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Processo n.º 239/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Após julgamento, em processo comum com intervenção de tribunal singular, por decisão final transitada em julgado em 5 de maio de 2008, o arguido A. foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.°, n.°s 1 e 2, do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de janeiro, e 122.°, n.° 1, do Código da Estrada, na pena de 6 meses de prisão, a cumprir por dias livres, em 36 períodos de 36 horas cada período, entre as 9.00 horas de sábado e as 21.00 horas de domingo, nos termos previstos no artigo 45.° do Código Penal.
Em despacho lavrado no dia 11 de fevereiro de 2009, determinou-se o cumprimento do disposto no artigo 487.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, e fixou-se, como início da execução do regime imposto, o dia 13 de março de 2009.
Devido ao arguido não se ter apresentado neste dia para cumprir a pena foi emitido novo despacho, que alterou o regime de prisão por dias livres em moldes tais que o cumprimento de cada período de 36 horas, com início em 24 de julho de 2009, deveria ocorrer entre as 9.00 horas de sexta-feira e as 21.00 horas de sábado.
O arguido veio requerer a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade.
A pretensão do arguido mereceu despacho de indeferimento, datado de 22 de julho de 2009.
O arguido interpôs recurso desta decisão, ao qual foi fixado efeito suspensivo, o qual foi rejeitado, através de decisão sumária proferida em 23 de setembro de 2009 no Tribunal da Relação de Coimbra.
Como o arguido não se apresentou no Estabelecimento Prisional na data anteriormente determinada, nem posteriormente, foi proferido despacho que designou o dia 13 de novembro de 2009 para cumprimento da pena.
Como o arguido voltou a não se apresentar para cumprir a pena na data fixada, foi proferido despacho em 17 de outubro de 2011, ao abrigo do disposto no artigo 488.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, determinando que o arguido cumprisse a pena de 6 meses de prisão em regime contínuo.
O arguido interpôs recurso deste despacho, ao qual foi atribuído efeito suspensivo, tendo o recurso sido julgado improcedente, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 23 de maio de 2012.
Em 15 de junho de 2012, o arguido requereu que fosse declarada extinta a pena que lhe foi aplicada.
Foi proferido despacho em 26 de junho de 2012, indeferindo o requerido.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido em 30 de janeiro de 2013, negou provimento ao recurso.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, tendo esclarecido, após convite que lhe foi dirigido, que pretendia que fosse fiscalizada a constitucionalidade da norma constante do artigo 125.º, n.º 1, a), do Código Penal, no sentido de que os recursos interpostos durante o prazo de prescrição da pena, ainda que lhes tenha sido atribuído efeito suspensivo, têm o efeito de suspender o prazo de prescrição da pena aplicada, por violação do disposto no artigo 2.º, da Constituição.
O Recorrente apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“1/ A pena de prisão de 6 meses a executar em regime de dias livres, aplicada ao condenado, é uma pena principal, para efeitos do início do prazo de prescrição de 4 anos contemplado no artigo 122.º n.º 1 alínea d) do CP.
2/ Aquele prazo inicia-se com o trânsito em julgado da sentença de condenação e não se suspende por efeito dos recursos que o condenado interpôs durante aquele período de 4 anos em que o Estado tinha o interesse e o dever em promover a sua execução.
3/ A conversão da execução daquela pena em regime contínuo não faz renascer um novo prazo de prescrição de 4 anos.
4/ O princípio da certeza e segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, impõem ao Estado o dever de executar as penas privativas da liberdade em certo prazo sob pena de perder o interesse na sua execução.
5/ Tal prazo, fixado pelo legislador ordinário, não pode ser suspenso só porque o condenado interpôs recursos contra decisões jurisdicionais durante aquele prazo, sob pena do condenado ficar refém do Estado quanto à oportunidade em executar a sentença.
6/ Tais recursos não impediam ou obstavam ao início da execução da pena de prisão em regime de dias livres ou a sua conversão em regime contínuo.
7/ O Tribunal da Relação de Coimbra ao ter entendimento diferente do perfilhado nestas conclusões interpretou e aplicou a norma jurídica prevista no artigo 125.º n.º 1 alínea a) do CP que viola o artigo 2.º da CRP.
TERMOS EM QUE deve ser julgado procedente, por provado, o presente recurso declarando-se a inconstitucionalidade do artigo 125.º n.º 1 alínea a) do CP, por ofender os princípios jurídicos da certeza e segurança jurídica ínsitos no princípio do Estado de Direito Democrático previsto no artigo 2.º da CRP, quando interpretado no sentido em que a interposição de recurso pelo condenado durante o prazo de prescrição da pena suspende esta e ainda interpretado no sentido de que a conversão da pena de prisão em regime de dias livres em regime contínuo faz renascer um novo prazo de prescrição.
O Ministério Público apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
1. Os recursos interpostos pelo arguido de decisões que tenham a ver com o cumprimento da pena de substituição – os quais têm efeito suspensivo – obstam ao cumprimento daquela pena.
2. A norma do artigo 125.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na interpretação segundo a qual o prazo de prescrição daquela pena se suspende na pendência desses recursos, não viola o artigo 2.º da Constituição.
3. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.”
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Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso, após convite a esclarecimento, indicou como norma, cuja constitucionalidade pretendia ver fiscalizada, a constante do artigo 125.º, n.º 1, a), do Código Penal, no sentido de que os recursos interpostos durante o prazo de prescrição da pena, ainda que lhes tenha sido atribuído efeito suspensivo, têm o efeito de suspender o prazo de prescrição da pena aplicada, por violação do disposto no artigo 2.º, da Constituição.
Mas nas alegações do recurso estendeu esse pedido à interpretação do mesmo preceito legal, no sentido de que a conversão da pena de prisão em regime de dias livres para regime contínuo, faz renascer um novo prazo de prescrição.
Ora, o objeto do recurso constitucional é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Não sendo, pois, permitida uma ampliação do objeto do pedido na fase de alegações, deve este restringir-se à norma indicada no requerimento de interposição de recurso.
A redação proposta pelo Recorrente deve contudo ser precisada quanto ao objeto dos recursos interpostos durante o prazo de prescrição da pena, de modo a conferir-lhe uma melhor inteligibilidade perante os fundamentos da decisão recorrida.
Assim, a norma cuja constitucionalidade será fiscalizada neste recurso será a constante do artigo 125.º, n.º 1, a), do Código Penal, no sentido de que os recursos interpostos durante o prazo de prescrição da pena, ainda que lhes tenha sido atribuído efeito suspensivo sobre as decisões recorridas relativas ao cumprimento daquela, têm o efeito de suspender o prazo de prescrição da pena aplicada.
2. Do mérito do recurso
No artigo 122.º do Código Penal prevê-se a extinção das penas por prescrição.
O legislador entendeu que, decorrido um determinado lapso de tempo após o trânsito em julgado da decisão que determinou a aplicação duma pena, o qual varia proporcionalmente à gravidade desta, sem que se tenha iniciado o seu cumprimento, as finalidades visadas com a sua imposição esfumam-se, perdendo sentido o seu cumprimento. Seguindo o pensamento de Figueiredo Dias (em “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, pág. 699, da ed. de 1993, da Aequitas), com o decurso do tempo, além do enfraquecimento da censura comunitária presente no juízo de culpa, por um lado, perdem importância as razões de prevenção especial, desligando-se a sanção das finalidades de ressocialização ou de segurança. Por outro lado, também do ponto de vista da prevenção geral positiva se justifica o instituto da prescrição. Com o correr do tempo sobre a fixação da pena, vai perdendo consistência a prossecução do efeito desta de afirmação contrafáctica das expectativas comunitárias sobre a vigência da norma, já apaziguadas ou definitivamente frustradas. Em associação com a ideia de que à intervenção penal deve ser reservado um papel de ultima ratio, só legitimada quando ainda se mantenha a necessidade de assegurar os seus objetivos, justifica-se que o Estado não aplique a pena fixada, transcorrido que seja o período de tempo legalmente determinado.
Pode dizer-se, por isso, que a prescrição das penas é uma exigência do princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade. Dado que o direito penal utiliza como sanções os meios mais onerosos para os direitos e as liberdades, designadamente o direito à liberdade, ele só deve intervir quando haja uma carência absoluta de tutela penal para a proteção de um determinado bem jurídico. Ora, quando o tempo decorrido torna desnecessário o cumprimento da pena, deve o instituto da prescrição atuar de modo a impedir que ela aconteça.
A prescrição das penas funciona, assim, como um pressuposto negativo da punição, sendo apontado a este instituto uma natureza mista, substantiva e processual, que leva a que as normas que integram o seu regime sejam qualificadas como normas processuais materiais (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit, pág. 702, da ed. de 1993, da Aequitas, e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, em “Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 383, da 2.ª ed., da Universidade Católica Editora).
Contudo, tal como sucede com a prescrição do procedimento criminal, nos artigos 125.º e 126.º do Código Penal tipificam-se várias situações de suspensão e interrupção da contagem dos prazos de prescrição estabelecidos no artigo 122.º, do mesmo diploma.
Na verdade o mero decurso de um determinado período de tempo não é suficiente para que se conclua pelo apagamento das finalidades da pena. Como diz Figueiredo Dias (ob. cit., pág. 708), o decurso do tempo não deve favorecer o agente quando a pretensão punitiva do Estado é confirmada através de certos atos de perseguição penal ou quando a situação é tal que exclua a possibilidade daquela perseguição. Há circunstâncias ou situações que determinam a suspensão e a interrupção do prazo de prescrição das penas e que se encontram enumeradas, respetivamente, nos artigos 125.º e 126.º do Código Penal.
Na alínea a), do n.º 1, do referido artigo 125.º, prevê-se que os prazos de prescrição das penas se suspendam quando, por força da lei, a sua execução não se possa iniciar ou continuar a ter lugar.
Com esta causa de suspensão relevam-se as condicionantes legais que possam impedir o início ou a continuação do cumprimento da pena. Designadamente, a necessidade do prosseguimento, por imposição da própria lei, de um determinado programa processual que é incompatível com o simultâneo cumprimento da pena, justifica que, durante o respetivo período, não conte o prazo de prescrição estabelecido. Nessas situações, o tempo que corre não é fator de esquecimento da pena, antes mantém viva a sua existência, por força da pendência ativa desse procedimento conducente à sua execução, mas impeditivo do seu início ou continuação.
Ao abrigo do referido preceito legal, o acórdão impugnado sustentou que tendo sido interpostos recursos no período de prescrição da pena, com efeito suspensivo sobre as decisões recorridas relativas ao cumprimento daquela, durante a pendência desses recursos se suspendia o decurso do prazo de prescrição da pena.
Não compete a este tribunal sindicar a correção do juízo que subsumiu esta situação à causa de suspensão da prescrição da pena prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 125.º, do Código Penal, sendo certo que a interpretação efetuada não convoca a intervenção do princípio da legalidade penal, desde logo porque estamos perante um mero problema de subsunção de um conjunto de factos a um determinado tipo legal, não podendo este tribunal transformar-se em instância revisora dessa operação subsuntiva. Ao Tribunal Constitucional compete apenas verificar se aquela interpretação normativa sustentada pela decisão recorrida viola qualquer outro parâmetro constitucional, designadamente o princípio da proporcionalidade, enquanto reportado à necessidade do cumprimento da pena, não fazendo aqui sentido o confronto com o princípio da segurança jurídica, presente no modelo do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º, da Constituição, como pretende o Recorrente.
Após o trânsito em julgado da decisão proferida em processo criminal que condenou o arguido numa determinada pena, pode seguir-se todo um conjunto de atos pré-ordenado e sequencial conducente à efetivação da condenação, o qual não deixará ainda de respeitar as garantias de defesa do condenado, nas quais se inscreve o direito ao recurso, o que, nos casos em que este tenha efeito suspensivo, acarreta necessariamente um estado de pendência do respetivo processo, durante um período mais ou menos alargado, que impossibilita a execução da pena.
Assim, a justificação da causa de suspensão do prazo prescricional em apreço durante esse período em que não é possível, por força do regime legal vigente, iniciar-se o cumprimento da pena, encontra-se nesse estado de pendência do procedimento conducente à efetivação da pena em que o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado, o qual impossibilita o inicio do seu cumprimento. Não se trata de sancionar qualquer comportamento, mormente de sujeitos processuais, mas de considerar no domínio prescricional esse período como um tempo em que permanecem vivas e atuantes as finalidades da pena.
No caso sub iudicio, em que o arguido havia sido condenado numa pena de prisão a cumprir por dias livres, por decisão transitada em julgado, no processamento subsequente destinado à efetivação da pena fixada, previsto nos artigos 487.º e 488.º, do Código de Processo Penal (este último preceito foi entretanto revogado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro), foram proferidas decisões das quais o arguido interpôs recurso com efeito suspensivo, o que motivou um prolongamento do estado de pendência daquele processamento que impediu o início do cumprimento da pena, tendo a decisão recorrida sustentado que durante esse período se suspendeu o decurso do prazo de prescrição da pena.
Ora, a suspensão do prazo de prescrição da pena nestas situações beneficia da explicação acima apresentada, ou seja a de que durante esse tempo as finalidades da pena não se esfumam, antes mantém viva a sua existência, por força da pendência ativa do processo conducente à sua execução, pelo que a interpretação sindicada não se revela excessiva face à garantia substantiva subjacente ao instituto da prescrição, não merecendo censura perante o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.
Por esta razão deve o recurso interposto ser julgado improcedente.
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Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 125.º, n.º 1, a), do Código Penal, interpretado no sentido de que os recursos interpostos durante o prazo de prescrição da pena, ainda que lhes tenha sido atribuído efeito suspensivo sobre as decisões recorridas relativas ao cumprimento daquela, têm o efeito de suspender o prazo de prescrição da pena aplicada.
e, em consequência,
b) julgar o recurso improcedente.
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de Setembro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro