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Processo n.º 532/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial do Entroncamento, em que é recorrente o MINISTÉRIO PÚBLICO, e recorrido A., o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão proferida por aquele Tribunal em 6 de junho de 2013 (cfr. fls. 7 a 10) que «recusou a aplicação dos ditames do artigo 381.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro, por entender ser contrário aos artigos 20.°, n.° 4 e 32.°, n.° 1 da Constituição da Republica Portuguesa» (cfr. fls 1).
2. O recorrente interpôs recurso para este Tribunal nos termos e com os fundamentos seguintes (cfr. fls. 1):
«A Magistrada do Ministério Público notificada da douta decisão de fls. 122 a 125 dos autos vem, nos termos do disposto nos artigos 70.°, nº 1, al. a), 71.°, nº 1, 72.°, nº 1, a1. a) e nº 3, 75.°, nº 1, 75.°-A, nº 1 e 76.°, nº 1 e 2, a contrario, todos da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, na medida em que se recusou a aplicação dos ditames do artigo 3 8 1 .°, n.° 1 do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro, por entender ser contrário aos artigos 20.°, n.° 4 e 32.°, n.° 1 da Constituição da Republica Portuguesa.
O presente recurso deverá subir imediatamente em separado e com efeito meramente devolutivo nos termos do disposto nos artigos 78.°, n.° 2 da Lei 28/82, de 15 de Novembro e 408.° do Código de Processo Penal, a contrario.
3. O requerimento de recurso para este Tribunal foi admitido, em 14/06/2013, pelo Tribunal Judicial do Entroncamento (cfr. fls. 11).
II – Fundamentação
4. O presente recurso de constitucionalidade vem interposto da decisão do Tribunal Judicial do Entroncamento que recusou a aplicação, «por violação dos princípios das garantias de defesa e de um processo equitativo previsto nos artigos 20º, nº 4, e 32º, nº 1, da CRP», da norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, «na interpretação em que é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação da pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16º, nº 3, do CPP».
O despacho judicial recorrido fundamentou a recusa de aplicação de norma em causa do CPP nos seguintes termos (cfr. fls. 7-10):
«O Ministério Público requereu o julgamento do arguido A., acusado da prática, como autor material, de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, sob a forma de processo sumário, de harmonia com o disposto no artigo 381.º, n.º 1, do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro.
Apreciando.
São julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito quando à detenção tiver procedido qualquer autoridade judiciária ou entidade policial ou quando a detenção tiver sido efectuada por outra pessoa e, num prazo que não exceda duas horas, o detido tenha sido entregue a uma autoridade judiciária ou entidade policial, tendo esta redigido auto sumário da entrega (artigo 381.º, n.º 1, do CPP, na mesma redacção).
Dispõe o artigo 14.º, n.º 2, do CPP, na mesma redação que: Compete ainda ao tribunal coletivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes: a) dolosos ou agravados pelo resultado, quando foi elemento do tipo a morte de uma pessoa e não devam ser julgadas em processo sumário; ou b) cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime e não devam ser julgados em processo sumário”.
Portanto, caso o Ministério Público não opte pelo processo sumário, são julgados perante tribunal colectivo, ou pelo tribunal de júri, nas situações previstas no artigo 13.º do CPP.
Na hipótese de crime com pena máxima abstractamente aplicável superior a cinco anos de prisão, antes da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, o Ministério Público apenas podia determinar o julgamento perante tribunal singular ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP. Porém, ficava limitada a convicção do juiz pelo máximo de pena que estava na sua competência normal aplicar.
Sucede que, após a redacção introduzida por aquela lei, além do previsto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, o Ministério Público pode ainda submeter ao tribunal singular os detidos em flagrante delito, sem qualquer limite de pena a aplicar.
Ora, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa – CRP).
O processual criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32.º, n.º 1, CRP).
Será perante as circunstâncias concretas de cada caso que se devem estabelecer os concretos conteúdos dos direitos de defesa, sendo que uma ampla e efectiva defesa não respeita apenas à decisão final, mas a todas as que impliquem restrições de direitos ou possam condicionar a solução definitiva do caso (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, p. 354).
O julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias do que um julgamento em tribunal colectivo (entre outros, Acs. do TC de 13-12-1990 e de 07-02-1991).
Da aplicação do artigo 381.º, n.º 1, do CPP, na redação da Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, não resulta qualquer limitação ao poder condenatório do juiz singular, convocando o mesmo a proferir uma condenação que não está na sua competência normal aplicar – note-se que em Portugal, antes desta alteração, todas as condenações superiores a cinco anos de prisão eram sempre aplicadas por um tribunal colectivo ou de júri.
Assim, tendo por base um flagrante delito e a subsequente utilização de processo sumário, passa a consagrar-se a possibilidade de um juiz singular aplicar uma pena superior a cinco anos de prisão.
Portanto, num processo sumário – perante tribunal singular já de si com menos garantias para o arguido – e eminentemente marcado pela celeridade – pode resultar uma pena superior a cinco anos de prisão, para mais a aplicar por um único juiz, cuja competência usual se circunscreve ao julgamento de crimes dos quais não venha a resultar uma condenação superior a cinco anos de prisão no âmbito de tribunal colectivo ou de júri.
Não se olvida que o arguido sempre disporá do recurso da condenação em processo sumário. Porém, este constitui um remédio para os erros (um meio complementar de defesa) e não um novo julgamento, cujo decurso poderá estar inquinado pelo encurtamento da defesa do arguido, no âmbito de um processo em que a deliberação sobre as questões, além das incidentais ou prévias, da culpabilidade e da determinação da sanção foram realizadas, num quadro de uma pena máxima superior a cinco anos de prisão, por um único juiz, que, fora do processo sumário, não se compreendem na sua competência e estariam reservadas ao tribunal colectivo ou de júri.
Os casos de flagrante delito não conduzem, só por si, à existência de prova simples e evidentes, que aliviem as exigências probatórias da acusação e, muito menos, da defesa, que terá, mais das vezes, maior dificuldade em infirmar a factualidade que lhe é imputada e carecerá de acrescidas instâncias e diligências. De todo o modo, ainda que a questão da culpabilidade se apresente como relativamente pacífica, sempre a questão da determinação da sanção – que poderá ser superior a cinco anos de prisão – carece de uma exigente análise e de um juízo crítico dificilmente compaginável com a solidão do titular do processo sumário.
Portanto, com tal alteração do figurino do processo sumário, pretendeu-se tornar a justiça penal mais célere e eficaz também para crimes com pena máxima abstractamente aplicável superior a cinco anos de prisão, mas com desprotecção dos cidadãos, na medida em que estas situações não se compreendem, fora da norma em questão, na competência punitiva do juiz singular, mas apenas do tribunal colectivo ou de júri.
Somente se o Ministério Público lançar mão do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, limitando em concreto a pena máxima a aplicar a cinco anos de prisão, se afigura que, perante tais crimes (com pena máxima de abstractamente aplicável superior a cinco anos de prisão), o processo sumário proporcione uma adequada tutela do arguido.
Assim, deve considerar-se inconstitucional o artigo 381.º, n.º 1, do CPP na referida redacção, na interpretação em que é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação de pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, por violação dos princípios das garantias de defesa e de um processo equitativo previsto nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP.
Na situação vertente, considerando que o arguido é apresentado para julgamento sob a forma de processo sumário pela prática de crime com pena máxima abstractamente aplicável de 8 anos de prisão e o Ministério Público não limitou, nos termos do artigo 16.º, n.º 3, do CPP, a pena máxima a aplicar em concreto a cinco anos de prisão, entende-se ser de recusar a aplicação do artigo 381.º, n.º 1, do CPP na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro pela verificação da aludida inconstitucionalidade, com a consequente remessa dos autos ao Ministério Público.
Pelo exposto, o tribunal decide:
- Considerar inconstitucional o artigo 381.º, n.º 1, do CPP na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação em que é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação da pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, por violação dos princípios das garantias de defesa e de um processo equitativo previsto nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP, e recusar a sua aplicação ao caso vertente;
- Remeter os autos ao Ministério Público.»
5. Tendo prosseguido o processo para apreciação de mérito o recorrente apresentou alegações (cfr. fls 17 a 48) e concluiu no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, apresentando as seguintes Conclusões:
«(…)VII. Conclusões
61. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, nos presentes autos, do douto despacho judicial neles proferido, no qual
“(…) se recusou a aplicação dos ditames do artigo 381.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro, por entender ser contrária aos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa”.
62. Centrou-se, pois, o recurso do Ministério Público, na apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, na dimensão da sujeição a julgamento, por tribunal singular, de crimes cuja pena máxima de prisão, abstractamente aplicável, seja superior a cinco anos.
63. Julgou, o douto despacho impugnado, que a norma constante do n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal violaria o princípio do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na sua vertente de direito ao processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Todavia, segundo o nosso entendimento, no que à criação e à composição do tribunal interessa, para que seja assegurado o direito a um processo equitativo, é necessário que aquele seja independente, imparcial e que a sua criação tenha origem em acto legislativo, o que, no caso vertente, de tribunais singulares constituídos por juízes dotados de um estatuto constitucionalmente garantido de independência, imparcialidade, inamovibilidade e irresponsabilidade, estatuto igual ao dos seus pares integrantes dos tribunais colectivos, e cuja competência foi atribuída por acto normativo de órgão legislativo, se encontra adquirido.
64. Para além desta dimensão do direito a um processo equitativo, não se vislumbra, igualmente, que outras vertentes deste direito possam ser afectadas, ou violadas, pela sujeição a julgamento por juiz singular, de factos – essencialmente indistintos dos restantes factos avaliáveis pelo mesmo juiz – cuja consequência jurídico-penal possa ser a de condenação em prisão superior a cinco anos.
65. Já no que concerne à violação das garantias do processo criminal, plasmadas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, a questão não se pode colocar nos mesmos termos.
66. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 393/89, pronunciou-se, incidentalmente, sobre a diferença do julgamento feito por tribunal singular e por tribunal colectivo, dizendo que:
“Pois bem: é óbvio que o julgamento feito pelo tribunal singular oferece ao arguido menos garantias que aquele que é feito pelo tribunal colectivo, uma vez que – e antes de mais – aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e, assim, a possibilidade de uma decisão menos justa”.
67. Ora, ao perspectivarmos uma solução jurídica que - perante um sistema que institui uma estrutura judiciária (colectiva) mais garantística, destinada ao julgamento dos crimes mais graves, emergente da distinção entre pequena e média criminalidade, por um lado, e grande criminalidade, por outro – opta por atribuir à estrutura judiciária (singular) menos garantística, o julgamento de todos os crimes, inclusivamente dos mais graves previstos no Código Penal, afigura-se-nos estarmos perante um expediente desconforme com o princípio da proporcionalidade, princípio estruturante da ordem jurídica constitucional, nas suas dimensões da razoabilidade, da exigibilidade e da justa medida, apesar de insuficiente para, por si só, determinar a inconstitucionalidade da norma sob escrutínio.
68. Todavia, já não chegamos à mesma conclusão quando complementamos os princípios das garantias de defesa do arguido em processo criminal, com o princípio da igualdade plasmado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
69. A solução eleita pelo legislador, e plasmada no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, faz depender a atribuição da competência para o julgamento, no que concerne a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável seja superior a cinco anos, do facto incidental, e estranho ao objecto material do conhecimento do tribunal, da ocorrência de detenção em flagrante delito.
70. Ora, este facto, estranho à substância do litígio, acaba por determinar, que, de forma desigual e iníqua, factos da mesma natureza e gravidade, sejam julgados, distintamente, por um tribunal singular ou por um tribunal colectivo, conforme, respectivamente, o arguido tenha, ou não, sido detido em flagrante delito.
71. Atendendo a que, conforme defendemos anteriormente, o julgamento perante tribunal singular concede menores garantias de defesa ao arguido do que o julgamento perante tribunal colectivo, deparamo-nos com um tratamento, injustificadamente desigual, de duas situações substancialmente iguais (distintas, apenas, pela ocorrência da detenção em flagrante delito).
72. Rigorosamente, a nova redacção dada ao n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, ao permitir que um arguido - detido em flagrante delito pela prática de um crime ao qual seja, abstractamente, aplicável pena de prisão superior a cinco anos - seja julgado perante tribunal singular, não assegura a este arguido “todas as garantias de defesa”, uma vez que não lhe assegura o julgamento perante tribunal colectivo, o qual lhe seria assegurado caso não tivesse sido detido em flagrante delito.
73. Verifica-se, pois, a inconstitucionalidade da norma sob escrutínio, por violação do princípio da igualdade nas garantias do processo criminal, resultante da conjugação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, resultante da transgressão da dimensão de proibição do arbítrio, na medida em que o legislador ordinário decidiu tratar desigualmente (com injustificada diminuição das garantias de defesa do arguido) situações que, substancialmente, se representam iguais.
74. Consequentemente, há que concluir que a norma ínsita n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, de 17 de Janeiro, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, não viola o princípio do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na sua vertente de direito ao processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
75. Contudo, tal norma - contida no n.º 1 do artigo 381.º do Código de Processo Penal, de 17 de Janeiro -, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, viola, conjugadamente, o princípio da igualdade, plasmado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, com o das garantias de defesa do arguido em processo criminal, previsto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
6. Notificado para apresentar alegações, o recorrido não contra-alegou (cfr. fls. 50).
7. Tendo em conta o supra exposto, a questão de constitucionalidade sobre a qual este Tribunal é chamado a pronunciar-se, no âmbito da fiscalização concreta, é a de saber se o artigo 381.º, n.º 1, do CPP na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, «na interpretação em que é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação da pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP» viola a Constituição da República Portuguesa e, em concreto, os seus artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1, e 13.º.
8. A questão de constitucionalidade material que constitui objecto dos presentes autos e que ora se pretende ver sindicada, relativa à norma do artigo 381.º, n.º 1, do CPP, na interpretação segundo a qual o processo sumário nela previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, foi já objeto de apreciação por este Tribunal, pelo Acórdão n.º 428/13, de 15 de julho de 2013, desta 3ª Secção (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Neste Acórdão decidiu-se «(…) julgar inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição» (cfr. III, a)).
Na fundamentação deste Acórdão pode ler-se:
«(…)II – Fundamentação
2. Pela sentença recorrida, o tribunal judicial de primeira instância, intervindo em juiz singular, julgou inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação de que podem ser julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito por crime cuja pena máxima abstratamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão, por violação dos princípios das garantias de defesa e de um processo equitativo previstos nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição.
A norma em causa, que se encontra inserida no Título I do Livro VIII do CPP, referente aos processos especiais na modalidade de processo sumário, na redação resultante da Lei n.º 20/2013, é do seguinte teor:
1 - São julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito, nos termos dos artigos 255.º e 256.º:
a) Quando à detenção tiver procedido qualquer autoridade judiciária ou entidade policial; ou
b) Quando a detenção tiver sido efetuada por outra pessoa e, num prazo que não exceda duas horas, o detido tenha sido entregue a uma autoridade judiciária ou entidade policial, tendo esta redigido auto sumário da entrega.
2 - O disposto no número anterior não se aplica aos detidos em flagrante delito por crime a que corresponda a alínea m) do artigo 1.º ou por crime previsto no título III e no capítulo I do título v do livro II do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.
Deve começar por notar-se que na versão inicial do CPP o processo sumário era aplicável aos detidos em flagrante delito por crime punível com pena até três anos de prisão, se fossem maiores de 18 anos à data do facto e a detenção fosse realizada por autoridade judiciária ou entidade policial. O julgamento devia ter lugar dentro de 48 horas após a detenção ou, sendo adiado, até cinco depois da data da detenção.
A Lei n.° 59/98, de 25 de agosto, suprimiu o requisito da idade mínima e permitiu o julgamento em processo sumário mesmo em relação a detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a três anos, quando o Ministério Público entendesse que não deveria ser aplicada, em concreto, pena superior a esse limite. Por outro lado, o julgamento podia ser adiado até ao trigésimo dia posterior ao dia da detenção.
A Lei n.° 48/2007, de 29 de agosto, alargou, de novo, o âmbito de aplicação do processo sumário, que passou a ter lugar em relação a detidos em flagrante delito por crime punível com pena até cinco anos de prisão, mesmo em caso de concurso de crimes, e ainda com pena superior a cinco anos de prisão quando o Ministério Público, na acusação, entendesse que não devia ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos, estendendo-se além disso às situações de detenção pela autoridade judiciária ou entidade policial e de detenção por qualquer pessoa se o detido for entregue no prazo de 2 horas àquela autoridade ou entidade.
A Lei n.º 20/2013 veio proceder a um novo alargamento do âmbito de aplicação do processo sumário, por força da nova redação dada ao artigo 381º, remetendo para essa forma de processo o julgamento de detidos em flagrante delito, sem qualquer especificação quanto ao limite da pena aplicável (n.º 1), excecionando apenas os crimes que constituem criminalidade altamente organizada, os crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os crimes contra a segurança do Estado e os relativos à violação do Direito Internacional Humanitário (n.º 2). A ampliação, nesses termos, do âmbito do julgamento em processo sumário determinou igualmente modificações na repartição de competências entre os tribunais penais. A competência do tribunal coletivo, que estava circunscrita (para além dos casos já ressalvados no n.º 2 do artigo 381º) a crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa ou cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a cinco anos de prisão, passou a ser preterida pela intervenção do juiz singular, quando o crime deva ser julgado em processo sumário nos termos do n.º 1 desse artigo, mesmo quando a pena abstratamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão (artigos 14º, n.º 2, e 16º, n.º 2, alínea c), do CPP). Manteve-se, no entanto, a possibilidade de o julgamento de detidos em flagrante delito poder ser efetuado pelo tribunal de júri relativamente a crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a oito anos de prisão, quando essa intervenção tenha sido requerida pelo Ministério Público, pelo arguido ou pelo assistente (artigos 13.º, n.º 2, e 390.º, n.º 1, alínea b)).
3. Tradicionalmente, a utilização do processo sumário em matéria penal surge associada à pequena e média criminalidade e mostra-se justificada pela verificação imediata dos factos através da detenção do agente em flagrante delito, o que permite dispensar outras formalidades e mais largas investigações que normalmente teriam lugar através das fases de inquérito e de instrução, no âmbito do processo comum (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, Os processos sumário e sumaríssimo ou a celeridade e o consenso, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6º, Outubro-Dezembro de 1996, pág. 527).
O progressivo alargamento do âmbito de aplicação do processo sumário, mediante a elevação do limite da pena aplicável ao crime cometido em flagrante delito que pode ficar abrangido por essa forma de processo, é, por outro lado, explicável por uma lógica de produtividade e de eficácia, mas também de justiça, que têm como fundamento a exigência de celeridade processual. Tratar-se-á de um mecanismo norteado pela maximização da eficácia, otimização da reação político-criminal e descongestionamento dos tribunais (HENRIQUES GASPAR, Processos especiais, in «Jornadas de Direito Processual Penal. O novo Código de Processo Penal», Centro de Estudos Judiciários, Coimbra, 1993).
É nessa mesma linha de política legislativa que se enquadra a nova alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, que na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII – que originou a aprovação desse diploma – é justificada simplesmente nestes termos:
A possibilidade de submeter os arguidos a julgamento imediato em caso de flagrante delito possibilita uma justiça célere que contribui para o sentimento de justiça e o apaziguamento social. Atualmente, a lei apenas possibilita que possam ser julgados em processo sumário, ou os arguidos a quem são imputados crime ou crimes cuja punição corresponda a pena de prisão não superior a cinco anos ou quando, ultrapassando a medida abstrata da pena esse limite, o Ministério Público entenda que não lhes deve ser aplicada pena superior a cinco anos de prisão. Contudo, não existem razões válidas para que o processo não possa seguir a forma sumária relativamente a quase todos os arguidos detidos em flagrante delito, já que a medida da pena aplicável não é, só por si, excludente desta forma de processo.
Impunha-se, assim, uma alteração legislativa que contemplasse esta possibilidade
4. A primeira questão de constitucionalidade que o novo critério legal definido para o âmbito do julgamento em processo sumário coloca é o das garantias de defesa do arguido.
Nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 516). O n.º 2 do mesmo artigo, que associa o princípio da presunção da inocência do arguido à obrigatoriedade do julgamento «no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa» (n.º 2, in fine), tem subjacente o direito a um processo célere, partindo da perspetiva de que a demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coação sobre o arguido, acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência (idem, pág. 519).
No entanto, o princípio da aceleração de processo – como decorre com evidência do segmento final desse n.º 2 – tem de ser compatível com as garantias de defesa, o que implica a proibição do sacrifício dos direitos inerentes ao estatuto processual do arguido a pretexto da necessidade de uma justiça célere e eficaz (ibidem).
As exigências de celeridade processual não podem, por conseguinte, deixar de ser articuladas com as garantias de defesa, sendo que a Constituição, por força do mencionado n.º 2 do artigo 32º, valora especialmente a proteção das garantias de defesa em detrimento da rapidez processual. O que permite definir a forma ideal de processo como o resultado de uma tensão dialética entre esses dois fins constitucionalmente garantidos (ALEXANDRE DE SOUSA PINHEIRO/PAULO SARAGOÇA DA MATTA, Algumas notas sobre o processo penal na forma sumária, Revista do Ministério Público, ano 16º, Julho-setembro de 1995, n.º 63. pág. 160).
5. A forma de processo sumário corresponde a um processo acelerado quanto aos prazos aplicáveis e simplificado quanto às formalidades exigíveis.
Como princípio geral, vigora a redução dos atos e termos do julgamento ao mínimo indispensável ao conhecimento e boa decisão da causa (artigo 386.º, n.º 2).
Como decorrência desse critério geral, as especificidades do regime processual consignadas nos artigos 382º e seguintes do CPP refletem algumas limitações quanto à possibilidade de adiamento da audiência de julgamento, ao uso dos meios de prova e aos prazos em que a prova poderá ser realizada, e ainda em matéria de recursos, além de que preconizam o abandono do ritualismo de certos atos processuais em benefício de uma maior acentuação do caráter de oralidade.
O início da audiência de julgamento tem lugar no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, podendo ser protelado até ao limite do 5.º dia posterior à detenção, quando houver interposição de um ou mais dias não úteis, até ao limite do 15.º dia posterior à detenção, nos casos previstos no n.º 3 do artigo 384.º ou até ao limite de 20 dias após a detenção, sempre que o arguido tiver requerido prazo para preparação da sua defesa ou o Ministério Público julgar necessária a realização de diligências essenciais à descoberta da verdade (artigo 387.º, n.ºs 1 e 2).
As testemunhas são sempre a apresentar, salvo quando haja lugar a novas diligências de prova e tenham sido notificadas pelo MP, sendo que a falta de testemunhas não dá lugar a adiamento da audiência, exceto se o juiz considerar o depoimento imprescindível para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (artigo 387.º, n.ºs 3, 4 e 7).
A produção de prova está sujeita a limites temporais (artigo 387.º, n.ºs 9 e 10).
O Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção, exceto em caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infrações cujo limite máximo seja superior a 5 anos de prisão, situação em que deverá apresentar acusação (artigo 389.º, n.º 1).
A sentença é proferida oralmente, salvo se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excecionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, caso em que o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura (artigo 398º, n.ºs 1 e 5).
Só é admissível recurso da sentença ou de despacho que puser termo ao processo (artigo 391.º, n.º 1), sendo que, por contraposição com os acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões condenatórias do juiz singular ainda que apliquem pena de prisão superior a 5 anos (artigo 432.º, alínea c)).
6. Como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias de defesa do que um julgamento em tribunal coletivo, desde logo porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa (entre outros, os acórdãos n.ºs 393/89 e 326/90). E por razões inerentes à própria orgânica judiciária, o tribunal singular será normalmente constituído por um juiz em início de carreira com menor experiência profissional, o que poderá potenciar uma menor qualidade de decisão por confronto com aquelas outras situações em que haja lugar à intervenção de um órgão colegial presidido por um juiz de círculo.
Daí que a opção legislativa pelo julgamento sumário deva ficar sempre limitada pelo poder condenatório do juiz definido em função de um critério quantitativo da pena aplicar, só assim se aceitando – como a jurisprudência constitucional tem também sublinhado – que não possa falar-se, nesse caso, numa restrição intolerável às garantias de defesa do arguido.
Acresce que a prova direta do crime em consequência da ocorrência de flagrante delito, ainda que facilite a demonstração dos factos juridicamente relevantes para a existência do crime e a punibilidade do arguido, poderá não afastar a complexidade factual relativamente a aspetos que relevam para a determinação e medida da pena ou a sua atenuação especial, mormente quando respeitem à personalidade do agente, à motivação do crime e a circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto que possam diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
E estando em causa uma forma de criminalidade grave a que possa corresponder a mais elevada moldura penal, nada justifica que a situação de flagrante delito possa implicar, por si, um agravamento do estatuto processual do arguido com a consequente limitação dos direitos de defesa e a sujeição a uma forma de processo que envolva menores garantias de uma decisão justa.
Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. Tanto mais que mesmo o processo comum, quando aplicável a crimes a que corresponda pena de prisão superior a cinco anos, dispõe já de mecanismos de aceleração processual por efeito dos limites impostos à duração de medidas de coação que, no caso, sejam aplicáveis (artigos 215.º e 218.º do CPP).
A solução legal mostra-se, por isso, violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.».
9. Afigura-se ser de acolher, também no caso vertente, um tal entendimento, o qual não fica prejudicado pelo diferente enunciado – com um âmbito mais restrito – da interpretação normativa objecto dos presentes autos.
No caso em apreço, a interpretação normativa sindicada difere da interpretação normativa apreciada no Acórdão n.º 428/13 por levar em consideração a não utilização, pelo Ministério Público, do mecanismo de limitação de pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP.
Ora a não utilização, pelo Ministério Público, da possibilidade de limitar a pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão, determina o mesmo efeito – a aplicabilidade do processo sumário previsto no artigo 381º, nº 1, do CPP a crimes cuja pena máxima abstratamente (e em concreto) aplicável seja superior a cinco anos de prisão, prescindindo o legislador da limitação do poder condenatório do juiz (singular) em função de um critério quantitativo da pena a aplicar – da interpretação normativa que determinou o juízo de inconstitucionalidade no caso julgado pelo Acórdão n.º 428/13, face à ponderação de valores em presença – o princípio da celeridade processual e as garantias de defesa do arguido. Conclui-se, assim, pela identidade substancial quer do objeto normativo sindicado quer dos padrões valorativos convocados, o que não pode deixar de se refletir no sentido da decisão dos presentes autos.
Pelo que, pelas razões enunciadas no Acórdão n.º 428/13, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, se formula idêntico juízo de inconstitucionalidade.
III – Decisão
10. Pelo exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, sem que o Ministério Público tenha utilizado o mecanismo de limitação de pena a aplicar em concreto a um máximo de cinco anos de prisão previsto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição;
e, em consequência,
b) negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 13 de agosto de 2013. – Maria José Rangel de Mesquita – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral