Imprimir acórdão
Processo n.º 427/13
1ª Secção
Relator: Conselheiro Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrida a sociedade B., S.A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 6 de Novembro de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 343/2013, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Para o que agora releva, tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«Segundo o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O conceito de norma jurídica surge como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso (cf., entre outros, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
1. A recorrente pretende que este Tribunal aprecie «a norma do artº 334º do Código Civil, na interpretação dada pelo presente Tribunal da Relação, segundo a qual não constitui abuso do direito a atitude de um senhorio que permite que a arrendatária resida no arrendado durante mais de três anos sem pagar as rendas, não procedendo à resolução do contrato ou tão-pouco à comunicação da fiadora da situação de incumprimento para que esta pudesse lançar mão dos meios ao seu dispor, para que evitasse o avolumar da dívida, o qual foi passivamente permitido pelo senhorio, que vem, cinco anos mais tarde intentar ação executiva contra esta fiadora que apenas com tal execução tomou conhecimento da situação de incumprimento». Mais acrescentando que «só pode ser considerado que o exequente fez um uso abusivo, contra todos os limites impostos pela boa-fé, do direito de proceder à execução de rendas em atraso, quando estas se deveram, em parte, à sua própria inatividade».
Este enunciado é manifestamente significativo de que a recorrente pretende, face à factualidade descrita, a apreciação da decisão judicial que concluiu pela não atuação em abuso de direito por parte da exequente. Pelo que, na ausência de norma, há que não conhecer do objeto do recurso interposto, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, entre outros, com os seguintes fundamentos:
«4. Salvo o devido respeito, que é muito, entende a Recorrente que o recurso interposto cumpre todos os pressupostos de que a lei faz depender o seu conhecimento.
5. Com efeito, não pretende a Recorrente que a decisão do tribunal a quo seja sindicada pelo presente Tribunal.
6. Com efeito, não pretende sindicar a “concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e especificas circunstâncias do caso sub judicio”, designadamente “a adequação e correção do juízo de valoração das provas e fixação da matéria de facto provada na sentença”.
7. Pretende sim que o Tribunal Constitucional verifique da conformidade com a Constituição da interpretação normativa que sustentou a decisão judicial recorrida.
8. Sendo certo que se excluem do âmbito da fiscalização concreta, prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, as decisões judiciais, mas já não as interpretações normativas.
9. De facto, nas palavras do Exmo Juiz Conselheiro Fernando Ventura, no ACTC n.º 180/2013, “no sistema português, os recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, versando a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas”.
10. Ora, o recurso interposto pela Recorrente incide “sobre o critério ou padrão normativo da decisão, enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica” e não sobre “o puro ato de julgamento” (cfr. ACTC n. 181/2013).
11. Com efeito, o referido recurso incide, essencialmente, sobre a interpretação normativa dada pelo Tribunal recorrido à norma prevista no artigo 334º do Código Civil, segundo a qual, não constitui abuso do direito o exercício, sobre o fiador, do direito de um senhorio que permite que o arrendatário resida no arrendado durante mais de três anos sem pagar as rendas, não procedendo à resolução do contrato ou tão-pouco à comunicação do fiador da situação de incumprimento para que este pudesse lançar mão dos meios ao seu dispor, para que evitasse o avolumar da dívida.
12. Ora, a interpretação normativa da qual se recorre é no sentido de que não constitui abuso do direito o exercício do direito de proceder à execução de rendas em atraso contra um fiador que desconhecia a situação de incumprimento, cinco anos após o início de tal incumprimento, e quando este incumprimento foi, em parte, provocado pela sua própria inatividade.
13. Destarte, transcreva-se a referida interpretação dada pelo Tribunal a quo: “...mesmo que a exequente não tenha resolvido (judicial ou extrajudicialmente) o contrato de arrendamento, com fundamento no não pagamento das rendas, não pagamento esse que se estendeu por cerca de três anos, isso não é, por si só, suficiente para se concluir que, quando mais tarde pretende ver o seu direito de crédito satisfeito, nomeadamente socorrendo-se da responsabilidade d fiador, ela está a exercer esse direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça (...), leia-se a exequente não atua com abuso do direito
14. Assim, a interpretação normativa em questão exclui do conceito de abuso do direito a vertente de “supressio”, generalizada na doutrina e jurisprudência.
15. Ora, como se refere, entre outros, no Acórdão do STJ datado de 11-01-2011, (…)
16. Face ao exposto, só pode concluir-se que o critério normativo adotado pelo tribunal recorrido tem carácter de generalidade, uma vez que se afigura suscetível de aplicação a outras situações.
(…)
19. Pelo que o recurso interposto deverá ser apreciado e julgar-se inconstitucional a interpretação normativa acima exposta, por violar os artigos 1º e 2º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que viola o princípio da Dignidade da pessoa humana e até o próprio princípio do Estado de Direito, por pôr em causa a garantia da segurança jurídica. Com efeito, uma decisão que consubstancia e permite um abuso de direito é uma decisão que contraria e viola o princípio da dignidade da pessoa humana e não contribui de nenhuma forma para a confiança e segurança jurídica, ambos baluartes de um Estado de Direito. De facto, contraria o mais elementar entendimento de um Estado de Direito a situação de um fiador que, devido à inatividade do exequente (que deixou prolongar a situação de incumprimento por tanto tempo), se vê confrontada com uma dívida que excede em muito a sua expectativa quando prestou a fiança!».
4. A recorrida não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão reclamada conclui pelo não conhecimento do objeto do recurso, por se ter entendido que a recorrente requereu a apreciação de uma decisão judicial e não de uma norma, quando requereu a apreciação da «norma do art.º 334.º do Código Civil, na interpretação dada pelo presente Tribunal da Relação, segundo a qual não constitui abuso do direito a atitude de um senhorio que permite que a arrendatária resida no arrendado durante mais de três anos sem pagar as rendas, não procedendo à resolução do contrato ou tão-pouco à comunicação da fiadora da situação de incumprimento para que esta pudesse lançar mão dos meios ao seu dispor, para que evitasse o avolumar da dívida, o qual foi passivamente permitido pelo senhorio, que vem, cinco anos mais tarde intentar ação executiva contra esta fiadora que apenas com tal execução tomou conhecimento da situação de incumprimento». Mais acrescentando que «só pode ser considerado que o exequente fez um uso abusivo, contra todos os limites impostos pela boa-fé, do direito de proceder à execução de rendas em atraso, quando estas se deveram, em parte, à sua própria inatividade».
A reclamante sustenta que a este enunciado corresponde uma interpretação normativa e que, por isso, nada obsta ao conhecimento do objeto do recurso interposto. Sem razão.
É jurisprudência reiterada do Tribunal que pode ser requerida a apreciação de uma determinada interpretação normativa. Mas quando assim é, o recurso de constitucionalidade «tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador, exclusivamente imputável à latitude própria da conformação interna da decisão judicial – por ser evidente que as competências e os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional não envolvem seguramente o controlo das operações subsuntivas realizadas pelo julgador» (Lopes do Rego, (“O objeto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, n.º 3, p. 7).
Com aquele enunciado, que a recorrente reportou ao artigo 334.º do Código Civil, é patente que o que se pretende é a apreciação da «ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto», do caso do senhorio que permite que a arrendatária resida no arrendado durante mais de três anos sem pagar as rendas; que não procede à resolução do contrato ou tão-pouco à comunicação à fiadora da situação de incumprimento para que esta pudesse lançar mão dos meios ao seu dispor; que foi passivamente permitindo o avolumar da dívida; e que vem, cinco anos mais tarde, intentar ação executiva contra esta fiadora que apenas com tal execução tomou conhecimento da situação de incumprimento.
Só a pretensão de sindicar o ato de julgamento explica que no ponto 19. da presente reclamação se conclua que «com efeito uma decisão que consubstancia e permite um abuso de direito é uma decisão que contraria e viola o princípio da dignidade da pessoa humana e não contribui de nenhuma forma para a confiança e segurança jurídica, ambos baluartes de um Estado de Direito. De facto, contraria o mais elementar entendimento de um Estado de Direito a situação de um fiador que, devido à inatividade do exequente (que deixou prolongar a situação de incumprimento por tanto tempo), se vê confrontada com uma dívida que excede em muito a sua expectativa quando prestou a fiança!».
Há que confirmar, pois a decisão que é objeto de reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 8 de outubro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.