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Processo n.º 389/13
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Foi proferida “decisão sumária”, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), que rejeitou tomar conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade interposto pela Empresa A., Lda. e por B. do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de março de 2013, proferido no processo nº 637/1999.L1.S1, que julgou improcedente a exceção de caso julgado relativa à ação nº 1943/97 e à ação nº 825/96.
Na parte que agora interessa, a decisão é do seguinte teor:
«(…)
5. Admitido o recurso, cumpre, antes de mais, decidir se é possível conhecer do seu objeto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76º, n.º 3, da LTC). Ora, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC pressupõe, designadamente, que se trate de uma questão de constitucionalidade normativa. De acordo com o que se dispõe na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Nos presentes autos, como se verá sumariamente já de seguida, é manifesto, todavia, que tal não aconteceu.
6. De facto, perante o conteúdo dos requerimentos de interposição de recurso, é patente que os recorrentes não colocam ao Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa de que este possa conhecer, mas antes questionam a bondade da própria decisão recorrida.
Quer os requerimentos de interposição do recurso, quer as respostas ao despacho-convite do relator sugerem, pelas inúmeras referências às especificidades do caso concreto, que não está em causa uma questão de constitucionalidade normativa, mas sim da própria decisão recorrida. A formulação da questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada demonstra também que o vício invocado se reporta à decisão judicial em si mesma, e não às normas que lhe tenham servido de fundamento. De facto, em ambos os casos insiste-se sempre que as normas em causa (493.º, n.º 3, 496.º, alínea a), 497.º, 498.º, 500.º, 671.º, 771.º do CPC e 236.º e 334.º do CC) são inconstitucionais quando entendidas que – no caso concreto – não só não se verifica exceção de caso julgado, nem autoridade do caso julgado, como, a verificar-se, sempre a sua invocação constituiria – no caso concreto – um manifesto abuso de direito. Assim, a invocada inconstitucionalidade é imputada não às normas, nem a uma interpretação das mesmas que seja suscetível de generalização, mas sim à aplicação das mesmas ao circunstancialismo concreto do caso.
Mas, sendo assim, como inquestionavelmente é, tem aplicação a jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada por este Tribunal no sentido de que, estando em causa a própria bondade intrínseca da decisão recorrida em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.
Tanto basta para que se não possa conhecer do objeto do presente recurso».
2.1. A recorrente Empresa A., Lda. reclama para a conferência, nos seguintes termos:
1. A R./Recorrente e ora Reclamante não pode concordar com os fundamentos da Decisão Sumária, pelo que dela reclama.
2. Com efeito, assenta a Decisão reclamada, em síntese, nos seguintes argumentos:
“Quer os requerimentos de interposição do recurso, quer as respostas ao despacho-convite do relator sugerem, pelas inúmeras referências às especificidades do caso concreto, que não está em causa uma questão de constitucionalidade normativa, mas sim da própria decisão recorrida.
A formulação da questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada demonstra também que o vício invocado se reporta à decisão judicial em si mesma, e não às normas que lhe tenham servido de fundamento. De facto, em ambos os casos insiste-se sempre que as normas em causa (493.º, n.º 3, 496.º, alínea a), 497.º, 498.º, 500.º, 671.º, 771.º do CPC), e 236.º e 334.º do CC) são inconstitucionais quando entendidas que – no caso concreto – não só não se verifica exceção do caso julgado, nem autoridade do caso julgado, como, a verificar-se, sempre a sua invocação constituiria – no caso concreto – um manifesto abuso de direito.
Assim, a invocada inconstitucionalidade é imputada não às normas, nem a uma interpretação das mesmas que seja suscetível de generalização, mas sim à aplicação das mesmas ao circunstancialismo concreto do caso.
Mas, sendo assim, como inquestionavelmente é, tem aplicação a jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada por este Tribunal no sentido de que, estando em causa a própria bondade intrínseca da decisão recorrida em sim mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.”
3. Não assiste razão, todavia, à Decisão reclamada.
4. Com efeito, ao invés do ali exposto, a R./Recorrente e ora Reclamante coloca ao Venerando Tribunal Constitucional verdadeiras questões de constitucionalidade normativa, e não meras questões de aplicação das normas, pela decisão recorrida, ao circunstancialismo concreto do caso sub judice.
5. Na verdade, o que a R./Recorrente e ora Reclamante pretende com o seu requerimento de interposição de recurso é que o Venerando Tribunal Constitucional aprecie (i) a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 493.º, n.º 3, 496.º, alínea a), 497.º, n.ºs 1 e 2, 498.º, 500.º., 671.º, 771.º a 776.º do Código de Processo Civil (doravante abreviadamente denominado “CPC”), na redação em vigor antes da reforma de 1995/1996, sem prejuízo do disposto no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, e, bem assim, do artigo 334.º do Código Civil (doravante abreviadamente denominado CC), de acordo com a interpretação que lhes foi conferida pelo Acórdão recorrido, no que respeita à invocada exceção perentória de caso julgado relativamente à sentença homologatória da transação lavrada na ação n.º 1943/97.
6. E que aprecie, ainda, por outro lado, (ii) a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 493.º, n.º 3, 496.º, alínea a), 497.º, n.ºs 1 e 2, 498.º, 500.º., 671.º, 771.º a 776.º do cpc, na redação em vigor antes da reforma de 1995/1996, sem prejuízo do disposto no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, e 334.º do CC, de acordo com a interpretação que lhes foi conferida pelo Acórdão recorrido, no que respeita à invocada exceção (então) perentória de caso julgado relativamente à sentença proferida na ação n.º 825/96.
7. Em qualquer caso, portanto, o objeto do recurso restringe-se à inconstitucionalidade normativa extraída da interpretação dada pelo Acórdão recorrido aos referidos artigos, e não à bondade intrínseca do Acórdão recorrido em si mesmo considerado.
8. Assim, quanto à exceção perentória de caso julgado relativamente à sentença homologatória da transação lavrada na ação n.º 1943/97, a R./Recorrente e ora Reclamante pretende que o Venerando Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos:
(i) 493.º, n.º 3 (quanto aos efeitos do caso julgado), 496.º, alínea a) (de que o caso julgado é exceção perentória), 497.º, n.ºs 1 e 2 (dos pressupostos do caso julgado), 498.º (dos requisitos do caso julgado), 500.º (do conhecimento oficioso do caso julgado) e 671.º do CPC (do valor da sentença do caso julgado), QUANDO INTERPRETADAS NO SENTIDO DE QUE reduzem, desconsiderando, o âmbito e alcance do dever de oficiosidade quanto ao conhecimento, pelos tribunais, do caso julgado e seus efeitos perante todas as partes num processo, admitindo que o poder jurisdicional não se esgote quanto a uma mesma exceção, podendo sobre ela recair, no âmbito do mesmo processo, sucessivas e novas decisões de tribunais, cada uma delas sobre diferentes partes e sem prejuízo do respetivo trânsito em julgado, ainda que com grave prejuízo para a certeza e segurança jurídicas;
(ii) 771.º a 776.º CPC (dos fundamentos, prazos e processamento do recurso de revisão) e no artigo 334.º do CC (do abuso de direito), QUANDO INTERPRETADAS NO SENTIDO DE QUE a tutela do abuso de direito prevalece, de forma desproporcionada, sobre a tutela da autoridade das decisões (caso julgado) nas situações em que os tribunais podiam e deviam, num único momento processual, ter decidido sobre todas as questões que lhes foram colocadas pelas partes, prejudicando, dessa forma, quer a certeza e segurança jurídicas, quer as legítimas expectativas das partes.
9. Quanto à exceção (então) perentória de caso julgado relativamente à sentença proferida na ação n.º 825/96, a R./Recorrente e ora Reclamante pretende que o Venerando Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos:
(i) 493.º, n.º 3 (quanto aos efeitos do caso julgado), 496.º, alínea a) (de que o caso julgado é exceção perentória), 497.º, n.º s 1 e 2 (dos pressupostos do caso julgado), 498.º (dos requisitos do caso julgado), 500.º (do conhecimento oficioso do caso julgado), e 671.º do CPC (do valor da sentença do caso julgado), QUANDO INTERPRETADAS NO SENTIDO DE QUE reduzem o conceito de caso julgado previsto na lei e interpretado pela doutrina e jurisprudência, excluindo do seu âmbito de aplicação efetivas situações de caso julgado/autoridade das decisões judiciais;
(ii) Em particular, 498.º, n.º 2, do CPC, na parte em que dispõe haver “identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, QUANDO INTERPRETADA NO SENTIDO DE QUE desconsidera que a “qualidade jurídica” das partes tem que ser efetivamente aferida em função do caso sub judice, independentemente do que venha declarado, nas peças processuais, quanto à qualidade em que as partes intervêm, tomando em consideração os elementos e o objeto do processo e, bem assim, a legitimidade e o interesse em agir que essa qualidade confere à parte;
(iii) Em particular, 671.º, n.º 1, conjugado com os artigos 498.º e seguintes do CPC, na parte em que se dispõe que “Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória (...) fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e seguintes”, QUANDO INTERPRETADAS NO SENTIDO DE QUE constituem impedimento ao funcionamento do princípio da eficácia reflexa do caso julgado – que tem por finalidade evitar que terceiros sejam prejudicados na consistência jurídica ou no conteúdo do seu direito, sem terem tido a possibilidade de se defender –, às situações em que o próprio terceiro juridicamente interessado pretenda prevalecer-se dessa autoridade do caso julgado e, inclusive, invoque essa autoridade;
(iv) 334.º do cc (do abuso de direito) e nos artigos 771.º a 776.º cpc (dos fundamentos, prazos e processamento do recurso de revisão), QUANDO INTERPRETADAS NO SENTIDO DE QUE conferem uma tutela prevalecente e desproporcionada do abuso de direito sobre a autoridade das decisões judiciais, resultando num esvaziamento do sentido útil do meio processual próprio e do prazo legalmente previstos para que as partes possam, de forma extraordinária, recorrer de decisões transitadas em julgado (recurso de revisão);
(v) Em particular, 334.º do CC, conjugado com os artigos 498.º e seguintes e 771.º a 776.º do cpc, QUANDO INTERPRETADAS NO SENTIDO DE QUE permitem neutralizar os efeitos do caso julgado quando esses efeitos podem ser neutralizados, pela parte interessada, por via de recurso extraordinário de revisão, o que configura uma substituição da conduta esperada (e processualmente protegida) de uma parte por uma decisão judicial, que, por isso, é processualmente desnecessária, constituindo, pois, uma extensão desproporcionada da aplicação de uma cláusula de salvaguarda do sistema jurídico português.
10. São estas as questões de constitucionalidade normativa cuja apreciação a R./Recorrente e ora Reclamante pretende ver apreciadas pelo Venerando Tribunal Constitucional, por, em seu entendimento, constituírem violação ao princípio da intangibilidade do caso julgado, consagrado nos princípios basilares do Estado de Direito Democrático, que se extraem do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (doravante abreviadamente “Constituição”), na obrigatoriedade e prevalência das decisões dos Tribunais, prevista no n.º 2 do artigo 205.º da Constituição, e na ressalva dos casos julgados, mesmo quando resultem da aplicação de normas declaradas inconstitucionais ou ilegais, prevista no n.º 3 do artigo 282.º da Constituição (na verdade, se a Constituição manda respeitar os julgados mesmo quando eles assentam em normas inconstitucionais, por maioria de razão, impõe-se tal respeito quando não se verifique esta situação, como é o caso dos autos), sem prejuízo da possibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer da violação de outras normas ou princípios constitucionais (cfr. artigo 79.º-C da LTC).
11. Do exposto resulta, pois, de forma inequívoca, que as questões de inconstitucionalidade supra invocadas são imputadas, efetivamente, a uma interpretação das normas que é suscetível de generalização, e não a concretos juízos de subsunção levados a cabo pelo Tribunal recorrido e apenas aplicáveis ao concreto circunstancialismo do caso sub judice.
12. A apreciação pretendida pela R./Recorrente e ora Reclamante do Venerando Tribunal Constitucional é, pois, a de interpretar as normas invocadas à luz da Constituição, permitindo assim a adoção de critérios normativos, gerais e abstratos, nos exatos termos expostos nos pontos 8 e 9 supra.
13. Atento o exposto, o recurso atempadamente interposto pela R./Recorrente e ora Reclamante cumpre os requisitos do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, pelo que deveria ter sido admitido e conhecido, o que ora se requer.
2.2. E o recorrente B. reclamou da decisão sumária, com os seguintes fundamentos:
1. A presente reclamação vem apresentada da Decisão Sumária de 09/07/2013, que decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso oportunamente interposto pelo R. e ora Reclamante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 21/03/2013, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, com os seguintes fundamentos:
“Quer os requerimentos de interposição do recurso, quer as respostas ao despacho-convite do relator sugerem, pelas inúmeras referências às especificidades do caso concreto, que não está em causa uma questão de constitucionalidade normativa, mas sim da própria decisão recorrida.
A formulação da questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada demonstra também que o vício invocado se reporta à decisão judicial em si mesma, e não às normas que lhe tenham servido de fundamento. De facto, em ambos os casos insiste-se sempre que as normas em causa (493.º, n.º 3, 496.º, alínea a), 497.º, 498.º, 500.º, 671.º, 771.º do CPC), e 236.º e 334.º do CC) são inconstitucionais quando entendidas que – no caso concreto – não só não se verifica exceção do caso julgado, nem autoridade do caso julgado, como, a verificar-se, sempre a sua invocação constituiria – no caso concreto – um manifesto abuso de direito.
Assim, a invocada inconstitucionalidade é imputada não às normas, nem a uma interpretação das mesmas que seja suscetível de generalização, mas sim à aplicação das mesmas ao circunstancialismo concreto do caso.
Mas (...), estando em causa a própria bondade intrínseca da decisão recorrida em sim mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC e assim tem sido afirmado por este Tribunal em inúmeras ocasiões.”
2. Ora, o R. Reclamante não concorda com a Decisão proferida.
3. É entendimento do R. Reclamante que o seu requerimento de interposição de recurso, apresentado ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, respeita efetivamente à (in)constitucionalidade normativa dos artigos 493.º, n.º 3, 496.º, alínea a), 497.º, 498.º, 500.º, 671.º, 771.° do Código de Processo Civil (CPC), e 236.º e 334.º do Código Civil (CC), extraída da interpretação dada pelo Acórdão do STJ de 21/03/2013 (acórdão recorrido) às referidas normas, e não à bondade do Acórdão recorrido.
4. Efetivamente o que está em causa e o R. Reclamante pretende ver apreciado pelo douto Tribunal Constitucional não é a aplicação das referidas normas ao circunstancialismo concreto do caso, nos termos efetuados pelo recorrido Acórdão do STJ de 21/03/2013, MAS, diversamente, a (in)constitucionalidade das normas extraídas dos artigos 493.º, n.º 3, 496.º, alínea a), 497.º, 498.º, 500.º, 671.º, 771.º do CPC, e 236.º e 334.º do CC, quando interpretadas no sentido de que:
a) Excluem do seu âmbito de aplicação situações de efetiva coincidência quanto à qualidade jurídica, designadamente quando essa coincidência não é expressamente declarada no processo, no que respeita especificamente ao artigo 498.º. n.º 2 do CPC (“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”);
b) Constituem uma limitação, não prevista na lei, da projeção, na esfera jurídica de terceiros, do decidido em sentença (autoridade do caso julgado ou eficácia relativa do caso julgado), mesmo quando o terceiro aceita essa projeção, no que respeita especificamente ao artigo 671.º. n.º 1 (na parte em que dispõe que “Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória (...) fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e seguintes) e aos artigos 498.º e seguintes (no que respeita aos pressupostos de verificação da exceção de caso julgado, no caso de eficácia relativa do caso julgado), todos do CPC;
c) Alargam de forma desproporcionada e ilegal o conceito de ilegitimidade do exercício de um direito e de excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pondo a coberto do abuso de direito situações em que o sujeito contra o qual é exercido esse direito podia (e devia) agir e, nessa medida, reverter a situação decorrente daquele exercício pretensamente ilegítimo, no que respeita especificamente ao artigo 334.º do CPC, quando conjugado com os artigos 498.º e seguintes do CPC (no que respeita aos pressupostos de verificação da exceção de caso julgado).
5. É essa interpretação normativa que constitui violação do princípio da intangibilidade do caso julgado decorrente do princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa - CRP), da imposição de obrigatoriedade das decisões dos Tribunais (artigo 205.º, n.º 2 da CRP) e da ressalva dos casos julgados (artigo 282.º, n.º 3 da CRP).
6. Ou seja, os concretos juízos subjuntivos efetuados pelo Acórdão recorrido deixaram de estar em causa para dar lugar a uma questão mais profunda e de maior alcance, suscetível de generalização: a da inconstitucionalidade da interpretação normativa subjacente aos referidos normativos e que constituiu a ratio decidendi do Acórdão recorrido.
7. O que se pretende com o presente recurso é, portanto, que a interpretação e a aplicação correta das supra referidas normas sejam suscetíveis de ser aplicadas a propósito de uma pluralidade de situações concretas, e não só no caso dos presentes autos, ou seja, a adoção de um critério normativo, com caráter de generalidade e abstração, conforme exposto no parágrafo 4. supra.
8. Ora, são exatamente as questões de constitucionalidade normativa explicitadas no parágrafo 4. supra, com características de generalidade e de abstração, que o R. Reclamante pretende ver apreciadas por este Venerando Tribunal e que extravasam o simples caso concreto.
9. Assim sendo, carece de fundamento a Decisão Sumária reclamada.
3.1 A razão de não conhecimento do objeto do recurso consistiu no facto de não incidir sobre normas ou sobre o resultado de uma dada interpretação normativa, mas sobre a decisão judicial que foi tomada pelas instâncias.
Considerou-se que a invocação da inconstitucionalidade do vasto conjunto de normas do Código de Processo Civil relativas ao caso julgado (arts. 493º, nº 3, 496º, alínea a), 497º, 498º, 500º, 671º, 771º) e do artigo 334º do Código Civil, relativo o abuso de direito, na interpretação que os recorrentes dizem ter sido aplicada ao caso “sub juditio”, está ligada às particularidades do caso concreto, o que afasta a natureza normativa do controlo da constitucionalidade.
Assim não entendem os recorrentes, ao insistirem que colocaram ao Tribunal Constitucional «verdadeiras questões de constitucionalidade normativa, e não meras questões de aplicação das normas, pela decisão recorrida, ao circunstancialismo do caso sub judice».
A recorrente Empresa A., Lda., reportando-se ao caso julgado na ação nº 1943/97, considera que o acórdão do STJ confere às normas do CPC, que regulam a figura do caso julgado, uma dimensão normativa que «reduz, desconsiderando, o âmbito e alcance do dever de oficiosidade quanto ao conhecimento, pelos tribunais, do caso julgado e seus efeitos perante todas as partes num processo, admitindo que o poder jurisdicional não se esgote quanto a uma mesma exceção, podendo sobre ela recair, no âmbito do mesmo processo, sucessivas e novas decisões de tribunais, cada uma delas sobre diferentes partes e sem prejuízo do respetivo trânsito em julgado, ainda que com grave prejuízo para a certeza e segurança jurídicas»; e que faz uma interpretação dos artigos 771º a 776º do CPC, relativos ao recurso de revisão e do artigo 334º do Código Civil que, «faz prevalecer, de forma desproporcionada, a tutela do abuso de direito sobre a tutela da autoridade das decisões (caso julgado) nas situações em que os tribunais podiam e deviam, num único momento processual, ter decidido sobre todas as questões que lhe foram colocadas pelas partes, prejudicando, dessa forma, quer a certeza e segurança jurídicas, quer as legítimas expectativas das partes».
E em relação ao caso proferido na ação 825/96, ambos os recorrentes sustentam que o acórdão recorrido faz uma interpretação dos artigos 493º, nº 3, 496º, alínea a), 497º, nºs 1 e 2, 498º, 500º, 671º, 771º a 776º do CPC e do artigo 334º do Código Civil, que é violadora do princípio da intangibilidade do caso julgado, quando interpretadas no sentido de (i) «desconsiderar que a “qualidade jurídica” das partes tem que ser efetivamente aferida em função do caso sub judice, independentemente do que venha declarado, nas peças processuais, quanto à qualidade em que as partes intervêm, tomando em consideração os elementos e o objeto do processo e, bem assim, a legitimidade e o interesse em agir que essa qualidade confere à parte»; (ii) de que «constituem impedimento ao funcionamento do princípio da eficácia reflexa do caso julgado – que tem por finalidade evitar que terceiros sejam prejudicados na consistência jurídica ou no conteúdo do seu direito, sem terem tido a possibilidade de se defender –, às situações em que o próprio terceiro juridicamente interessado pretenda prevalecer-se dessa autoridade do caso julgado e, inclusive, invoque essa autoridade»; (iii) de que «conferem uma tutela prevalecente e desproporcionada do abuso de direito sobre a autoridade das decisões judiciais, resultando num esvaziamento do sentido útil do meio processual próprio e do prazo legalmente previstos para que as partes possam, de forma extraordinária, recorrer de decisões transitadas em julgado (recurso de revisão»; (iv) e de que «permitem neutralizar os efeitos do caso julgado quando esses efeitos podem ser neutralizados, pela parte interessada, por via de recurso extraordinário de revisão, o que configura uma substituição da conduta esperada (e processualmente protegida) de uma parte por uma decisão judicial, que, por isso, é processualmente desnecessária, constituindo, pois, uma extensão desproporcionada da aplicação de uma cláusula de salvaguarda do sistema jurídico português».
3.2. Para melhor compreensão das razões pelas quais o Tribunal não pode conhecer do objeto do presente recurso, atenta-se no desenvolvimento processual que a ação teve até à prolacção do acórdão recorrido.
A autora, ora recorrida – Sociedade C., Lda – pediu a condenação dos réus, ora recorrentes, na declaração de nulidade da venda dos prédios que o réu B., em sua representação, efetuou à ré Empresa A., Lda, através da escritura outorgada em 5/11/1991, alegando a ineficácia do contrato, em virtude de abuso dos poderes que foram conferidos ao réu, e a nulidade da venda, pelo facto do preço declarado ser vinte vezes inferior ao valor venal dos prédios.
Após o despacho de saneador, a ré A. invocou a exceção de caso julgado da decisão tomada na ação nº 825/96, na 2ª secção do 14º juízo Cível de Lisboa, intentada pelo réu B. e sua mulher Ana Marta contra a autora, ora recorrida, onde foi proferida sentença que decidiu que na escritura de 5/11/91 o réu B. não vendeu os prédios mencionados na escritura por preços que não fossem os então correntes de mercado e que, ao fazê-lo, não violou os seus deveres de administração da quota comum.
E o réu B. arguiu a exceção do caso julgado na ação nº 1943/97, que correu termos na 2ª secção do 2º Juízo Cível de Lisboa, em que foram autores os ora recorrentes e ré a ora recorrida, e onde foi proferida sentença homologatória de transação em que as partes acordaram em renunciar a impugnar, seja por que fundamento fosse, as vendas efetuadas pela escritura de 5/11/1991, e confirmaram reconhecer a validade dessa escritura.
A Autora respondeu às exceções, alegando que não foi citada para contestar as referidas ações, porque nelas foi indicada uma morada falsa, e que a sentença proferida na ação nº 1943/97 foi dada a conhecer já após ter recorrido o prazo para se poder solicitar o recurso extraordinário de revisão, pelo que a invocação do caso julgado consubstancia manifesto abuso de direito.
Por sentença de 17/3/2003 (cfr. fls. 834 e ss), foi julgada procedente a exceção de caso julgado na ação nº 1943/97, com a consequente absolvição dos réus.
Dessa decisão, recorreu a autora e o réu, tendo o Tribunal da Relação, por acórdão de 11/10/2005 (fls. 1187 e ss) julgado não verificada a exceção de caso julgado, por abuso de direito do réu na sua invocação.
Os réus interpuseram recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 11/7/2006 (cfr. fls. 1414 e ss), decidiu julgar neutralizados os efeitos do caso julgado, ficando o réu B. impedido de beneficiar dos efeitos da sentença homologatória proferida na ação nº 1943/97.
Regressando no processo à primeira instância, a ré da A. solicitou a continuação do processo apenas contra o réu B., alegando que o acórdão do STJ apenas neutralizou os efeitos do caso julgado na ação nº 1943/97 relativamente a ele.
Esse requerimento foi indeferido, tendo a ré interposto agravo, que foi admitido com subida diferida e efeito devolutivo (fls. 2933-2934).
Realizado o julgamento, foi proferida nova sentença, em 31/8/2010 (fls. 2230 a 2258), que julgou improcedente a exceção de caso julgado relativo à ação nº 1943/97, invocada pela ré A., e improcedente a exceção de caso julgado referente à ação nº 825/96.
Dessa sentença apelaram ambos aos réus, primeiro para a Relação, que, por acórdão de 19/4/2012, decidiu negar provimento ao agravo e julgar improcedente as apelações, e depois para o Supremo Tribunal de Justiça, que, através do acórdão recorrido, negou provimento às revistas.
3.3. Relativamente à exceção de caso julgado formado pela sentença homologatória da transação lavrada na ação nº 1943/97 – cujos efeitos foram neutralizados em relação ao réu B. pelo acórdão do STJ de 11/7/2006 – a recorrente A. entende que o acórdão recorrido faz uma interpretação das normas do CPC relativas ao caso julgado que “nega o efeito preclusivo da exceção”, que admite que o “poder jurisdicional não se esgote quanto à mesma exceção” e que permite que, no âmbito do mesmo processo, possam ser tomadas “sucessivas e novas decisões”, tudo em contrário ao princípio da intangibilidade do caso julgado.
Para chegar a essa conclusão, a recorrente considera que o momento processual próprio para se conhecer da exceção de caso julgado, em toda a sua extensão e efeitos, foi a sentença de 17/3/2003 e os recursos subsequentes, e não a sentença de 31/8/2010 e os recursos que se lhe seguiram; e que a letra do acórdão do STJ de 11/7/2006 é muito clara em restringir a neutralização dos efeitos do caso julgado “apenas” ao réu B., sendo de “presumir” que se tivesse pretendido impedi-la também de beneficiar dos efeitos do caso julgado tê-lo-ia expressamente previsto.
Nesta argumentação, a exceção do caso julgado não assenta na decisão de mérito tomada na ação nº 1943/97, baseando-se antes nas decisões anteriores proferidas sobre a relação processual. Considera-se que o julgamento feito sobre aquela exceção na sentença de 17/3/2003 e nos recursos subsequentes faz caso julgado formal, pelo que não podia ser repetido em posteriores decisões.
Simplesmente, nesse juízo não está em causa uma certa interpretação normativa das regras do caso julgado, mas a decisão tomada pelas instâncias de recurso no sentido de que a recorrente só invocou a exceção de caso julgado por via do processo nº 1943/97 depois do acórdão do STJ ter neutralizado os seus efeitos relativamente ao réu B.. Ou seja, contrariamente ao que defendido pela recorrente, o tribunal recorrido julgou que a exceção de caso julgado apenas foi inicialmente decidida em relação ao réu, que foi quem a invocou, e não em relação à ré. Como se diz no acórdão recorrido «a questão do caso julgado por via da ação nº 1943/97 relativamente à ré ficou assim em aberto e o Tribunal da 1ª instância não se pronunciou sobre esta questão, nem o devia fazer, pois as exceções devem ser conhecidas nos momentos próprios, que são o despacho saneador e a sentença. No caso, o despacho saneador já havia tido lugar, pelo que a questão tinha de ser relegada para a sentença e aí conhecida, como efetivamente veio a acontecer».
Como se vê, não está em causa o modo com foram interpretadas e aplicadas as regras sobre o caso julgado ao caso concreto, mas o juízo subsuntivo que foi efetuado pelo julgador sobre o momento processual adequado para se conhecer da exceção de caso julgado arguida pela ré. Enquanto a recorrente entende que a exceção ficou definitivamente decidida com a prolação do acórdão do STA de 11/7/2005, todas as instâncias julgaram que, relativamente a ela, a questão ficou em aberto naquele acórdão e que, uma vez arguida, deveria ser conhecida. Ora, a decisão judicial que considera que a exceção de caso julgado ainda não havia sido apreciada no processo relativamente a um dos réus, é uma decisão destituída de sentido normativo no que se refere à interpretação e aplicação das normas sobre o caso julgado.
De igual modo, a qualificação da arguição da exceção de caso julgado como manifesto abuso de direito constitui uma atividade puramente subsuntiva. O preenchimento desta cláusula geral foi feito em função das particularidades do caso concreto, não dando origem à formação de qualquer “norma” sindicável no âmbito da fiscalização concreta. O acórdão recorrido neutralizou os efeitos do caso julgado resultante da ação nº 1943/97 relativamente à recorrente A. nos mesmo termos em que já o havia feito em relação ao réu B., ou seja, pelo facto de naquela ação, os recorrentes terem indicado uma morada falsa da recorrida, para que ela não fosse citada e tivesse conhecimento da decisão que aí fosse proferida e pelo facto de, quando suscitou a exceção de caso julgado, ter conhecimento de que a procuração do mandatário que representou a recorrida na ação nº 1943/97 já havia sido considerada ineficaz. Sendo esta a ratio decidendi da neutralização dos efeitos do caso julgado, então não se pode subtrair ao plano da decisão concreta o juízo que foi formulado sobre a existência do abuso de direito.
Ora, como se escreveu no acórdão nº 655/99 do Tribunal Constitucional, a cláusula do abuso de direito, «reveste-se de uma singularidade irrepetível na sua concretização, de acordo com os estalões ou padrões valorativos para que remete, em cada ato de concretização/aplicação, singularidade de concretização, essa, que desqualifica o seu juízo aplicativo como objeto do controlo de constitucionalidade, confinado este, como está, a normas, e excluindo decisões judiciais. De certa forma pode dizer-se que a cláusula geral aplicada numa decisão judicial implica, pela consideração das circunstâncias do caso à luz do padrão valorativo a considerar, em cada caso um sentido normativo concreto, que não se distingue para efeitos de controlo da constitucionalidade da concretização efetuada na decisão judicial».
3.4. No que se refere à exceção do caso julgado formado sobre a decisão proferida na ação nº 825/96, há que reconhecer que os recorrentes imputam a inconstitucionalidade das normas do CPC sobre o caso julgado e a revisão de sentenças e da norma do artigo 334º do Código Civil à decisão judicial que as concretizou e não a uma determinada dimensão normativa da lei.
As instâncias julgaram que a A. não podia invocar a exceção de caso julgado por não figurar como parte nessa ação, nem se tratar de um dos casos em que o efeito do caso julgado se pode estender a terceiros, e «de qualquer forma», sempre seria de entender que a invocação do caso julgado constituiria um manifesto abuso de direito, dado a ação ter sido “forjada” entre o réu, a sua mulher, gerente única da ré, e os seus quatros filhos, nela não estando representada a autora.
A recorrente discorda dessa decisão, defendendo que está verificada a “tríplice identidade” exigida pelo artigo 498º do CPC, uma vez que a mulher do réu B. teve intervenção na ação, na qualidade jurídica de sócia e de gerente da recorrente; que pode ser abrangida pelo caso julgado, por via da eficácia reflexa do caso julgado, porque o que foi decidido lhe é favorável; e não se pode concluir pelo abuso de direito, porque a recorrida estava em tempo de intentar recurso extraordinário de revisão de sentença, não podendo o tribunal substituir-se à inércia da recorrida.
Nesta argumentação, é claramente percetível que o que realmente se pretende é contraditar a concreta valoração efetuada pelo julgador quanto à verificação, extensão e neutralização do efeito do caso julgado formado naquela ação. Os critérios sindicantes do caso julgado e do abuso de direito foram concretizados e aplicados no acórdão recorrido em função das particularidades específicas do caso concreto – a recorrente não ser parte na ação, o caso julgado não integra nenhuma das situações previstas na lei em que a sentença obriga terceiros, a ação ter sido forjada – sem que seja possível autonomizar dessa decisão um sentido normativo suscetível de ser objeto de sindicância por parte deste Tribunal.
Por conseguinte, o vício de inconstitucionalidade vem imputado diretamente à decisão tomada sobre o caso julgado e o abuso de direito e não a uma determinada interpretação normativa, com vocação de generalidade e de abstração, suscetível de ser sindicada pelo Tribunal Constitucional, confinado que está, em sede de recurso de constitucionalidade, às funções de controlo de constitucionalidade normativa.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 8 de outubro de 2013.- Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.