenciamento da mesma atividade se consideram exigências diferentes e muito relevantes do ponto de vista técnico, mas que ignoram por completo a aludida dimensão de interferência permanente com bens públicos municipais?
No Acórdão n.º 177/2010 este Tribunal entendeu que “a constituição da obrigação passiva de se conformar com essa influência modeladora é justamente a contrapartida específica que dá causa ao pagamento da taxa, estruturando, em termos bilaterais, a relação estabelecida com o obrigado tributário”. […]
Ora, a grande diferença no caso sujeito é que a taxa a aplicar nos termos do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 pressupõe já o benefício da remoção do obstáculo jurídico, isto é, a licença de exploração de postos de abastecimento de combustíveis. O que aquela taxa vem valorar é, no quadro de tal licenciamento, aspetos ainda nele não considerados, uma vez que o licenciamento em causa é determinado por lei especial que não tem de tomar em linha de consideração a especificidade dos interesses municipais. Será que, por ser assim, fica a taxa do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, desprovida de uma estrutura bilateral?
A resposta deve ser negativa, uma vez que o que o licenciamento dos postos de abastecimento de combustíveis nos termos do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro, removendo embora um obstáculo jurídico, não toma – e, em rigor, nem pode tomar, atento o princípio da autonomia das autarquias locais - em consideração a obrigação passiva do Município de Sintra de se conformar com a influência modeladora da atividade licenciada. E este deve ser o aspeto decisivo: existe um comportamento sujeito a licenciamento que constitui aquele Município numa dada obrigação de suportar impactes negativos da atividade licenciada que pura e simplesmente não são considerados na licença. A taxa em causa é a contrapartida específica de tal obrigação passiva. Não ocorre dupla tributação, uma vez que a mesma obrigação pura e simplesmente não é considerada nas taxas a pagar por ocasião da emissão ou renovação da licença. Também aqui deve valer a ideia de que as taxas do Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro não consomem a taxa do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008, uma vez que se reportam a contrapartidas diferentes.
Deste modo, se se tiver em conta não cada ato administrativo de licenciamento individualmente considerado, mas as relações jurídicas constituídas pelos mesmos, nada impede que o mesmo ato – rectius a relação jurídica por ele constituída - possa funcionar, em momentos distintos e relativamente a diferentes entidades públicas, como pressuposto da exigência de prestações pecuniárias coativas a título de taxas.
Assim, também com base em tal perspetiva se pode considerar a taxa prevista no artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Município de Sintra para 2008 legítima à luz do artigo 3.º do RGTAL, ficando do mesmo modo afastado o juízo de inconstitucionalidade emitido pelo tribunal recorrido.»
3. Enquanto na primeira daquelas duas dimensões normativas o artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008 se articula necessariamente com o disposto no Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro - que passou a cometer especificamente aos municípios um especial dever de vigilância sobre o funcionamento de postos de abastecimento de combustíveis, independentemente de os mesmos se localizarem em propriedade privada, dever esse que à data da aprovação da Tabela de 2001 pertencia à Administração central; na segunda dimensão normativa releva apenas a eficácia duradoura da licença de exploração daquele tipo de equipamentos e os impactes negativos associados à atividade licenciada, independentemente da questão da competência para a sua fiscalização e dos inerentes deveres.
Resulta, deste modo, claro que o artigo 69.º, ponto 1.1., da Tabela de 2001 não podia ser – como não foi – interpretado pelo Acórdão n.º 24/2009 em articulação com o disposto no citado Decreto-Lei n.º 267/2002, de 26 de novembro: ou seja, o tributo previsto naquele preceito não podia ser considerado como a contrapartida da atividade de vigilância especial a exercer pelo município de Sintra em cumprimento do disposto nesse diploma. Relativamente a esta dimensão normativa, não existe, por conseguinte, qualquer divergência entre o decidido no Acórdão 581/2012 e o decidido no Acórdão n.º 24/2009 quanto à questão da inconstitucionalidade, uma vez que o critério normativo que o primeiro aplicou não é igual ao critério normativo que o segundo desaplicou. Com efeito, a consideração do elemento sistemático na interpretação do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008, determina que do mesmo se extraia uma norma materialmente diferente daquela que resulta da disposição homóloga constante da Tabela de 2001, sendo esta diferença que justifica a divergente qualificação dos tributos previstos nos dois preceitos: imposto, no que se refere à norma constante da Tabela de 2001, porque inexiste a previsão da prestação concreta de um serviço público local (e, bem assim, porque não ocorrem as demais situações de que uma taxa poderia ser a contrapartida); e taxa, quanto à norma constante da Tabela de 2008, uma vez que tal serviço público local se encontra previsto e deve ser prestado.
O mesmo já não poderá dizer-se da segunda dimensão normativa considerada no Acórdão n.º 581/2012, visto que a mesma assenta na relação jurídica criada pela licença de instalação e exploração de postos de abastecimento de combustíveis. Com efeito, a conclusão, nessa parte, do Acórdão n.º 581/2012, representando o desenvolvimento de uma outra decisão – o Acórdão n.º 177/2010 –, inscreve-se numa linha argumentativa que (assumidamente) se afasta da corrente jurisprudencial em que o citado Acórdão n.º 24/2009 se integra.
No que se refere a esta segunda dimensão normativa, existe uma coincidência entre o critério normativo desaplicado pela decisão de 2009 e aquele que em 2012 o Tribunal Constitucional entendeu não dever ser desaplicado, já que os dois arestos valoraram diferentemente a obrigação do município de suportar uma atividade particular sujeita a licenciamento público que interfere de modo continuado com a conformação de bens públicos como o ambiente e a segurança de pessoas e bens. Assim, no Acórdão n.º 24/2009 considerou-se que a tolerância de tal interferência não implicava nem a prestação de serviços específicos nem podia fundar a exigência de remoção de um obstáculo jurídico ao exercício da atividade em causa. Já no Acórdão n.º 581/2012 o entendimento foi diferente, uma vez que, conforme referido, o Tribunal considerou que aquela atividade sujeita a licenciamento constitui o município numa dada obrigação de suportar impactes negativos que não são considerados na licença inicial emitida pela Administração central, sendo a taxa municipal aplicável a contrapartida específica de tal obrigação passiva, pelo que ainda existe uma correspondência com a remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares. E, se assim é, verifica-se, nesta parte, uma diferença quanto ao sentido em que a questão da inconstitucionalidade de tal critério normativo foi julgada.
4. Decorre do exposto que a divergência entre os dois acórdãos em análise é apenas parcial, porquanto uma das duas dimensões normativas retiradas do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008 e apreciada no Acórdão 581/2012 – a consagração de uma taxa como correspetivo da prestação concreta de um serviço público local imposto pela legislação especialmente aplicável à instalação e exploração de postos de abastecimento de combustíveis - não foi apreciada no Acórdão n.º 24/2009, a propósito da interpretação do artigo 69.º, ponto 1.1., da Tabela de 2001. E não o foi justificadamente, uma vez que tal dimensão é indissociável do enquadramento legal da matéria posterior à aprovação da Tabela de 2001.
5. O julgamento do recurso de constitucionalidade compete, em princípio, às secções (cfr. o artigo 79.º-B, n.º 1, da LTC). O Plenário pode decidir processos de fiscalização concreta, em substituição da secção competente, mas apenas nos casos em que a sua intervenção seja determinada antes de ordenada a inscrição do processo em tabela para julgamento (cfr. o artigo 79.º-A, n.os 1 e 2, da LTC).
Da decisão do recurso de constitucionalidade tomada pela secção não cabe recurso para o Plenário, salvo no caso previsto no artigo 79.º-D da LTC, em ordem a resolver a oposição de julgados originada por diferentes juízos quanto à questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma mesma norma ou dimensão normativa. Este artigo da LTC consagra, por conseguinte, um recurso extraordinário análogo ao recurso para uniformização de jurisprudência previsto no artigo 763.º do Código de Processo Civil. A sua função não é a de criar uma instância de recurso adicional destinada a reapreciar a decisão do recurso de constitucionalidade tomada pela secção, mas, antes – e tão-somente - a de eliminar a contradição entre duas decisões proferidas em sede de fiscalização concreta, de modo a garantir a coerência, estabilidade e previsibilidade da jurisprudência constitucional.
Para que assim seja, a referida oposição de julgados pressupõe não só que esteja em causa uma questão de inconstitucionalidade relativamente à mesma norma ou dimensão normativa apreciada nos dois acórdãos (o acórdão recorrido e o acórdão fundamento); como, adicionalmente, que a reversão do juízo sobre tal questão emitido no acórdão recorrido determine a modificação da decisão deste último quanto ao recurso de constitucionalidade, pois só nesse caso se pode considerar que aquela questão de inconstitucionalidade é essencial para a decisão do acórdão recorrido e a causa da sua oposição com o acórdão fundamento. Se tal não suceder, isso significa que a decisão do recurso de constitucionalidade adotada pela secção no acórdão recorrido não depende do julgamento dessa concreta questão de inconstitucionalidade e que, portanto, nessa medida, não há um conflito de jurisprudência que caiba ao Plenário conhecer e dirimir. Aliás, se este conhecer do recurso interposto do acórdão da secção, estará, não a dirimir um conflito inexistente, mas a reapreciar, como instância de recurso, a decisão do próprio recurso de constitucionalidade.
Em suma, no recurso para o Plenário previsto no artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, além de ser necessário existir uma divergência no juízo sobre a questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma mesma norma no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, deve tal juízo ser determinante do sentido da decisão final do recurso de constitucionalidade tomada no acórdão recorrido.
Se, adotando o Plenário um juízo sobre a questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade consonante com o perfilhado no acórdão fundamento, ainda assim a decisão do recurso de constitucionalidade do acórdão recorrido pode subsistir, isso significa que a dita questão não é essencial para a decisão do acórdão recorrido e que, portanto, a oposição entre este acórdão e o acórdão fundamento não é devida apenas ao julgamento em sentido divergente da questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma mesma norma.
Em tal hipótese, com efeito, verifica-se que a decisão do recurso de constitucionalidade pelo acórdão recorrido subsiste, mesmo não aplicando a norma ou dimensão normativa questionada. E, assim sendo, a solução pelo Plenário do conflito jurisprudencial relativo a tal norma, por si só, é insuficiente para determinar a sorte da decisão do recurso de constitucionalidade tomada no acórdão recorrido. Nestas circunstâncias, o Plenário, mesmo que concorde com o juízo de constitucionalidade do acórdão fundamento, tem ainda de reapreciar o decidido pelo acórdão recorrido, na parte em que este se debruçou sobre normas ou dimensões normativas diversas daquelas que tenham sido apreciadas pelo acórdão fundamento (e que, afinal, são determinantes da decisão tomada quanto ao provimento ou não provimento do recurso de constitucionalidade). Porém, ao fazê-lo, o Plenário já está a reexaminar a decisão da secção fora do âmbito da oposição com o acórdão fundamento, agindo como simples instância de recurso. Por outras palavras, a solução da divergência de julgamento quanto à questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma aplicada pelo acórdão fundamento é, relativamente à decisão final do recurso de constitucionalidade objeto do acórdão recorrido, inútil, porque não decisiva. E, tratando-se de fiscalização concreta, deve ser esta a consideração prevalecente na interpretação do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC.
6. In casu, e conforme referido supra no n.º 2, verifica-se que somente a segunda das duas dimensões normativas extraídas do artigo 70.º, n.º 1, 1.1, da Tabela de 2008 pelo Acórdão n.º 581/2012 é comum à dimensão normativa com que o artigo 69.º, ponto 1.1., da Tabela de 2001 foi apreciado no Acórdão n.º 24/2009; e que o juízo perfilhado nos dois Acórdãos quanto à inconstitucionalidade de tal dimensão é divergente. Todavia, subsiste uma outra dimensão normativa daquele artigo 70.º, n.º 1, 1.1, designadamente a que resulta da sua integração num enquadramento legal não existente à data em que foi aprovada a Tabela de 2001, e sobre a qual apenas o Acórdão n.º 581/2012 se pronunciou, emitindo um juízo negativo de inconstitucionalidade.
Assim, tendo o Plenário decidido conhecer do presente recurso, caso venha a confirmar o juízo de inconstitucionalidade formulado quanto à dimensão normativa em causa no Acórdão n.º 24/2009, nem por isso fica dispensado de reexaminar aquela dimensão normativa cuja constitucionalidade foi apreciada apenas pelo Acórdão n.º 581/2012.
Tal comprova, que a questão de inconstitucionalidade objeto de apreciações divergentes pelo acórdão fundamento e pelo acórdão recorrido não é essencial para a decisão do recurso de constitucionalidade objeto do segundo. Consequentemente, e com referência a esta última decisão, a solução da aludida divergência jurisprudencial revela-se inútil, devendo entender-se por isso que o recurso interposto em vista de tal solução não é abrangido pela previsão do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC.
Pedro Machete