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Processo n.º 288/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de acórdão proferido pela 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em 28 de fevereiro de 2013 (fls. 369 a 380-verso), para que seja apreciada a constitucionalidade do artigo 7º - por manifesto lapso, identificado pelo recorrente como artigo 8º - do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool, anexo à Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, «que foi base da aplicação ao seu caso dos art.ºs 69.º/1/c, 348.º/1/a C.Penal e 152.º/3 C.Estrada, por contrariar o disposto no art. 41.º/1 CRP (…), quando no acórdão condenatório criminal se postula valer a liberdade de religião e de culto como mero motivo de um dever legal de informação, podendo a lei comum ser imposta, mesmo contra o ditame confessional, embora no caso bem mais gravoso da escolha das “Testemunhas de Jeová” pela morte hospitalar já o ordenamento se lhe não sobreponha» (fls. 387).
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu as seguintes alegações, cujas conclusões ora se transcrevem:
«I - O recorrente foi condenado por crime de desobediência em pena de multa criminal e proibição de conduzir veículos motorizados por três meses.
II - O douto acórdão recorrido imputa-lhe o seguinte: foi solicitado ao arguido que procedesse à realização do exame de álcool no sangue, através da recolha de sangue para análise, tendo o mesmo recusado fazer a colheita por motivos religiosos.
III - Com efeito, o recorrente professa na confissão religiosa “Testemunhas de Jeová”, cujo credo determina a inviolabilidade do sangue humana e, por isso mesmo, de qualquer um dos fiéis.
IV - Ora, há alternativa racional e cientifica à realização do exame de alcoolemia à colheita de sangue, quando se frustra a análise pelo sopro, nomeadamente através do exame médico aos sinais de reação neurológica e comportamental.
V - Por isso mesmo, no âmbito da garantia da liberdade religiosa, prescrita no art.° 41.° CRP, tinha e tem o recorrente direito à “objeção de consciência”, que nos termos do n.° 6 do citado preceito constitucional é, segundo o art.° 18.°/1 CRP, de aplicação ¡mediata, sem intermediação.
VI - Correspondendo, portanto, a inexistência legal do regulamento completo da objeção de consciência, a uma inconstitucionalidade por omissão, ininvocável, a falha ou a deficiência, contra o motivo de exclusão da ilicitude da recusa, por uma “Testemunha de Jeová”, se e quanto a ser- lhe extraído sangue para análise.
VII - E é fora de dúvidas que aos tribunais criminais é proibido aplicarem preceitos inconstitucionais, tanto quanto desconsiderarem, a favor de uma suposta boa aplicação da lei, as omissões críticas de preceitos, e contra a Constituição.
VIII - Por conseguinte, ao terem as Instâncias condenado o arguido, neste caso concreto, por crime de desobediência, com o fundamento em não ter permitido que lhe fosse extraído sangue para análise de alcoolemia, na sequência de um acidente de viação em que interveio, fizeram os tribunais aplicação ¡inconstitucional do segmento normativo dos art.°s art.°s 69.°/1/c, 348.°/1/a C. Penal e 152.°/3 C. Estrada, segundo a interpretação que lhe deram, de a diretiva legislada ser indiferente, afinal, ao motivo religioso invocada pelo recorrente para a recusa.» (fls. 328 a 330)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou contra-alegações, que ora se resumem:
«(…)
2. Questão-prévia: inadmissibilidade do recurso
2.1. Em primeiro lugar, parece-nos que convirá fazer uma rectificação do que vem afirmado pelo recorrente.
Na verdade, ao longo do processo, em diversos momentos e no requerimento de interposição do recurso, aquele menciona o artigo 8.º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob o efeito do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (aprovado pela Lei nº 18/2007, de 17 de Maio e que passaremos a designar por Regulamento).
Ora, esse artigo 8.º tem a ver com “substância psicotrópica a avaliar” para efeitos do artigo 81.º do Código da Estrada, situação completamente estranha à dos presentes autos.
Onde no Regulamento está previsto o exame médico é no artigo 7.º, devendo, pois, a referência ao artigo 8.º, ser um mero lapso.
2.2. No requerimento de interposição do recurso não é minimamente clara qual a questão de inconstitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciada.
Por outro lado, a dimensão normativa está ausente do enunciado e a referência a “Testemunha de Jeová” apenas reforça essa ausência de normatividade.
Acresce que a integração no enunciado do “dever de informação”, “morte hospitalar” afasta a “interpretação” da fundamentação acolhida na decisão recorrida como de ratio decidendi.
Na verdade, essas são meras referências laterais que a Relação fez, mas exclusivamente para um melhor enquadramento da questão.
2.3. Por outro lado, para além do afirmado no requerimento de interposição do recurso não coincidir com o anteriormente dito na motivação do recurso para a Relação, como se vê das partes que anteriormente transcrevemos dessa motivação o recorrente não enuncia de forma minimamente clara uma questão de inconstitucionalidade normativa, conclusão que o afirmado nas conclusões X e XII apenas confirma.
Aliás, a forma como foi abordada a questão levou a que a Relação, no acórdão recorrido, consignasse:
“Sobre a invocada inconstitucionalidade, o recorrente mais parece invocar a omissão de uma norma que contemple a situação em análise, como uma lacuna da Lei (ponto 34 e 35 da motivação); questão esta que se nos afigura consentânea com a discussão dos critérios da política criminal adoptada pelo ordenamento jurídico o que, naturalmente não cabe na apreciação deste Tribunal.”
2.4. Ora, de tudo o que o recorrente disse antes e depois do acórdão da Relação, aí se incluindo as Alegações que já apresentou no Tribunal Constitucional, não se vê com o mínimo de clareza qual a interpretação normativa que deverá constituir objecto do recurso.
3. Apreciação do mérito do recurso
(…)
4. Conclusões:
1.º - Porque, nem “durante o processo” foi suscitada, nem no requerimento de interposição do recurso foi enunciada, com o mínimo de clareza, uma questão de inconstitucionalidade normativa passível de constituir objecto idóneo do recurso de constitucionalidade, não deverá conhecer-se do recurso.
2.º - O legislador infraconstitucional goza de uma ampla margem de discricionariedade legislativa na formulação das opções consistentes em tipificar criminalmente determinados comportamentos.
3.º - As pertinentes normas do Código da Estrada e do Código Penal que mandam punir como crime de desobediência a recusa em o condutor se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, não violam qualquer princípio constitucional.
4.º - Nos termos dos artigos 153º 158º do Código da Estrada e do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Aprovado pela Lei nº18/2007, de 17 de Maio) o exame- regra para detecção do estado de influenciado pelo álcool é o realizado por meio de teste no ar expirado, encontrando-se ali estabelecido em que situações deve ter lugar a colheita de sangue para análise e o exame médico.
5.º Invocando o condutor interveniente em acidente de viação as suas convicções religiosas para recusar ser submetido a colheita de sangue, é recorrendo aos princípios vigentes em direito penal e aplicando as pertinentes normas do Código Penal, entre as quais se poderá incluir o artigo 17º, que o comportamento do arguido terá de ser apreciado.
6.º Determinar se ocorreu “erro sobre a ilicitude” (artigo 17º do Código Penal) é tarefa da competência exclusiva das instâncias, após a análise e a ponderação cuidada da prova produzida em cada caso.
7.º Consequentemente, a conhecer-se de mérito, deve ser negado provimento ao recurso» (fls. 332 a 352).
4. Face à invocação de fundamentos que obstariam ao conhecimento do objeto do recurso, a Relatora proferiu despacho, nos termos dos artigos 702º, n.º 2, e 704º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, para que o recorrente os pudesse contraditar. Respondendo àquelas questões, o recorrente veio pronunciar-se no seguinte sentido:
«1. O MP alega que o recurso não deve ser admitido por não ter sido posta claramente no requerimento de interposição qualquer questão de espessura constitucional.
2. Não tem porém razão, muito embora lhe tenha sido fácil seguir a tradição de séculos dos juristas portugueses contra a liberdade religiosa.
3. Diz o MP que seria intolerável deixar passar uma condenação por abuso de álcool rodoviário, por motivo de respeito pela crença religiosa.
4. E acrescenta subtilmente: a lei pode optar, de acordo com a Constituição, no domínio das garantias criminais, por impor certas provas, desde que da letra da lei não resulte que devam ser essas e não outras, ou procuradas segundo e noutras circunstâncias.
5. Também no Tribunal da Inquisição a prova de tratos era a prova de tratos, e quantas subtilezas jurídicas foram tecidas para defender que era essa a prova e não devia ser outra!
6. Não se leve a mal este desabafo — é que o recorrente escreveu nas alegações de recurso:
“não sendo concebível, na verdade, que ... deixar de ser submetido a uma avaliação de alcoolemia, que nem sequer a crença religiosa professada por si inibe (antes pelo contrário, porque conduzir sob efeito de álcool é também para as «Testemunhas de Jeová» uma falta moral — pecado), certo é que a prática médico-pericial tem outras modalidades de conferência do estado de influenciado pelo álcool que não, única e simplesmente, a análise do sangue do paciente.”
7. Assim, o problema que foi posto pelo recorrente é o de não poder ser uma leitura constitucional exatamente aquela que o MP propõe, isto é, haver uma segunda escolha obrigatória da prova de alcoolemia, através da análise ao sangue, contra a inviolabilidade da crença religiosa.
8. E porque é a própria lei que permite outras alternativas de exame e avaliação.
9. Não pode de modo nenhum considerar-se de acordo com a Constituição uma leitura do art.° 7.° do Regulamento tão estreita que obrigue, contra a convicção religiosa, a uma análise de sangue, se razões médicas a não desaconselharem.
10. Ao defender-se a constitucionalidade desta posição está, em boa verdade, a subalternizar-se uma certa crença religiosa à crença religiosa na ciência médica (ou se o Digno Magistrado do MP quiser a uma metafísica da medicina).
11. Ora, é precisamente contra os positivismos que levaram à grande crise dos anos trinta na Europa que a renovada reafirmação da liberdade de crença religiosa emergiu e se consolidou nas Constituições do pós-guerra.
12. Em suma: o recorrente reafirma e dá aqui como reproduzidos os motivos e argumentos que sintetizou no ponto 14. das alegações de recurso.
13. Defende — contra o que o MP diz — neste caso não se tratar de uma exclusão da culpa, porque, segundo a Constituição, ele recorrente (como fiel Testemunha de Jeová), na garantia constitucional da sua liberdade religiosa, tem como exclusão da ilicitude da recusa da extração sanguínea para exame da alcoolemia, o exercício de um direito... , do direito de objeção de consciência, previsto no art.° 41 .°16 CRP.
14. Como bem se vê, o recurso tem uma base de normatividade contra constitucional, contra a qual se insurge o recorrente.
15. E que ficou claramente expressa no requerimento de interposição de recurso, ao imputar-se à interpretação que o acórdão criminal deu do sistema legal, incluindo o art.° 7.° do Regulamento, postular valer a liberdade de religião e de culto como mero motivo de um dever legal de informação, podendo a lei comum ser imposta, mesmo contra o ditame constitucional.
16. Neste exato sentido — mera circunstância — é uma extensão irónica da frase acima transcrita o segmento embora no caso bem mais gravoso da escolha das Testemunhas de Jeová pela morte hospitalar [contra as intervenções cirúrgicas já o ordenamento [segundo o acórdão, a elas] se lhes não sobreponha.
17. Donde, o recurso é admissível e deve prosseguir para julgamento.» (fls. 355 a 362)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Tendo sido invocados dois fundamentos que obstariam ao conhecimento do objeto do presente recurso, importa começar por, em primeiro lugar, averiguar se efectivamente se verifica a ausência de dimensão normativa do objeto do presente recurso. Para tanto, importa ter presente a redação literal que consta do artigo 7º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool, anexo à Lei n.º 18/2007, de 17 de maio:
«Artigo 7.º
Exame médico para determinação do estado de influenciado pelo álcool
1 - Para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 153.º e no n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, considera-se não ser possível a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue quando, após repetidas tentativas, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente.
2 - O exame médico para determinação do estado de influenciado pelo álcool apenas pode ser realizado em estabelecimento da rede pública de saúde designado nos termos do n.º 3 do artigo 4.º e obedece aos procedimentos fixados em regulamentação.
3 - O médico que realizar o exame deve seguir os procedimentos fixados na regulamentação referida no número anterior, podendo, caso julgue necessário, recorrer a outros meios auxiliares de diagnóstico que melhor permitam avaliar o estado de influenciado do examinando.»
Ora, quando analisada a questão que constitui objeto do presente recurso, comprova-se – sem margem para dúvidas – que: 1º) o recorrente não identificou qual dos três números do referido artigo 7º considerava ter sido aplicado; 2º) o recorrente não manteve qualquer ligação direta ao enunciado semântico de qualquer um dos referidos números do preceito legal em causa; 3º) o recorrente limitou-se a delinear um objeto do recurso assente em considerações genéricas sobre a liberdade religiosa, sem qualquer conexão com o enunciado semântico vertido no referido preceito legal.
Daqui resulta não só a ausência de efetiva dimensão normativa do objeto do presente recurso, bem como uma simétrica falta de identidade entre o mesmo e a interpretação normativa efetivamente aplicada pela decisão recorrida, visto que as referências ao culto religioso do recorrente e à meramente hipotética situação de perigo para a vida dos que professam aquele culto foram feitas a título especulativo e apenas “ad latere”, sem que se apresentem como determinantes da decisão então proferida. Tanto basta para concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso, em estrita aplicação do artigo 79º-C da LTC.
Em segundo lugar, quanto à invocada falta de suscitação processualmente adequada da questão que constitui objeto do presente recurso, verifica-se um evidente desfasamento entre as questões colocadas pelo recorrente, em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, e o objeto do presente recurso. Com efeito, ali foi alegado que:
«31. Aliás, uma interpretação extensiva do art.º 7.º/1 do Regulamento, que deve ser compaginado com a Port.ª 902-B/2007, 13/08, Secção III, art.º 11.º, faz concluir necessariamente que o procedimento legal a ter para com uma “Testemunha de Jeová” recusante é o da alternativa científica, válida e prescrita, cujo protocolo de procedimentos vem elencado na lei, maxime, na Portaria citada.
(…)
35. Teremos, pois, de concluir que o art.º 8.º do Regulamento, não só está desfasado perante os art.ºs 153.º/8 e 156.º/3 CE, quanto não cobre, na sua estreiteza, o mandato constitucional de amparo ao preceito religioso das “Testemunhas de Jeová” que lhes não permite aceitarem a extracção do seu sangue.
36. Por consequência, uma interpretação do art.º 8.º do Regulamento que determine só ser possível a alternativa da consulta médica para avaliação do estado de influenciado pelo álcool, nos parâmetros da Secção III, art.º 11.º, do Capítulo I, da Port.ª n.º 902-B/2007, 13/08, determina que o preceito esteja ferido de inconstitucionalidade.» (fls. 348 e 349)
É, pois, evidente a manifesta discrepância entre a formulação, perante o tribunal recorrido, das questões relacionadas com a alegada violação de parâmetros de normatividade constitucional e o objeto do presente recurso. Assim sendo, independentemente da discussão sobre se aquele foi o modo adequado para suscitar uma questão de inconstitucionalidade, tal como imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC, certo é que o recorrente nunca confrontou o tribunal recorrido com a específica questão de constitucionalidade que agora constitui objeto do presente recurso. Também por isso, sempre ficaria prejudicado o seu conhecimento, por falta de suscitação processualmente adequada.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, que se fixam em 10 UC´s, ao abrigo do n.º 3 do artigo 6º do Regime de Custas no Tribunal Constitucional, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro, de acordo com a redação do Decreto-Lei n.º 91/2008, de 02 de junho, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza o recorrente, na modalidade de dispensa do pagamento de custas judiciais.
Lisboa, 26 de setembro de 2013. – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.