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Proc. n.º 5/03 Acórdão nº 284/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e mulher, B, interpuseram, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, “recurso contencioso de anulação de um acto administrativo dos Serviços do Registo Predial” (cfr. fls. 2), tendo conjuntamente demandado o Estado Português, representado pelo Ministério Público, a Conservadora destacada da Conservatória do Registo Predial de Coimbra e o Director-Geral dos Registos e Notariado. Na petição do recurso concluíram do seguinte modo:
“a) Os recorrentes são donos e legítimos possuidores de uma fracção «AE» que adquiriram por escritura pública de 21/08/84 à C. e tiveram-na inscrita a seu favor no Registo Predial entre 24/08/84 e 30/03/87 quando foi declarado caduco. b) E adquiriram esta fracção, de um prédio urbano constituído em Propriedade Horizontal, por escritura pública de 11/04/83, registadas e inscritas todas as fracções a favor da C., em 08/07/83 e nestas condições foi vendida aquela fracção. c) Caducado o registo da fracção «AE», voltaram os recorrentes a requerer o registo daquela aquisição efectuada pela escritura de 21/08/84 pela apresentação n° 43/22032000, tendo sido a mesma registada provisoriamente por dúvidas, o qual, por isso, caducou passado que foram 6 meses, sem que fossem removidas as dúvidas. d) Mas, o registo efectuado nos termos descritos, eventualmente por dúvidas, que mais parece uma recusa, fora assim efectuado sem prévia audição dos interessados no registo e ora recorrentes, nos termos do art. 100° do CPA. e) E apresentado recurso hierárquico para a Direcção Geral do Notariado, na Conservatória pretendeu-se recusar o recurso, por falta de preparo, sem se ter notificado os recorrentes, nos termos do art. 113° do Cód. Proc. Adm., por se entender que também estes comandos não se aplicam aos serviços prestados nas Conservatórias. f) E colocada esta questão à Direcção Geral, por Despacho do Senhor Director Geral, foi dada razão à Senhora Conservadora, determinando-se que os serviços públicos das Conservatórias não estão sujeitos ao que determina o art. 100° e
103° daquele C.P.A. g) Assim, salvo o devido respeito as decisões da Senhora Conservadora e do Senhor Director Geral, violaram os arts. 100° e 103° por força dos nºs 5, 6 e 7 do art. 2° do Cód. Proc. Adm. Nestes termos e melhores de direito, deve ser julgado procedente o recurso e, por via do mesmo, revogar-se os Despachos que determinaram o registo provisório por dúvidas, sem audição dos interessados, assim como recusaram a aplicação do Cód. Proc. Adm. e que foram pelo Director Geral sancionados.”
O representante do Ministério Público, logo no momento inicial (fls.
119), sustentou, em síntese, que “a petição inicial de RCA não respeita os requisitos impostos pelo artigo 36º da LPTA, pelo que se deverá notificar os recorrentes para procederem à sua regularização”, tendo os recorrentes respondido a fls. 121 e seguintes.
O Director-Geral dos Registos e Notariado deduziu a resposta de fls.
131 e seguintes, na qual sustentou, entre o mais, não possuírem os tribunais administrativos competência para decidir sobre a matéria em causa. Os recorrentes, a fls. 173 e seguintes, retorquiram que os tribunais administrativos eram competentes, atendendo a que “no recurso a que diz respeito os presentes autos não está em causa a recusa do registo, mas apenas os trâmites legais efectuados pela Conservatória para chegar à decisão que pode ser levada ao Tribunal Cível”.
O representante do Ministério Público emitiu o parecer de fls. 179 e seguinte, no qual se pronunciou no sentido da incompetência material dos tribunais administrativos, nos termos que seguem:
“[...] Os actos objecto do presente recurso contencioso de anulação estão inseridos no procedimento registral, que não se confundem, no que se refere à sua impugnação, de outros actos de conteúdo funcional e orgânico praticados pelos serviços dependentes da Direcção-Geral dos Registos e Notariado. Como muito bem diz o Exmº Sr. Director-Geral dos Registos e Notariado, os actos agora impugnados, tendo em conta a sua natureza para-judicial ou jurisdicional, uma vez que têm por finalidade titular ou publicitar de modo autêntico e juridicamente eficaz o estado civil e os direitos individuais das pessoas singulares e colectivas, não são actos administrativos, e, depois de esgotados os meios de impugnação graciosa – designadamente, o recurso hierárquico (onde, também aqui, apenas se aprecia o mérito, a juridicidade da decisão assumida pelo Conservador), só podem ser sujeitos ao controlo dos tribunais comuns, através dos meios processuais expressamente previstos no Código de Registo e Notariado, mas nunca pelos Tribunais Administrativos, que para tal são incompetentes em razão da matéria.
É o que claramente resulta das disposições constantes do Título VII – «Da impugnação das decisões do conservador» – do Código de Registo Predial. Assim sendo, somos de parecer que deverá ser rejeitado o presente recurso contencioso de anulação, por incompetência material do tribunal administrativo, de conhecimento prioritário e autónomo, conforme decorre dos arts. 2°, 3° e 4° da LPTA.”
2. Por sentença de fls. 181 e seguintes, o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra declarou-se incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir o recurso, pelos seguintes fundamentos:
“[...] Da leitura do processo resulta que os actos recorridos são os seguintes:
1° – despacho que recaiu sobre a ap. 43/22032000, proferido sem que tenha sido cumprido, antes, o art. 100° do C.P.A.;
2° – despacho proferido no recurso hierárquico interposto deste primeiro despacho (que julgou extinta a instância do recurso e ordenou a cobrança de emolumentos), proferido sem que tenha sido cumprido, também, o disposto no art.
100° do C.P.A. Vejamos, então, o que diz o Código de Registo Predial (na redacção dada pelo D.L. 533/99, de 11/12). No título dedicado à impugnação das decisões do conservador, resulta que das decisões do conservador de recusa da prática do acto requerido pode ser interposto recurso hierárquico para o director-geral dos Registos e do Notariado ou recurso contencioso para o tribunal da comarca a que pertence a sede da conservatória – art. 140°, do C.R.P. Por outro lado, a interposição de recurso contencioso faz precludir o direito de interpor recurso hierárquico, equivalendo à desistência deste quando já interposto – art. 141°, n° 2, do C.R.P. Agora, e quanto ao recurso contencioso, dispõe o art. 146° do C.R.P.:
«1 – Recebido em juízo e independentemente de despacho, o processo vai com vista ao Ministério Público, para emissão de parecer.
2 – O juiz que tenha intervindo no processo donde conste o acto cujo registo está em causa fica impedido de julgar o recurso contencioso». Na realidade, esta norma não determina qual seja o tribunal competente para conhecer do recurso contencioso interposto de acto do conservador. Mas já temos aquela outra norma, constante do art. 140°, que diz expressamente que o tribunal competente para conhecer do recurso contencioso interposto do acto de recusa é o tribunal da comarca. E neste outro caso a competência pertence ao mesmo tribunal. Desde logo, era absolutamente irrazoável atribuir naquele caso a competência ao tribunal de comarca e neste ao tribunal administrativo. Mas, além disso, o art. 147°, n° 1, atribui a possibilidade de recurso para a Relação da sentença proferida em processo de recurso contencioso.
E também diz que da decisão da Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – n° 3. Resulta claramente da lei que o tribunal competente para conhecer do recurso das decisões aqui atacadas é o tribunal da comarca.
[...].”
3. Desta sentença interpuseram A. e mulher recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo (fls. 190), tendo nas alegações respectivas
(fls. 196 e seguintes) apresentado as seguintes conclusões:
“a) Os recorrentes vieram, por apresentação requerer um registo de uma fracção de um prédio urbano. b) E a Senhora Conservadora, sem sequer ouvir os recorrentes ou seja, os interessados, nos termos do art. 100º do Cód. Proc. Adm. efectuou o registo provisório por dúvidas sem dar oportunidade que o apresentante renunciasse ao registo e poupasse os emolumentos. c) E depois a mesma Conservadora julgou extinto o procedimento, em virtude de a recorrente não ter pago os preparos sobre a interposição do recurso hierárquico, para o Director Geral dos Registos e Notariado, sem que tenham também sido ouvidos sobre esta falta ou notificados para pagar o preparo, violando-se assim o art. 113° do Cód. Proc. Adm. d) E colocadas, no recurso hierárquico estas duas questões o Senhor Director Geral, entende que os Serviços das Conservatórias não estão sujeitos ao Cód. do Proc. Adm., não obstante os comandos dos nºs 5, 6 e 7 do art. 2° deste. e) Face a este comportamento, quer da Senhora Conservadora, quer do Senhor Director Geral dos Registos e Notariado, os aqui alegantes vieram trazer esta questão aos Tribunais Administrativos, por estarem convencidos que são estes os Tribunais competentes e têm de saber se os serviços das Conservatórias estão ou não sujeitos ao Cód. Proc. Administrativo. f) O Mm. Juiz a quo não obstante esta realidade, declarou incompetentes para analisar a questão da ilegalidade dos referidos actos administrativos efectuados na Conservatória os Tribunais Administrativos. g) E, estão os recorrentes convencidos que se fez errada interpretação dos arts.
140°, 146° e 147º do Cód. Reg. Predial e art. 51° do ETAF, violando-se não só as normas apontadas nesta conclusão, como também o n° 4 do art. 268° da Const. da Rep.
[...].”
A decisão recorrida foi mantida, por despacho de fls. 204.
4. Por acórdão de fls. 213 e seguintes, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, pelos seguintes fundamentos:
“[...] Liminarmente, haverá de recordar-se que o objecto do recurso jurisdicional é a sentença recorrida, que não o acto contenciosamente impugnado, pelo que o tribunal ad quem apenas tem competência para apreciar as questões decididas, salvo o conhecimento de questões de conhecimento oficioso. Por este motivo, não se conhecerá das questões a que se reportam as conclusões das als. b), c) e d). No mais e entrando na análise dos fundamentos do agravo, diremos que o senhor juiz recorrido, em obediência ao disposto no art. 3° da LPTA, conheceu, como prioridade aí imposta, da competência do tribunal para o conhecimento da pretensão apresentada pelos recorrentes e tal como estes a apresentaram, decidindo-se pela declaração de incompetência do tribunal administrativo. Este julgamento decorre de invocada disposição legal, o art. 140° do CReg. Predial em que, expressamente se estabelece a competência do juiz da comarca para a apreciação dos recursos contenciosos dos actos dos conservadores do registo predial do acto de efectivação de registo como provisório ou por dúvidas. Este regime legal explícito só por declaração de inconstitucionalidade da norma de competência invocada poderia ser afastado. Mas, como é entendimento pacífico da jurisprudência deste STA, o vigente art.
212°/3 da CRP (art. 214°/3 na redacção anterior) não estabeleceu uma reserva material absoluta de competência dos tribunais administrativos, mas e tão só o
âmbito regra da jurisdição administrativa, podendo o legislador ordinário atribuir a tribunais não administrativos o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, desde que para tal exista fundamento material razoável e não se descaracterize o núcleo essencial da jurisdição administrativa. Por estes motivos, este STA tem repetidamente declarado a conformidade constitucional de normas atributivas de competência aos tribunais comuns para conhecimento de certas questões emergentes de relações jurídicas administrativas, como acontece, em relação às normas do art. 26° da Lei 37/81 de
3-10 e do art. 38° do DL 322/82 de 12-8, atribuindo ao Tribunal da Relação de Lisboa a competência para o conhecimento do contencioso administrativo de actos relativos à aquisição ou perda de nacionalidade; ou na situação do art. 203° da CPI, aprovado pela DL 16/95 de 24-1, atribuindo competência para apreciação contenciosa dos actos relativos aos registos de propriedade industrial ao tribunal da comarca de Lisboa; ou, the last bul not the least, em relação às normas dos arts. 145° e 168° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, atribuindo competência para apreciação dos actos do CSM ao STJ. Dada a natureza jusprivatística das questões relativas ao registo predial, a atribuição de competência de apreciação dos actos do respectivo conservador tem plena justificação, pelo que a norma do art. 140° não viola o art. 212°/3 da CRP.
[...].”
5. A. e mulher interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 224 e seguinte), dizendo, em síntese, o que segue:
“[...]
3 – Os requerentes, nas suas alegações apresentadas em 07/05/2002, dirigidas a este Supremo Tribunal colocaram as suas razões e vieram arguir de inconstitucionalidade as normas que não lhe permitiam discutir a questão da legalidade sobre a recusa de audição por aplicação do art. 100º do Cód. de Procedimento Administrativo face aos comandos dos nºs 5, 6 e 7 do art. 2º deste Código.
4 – Por esta razão alegaram na al. g) das suas conclusões a inconstitucionalidade dos arts. 140º, 146º e 147º do Código Registo Predial e art. 51º do ETAF na medida em que a recusa foi sustentada pela aplicabilidade destas normas as quais não podem deixar de violar o nº 4 do art. 268º da Constituição da República.
5 – Assim, os requerentes arguiram a inconstitucionalidade das referidas normas e, por isso data maxima venia, estão cumpridas as condições constantes do nº 1 do art. 75º-A da Lei nº 28/82, de 15/11.
[...].”
O recurso foi admitido, por despacho de fls. 226.
6. Já no Tribunal Constitucional, foi proferido o despacho de fls. 232 e seguintes, no qual se concluiu pela seguinte delimitação do objecto do recurso:
“[...]
[...] no âmbito do presente recurso apenas poderá ser apreciada a conformidade constitucional da norma que define o tribunal competente para conhecer dos recursos contenciosos dos actos dos conservadores do registo predial, isto é, da norma contida no nº 1 do artigo 140º do Código do Registo Predial, pois só essa norma constituiu o fundamento da decisão no acórdão recorrido.
[...].”
7. Nas alegações, concluíram assim os recorrentes (fls. 236 e seguintes):
“a) As Conservatórias do Registo Predial não podem deixar de ser Repartições Públicas, incluídas na Administração do Estado. b) E os seus colaboradores são funcionários públicos, sujeitos aos comandos do Cód. Proc. Administrativo, como o determina o art. 2º do mesmo. c) E os actos administrativos praticados por estes funcionários quando decidem, têm de respeitar o art. 100º do Código de Procedimento Administrativo. d) Ao defender-se que toda a actividade e decisões dos funcionários das Conservatórias está sobre sindicância do Tribunal Cível da Comarca onde estas se situam, nos termos do nº 1 do art. 140º do Cód. Reg. Predial ofende-se a Constituição da República. e) Os actos administrativos praticados nas Conservatória não podem deixar de estar sujeitos à sindicância dos Tribunais Administrativos, e só estes são os competentes para dirimir a ofensa dos direitos dos administrados, pelas decisões plasmadas nesta actividade. f) E ao julgar-se no Acórdão sub judice à interpretação de que o nº 1 do art.
140º do Cód. Reg. Predial se aplica a todos os actos administrativos praticados nas Conservatórias do Registo Predial e por isso, os Tribunais Administrativos são incompetentes para dirimir estes litígios, consagrou-se uma grave inconstitucionalidade. g) Pelo que ao declarar-se no mesmo Acórdão, que os actos administrativos acessórios do Registo não estão sujeitos ao art. 100º do Cód. Proc. Adm. e que esta questão não é da competência dos Tribunais Administrativos, consagrou-se uma grave inconstitucionalidade por violação dos arts. 110º, 212º e 268º, nº 4 da Constituição da República.”
8. Nas contra-alegações, o Ministério Público concluiu do seguinte modo
(fls. 245 e seguintes):
“1º – Não padece obviamente de inconstitucionalidade a interpretação normativa do artigo 140º, nº 1, do Código de Registo Predial que se traduz em estender a competência dos tribunais judiciais, aí previstas, à apreciação da impugnação deduzida contra quaisquer actos do conservador que hajam precedido a recusa do registo, impugnada pelo requerente.
2º – Termos em que improcede manifestamente o presente recurso.”
Nas contra-alegações que também apresentou, concluiu assim o Director-Geral dos Registos e do Notariado (fls. 249 e seguintes):
“[...]
2. No exercício da função qualificadora o conservador aprecia livre, autónoma e imparcialmente a possibilidade de inscrição no registo (a validade dos actos, a produção dos efeitos e a definição da prioridade dos factos jurídicos), apenas devendo obediência à lei;
3. Na actividade dos conservadores e notários são aplicadas normas respeitantes a requisitos juscivilistas ou comercialistas dos actos jurídicos a lavrar ou a registar e outras relativas aos aspectos administrativos da actividade registral e notarial;
4. Nem sempre é fácil integrar os diversos e heterogéneos actos dos conservadores e notários no conceito e nos quadros dogmáticos (estruturais e funcionais) próprios da actividade jusprivatística ou administrativa;
5. O critério (orgânico e material) a adoptar na repartição de competência entre os tribunais comuns e os administrativos deve assentar nessa distinção;
6. A função qualificadora do conservador integra uma jurisdição própria e autónoma, voluntária, cumprindo a função legitimadora do Estado e conferindo eficácia geral aos direitos e interesses privados;
7. Sendo a sua actividade exercida em moldes jusprivatísticos, não faz sentido que nessas funções se lhes aplique os princípios gerais do Código do Procedimento Administrativo, de natureza jurídico-pública, como é o caso do princípio da audiência prévia, sob pena de se levar à degeneração do sistema instituído;
8. O legislador distinguiu os procedimentos da reclamação e do recurso das decisões em razão da matéria;
9. Utilizando idêntico critério na definição da jurisdição competente para as apreciar;
10. Assim, aquilo que na actividade de conservadores e notários é matéria de direito comum fica afecto aos tribunais comuns;
11. E aquilo que é matéria administrativa fica afecta à jurisdição administrativa;
12. Razões por que não deve ser dado provimento ao recurso mas confirmada a decisão do Supremo Tribunal Administrativo no sentido da conformidade da norma constante do nº 1 do art. 140º do Código do Registo Predial com o princípio consagrado no nº 3 do art. 212º da Constituição da República Portuguesa.”
A Conservatória do Registo Predial de Coimbra, nas alegações de fls.
278 e seguintes, invocou as excepções dilatórias de falta de personalidade e capacidade judiciárias da mesma Conservatória – previstas nos artigos 493º e
494º, alínea c), do Código de Processo Civil –, por falta de representação pelo Ministério Público, e, quanto à questão de fundo, sustentou que o recurso não merecia provimento, entre o mais porque “os actos típicos praticados por Conservadores e Notários não são actos administrativos”. Juntou ainda os documentos de fls. 282 e seguintes.
II
9. Importa apreciar, em primeiro lugar, as excepções dilatórias invocadas pela recorrida: falta de personalidade e de capacidade judiciárias da Conservatória do Registo Predial de Coimbra, por falta de representação pelo Ministério Público (supra, 8.).
A recorrida não tem razão.
Desde logo, porque o recurso contencioso de anulação de que emergiram os presentes autos foi interposto contra a Conservadora da referida Conservatória e não contra a própria Conservatória (cfr. fls. 2). Assim sendo, a Conservatória não é parte, carecendo de sentido aferir, quanto a ela, da verificação dos pressupostos processuais do presente recurso.
Em segundo lugar, porque, não obstante o tribunal recorrido ter julgado incompetentes em razão da matéria os tribunais administrativos, a verdade é que o presente recurso de constitucionalidade não emergiu de um processo de natureza cível, mas de um processo de natureza administrativa, no qual a Conservadora figurou como entidade recorrida, sem necessidade de representação pelo Ministério Público. E podendo ser parte e estar por si em juízo nesse processo, não se compreenderia que, no presente recurso de constitucionalidade, se questionasse a respectiva personalidade e capacidade judiciárias à luz do preceituado no Código de Processo Civil, exigindo-se a sua representação pelo Ministério Público.
Não procede, pois, a invocação da falta de personalidade e capacidade judiciárias da recorrida.
Quanto à necessidade de patrocínio judiciário da recorrida, é a própria recorrida que se pronuncia em sentido negativo (cfr. fls. 279). E tal já resultaria do disposto no artigo 83º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional
(sobre o âmbito de aplicação deste preceito, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 253/98, de 5 de Março, publicado no Diário da República, II Série, n.º 256, de 5 de Novembro de 1998, p. 15590).
10. Relativamente à questão de fundo, e considerando que apenas cumpre apreciar a conformidade constitucional da norma que define o tribunal competente para conhecer dos recursos contenciosos dos actos dos conservadores – isto é, da norma contida no n.º 1 do artigo 140º do Código do Registo Predial –, conforme delimitação do objecto do recurso a que se procedeu (supra, 6.), importa ter em atenção, desde logo, o que se dispõe neste preceito, bem como no artigo 212º, n.º 3, da Constituição.
Determina o artigo 140º, n.º 1, do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 533/99, de 11 de Dezembro:
“Artigo 140º
(Admissibilidade do recurso)
1 – A decisão do conservador que recuse a prática do acto nos termos requeridos pode ser impugnada por recurso hierárquico para o director-geral dos Registos e do Notariado ou por recurso contencioso para o tribunal da comarca a que pertence a sede da conservatória.
[...].”
Por seu lado, dispõe o artigo 212º, n.º 3, da Constituição, o seguinte:
“Artigo 212º
(Tribunais administrativos e fiscais)
[...]
3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Ora, considerou o tribunal recorrido que a norma objecto do presente recurso não era inconstitucional, pois que a norma constitucional acabada de transcrever não estabelecia uma reserva material absoluta de competência dos tribunais administrativos e a natureza jusprivatística das questões relativas ao registo predial conferia plena justificação ao regime consagrado no artigo 140º, n.º 1, do Código do Registo Predial.
Vejamos se a conclusão do tribunal recorrido é de acatar.
11. Importa assinalar, antes de mais, que sobre questões semelhantes à que constitui o objecto do presente recurso já se pronunciou o Tribunal Constitucional, nomeadamente no acima referido acórdão n.º 253/98, de 5 de Março.
Disse o Tribunal nesse acórdão o seguinte:
“[...]
17. Como se viu o ora recorrente sustentou durante o processo a inconstitucionalidade do nº 3 do art. 37º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, que estatui o seguinte:
«Dos actos definitivos relativos ao concurso e à nomeação dos juízes recorre-se para o plenário geral do Tribunal, aplicando-se subsidiariamente o regime de recurso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura». Tratando-se de actos administrativos recorríveis, deveriam – na tese do recorrente – ser competentes para deles conhecer os tribunais administrativos atento o disposto no art. 214º, nº 3, da Constituição (versão resultante da segunda revisão constitucional; tal preceito encontra-se hoje no nº 3 do art.
212º, após a quarta revisão constitucional, mas a norma não sofreu qualquer alteração de redacção). Além disso, a norma em causa ofenderia ainda o princípio de igualdade, criando um foro especial para a impugnação de certos actos administrativos, afectando mesmo a competência «estabilizada» do tribunal administrativo de círculo e violando a imperatividade das decisões transitadas em julgado.
18. O Tribunal Constitucional tem sido confrontado em outras ocasiões com a questão de saber se a Constituição cria uma reserva absoluta de jurisdição, em matérias administrativas, a favor dos tribunais administrativos. A partir do acórdão nº 371/94 (in Diário da República, II Série, nº 204, de 3 de Setembro de 1994), de forma cautelosa, o Tribunal Constitucional sustentou que todos os elementos disponíveis apontavam «para interpretar o artigo 214º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa como direccionado ao julgamento das acções e recursos que versem sobre relações jurídicas administrativas e fiscais litigiosas, não podendo a lei ordinária extravasar para outra coisa que não sejam tais relações, mas sem que isso signifique que, de todo em todo, se tenha impedido relegar para a mesma lei qualquer parcela definidora ou integradora da competência dos tribunais administrativos e fiscais, no que toca a processos executivos» (estava em causa uma execução instaurada nos tribunais fiscais pela Caixa Geral de Depósitos, antes da passagem desta instituição à forma de sociedade anónima regida pelo direito privado; no mesmo sentido, vejam-se os acórdãos nºs. 372/94, no mesmo Diário, nº 207, de 7 de Setembro de 1994, 508/94 e 509/94, ainda no mesmo Diário, nºs. 286 e 287, de 13 e 14 de Dezembro de 1994, respectivamente). E com base em posições doutrinais sustentadas a propósito do sentido daquele nº
3 do art. 214º, o Tribunal Constitucional acolheu a ideia de que os tribunais administrativos e fiscais não teriam, em absoluto, jurisdição exclusiva no tocante às relações administrativas e fiscais. Assim, a propósito da competência dos tribunais comuns para o processo de expropriação por utilidade pública, o Tribunal Constitucional decidiu que não havia qualquer inconstitucionalidade da norma atributiva dessa competência, baseando-se na tradição jurídica existente de intervenção dos tribunais judiciais nesse domínio:
«Em síntese: sem se tomar posição quanto à consagração ou não aí de uma reserva material absoluta de jurisdição, o certo é que o sentido do nº 3 do artigo 214º da Constituição é o de que ele foi pensado para a fase declarativa da apreciação de acções e recursos administrativos, sendo este o ‘núcleo caracterizador do modelo’, na expressão de Vieira de Andrade» (esta orientação foi seguida nos acórdãos nºs. 799/96, 927/96, 965/96, 1102/96 e 65/97, de que está publicado apenas o terceiro, in Diário da República, nº 296, de 33 de Dezembro de 1996) Mais recentemente, o Tribunal Constitucional veio a apreciar a inconstitucionalidade do nº 1 do art. 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, julgando que o mesmo não violava a Constituição, nomeadamente o nº 3 do art. 214º (versão da segunda revisão constitucional). Assim, no acórdão nº 347/97 (publicado no Diário, II Série, nº 170, de 25 de Julho de 1997), o Tribunal Constitucional entendeu que o nº 1 do art. 168º do EMJ (norma que dispõe sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer dos recursos contenciosos interpostos de deliberações do Conselho Superior da Magistratura) não ofendia o nº 3 do referido artigo:
«... a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do nº 3 do artigo 214º do texto constitucional foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa, e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos. Todos estes argumentos confluem para a conclusão de que não existe impedimento constitucional à atribuição pontual e fundamentada de competência aos tribunais judiciais para a apreciação de determinadas questões de natureza administrativa. Assim: o caso, por exemplo, do julgamento dos recursos de aplicação de coimas
(Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro); dos recursos das decisões administrativas em matéria de patentes (artigo 2º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro) e de, em certos casos, o contencioso dos actos dos conservadores no domínio do direito registral e do notariado...»
19. A orientação jurisprudencial acolhida, por último, no acórdão nº 347/97 deve ser transposta para o caso sub judicio. De facto, à data da segunda revisão constitucional – em que surgiu o novo art.
214º consagrando a obrigatoriedade constitucional de existência de tribunais administrativos e fiscais e estabelecendo a competência dos mesmos – o contencioso administrativo em matérias estatutárias, nomeadamente concursos de ingresso e matérias disciplinares dos juízes das diferentes ordens de tribunais estava reservado aos supremos tribunais da respectiva ordem, sendo, de resto, essa solução tradicional no nosso ordenamento. Bastará referir, ao lado do art.
37º, nº 3, da Lei do Tribunal de Contas (esta publicada já depois da publicação da segunda revisão constitucional), o disposto quanto ao recurso contencioso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura (arts. 168º a 178º do EMJ), e quanto ao contencioso das deliberações disciplinares respeitantes aos juízes do Tribunal Constitucional (art. 25º, nº 2, da respectiva Lei Orgânica), para não falar, claro, do regime de recurso das deliberações do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (art. 26º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro). Por isso se entende que não existe impedimento constitucional à «atribuição pontual e fundamentada» da competência ao Tribunal de Contas para apreciação – enquanto órgão jurisdicional independente e imparcial – do contencioso administrativo respeitante às deliberações do júri de recrutamento dos seus juízes (a solução foi, de resto, mantida pelo art. 20º, nº 3, da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, nova Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas).
[...].”
12. Da jurisprudência assinalada (e poderiam ainda referir-se, a título exemplificativo, o acórdão n.º 458/99, de 13 de Julho, publicado no Diário da República, II Série, n.º 55, de 6 de Março de 2000, p. 4454, e o acórdão n.º
550/2000, de 13 de Dezembro, publicado no Diário da República, II Série, n.º 27, de 1 de Fevereiro de 2001, p. 2206), para cujos fundamentos ora se remete, ressalta a rejeição de uma interpretação do artigo 212º, n.º 3, da Constituição conducente a uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para a apreciação de matérias de natureza administrativa: a apreciação dessas matérias por outra ordem jurisdicional não enfrenta, caso seja materialmente justificada, qualquer obstáculo de natureza constitucional.
Ora, se assim é, não se torna sequer necessário determinar a natureza dos actos dos conservadores do registo predial para dilucidar a presente questão de constitucionalidade. Quer se aceite a natureza jurisdicional ou para-judicial dos actos de que emergiu o presente recurso (como pretendem o Director-Geral dos Registos e do Notariado e a Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Coimbra: supra, 8. e fls. 255 e 282 e seguintes), quer se entenda que eles configuram verdadeiros actos administrativos, como parecem sustentar os recorrentes (supra, 7.), a verdade é que, como se salienta nas contra-alegações do Ministério Público (supra, 8. e fls. 245-246), tais actos estão estritamente ligados “a uma actividade de administração pública de direitos privados e à eficácia e oponibilidade dos efeitos dos negócios jurídicos referentes a bens imóveis”, havendo consequentemente uma conexão relevante entre tais actos e o direito privado, legitimadora da sua apreciação pelos tribunais comuns, como aliás já é tradição no nosso direito.
Havendo fundamento material bastante para a apreciação desses actos pelos tribunais judiciais, conclui-se que a norma em apreço no presente recurso não viola o disposto no artigo 212º, n.º 3, da Constituição.
E afastada está igualmente a alegada violação da tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados (garantida pelo artigo 268º, nº 4, da Constituição).
III
13. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 140º, n.º 1, do Código de Registo Predial, na parte em que define o tribunal competente para conhecer dos recursos contenciosos dos actos dos conservadores, negando consequentemente provimento ao presente recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 29 de Maio de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida