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Processo n.º 398/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Por sentença de 11 de Junho de 2002, o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia condenou A., melhor identificada nos autos, nas penas de cinco meses de prisão, substituída por igual tempo de multa, nos termos do artigo 44º, n.º 1, do Código Penal, e de 175 dias de multa, perfazendo uma multa global no valor de € 3.250,00, pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 68º, n.º 2, alínea d), 195º, n.º 1, e
197º, n.º 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Inconformada com esta sentença, veio a arguida interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto, no sentido da sua revogação integral e consequente absolvição. Admitido o recurso, o representante do Ministério Público junto desse tribunal juntou parecer levantando a seguinte questão prévia:
“Constata-se que a arguida recorrente, na parte em que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, não deu integral cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Com efeito, depois de ter especificado os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos, não procedeu à sua transcrição. A este propósito, tenho vindo, desde há muito, a sustentar a posição que segue. Com a revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, foi conferida ao artigo 412º a seguinte redacção:
Artigo 412.º
(Motivação do recurso e conclusões)
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
5 - Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.
Foi assim introduzida uma norma que impôs ao recorrente, quando impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, o ónus de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas (n.º 3), e, no caso de as provas terem sido gravadas, o ónus acrescido de especificar por referência aos suportes técnicos aquelas provas que impõem decisão diversa da recorrida e que devem ser renovadas, acrescentando-se que, nesta última hipótese, há lugar a transcrição (n.º 4).
Esta redacção final, proposta pelo Governo e aprovada sem alterações pela Assembleia da República, diverge significativamente da que havia sido avançada pela Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal, na qual constava a expressão ‘não se procedendo à respectiva transcrição’, em contraste com o que estava consagrado a nível de processo civil. Trata-se, ao que tudo indica, de uma cedência de última hora à ‘rejeição total por todos os tribunais da relação e do Supremo, quanto ao sistema de estarem agora a ouvir a música da audiência’, de que fala o Prof. Germano Marques da Silva numa das intervenções que fez na Assembleia da República.
Perante o regime que acabou por ficar consagrado e a ‘história’ legislativa que o antecedeu, importa determinar qual o sentido e âmbito da transcrição das provas gravadas em audiência e a quem incumbe o ónus da transcrição.
Quanto a este último aspecto, quer-nos parecer que o ónus da transcrição só pode caber ao próprio recorrente.
Desde logo por uma razão de ordem sistemática. (...) E depois também por razões de ordem substantiva. (...) Poderia parecer, assim, que o tribunal de recurso não está obrigado, em processo penal, a ouvir ou a visionar as correspondentes provas gravadas, pois, de outro modo, não teria sentido a exigência de transcrição.
Tal não terá necessariamente que assim suceder. A exigência de transcrição das provas gravadas e das que devem ser renovadas a cargo do recorrente justifica-se como forma de conferir maior transparência e rigor à fundamentação do recurso, mas sem que isso dispense o tribunal ad quem de proceder à audição e visualização daquelas provas, quer como meio de controlar a fidedignidade da transcrição efectuada, quer como modo de se aproximar com maior imediação e globalmente das provas produzidas na instância recorrida.
(...) Refira-se, por fim, que a transcrição de que fala o n.º 4 do artigo 412º é a que ocorre quando o recorrente ‘impugne a decisão proferida sobre matéria de facto’, ou seja, no momento em que interpõe o recurso, e não antes, quando pondera se vai ou não interpô-lo. Para se decidir sobre a necessidade ou oportunidade de interpor recurso, o recorrente dispõe ou pode dispor de cópia da gravação que lhe deve ser facultada pelo tribunal que efectuou o registo, nos termos dos n.ºs
2 e 3 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, subsidiariamente aplicável ao processo penal.
Apesar da controvérsia que continua a reinar acerca deste tema, quer-nos parecer ser este o procedimento mais adequado às específicas finalidades do processo penal e o mais praticável na actual conjuntura judicial.
Em suma:
1.1. A transcrição a que se refere o n.º 4 do artigo 412º tem em vista não a própria interposição do recurso mas tão-somente a sua fundamentação, conferindo-lhe maiores exigências de transparência e rigor.
1.2. Incumbe, pois, ao próprio recorrente a sua efectivação.
1.3. Da conjugação dos artigos 363º e 364º e dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º resulta que essa transcrição é apenas a das provas (declarações prestadas oralmente em audiência) que impõem decisão diversa da recorrida e das que devem ser renovadas, tudo na perspectiva do recorrente, a qual não deverá reconduzir-se apenas a passagens, dispersas e descontextualizadas, daquelas declarações ou depoimentos, escolhidas pelo recorrente segundo as suas próprias conveniências.
1.4. Tal transcrição destina-se à demonstração de verdadeiros erros de julgamento, pontual e excepcionalmente ocorridos na apreciação e fixação da matéria de facto, e não propriamente a fundamentar uma mera divergência quanto à convicção alcançada pelo tribunal a quo.
1.5. Será com base nessa transcrição que o tribunal de recurso fará uma primeira abordagem da pretensão do recorrente e da sua viabilidade. Se concluir que a mesma não evidencia um verdadeiro erro de julgamento da matéria de facto, decidirá desde logo em conformidade com essa conclusão. Se, pelo contrário, o recurso sobre matéria de facto se apresentar com alguma consistência, haverá que analisar e reapreciar as provas indicadas pelo recorrente e, se for caso disso, modificar a decisão recorrida sobre tal matéria.
1.6. Nesta última hipótese, o tribunal de recurso não estará necessariamente limitado às provas especificadas e transcritas pelo recorrente, podendo e devendo alargar a sua investigação a outros meios de prova, oficiosamente e por sugestão de outros sujeitos processuais, de forma a conseguir uma percepção o mais enquadrada possível dos pontos de facto impugnados.
1.7. Para isso o tribunal de recurso poderá proceder à própria audição e visualização das provas gravadas ou, se considerar necessária a sua transcrição, mandar realizá-la em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 101º do Código de Processo Penal, por aplicação analógica, de forma a ser garantida a sua genuinidade e fidedignidade, reclamadas pelas finalidades específicas do processo penal.
1.8. Sendo ordenada a transcrição, global ou parcial, da prova gravada, deverão os autos ser remetidos, para o efeito, à 1ª instância, já que são o funcionário de justiça que assistiu à audiência de julgamento e redigiu a respectiva acta e o juiz que presidiu ao acto que estarão em condições de assegurar aquelas genuinidade e fidedignidade, sem prejuízo, embora, de se obter o concurso de pessoa idónea, em caso de impossibilidade ou falta daquele funcionário.
(...) Muito recentemente, também José Damião da Cunha, na sua tese de doutoramento, se exprimiu no sentido de que, «como é evidente, e seja qual for o ‘ponto de facto’ impugnado (e seja qual for a sua relevância jurídica), as provas que impõem decisão diversa têm que ser expressamente indicadas pelo recorrente que, além disso, tem o ónus de apresentar o conteúdo das mesmas, por via de transcrição, para que o tribunal delas conheça» (...)
Muito embora tenha sido neste sentido a jurisprudência maioritária nesta 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, o certo é que, como é sabido, na outra secção criminal e, sobretudo, no Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a desenhar-se e a consolidar-se jurisprudência em sentido contrário, ou seja, no sentido de que é ao tribunal que compete proceder oficiosamente à transcrição da prova.
Por essa razão e também por razões paralelas às que estão subjacentes no recente Acórdão n.º 320/2002 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República n.º 231, Série I-A, de 07-10-2002, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência, por essas razões, dizíamos, deverá a arguida recorrente ser convidada a apresentar a transcrição integral [das provas] que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da recorrida, sob pena de rejeição do recurso quanto à matéria de facto.
Caso assim não se entenda, então deverão os autos ser remetidos à 1ª instância a fim de que aí se proceda oficiosamente à transcrição das provas gravadas. Num caso ou noutro, pronunciar-me-ei oportunamente, se for caso disso, sobre o mérito do recurso.” Notificada do parecer do Ministério Público, a recorrente respondeu nos seguintes termos:
“Foi com alguma surpresa que a Recorrente leu o teor do douto parecer do Ministério Público de que agora foi notificada. Isto, porque ao recorrer da matéria de facto, a Recorrente teve a preocupação de, precisamente, transcrever os depoimentos das testemunhas ouvidas no julgamento, designadamente na parte em que essas testemunhas confirmaram a posição da Recorrente e que, na perspectiva da Recorrente, justificam o provimento do recurso por si interposto.
(...) Entende a Recorrente que, quando o art. 412º, n.º 4, do Cód. Proc. Penal refere que há lugar à transcrição, não resulta que tenha que ser uma transcrição integral, mas sim, uma transcrição da parte dos depoimentos que justificam que a sentença tivesse sido outra. Pegando nas palavras do ilustre Procurador Geral Adjunto, a Recorrente entendeu que só neste sentido e neste âmbito lhe cabia o ónus acrescido de especificar por referência aos suportes técnicos aquelas provas que impõem decisão diversa da recorrida e que devem ser renovadas (citação da Recorrente de parte do douto parecer do Ministério Público). E quando a lei fala que há lugar à transcrição, há-a na parte que justifica o recurso da recorrente. Só esse é um ónus da [que] deverá caber à Recorrente. Mais do que isso, entende a recorrente, não lhe é exigível, nem faria sentido exigir-se-lhe. E se, porventura, a parte recorrida não concordar com o que foi transcrito pela parte recorrente, descreva com veracidade a totalidade da prova produzida, então, para isso mesmo servem as contra-alegações e à parte recorrida, certamente, assiste direito de transcrever o que tiver por conveniente. De resto, a Recorrente partilha o entendimento daquela que tem sido a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, nos últimos tempos, e a que na parte final do douto parecer do Ministério Público, oportunamente, se fez referência, de que a transcrição integral dos depoimentos gravados deverá ser promovida oficiosamente. No entanto, caso outro seja o entendimento desta Relação, de que a transcrição integral dos depoimentos deverá ser promovida por quem recorre, desde já a Recorrente se coloca à disposição de seguir este outro entendimento e de, por si, promover essa transcrição. Termos em que, e nos mais que Vossas Excelências doutamente se dignarem suprir, dentro do Vosso Mais Alto Saber e critério, deve ser considerado que à Recorrente não cabe o ónus de promover a transcrição integral dos depoimento[s] gravados no julgamento em 1ª Instância.”
Por Acórdão de 22 de Janeiro de 2003, o Tribunal da Relação do Porto decidiu rejeitar o recurso, salientando que:
“É jurisprudência assente que o âmbito dos recursos é determinado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, só abrangendo as questões nelas contidas – artigo 412º, n.º 1, do CPP (cfr. artigos, 684º, n.º 3, e 690º do CPC e 4º do CPP). Estabelece o artigo 412º do CPP:
‘(...)
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
(...).’ A recorrente, como decorre das ‘conclusões’ da respectiva motivação, bem como do próprio texto da última peça, e com o conteúdo supra precisado, não cumpriu a imposição legal prevista nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412º.
(Prejudicada, assim, sem mais, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público nesta Instância, na medida em que a transcrição (Parcial? Total? Indispensável à decisão do recurso?) pretendida, por força da mencionada disposição legal, sempre caberia à recorrente já que, na sua óbvia disponibilidade, unicamente havendo lugar, posteriormente, sendo caso disso, e por este Tribunal o entender, complementarmente, necessário, à baixa dos autos à
1ª Instância para efeitos de transcrição, parcial ou total, da prova correspondente produzida em audiência – cfr. o recente Acórdão deste Tribunal, proferido em 12.06.2002, no recurso n.º 647/02-1ª secção) Assim sendo, a matéria de facto dada como provada apresenta-se como inatacável. Daí que o recurso, em sede de matéria de facto, se apresente manifestamente improcedente, não se podendo conhecer do seu objecto. Logo, devendo ser rejeitado (artigo 420º, n.º 1, do CPP), como nesta área, tem sido decidido nesta Relação.”
2. Inconformada, a arguida pretendeu interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
“nos termos seguintes:
1º O presente recurso é interposto ao abrigo da al. b), do n.º 1, do art.º 70º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção em vigor.
2º Pretende-se que seja apreciada a inconstitucionalidade das normas constantes do art. 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, no sentido de que, em recurso em que seja impugnada a matéria de facto, quando o arguido, na motivação, procedeu à transcrição das passagens da gravação em que se funda, a falta de transcrição integral tem como efeito a rejeição do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência.
3º Tal interpretação viola o art.º 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
4º Relativamente à peça processual em que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada, a inconstitucionalidade é suscitada nesta peça, invocando-se que este pressuposto deve ser tomado num sentido funcional, como tem vindo a ser entendido.
5º Com efeito, até ao acórdão recorrido ter sido proferido, no presente processo, nenhuma decisão judicial havia aplicado tal norma.
6º Acresce que a Jurisprudência maioritária e a do Supremo Tribunal de Justiça não interpretam as referidas normas no sentido do acórdão recorrido. Aliás, ulteriormente à data do acórdão dos autos, veio a ser publicado acórdão uniformizador de Jurisprudência (Assento n.º 2/2003, in D.R., I Série-A, de
30-01-03), fixando jurisprudência nos termos seguintes: ‘Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos ns.º 3 e 4 do art.º 412º do C.P.P., a transcrição ali referida incumbe ao Tribunal.’”
Por despacho de 27 de Fevereiro de 2003, o relator no tribunal a quo decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade, considerando:
“Efectivamente, embora a decisão recorrida seja pouco clara na indicação do fundamento de rejeição do recurso em matéria de facto, percebe-se perfeitamente que esse fundamento não foi a falta de quaisquer transcrições, pois se diz nela que a questão da transcrição, levantada pelo M.º P.º nesta Relação, ficou prejudicada perante a falta de cumprimento do ónus dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º, o que só pode ser entendido como a falta de especificação, por referência aos suportes técnicos, das provas que imporiam decisão diversa da proferida em 1ª instância.”
3. A recorrente veio então reclamar para o Tribunal Constitucional, apresentando as seguintes conclusões:
“1) No despacho de indeferimento de Recurso para o Tribunal Constitucional, de que agora se reclama, o próprio Tribunal da Relação do Porto reconhece que o Acórdão recorrido não é claro na sua fundamentação, e por essa razão teve que interpretar o sentido em que devia ser entendido esse Acórdão.
2) Simplesmente, ao interpretar de modo a que a recorrente, agora reclamante, não pudesse recorrer para o Tribunal Constitucional, interpretou de forma mais desfavorável para a arguida (ora reclamante), o que em si mesmo é inconstitucional, por violação do Pr. In Dubio Pro Reo e das garantias de defesa do arguido – art. 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
3) Sem conceder, uma vez que efectivamente as motivações do recurso sobre a matéria de facto rejeitado pela Relação do Porto, especificavam, por referência aos suportes técnicos, as provas que impunham uma decisão distinta da proferida em 1ª instância, o entendimento que foi dado ao Acórdão da Relação do Porto no despacho de indeferimento de recurso de que se reclama não tem razão de ser.
4) Na realidade esse acórdão foi proferido com o sentido que a recorrente lhe atribuiu no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, sentido que, salvo outra opinião, é inconstitucional e deverá, por isso, ser objecto de apreciação por este Tribunal.”
4. O representante do Ministério Público neste Tribunal pronunciou-se sobre a reclamação nos seguintes termos:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que se não verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto para este Tribunal, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82. Na verdade, o ora reclamante não suscitou durante o processo a questão de constitucionalidade que apenas colocou no âmbito do requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta – tendo tido plena oportunidade para o fazer, na resposta apresentada ao parecer emitido pelo representante do M.º P.º junto da Relação (cf. fls. 82/85).”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
5. O recurso cuja admissão está em causa no presente recurso foi interposto pela arguida ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como se sabe, são requisitos específicos deste recurso a suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo, a aplicação pelo tribunal a quo da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, e o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam. Na presente sede, não compete ao Tribunal Constitucional, propriamente, reapreciar a fundamentação da decisão de não admissão do recurso – mas antes, como se escreveu no Acórdão n.º 490/98 (disponível em www. tribunalconstitucional.pt) apurar de uma “indevida preterição do direito de reapreciação (...) de uma questão de constitucionalidade”. Basta, assim, verificar a falta de um só dos necessários requisitos do tipo de recurso de constitucionalidade interposto, para a reclamação dever ser indeferida, por o recurso não poder ser admitido.
5. Segundo o Ministério Público, a presente reclamação não procederia por faltar o requisito, indispensável para se poder tomar conhecimento do recurso, que consiste na suscitação da inconstitucionalidade durante o processo.
Este requisito deve entender-se – como se decidiu, v. g., no Acórdão n.º 352/94
(Diário da República (DR), II série, de 6 de Setembro de 1994) e se tem depois repetido em jurisprudência constante –, “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”,
“antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”. É, na verdade, este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado (ver, por exemplo, o Acórdão n.º
560/94, DR, II, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in DR, II, de 20 de Junho de 1995). O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade normativa – v. também, além dos Acórdãos citados, por exemplo o Acórdão n.º 166/92, DR, II, de 18 de Setembro de 1992. Antes o recorrente tem o ónus de suscitar a inconstitucionalidade normativa perante o tribunal a quo, para este se pronunciar sobre ela.
Esta orientação, como também se referiu no referido Acórdão n.º 352/94, apenas sofre restrições em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão final, ou não era exigível que o fizesse, por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível da norma impugnada.
No presente caso, e como resulta da transcrição efectuada, a ora reclamante teve oportunidade de responder à questão prévia suscitada pelo Ministério Público no seu parecer emitido junto do Tribunal da Relação (cuja cópia integral se encontra a fls. 248 a 251 dos autos), no qual, como se viu, se defendeu que a transcrição incumbia à recorrente, e que esta devia ser “das provas (...) que impõem decisão diversa da recorrida e das que devem ser renovadas”, não podendo
“reconduzir-se apenas a passagens, dispersas e descontextualizadas, daquelas declarações ou depoimentos, escolhidas pelo recorrente segundo as suas próprias conveniências” – pelo que se concluiu que a recorrente devia ser convidada a apresentar tal transcrição. A recorrente utilizou, aliás, a oportunidade para responder a este parecer, sem, todavia – como resulta da transcrição feita – suscitar, na resposta que apresentou, qualquer questão de constitucionalidade, que apenas veio levantar no âmbito do requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta.
Importa notar, porém, que tal questão prévia se reportava à rejeição do recurso, pela falta de transcrição, sem que ao recorrente “seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência”.
Isto é, sendo certo que o Ministério Público, na sua pronúncia, defendera que a recorrente fosse convidada a apresentar a transcrição, que lhe incumbiria, tal convite não foi efectuado, e é a dimensão normativa reportada à ausência deste convite que a recorrente pretendeu impugnar.
Poderá, pois, admitir-se (até considerando a jurisprudência constitucional citada no referido parecer do Ministério Público) que a recorrente não tinha o
ónus de impugnar a norma em causa numa dimensão que incluísse a consequência da rejeição do recurso sem prévio convite para aperfeiçoar este.
6. Há, assim, que apurar se a dimensão normativa impugnada pela recorrente foi efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido, ou se, como se disse no despacho de não admissão de recurso ora em crise, a decisão recorrida se baseou, como ratio decidendi, numa outra norma, ou dimensão normativa, diversa da impugnada pela recorrente.
Defende a reclamante que o próprio Tribunal da Relação do Porto reconheceu não ser claro o acórdão recorrido, na sua fundamentação, tendo sido “proferido com o sentido que a recorrente lhe atribuiu no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional”, o qual seria inconstitucional. Seria esse sentido o impugnado no n.º 2º do requerimento de recurso: o do “art. 412º, n.ºs
3 e 4, do Código de Processo Penal, no sentido de que, em recurso em que seja impugnada a matéria de facto, quando o arguido, na motivação, procedeu à transcrição das passagens da gravação em que se funda, a falta de transcrição integral tem como efeito a rejeição do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência.”
Como, porém, se notou, correctamente, no despacho de não admissão do recurso ora em crise, o fundamento decisivo para a rejeição do recurso não foi a falta de quaisquer transcrições, ou de transcrição integral, mas antes “a falta de especificação, por referência aos suportes técnicos, das provas que imporiam decisão diversa da proferida em 1ª instância.” Na verdade, na decisão de rejeição do recurso disse-se que a recorrente “não cumpriu a imposição legal prevista nos n.ºs 3 e 4, do citado artigo 412º” do Código de Processo Penal, os quais impõem a especificação das provas. Designadamente, só assim se compreende a referência autónoma, na decisão de rejeição do recurso, ao n.º 3 do artigo
412º do Código de Processo Penal, para frisar que o que estava em causa não era apenas a transcrição. E só assim se pode compreender que se tenha notado que ficou prejudicada “sem mais, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público nesta Instância”, pois “a transcrição (Parcial? Total? Indispensável à decisão do recurso?) pretendida, por força da mencionada disposição legal, sempre caberia à recorrente” (sublinhados no original).
O recurso não foi, pois, admitido por não se verificar um seu requisito indispensável: a aplicação, pela decisão recorrida, da norma com o sentido impugnado pela recorrente. E a presente reclamação, assim, tem de ser indeferida.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar o despacho reclamado, de não admissão do recurso.
Custas pela reclamante, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 8 de Outubro de 2003
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos