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Processo n.º 665/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. interpôs recurso de constitucionalidade, com fundamento nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida simplesmente como “LTC”) do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de fevereiro de 2013 que rejeitou a arguição de nulidades que havia deduzido (fls. 572 e seguintes), mantendo-se, por conseguinte, a anterior condenação do réu, em forma solidária, no pagamento à autora da quantia de €85000,00, a título de indemnização.
Pelo despacho de fls. 606 e seguintes, proferido em 15 de maio de 2013, o Conselheiro relator no Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso de constitucionalidade com os seguintes fundamentos:
« […]
Está, alegadamente, em causa, segundo o réu, como fundamento do recurso, a aplicação de normas cuja inconstitucionalidade só não foi suscitada durante o processo, em virtude de a situação apenas resultar patente, na sequência da prolação do acórdão de folhas 501 e seguintes, por, anteriormente, não ter acontecido a decisão positiva de inconstitucionalidade normativa.
Porém, confrontado com o teor do aludido acórdão principal de folhas 501 e seguintes, o réu veio requerer a declaração da sua nulidade, a folhas 549 e seguintes, não invocando qualquer uma das violações por inconstitucionalidade normativa que agora reclama.
Ora, não tendo o réu suscitado, no aludido requerimento anulatório do acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, qualquer uma das mencionadas questões, inexiste fundamento legal para a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, não se recebe o recurso interposto pelo réu, através do requerimento de folhas 582, dirigido ao Tribunal Constitucional.»
Inconformado, o recorrente vem agora reclamar nos termos seguintes:
«1.º O recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto para fiscalização concreta da inconstitucionalidade da interpretação dada no douto Acórdão do STJ quanto à qualificação jurídica dos factos provados nas instâncias.
2.º Foram indicadas as normas cuja interpretação não está conforme a constituição.
3.º Não poderia nunca nas Instâncias ser relevada a inconstitucionalidade porquanto o recorrente viu ser-lhe sucessivamente favorável a decisão nas Instâncias pelo que nem sequer delas podia recorrer.
4.º Só com o Acórdão do STJ a questão da inconstitucionalidade se coloca, logo,
Requer a admissão do recurso por legal, admissível, tempestivo.
Assim, no requerimento anulatório do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça já o recorrente alegava e suscitava a ilegalidade manifesta do Acórdão por violação da lei e da constituição, já que subtraía à dupla jurisdição a questão da qualificação da interpretação dada pelo Supremo Tribunal na qualificação jurídica dos factos que ficaram provados nas instâncias. É que ao ver do recorrente a qualificação do acidente como acidente de viação havia já transitado em julgado sendo portanto matéria não sujeita à reapreciação do STJ. Está assim aberto o campo para a fiscalização concreta da ilegalidade do Acórdão por violação da norma constitucional que concede aos recorrentes a dupla jurisdição.
Devem assim os Autos subir ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional por considerar inconstitucional a interpretação dada no Acórdão ao disposto no nº 3 do artigo 721 do CPC por considerar fora do âmbito temporal de vigência que resulta do DL nº 303/2007 e bem assim por considerar inconstitucional a interpretação dada no Acórdão de que compete ao STJ a qualificação jurídica dos factos que ficarem provados nas Instâncias.
Foram violadas as normas constantes do nº 3 do artigo 721º do CPC e artigo 729º nº 1 e nº 2 do Código Civil, já que o recorrente crê que a interpretação conforme à constituição é a de que tendo as duas Sentenças conformes (Sentença e Acórdão) sido proferidas após a entrada em vigor do DL 303/2007, deve ser-lhes aplicado o disposto no nº 3 do artigo 721º do CPC».
2. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de a reclamação não dever merecer provimento, uma vez que, conforme decidido pelo despacho reclamado, no requerimento de arguição de nulidades (fls. 549 e seguintes) não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade.
Cumpre apreciar e decidir
II. Fundamentação
3. Em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da LTC – como é a presente – cumpre sindicar a admissibilidade do recurso de constitucionalidade que, nos autos, foi rejeitada pelo tribunal a quo.
4. No caso dos presentes autos, o recurso de constitucionalidade integra, no seu objeto, duas questões: (i) a interpretação dada no Acórdão ao disposto no n.º 3 do artigo 721 do CPC por considerar fora do âmbito temporal de vigência que resulta do DL nº 303/2007; e (ii) a interpretação dada no Acórdão de que compete ao STJ a qualificação jurídica dos factos que ficaram provados nas instâncias (cfr. fls. 582). A impugnação vem deduzida ao abrigo do disposto nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
4.1. Comece-se já por explicitar que não é admissível o recurso interposto ao abrigo da mencionada alínea a) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, uma vez que não se vislumbra nos autos qualquer recusa judicial de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade.
4.2. Vejamos agora se o recurso deduzido com base na alínea b) reúne os pressupostos necessários a uma pronúncia sobre o respetivo mérito. Trata-se, como se sabe, de recurso de constitucionalidade que tem por objeto imediato as decisões judiciais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O objeto mediato deste recurso será, por conseguinte, uma norma ou, como a jurisprudência constitucional tem reiteradamente admitido, uma determinada interpretação normativa. A inconstitucionalidade – normativa – há-de ter sido suscitada durante o processo, isto é, como resulta também do acervo jurisprudencial já consolidado, antes que seja proferida a decisão final pelo tribunal a quo. Uma vez proferida a decisão, - e, consequentemente, uma vez extinto o poder jurisdicional do juiz recorrido (nos termos do disposto no artigo 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – redação de 2013) -, a eventual posterior suscitação de inconstitucionalidade já não releva como sendo atempada, para efeitos da exigência constante dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
É certo, contudo, que este requisito pode por vezes ser considerado dispensável para efeitos de admissão do recurso. Tal sucede quando se comprova que, em concreto, por algum motivo, o recorrente não teve oportunidade de colocar o problema de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, de modo a que este pudesse tomar a sua posição, decidindo-o. Nos presentes autos, o recorrente invocou, precisamente, em requerimento posterior à interposição do recurso mas anterior à decisão ora reclamada de não admissão do mesmo, que «[s]ó com o Acórdão do STJ a questão se coloc[ou]» (cfr. fls. 603). Este argumento não foi, no entanto, acolhido pelo tribunal recorrido, o qual entendeu que a questão deveria, então, ter sido colocada no momento em que o recorrente arguiu nulidades da decisão recorrida. Cumpre pois debruçarmo-nos sobre este problema da (in)tempestevidade da suscitação da inconstitucionalidade.
5. Face ao teor percetível da invocação subjacente à primeira questão de constitucionalidade suscitada – relacionada com a aplicação, in casu, do princípio da dupla conforme que, nos termos da redação do artigo 721.º, n.º 3, do Código de Processo Civil resultante da aprovação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto – não procede, como pretende o recorrente, qualquer motivo que pudesse dispensá-lo do ónus de suscitação da questão durante o processo. Sendo essa a redação do preceito em vigor à data da interposição do recurso, o recorrente não poderia deixar de antever que, previsivelmente, o regime a aplicar pelo Supremo Tribunal de Justiça na tramitação do recurso deduzido do acórdão da Relação, seria o regime recursório anterior, face ao regime transitório previsto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, nos termos do qual as respetivas disposições «não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.»
A dispensa do ónus da suscitação da inconstitucionalidade durante o processo apenas procede perante situação de objetiva inexigibilidade desse cumprimento, o que não ocorre quando, caso o recorrente tivesse adotado, como lhe compete, uma estratégia processual minimamente cautelosa, lhe teria sido possível antecipar a hipótese de aplicação de certa norma num sentido por si considerado inconstitucional. Uma tal cautela impõe, nomeadamente, o ónus de antecipação dos vários sentidos possíveis das normas aplicáveis, como tem reiteradamente afirmado a jurisprudência deste Tribunal Constitucional. E este ónus de antecipação exige que a colocação (prévia) da inconstitucionalidade seja feita nos moldes exigidos de adequação processual, se se quiser que a mesma seja tida em consideração para efeitos da interposição de um eventual e posterior recurso de constitucionalidade. O que significa que a mesma deve obedecer aos termos previstos nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, traduzindo-se na suscitação de uma inconstitucionalidade normativa em moldes processualmente adequados. O que in casu não sucedeu, como o próprio reclamante expressamente reconhece.
6. Resta ainda assinalar que, mesmo que fosse dispensável, em concreto, a suscitação atempada da inconstitucionalidade normativa, sempre a mesma deveria ter sido arguida no momento correspondente à arguição de nulidades da decisão, como bem observou o tribunal a quo. E isto vale em relação às duas questões de constitucionalidade em causa nos presentes autos. A dispensabilidade de tal ónus só procede quando, em coerência com a diligência exigível ao recorrente, o mesmo aproveita a primeira oportunidade processual disponível para proceder à suscitação da inconstitucionalidade (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 355/93 e 612/99, disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). O que não sucedeu no presente caso.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de setembro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro