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Processo n.º 898/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente a A., Ld.ª e são recorridos B., S.A., o Instituto da Segurança Social, I.P., a Fazenda Nacional e outros, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 14 de junho de 2012.
2. Em 6 de dezembro de 2010, a recorrente apresentou à assembleia de credores proposta de plano de insolvência. Votada a proposta, a mesma foi julgada aprovada, nos termos do artigo 212.º, n.º 1, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (fl. 122 e s.).
Em 26 de outubro de 2011, o tribunal de 1.ª instância homologou por sentença o plano de insolvência apresentado (fl. 124). O Instituto da Segurança Social, I.P. interpôs, então, recurso desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, que julgou procedente a apelação e, consequentemente, revogou a sentença recorrida, substituindo-a por outra que declare não homologado o plano de insolvência (fl. 176 e ss.)
Deste acórdão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, através do acórdão ora recorrido, confirmou a decisão do Tribunal da Relação do Porto. Para o que agora releva, com a seguinte fundamentação:
«A - Inconstitucionalidade das normas ínsitas no nº3 do artigo 30º da Lei Geral Tributária (LGT) - com a redação que lhe foi dada pela Lei 55-A/2010, de 31.12, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011 – e da norma do artigo 125º desta Lei 55-A/2
No acórdão recorrido entendeu-se que o plano de insolvência não podia ser homologado porque, face ao disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 30º da LGT, com a redação da Lei 55-A/2010, acima referida e no artigo 125º desta mesma Lei, o crédito da recorrida ISS não podia ser afetado por aquele Plano, como o foi.
A recorrente entende que a interpretação dada a estes normativos no acórdão recorrido é inconstitucional, por violar o princípio da confiança estabelecido nos artigos 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa.
Cremos que não tem razão e se decidiu bem.
Face ao disposto nos artigos 192º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o pagamento dos créditos sobre a insolvência pode ser regulado num plano de insolvência.
Antes da entrada em vigor dos dispositivos legais acima referidos, havia uma divisão na jurisprudência quanto à questão de se saber se o plano de insolvência podia afetar os créditos tributários do insolvente.
A jurisprudência maioritária, apoiando-se no disposto no artigos 97º e 196º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e na consideração de que as disposições contidas na LGT sobre o assunto apenas se aplicavam às relações tributárias, entendia que a lei conferia aos credores a faculdade de perdoar ou reduzir os créditos sobre o património do devedor, seja quanto ao capital, seja quanto aos juros, não se encontrando estabelecida qualquer exceção para o Estado ou outra pessoa coletiva de direito público – ver, por todos, o acórdão deste Supremo de 2009.01.13, disponível em www.dgsi.pt.
Daí que nada obstaria à homologação do plano de insolvência, aprovado pela assembleia de credores, se no mesmo estivesse prevista a redução ou perdão de dívidas fiscais do insolvente, não padecendo tal plano dos vícios de violação do princípio da legalidade, da igualdade e de inconstitucionalidade por derrogação de normas imperativas por vontade das partes.
Ou seja, com a declaração de insolvência, o Estado, as Autarquias Locais e o Instituto de Segurança Social deixariam de pertencer ao núcleo de credores privilegiados, passando a ser considerados credores comuns, como todos os restantes.
Mas havia também quem entendesse em sentido diferente, ou seja, no sentido de que mesmo considerando as disposições contidas no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não era permitida a homologação de plano de pagamentos que contivesse cláusulas limitativas dos créditos tributários, baseando-se, nomeadamente, na imperatividade de disposições da LGT, do CPPT e no Decreto-lei 411/91, de 17.10, decreto este que se referia às dívidas à segurança social – neste sentido ver, por todos, o acórdão da Relação do Porto de 2008.06.30 “in” www.dgsi.pt
A questão era, pois, controvertida.
Com a referida Lei 55/2010 vieram a introduzir-se novos elementos sobre a questão.
Estabelecia-se no nº2 do artigo 30º da LGT que “o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade”.
Ora a referida Lei 55/2010 veio acrescentar um novo número àquele artigo – o nº3 – onde se determinou que “o disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.
E veio também a estabelecer, no seu artigo 125º, que “o disposto no nº3 do artigo 30º da LGT é aplicável aos processos de insolvência que se encontrem pendentes a ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”.
De acordo com o seu artigo 186º, a citada Lei 55/2010 entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2011.
Ora, face ao que consta neste artigo 125º e independentemente de quaisquer interpretações das normas estabelecias nos nº2 e 3 do artigo 30º da LGT acima transcritas, parece não poder haver quaisquer dúvidas que o legislador só poderia querer dizer que os créditos tributários eram indisponíveis, mesmo em processos de insolvência, melhor dizendo, mesmo aquando da elaboração do plano de insolvência referidos nos artigos 192º, 195º e 196º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Dito doutro modo, não podia resultar da interpretação de qualquer disposição deste Código que os créditos tributários eram disponíveis.
Mais concretamente, não podia ser homologado um plano de insolvência em que estivesse incluído um perdão ou qualquer redução de um crédito tributário.
Na verdade, refere-se aí a “processo de insolvência” e “homologação”, o que não deixa qualquer dúvida sobre o objeto da norma: processo de insolvência e plano de insolvência.
E mesmo que houvesse dúvidas, o citado dispositivo legal não poderia ser interpretado de outro modo, uma vez que não encontraria na letra da lei “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa” – cfr. nº2 do artigo 9º do Código Civil.
Na verdade, qualquer interpretação no sentido de que o legislador não quis fazer incidir – por via inovadora ou interpretativa – a disciplina acima referida sobre os processos de insolvência e planos de pagamento deles resultantes não encontraria na letra da lei um mínimo de correspondência, uma vez que, como já ficou referido, nela se faz referência expressamente aos processos de insolvência e, consequentemente1 aos planos de pagamento neles eventualmente incluídos.
Posto isto, vejamos então a questão posta sobre inconstitucionalidade.
Entende a recorrente que a introdução dos dispositivos legais da Lei do Orçamento de Estado para 2011 produziu efeitos quanto a situações e relações constituídas no passado e ainda subsistentes no momento em que entrou em vigor, violando assim o princípio da confiança inerente ao Estado de Direito, efeitos esse que se revelavam como opressivos, intoleráveis e inadmissíveis, por afetarem acentuadamente a confiança que os cidadãos têm na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
O princípio da confiança, intrinsecamente ligado aos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, tem como finalidade proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nascem no cidadão, que confiou na postura e no vínculo criado através das normas prescritas no ordenamento jurídico.
Trata-se de proteger uma situação de confiança que mereça ser protegida face a elementos objetivos que tenham o condão de incutir num cidadão determinada expectativa.
Relaciona-se com a calculabilidade e a previsibilidade dos cidadãos no que concerne aos efeitos jurídicos dos atos do Estado.
E trata-se de um afloramento dos princípios do Estado de direito democrático e da legalidade, plasmados nos artigos 2º e 3º da Constituição da República Portuguesa.
Posto isto, vejamos a situação concreta em apreço.
O plano da insolvência foi aprovado em assembleia de credores que se realizou em 6 de Dezembro de 2010, tendo o aí credor e aqui recorrente ISS requerido a recusa oficiosa da homologação do plano relativamente aos seus créditos e a Fazenda Nacional votado desfavoravelmente.
Em 26 de Outubro de 2011, foi proferida sentença em que foi homologado o referido plano de insolvência.
A aprovação de um plano de insolvência baseado na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente em assembleia credores, nos termos do disposto no artigo 212º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e a sua admissão por parte do Tribunal, nos termos do artigo 207º “a contrario” do mesmo diploma, não tem como consequência necessária a sua homologação por parte do Tribunal, uma vez que, face ao que se dispõe no artigo 215º desse diploma, este desempenha o papel de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano, conforme dizem Carvalho Fernandes e João Labareda “in” Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, em anotação ao referido artigo.
Ora, será que aquando da aprovação do plano de insolvência os credores que votaram a favor poderiam ter a confiança, definida nos termos acima expostos, de que aquando da intervenção do Tribunal para o efeito de homologar ou não o referido plano, a decisão seria de aceitar que os créditos tributários poderiam ser afastados por esse plano?
Cremos que não.
Na verdade e como acima ficou exposto, havia controvérsia sobre a questão.
Uns entendiam que esses créditos poderiam ser afetados.
Outros entendiam o contrário.
Sendo assim, não podia a recorrente confiar que o tribunal necessariamente iria homologar o plano.
E também não podia confiar que o legislador, por via de uma disposição interpretativa como é a contida no artigo 125ºda Lei do Orçamento para 2011, não viesse a clarificar a matéria e não necessariamente no sentido do entendimento maioritário.
Haveria sempre a dúvida de qual o entendimento do Tribunal a esse respeito e se no futuro o legislador não clarificaria a questão no sentido da indisponibilidade dos créditos tributários, como o veio a fazer.
Concluímos, pois, não ter sido desrespeitado o princípio em questão».
4. Foi desta decisão que a recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade, com vista à apreciação da norma do artigo 30.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, bem como do artigo 125.º da mesma Lei, quando aplicadas a processos de insolvência cuja votação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor.
5. A recorrente produziu alegações, concluindo o seguinte:
«A) A violação do princípio da confiança assenta no facto de toda a Jurisprudência anterior à entrada em vigor da supramencionada Lei nº 55-A/2010, sendo unânime nos Tribunais da Relação de Lisboa, Relação de Coimbra, Relação de Guimarães e Supremo Tribunal de Justiça e praticamente unânime no Tribunal da Relação do Porto, com a única exceção de dois arestos iniciais, terem o entendimento de que “No âmbito de processo de insolvência, a existência de normas tributárias que a isso obstassem no plano da relação Estado-empresa contribuinte, não impede, “per se” mesmo com o voto contrário da Fazenda Pública, a aprovação de um plano que, visando a manutenção em atividade da empresa e a satisfação do passivo com pagamentos aos credores à custa dos respetivos rendimentos, preveja o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos, sejam estes créditos comuns, garantidos ou privilegiados”.
B) A título meramente indicativo e a comprovar o exposto, veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, referentes aos processos (…)
C) Quanto ao Tribunal da Relação de Lisboa veja-se os Acórdãos atinentes aos processos (…)
D) Quanto ao Supremo Tribunal de Justiça, os únicos dois Acórdãos existentes inerentes a esta problemática dispunham:
- Acórdão do STJ de 04-06-2009 (…)
Acórdão do STJ de 02-03-2010 in www.dgsi.pt proc. nº 4454/08.5TBLRA-F.C.S1. (…)
E) Face ao exposto, óbvio se torna que a nova redação dada ao artigo 30ºnº 3 da LGT pela Lei nº 55-A/2010 bem como a do artigo 125º dessa mesma Lei, são uma evidente reação contra o entendimento unânime que os Tribunais Superiores estavam a perfilhar quanto à matéria em causa, o qual resultava e era consequência da mera e óbvia interpretação do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa.
F) Não conseguindo as autoridades tributárias alterar a redação do CIRE, introduziram sub-repticiamente, no meio de uma longa e vasta Lei do Orçamento de Estado para o ano 2011, as supra mencionadas alterações que estão aliás a ser, totalmente suicidárias, no panorama da economia nacional impedindo, de facto, qualquer empresa que tenha dívidas ao Estado de ser recuperada e/ou revitalizada.
G) E por isso, não pode a Recorrente aceitar que o Douto Acórdão ora recorrido refira que “havia uma divisão na jurisprudência” e que a questão “era controvertida” dado que não havia qualquer divisão na jurisprudência e a questão não era controvertida.
H) E não o era, Venerandos Conselheiros, pelo simples facto, repete-se, da Jurisprudência em causa se limitar a aplicar, aos casos em apreço, o Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa, que retirou aos créditos tributários e da segurança social qualquer “jus imperii”, considerando-os credores, como quaisquer outros tendo, como último ratio, a efetiva possibilidade das empresas serem judicialmente reestruturadas e conseguirem sobreviver.
I) E tanto assim foi, que se terá concluído que a única forma de inverter a situação seria a de se adicionar ao artigo 30ºnº 3 da LGT que a indisponibilidade do crédito tributário “prevalece sobre qualquer legislação especial” para se “afastar”, definitivamente, o CIRE do “caminho” e de forma expressa.
J) Porém, só o deveriam ter feito para situações futuras, para evitar a violação do princípio da confiança.
K) Temos assim forçosamente de concluir que, previamente a 31 de Dezembro de 2010, o panorama legislativo e jurisprudencial que se apresentava a qualquer sociedade comercial que pretendia recuperar judicialmente era óbvio, evidente e transparente e foi com base nestas premissas que a Recorrente apresentou o seu plano de insolvência.
K) E foi com base nestes pressupostos que os credores da Recorrente o votaram em assembleia de credores realizada a 06 de Dezembro de 2010, com uma maioria de 91,94% dos votos.
L) E com base nestas premissas o Meritíssimo Juiz teria forçosamente de homologar o plano de insolvência. Até que, subitamente, as “regras do jogo” são alteradas depois do jogo ter terminado.
M) Com efeito, mesmo que a Recorrente pretendesse alterar o plano de insolvência para o adaptar ao novo normativo surgido pela Lei nº 55-A/2010, tal possibilidade estava-lhe coartada pelo artigo 210º do CIRE, pois qualquer modificação só se poderia ter verificado até ao momento da sua votação.
N) A Recorrente foi assim “lançada às feras” apesar de ter cumprido de forma escrupulosa com os termos da Lei vigente à época dos factos e, sem qualquer possibilidade de reação, o que o Estado de Direito não pode certamente admitir.
O) É assim evidente que a alteração legislativa supramencionada coloca em crise a confiança que o cidadão, as empresas e a própria economia colocam no Direito.
P) Com efeito, esta lei que produz efeitos quanto a situações ou relações já constituídas e subsistentes no momento em que entra em vigor, viola o princípio da confiança inerente ao Estado de Direito quando a produção de tais efeitos se revela “opressiva, intolerável e inadmissível”, por afetar acentuadamente a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
Q) Ora, este normativo que se impõe aos processos de insolvência em curso e que ainda não tenham sido objeto de homologação, produz efeitos totalmente intoleráveis e inadmissíveis pois coloca em crise a confiança que tanto a Recorrente como os demais intervenientes na lide em curso tinham na viabilização desta e assim, ressarcirem-se dos seus créditos ou de parte deles, que, com a sua liquidação, se “esfumarão”.
R) Este normativo que produz efeitos a relações constituídas de forma definitiva no passado e subsistentes no momento em que entra em vigor é opressiva, intolerável e inadmissível porque afeta de forma evidente a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
S) Face a tudo quanto se expôs, devem V. Exas., Venerandos Desembargadores, declarar inconstitucional por se encontrar inelutavelmente violado o princípio da confiança previsto nos artigos 2º e 13ºda Constituição da República Portuguesa, o artigo 30 nº 3da LGT na redação que lhe foi dada pela Lei nº 55-A/2010 a qual dispõe que a indisponibilidade do crédito tributário “prevalece sobre qualquer legislação especial” bem como o artigo 125º da mesma Lei que preceitua que “o disposto no nº 3 do artigo 30º da LGT é aplicável designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos”, quando aplicadas a processos de insolvência, como o presente, cuja votação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor.
T) E, em consequência, ser definitivamente homologado o plano de insolvência pela Recorrente oportunamente apresentado e votado favoravelmente pela maioria esmagadora dos seus credores, conforme decidiu e bem, o Meritíssimo Juiz de Primeira Instância».
6. Notificados para o efeito, os recorridos não contra-alegaram.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Constituem objeto do presente recurso, tal como definido pela recorrente, a norma do artigo 30.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, bem como do artigo 125.º da mesma Lei, quando aplicadas a processos de insolvência cuja votação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor.
É a seguinte a redação destas disposições legais:
«Artigo 30.º
Objeto da relação jurídica tributária
1 – (…)
2 – O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
3 – O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial;
Artigo 125.º
Disposições transitórias no âmbito da LGT
O disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos».
Segundo a recorrente as normas cuja apreciação requer violam o princípio da confiança, consagrado nos artigos 2.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa.
2. A questão de constitucionalidade posta nos presentes autos já foi apreciada e decidida no Acórdão n.º 401/2013 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o qual não julgou «inconstitucional a norma constante do artigo 30.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, bem como do artigo 125.º do mesmo diploma, quando aplicadas a processos de insolvência em que a apresentação do plano de insolvência se deu anteriormente à sua entrada em vigor».
O julgamento de não inconstitucionalidade louvou-se na seguinte fundamentação:
«A questão subjacente aos presentes autos prende-se com a aplicação do n.º 3, do artigo 30.º, da LGT, aditado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aos processos de insolvência pendentes à data da entrada em vigor desta última lei (1 de janeiro de 2011 – cfr. artigo 187.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31-12), em que o respetivo plano de insolvência não tenha sido objeto de homologação, mas em que a assembleia de votação do relatório do administrador da insolvência e a apresentação do plano de insolvência tenham ocorrido anteriormente à entrada em vigor da referida alteração legislativa.
(…)
Apresentado o plano de insolvência, este é sujeito a dois controlos jurisdicionais.
Há um controlo inicial (cfr. artigo 207.º do CIRE), em que a proposta de plano de insolvência é submetida à apreciação do juiz, para que este proceda à verificação da sua admissibilidade ou inadmissibilidade. A proposta não será admitida nos casos previstos no artigo 207.º, n.º 1, do CIRE: a) se houver violação dos preceitos sobre a legitimidade para apresentar a proposta ou sobre o conteúdo do plano e os vícios forem insupríveis ou não forem sanados no prazo razoável que fixar para o efeito; b) quando a aprovação do plano pela assembleia de credores ou a posterior homologação pelo juiz forem manifestamente inverosímeis; c) quando o plano for manifestamente inexequível; d) quando, sendo o proponente o devedor, o administrador da insolvência se opuser à admissão, com o acordo da comissão de credores, se existir, contanto que anteriormente tenha já sido apresentada pelo devedor e admitida pelo juiz alguma proposta de plano. Há, depois, um segundo controlo do plano de insolvência na sentença de homologação, após a sua aprovação em assembleia de credores (cfr. artigos 214.º a 216.º do CIRE).
No caso de admitir a proposta de plano de insolvência (artigo 207.º, n.º 2, do CIRE), o juiz notificará as entidades mencionadas no artigo 208.º do CIRE, para, querendo, emitirem parecer sobre ela e convocará a assembleia de credores para discutir e votar a proposta de plano (artigo 209.º, n.º 1, do CIRE).
Na assembleia de credores, presidida pelo juiz (artigo 74.º do CIRE), têm direito de participar os credores (com ou sem direito de voto), bem como outras pessoas (artigo 72.º do CIRE), sendo necessário, para se poder deliberar sobre o plano de insolvência, que estejam presentes ou representados credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto (artigos 212.º, n.º 1, e 211.º, n.º 1, do CIRE). A proposta considerar-se-á aprovada se obtiver “mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções” (artigo 212.º, n.º 1, do CIRE).
Uma vez aprovado pelos credores, o plano de insolvência é sujeito, conforme se disse, a um segundo controlo jurisdicional, necessitando de ser homologado por sentença judicial, para que seja plenamente eficaz (cfr. artigos 214.º a 216.º do CIRE). A sentença de homologação apresenta-se, porém, limitada ao controlo da legalidade e não do mérito do conteúdo do plano aprovado pelos credores, o qual é livremente fixado por estes.
A homologação do plano de insolvência pode ser recusada pelo juiz, oficiosamente, “no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação” (cfr. artigo 215.º do CIRE), ou a solicitação dos interessados (devedor não proponente do plano, credor, sócio, associado ou membro do devedor), nas hipóteses previstas no artigo 216.º, n.º 1, do CIRE, ou seja, quando o requerente demonstre em termos plausíveis que a sua situação ficará pior com o plano do que sem ele, ou que o plano proporciona a algum credor um valor patrimonial superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor de eventuais contribuições a que fique obrigado, sem prejuízo de, mesmo nestas circunstâncias, o juiz não poder recusar a homologação quando o plano cumpra as condições previstas no n.º 3 do artigo 216.º, do CIRE
Conforme resulta do teor do artigo 217.º do CIRE a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores constitui um requisito indispensável à sua eficácia, sendo ainda condição necessária e suficiente para que o mesmo produza certos efeitos. Ou seja, é a homologação do plano de insolvência que lhe confere um caráter vinculativo, produzindo-se as alterações dos créditos introduzidas no plano, sendo também a sentença que confere eficácia a quaisquer atos ou negócios jurídicos previstos no plano e constitui título bastante para a constituição de nova sociedade ou sociedades, transmissão de bens e direitos, realização dos respetivos registos, redução ou aumento de capital, modificação dos estatutos, transformação, exclusão de sócios e alteração dos órgãos sociais do insolvente.
Assim, mesmo que o plano de insolvência possa ser perfeito em si mesmo após a sua aprovação por deliberação da assembleia de credores, apenas a sentença homologatória lhe confere a eficácia necessária para a produção de efeitos. Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda existe aqui “um processo formativo com trato sucessivo” que tem a sua base no próprio plano de insolvência (cfr., Luís Carvalho Fernandes / João Labareda, em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, vol. II, pp. 129, ed. de 2005, da Quid iuris).
Tecidas estas considerações gerais, importa agora enquadrar neste âmbito a questão subjacente aos presentes autos que, no plano infraconstitucional, se prende com saber se é possível a homologação de plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores através do qual, sem a concordância do Estado, tenham sido incluídos também créditos tributários, designadamente, prevendo a redução de créditos do Estado contra a vontade deste [conforme refere o Ministério Público, no conceito genérico de “créditos tributários” abrangem-se quer os créditos fiscais, quer os créditos da Segurança Social, sendo que na decisão recorrida a questão foi analisada com referência a créditos tributários, sem que se trate de forma autonomizada os créditos da Segurança Social, sendo aliás também dessa forma genérica que a questão de constitucionalidade foi suscitada pela recorrente].
Ou seja, dizendo de outro modo, em geral, a questão discutida no plano infraconstitucional é a de saber se no âmbito do processo de insolvência e, concretamente, no plano de insolvência, se mantém a indisponibilidade dos créditos tributários, ou se é admissível a previsão de perdões, reduções de valor, moratórias ou outras limitações ao pagamento dos créditos do Estado e da Segurança Social.
Como dá conta a decisão recorrida, até à entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, a jurisprudência vinha mantendo um entendimento largamente maioritário – com fundamento na ideia de que o artigo 197.º, n.º 1, do CIRE, acima referido, tinha natureza supletiva e de que os artigos 30.º, n.º 2, e 36.º, n.ºs 2 e 3, da LGT, tinham natureza imperativa apenas no domínio das relações entre a administração tributária enquanto tal e os contribuintes, mas não no âmbito do processo especial de insolvência –, no sentido de que, constituindo as disposições do CIRE legislação especial em relação às da LGT, era admissível que um plano insolvência que afetasse créditos tributários (por implicar a redução, extinção ou moratória desses créditos) fosse regularmente aprovado sem a concordância da Fazenda Nacional, visse a ser homologado.
Entretanto, o artigo 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aditou um n.º 3 ao artigo 30.º da LGT, estabelecendo que o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, previsto no n.º 2 deste artigo “prevalece sobre qualquer legislação especial” e o artigo 125.º da referida Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro determinou a aplicação desta alteração aos processos de insolvência que se encontrem pendentes em que os planos de insolvência ainda não tenham sido objeto de homologação.
Esta alteração legislativa levou a que jurisprudência tivesse também alterado a sua posição, passando a entender, maioritariamente, a exemplo do que acontece no caso dos autos, que a regra constante do artigo 30.º, n.º 2, da LGT, segundo a qual o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária, passou inequivocamente a valer no âmbito da insolvência.
Ou seja, a jurisprudência entendeu que aquela alteração legislativa teve em vista afastar a interpretação até então largamente maioritária de que, constituindo as disposições do CIRE legislação especial em relação às normas da LGT e, concretamente, ao seu artigo 30.º, n.º 2, era admissível que um plano de insolvência que afetasse créditos tributários (por implicar a redução, extinção ou moratória desses créditos) regularmente aprovado sem a concordância da Fazenda Nacional, viesse a ser homologado (no sentido de que, apesar do n.º 3 do artigo 30.º da LGT, é possível, neste âmbito, uma leitura restritiva das normas que compõem o regime tributário, cfr. Catarina Serra em “Créditos tributários e princípio da igualdade entre os credores – dois problemas no contexto da insolvência de sociedades”, in Direito das Sociedades em Revista, outubro de 2012, ano 4, vol. 8, págs. 96-101).
Não compete, no entanto, ao Tribunal Constitucional tomar posição quanto à correta interpretação das referidas normas no plano do direito infraconstitucional. Compete-lhe apenas apreciar se a interpretação acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça é violadora de alguma norma ou princípio constitucional.
Antes de mais, importa precisar que, no caso dos autos, não é questionada, diretamente, a interpretação do artigo 30.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro. Questiona-se, sim, que a referida norma, com o aludido sentido interpretativo, seja aplicável aos processos de insolvência pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (1 de janeiro de 2011 – cfr. artigo 187.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro), cujo plano de insolvência ainda não tenha sido objeto de homologação, mas em que a apresentação do plano de insolvência tenha ocorrido anteriormente à sua entrada em vigor.
É o que resulta claramente do requerimento de interposição de recurso, bem como das alegações apresentadas pela Recorrente. Da leitura destas alegações resulta que a Recorrente entende que se mostra violado o princípio da confiança pelo facto de toda a jurisprudência anterior à entrada em vigor da referida Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, ter o entendimento acima aludido, no sentido de que os artigos 30.º, n.º 2, e 36.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, e outras normas que consagram a indisponibilidade dos créditos tributários, tinham natureza imperativa apenas no domínio das relações entre a administração tributária enquanto tal e os contribuintes, mas não no âmbito do processo especial de insolvência, não impedindo, em si mesmas, mesmo com o voto contrário da Fazenda Pública, a aprovação de um plano de insolvência que, visando a manutenção em atividade da empresa e a satisfação do passivo com pagamentos aos credores à custa dos respetivos rendimentos, preveja o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos tributários.
Assim, e ainda segundo sustenta a Recorrente, a nova redação dada ao artigo 30.º, n.º 3, da LGT, pela Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro, bem como a do artigo 125.º dessa mesma Lei, são uma reação contra este entendimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores quanto à matéria em causa. Contudo, entende a Recorrente que tais alterações deveriam valer apenas para situações futuras, de forma a evitar a violação do princípio da confiança.
Segundo alega ainda a Recorrente, foi com base no panorama legislativo e jurisprudencial anterior a 31 de dezembro de 2010, que elaborou o seu estudo económico de viabilização e assim apresentou o seu plano de insolvência a 30 de outubro de 2010, tendo sido também com base nestes pressupostos que o mesmo foi aprovado em assembleia de credores e, com base nestas premissas, tal plano seria forçosamente homologado caso não tivesse ocorrido a mencionada alteração legislativa, a qual coloca em crise a confiança que o cidadão, as empresas e a própria economia colocam no Direito, uma vez que produz efeitos quanto a situações ou relações já constituídas e subsistentes no momento em que entra em vigor, violando o princípio da confiança inerente ao Estado de Direito, revelando-se a produção de tais efeitos 'opressiva, intolerável e inadmissível', por afetar acentuadamente a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos.
Assim, conforme já se disse, resulta claro que a Recorrente não coloca em causa, no plano jurídico-constitucional, o regime que resulta das alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31-12. O que questiona é apenas a aplicação desse regime aos processos de insolvência pendentes, em que o plano de insolvência tenha sido apresentado antes da entrada em vigor das referidas alterações, mas ainda não tivesse sido homologado.
Importa, pois, apreciar se assiste razão à Recorrente e se a aplicação das referidas alterações, nos termos expostos, são violadoras do princípio da confiança.
Como é sabido, a tutela constitucional da confiança emana do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Esta garantia de segurança jurídica, traduz-se, no plano subjetivo, na ideia de proteção da confiança dos particulares relativamente à continuidade da ordem jurídica, proteção essa que vale em relação as todas as áreas de atuação Estadual, mediante exigências que são dirigidas à Administração, ao poder judicial e, particularmente, ao legislador.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou variadíssimas vezes sobre o princípio da proteção da confiança, importando ter presente a sua jurisprudência nesta matéria.
No que respeita ao seu enunciado geral, o Tribunal tem afirmado reiteradamente que o princípio do Estado de direito democrático postula “uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”, concluindo que “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva, àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica” (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 303/90, acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos que a seguir se referem sem outra menção).
Ou seja, acentua-se que este princípio tem pressuposta a ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado, o que implica a garantia de um mínimo de certeza e de segurança das pessoas quanto aos direitos e às expectativas que lhes tenham sido juridicamente criadas.
Mas o Tribunal procurou também concretizar o conteúdo do princípio da proteção da confiança, a propósito de situações de retrospetividade ou retroatividade inautêntica (estando aqui abrangidos os casos de aplicação de determinadas normas a situações jurídicas pré-existentes, como é o caso das leis que se aplicam a processos pendentes), confrontado com a questão de saber quando é que se está perante a “inadmissibilidade, arbitrariedade ou onerosidade excessiva” de uma conformação que afeta “expectativas legitimamente fundadas” dos cidadãos, concluiu que, para que a confiança seja tutelada, é necessário que estejam reunidos dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Estes critérios foram reiteradamente afirmados na jurisprudência posterior e, mais recentemente, no Acórdão n.º 128/2009 (cujo entendimento teve seguimento, entre outros, nos acórdãos n.ºs 188/2009 e 3/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal, desenvolvendo os referidos critérios, veio a reconduzi-los a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Escreveu-se, a esse propósito, no referido Acórdão n.º 128/2009:
“Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção.”
Assim, e de modo a que seja respeitada a liberdade conformativa do legislador, indispensável para que possa responder às necessidades de interesse público que a cada momento se façam sentir, é de afastar o entendimento no sentido de que qualquer intervenção normativa inovatória deve ser considerada violadora do princípio da segurança jurídica na vertente da proteção da confiança. Tal só acontecerá quanto se esteja perante uma normação que atinja “de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar” (cfr., entre outros, os acórdãos n.ºs 365/91 e 486/97).
Analisados os limites e os requisitos a que está sujeita a tutela constitucional da confiança, importa agora apreciar a situação sub judicio, no sentido de saber se a mesma é merecedora de censura no plano jurídico-constitucional, ou seja, se as normas objeto do presente recurso, na interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida, afetam, de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa, as expectativas jurídicas dos destinatários das mesmas.
No caso dos autos está em questão a aplicação de uma norma (artigo 30.º, n.º 3, da LGT) aprovada por uma lei entrada em vigor em 1 de janeiro de 2011, a factos jurídicos de formação sucessiva (plano de insolvência apresentado em processo de insolvência pendente à data da entrada em vigor da lei e ainda não sujeito a homologação, sendo que a assembleia de credores que aprovou o plano e a sentença de não homologação do mesmo aludido só tiveram lugar após a entrada em vigor da lei).
Segundo a Recorrente, face à legislação vigente e à jurisprudência largamente maioritária à data da apresentação do plano de insolvência, tinha expectativa na manutenção do referido quadro normativo.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se tal circunstância pode justificar a existência de uma expectativa jurídica que, à luz do princípio da proteção da confiança, torne inconstitucional a aplicação das normas em causa, na interpretação aplicada pela decisão recorrida, a planos de insolvência apresentados no âmbito de processos de insolvência pendentes, que ainda não tenham ainda sido objeto de homologação.
Como vimos, o regime de indisponibilidade dos créditos tributários, defendido pela jurisprudência largamente maioritária nos tribunais superiores como não aplicável no âmbito dos planos de insolvência, resultava do entendimento de que as normas especiais, constantes do Código de Insolvência, derrogavam o regime geral, resultante das leis tributárias.
Assim sendo, importa apreciar se a referida alteração, no sentido de o regime geral passar a prevalecer sobre outros regimes especiais em sentido contrário (e concretamente, sobre o regime instituído pelo CIRE), constitui uma violação do princípio da confiança, tendo em atenção os pressupostos ou requisitos da proteção da confiança acima enunciados.
Face aos aludidos requisitos, para que a confiança seja tutelada constitucionalmente, exige-se, em primeiro lugar, que o legislador tenha promovido comportamentos capazes de gerar nos cidadãos a expectativa de continuidade de um determinado modelo ou regime jurídico. Ora, não se poderá afirmar que, nas situações como a dos autos, o Estado tenha tido comportamentos de que possa inferir-se a criação, nos privados, de «expectativas» de continuidade do regime legal em causa. Com efeito, não só se manteve em vigor o regime geral de indisponibilidade dos créditos tributários como, perante a interpretação de tais normas efetuada pela corrente dominante na jurisprudência no âmbito dos processos de insolvência, a Fazenda Pública tem mantido posição contrária, apresentando recurso de tais decisões (conforme a própria Recorrente reconhece e resulta da jurisprudência que cita nas suas alegações). Assim, dificilmente se poderá sustentar que existissem fundadas expectativas privadas de manutenção do regime jurídico vigente até à entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro.
Por outro lado, no que respeita ao terceiro requisito, se é certo que a Recorrente, ao apresentar o plano de insolvência o fez num determinado quadro normativo e no pressuposto de que o mesmo se manteria inalterado – ou seja, tendo a expectativa da continuidade de um determinado «comportamento» por parte do legislador – é certo, por outro lado, que dada a natureza do plano de insolvência, a tramitação a que o mesmo se encontra sujeito, com a participação de diversos intervenientes processuais, bem como a necessidade de preenchimento de uma série de outros requisitos legais, dificilmente se pode defender que com sua apresentação pudesse existir, desde logo, uma expectativa jurídica de que o mesmo se mantivesse inalterado, vindo a ser aprovado, qua tale, pelos credores e homologado por sentença.
Com efeito, uma vez apresentado o plano, este é sujeito, como vimos, a um primeiro controlo jurisdicional liminar da sua admissibilidade (cfr. artigo 207.º do CIRE) e, na assembleia de credores em que o plano é discutido e votado, o mesmo pode ser sujeito a alterações, sendo aprovado com essas alterações ou pode vir a não ser aprovado pela maioria dos credores. Por outro lado, mesmo que o plano seja aprovado, este terá ainda de passar por um segundo crivo judicial, podendo ser ou não homologado, nos termos dos artigos 214.º a 216.º do CIRE (…)
É certo que não se poderá desconsiderar, e é sobretudo nesse aspeto que se funda o recurso interposto, que o legislador, ao optar pela aplicação do novo regime aos processos de insolvência pendentes em que o plano de insolvência ainda não tivesse sido objeto de homologação, iria afetar necessariamente os planos de insolvência já apresentados que, face ao novo regime, poderiam ter de ser alterados.
Contudo, esta opção não poderá ter-se como arbitrária, nem se pode considerar que afete posições jurídicas já constituídas. Com efeito, o interesse prosseguido pelo legislador através da aplicação de lei nova a processos pendentes é uma opção que se enquadra na sua liberdade constitutiva e conformadora, pretendendo-se desta forma que os efeitos visados com a alteração em causa fossem imediatos, para o que não deixou de assumir importância o contexto de crise económica e a situação de desequilíbrio orçamental do Estado, circunstâncias que, no entender do legislador, reforçaram a necessidade de evitar que os créditos tributários pudessem ser objeto, por ação de outros credores, de modificação, mesmo contra a vontade do Estado.
Por outro lado, o critério escolhido pelo legislador para definir o momento relevante para a aplicação do novo regime aos processos pendentes tem um fundamento racional, se atentarmos em que, como vimos, só com a homologação do plano de insolvência, por sentença, este produz todos os efeitos, não se podendo, até então, falar-se de situações jurídicas já constituídas, uma vez que, como vimos, o plano de insolvência traduz uma situação jurídica complexa, de formação sucessiva, mas que só se torna plenamente constituída com a sentença que o homologa. Até esse momento, conforme se disse, não está afastada a possibilidade de se proceder à alteração do plano de insolvência, de forma a adequá-lo ao novo regime legal.
Finalmente, ainda que se considerassem cumpridos todos os outros requisitos ou “testes” relativos às “expectativas” dos privados, face aos fundamentos expostos, não se poderia dar por verificado o quarto “teste”, relativo à inexistência de razões de interesse público que justificassem, em ponderação, a não continuidade do comportamento estadual. Ora, sendo os “testes” estabelecidos para a tutela jurídico-constitucional da confiança cumulativos, o facto de um deles se não cumprir basta para que se não possa, com esse fundamento, julgar inconstitucional as normas sub judicio.
Daí que seja forçoso concluir que não se mostra violado pela interpretação normativa sindicada o princípio da confiança, como emanação da ideia de Estado de direito democrático».
3. É este entendimento que agora se reitera, sendo de concluir, por isso, pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 30.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, na redação da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, bem como do artigo 125.º deste diploma, na interpretação de que aquele artigo é aplicável a processos de insolvência pendentes cuja votação do plano de insolvência se deu anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 24 de Setembro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.