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Proc. nº 547/02
3ª Secção Rel.: Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A., identificado nos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra do despacho do Vice-Almirante Superintendente dos Serviços do Pessoal – por delegação do Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada –, nº ......./98, de ..... de
............... de 1997 (publicado no Diário da República, II Série, de ..... de
............. de 1998) – que o promoveu ao posto de segundo-sargento, ao abrigo do preceituado no artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio.
Alegou, para o efeito, que, sendo militar do quadro permanente, foi reformado como deficiente das Forças Armadas, com incapacidade de 85%, na sequência de acidente ocorrido em campanha, tendo solicitado a revisão da pensão de reforma à Caixa Geral de Aposentações, sendo consequencialmente promovido.
Considera, no entanto, que, na sua qualidade de militar do quadro permanente, com deficiência superior a 30%, deveria ter sido promovido ao posto a que teria ascendido tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda, que foram normalmente promovidos – e que seria o posto de sargento-ajudante.
Deste modo, o acto recorrido está inquinado do vício de violação de lei e é inconstitucional, “pois que viola o princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º da Constituição”.
Por sentença de 18 de Maio de 1999 foi negado provimento ao recurso.
Aí, após se enunciar a questão fundamental em causa “a de saber da aplicabilidade ou não ao caso do recorrente do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº 210/73, de 9/5, sobre os critérios de promoção dos militares em situação de reforma extraordinária por deficiência em consequência de serviço de campanha” –, considerou-se aplicável ao caso o diploma de 1997, concluindo-se, perante o disposto no seu artigo 1º, que “o recorrente satisfaz todos os requisitos da norma, pelo que deveria ter sido promovido ao posto de sargento ajudante, e não ao de segundo-sargento”.
E, a seguir:
“Ao invés a autoridade recorrida argumenta dizendo que para se saber a que posto teria o recorrente ascendido ter-se-á que atender ao que dispõem os Decretos Lei
295/73, de 9/6, e 210/73, de 9/5. Dadas as posições em presença parece-me que quando a lei diz que 'os militares.
. . são promovidos ao posto a que teriam ascendido ,..' ter-se-á que atender, efectivamente, ao posto concreto a que aquele militar teria ascendido na situação referida na norma. As regras de promoção constam daqueles D.L. 295/73, de 9/6, e 210/73, de 9/5. Assim, entendo que é de acordo com estas regras que deverá entender o art°. 1 ° do D.L. 134/97, de 31/5. E não se diga que o entendimento dado é contrário ao princípio da igualdade, pois que como se vê dependem da manutenção ou não do militar na situação de activo. Sendo os pressupostos de facto diferentes não se pode reclamar tratamento igual invocando o princípio da igualdade.”
Inconformado, A. recorreu para o Tribunal Central Administrativo que, por acórdão de 20 de Junho de 2002, concedeu provimento ao recurso e, consequentemente, revogando a sentença da 1ª instância, anulou o acto objecto desse recurso.
Ponderou-se, então, resultar do preceituado nos artigos
1º e 2º do Decreto-Lei nº 134/97 que os militares a que o primeiro desses artigos se refere são promovidos ao posto a que teriam ascendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos ao posto imediato, passando a ter direito à pensão de reforma correspondente a tal posto, embora sem efeitos retroactivos.
E escreveu-se:
“O acto objecto do recurso contencioso, considerando os citados normativos aplicáveis ao recorrente, promoveu-o, embora só ao posto de Segundo-Sargento, por entender que essa promoção está sujeita aos limites da graduação fixados pelo art. 4°. do D.L. n° 210/73, aqui aplicável por remissão do art. 3° do D.L n° 295/73. Afigura-se-nos, porém, que esses limites, sendo apenas aplicáveis às graduações meramente honoríficas a que se referia o D.L. nº 295/73 e não às promoções, não podem ser transplantados, na ausência de qualquer remissão para eles, para a situação de promoção prevista no art. 1 ° do D. L. n° 134/97. Se - como refere o recorrido - a intenção do legislador do D. L. n°. 134/97 foi apenas a de converter as graduações em verdadeiras promoções, não se compreenderia que na parte final do citado art. 1 ° recorresse à utilização de uma fórmula tão complexa quando se poderia limitar a referir que os militares em questão eram promovidos ao posto em que estavam graduados. Aliás, a ser essa a intenção do legislador, cremos que ele não deixaria de o referir expressamente, dado que o que está em causa no aludido art. 1º é uma promoção e sabido que com a entrada em vigor do D.L. n° 43/76 as promoções deixaram de estar sujeitas aos limites em questão que passaram a ser apenas aplicáveis às graduações meramente honoríficas a que se referia o D.L. n° 295/73. Assim, porque a interpretação defendida pelo recorrido e aplicada no acto objecto do recurso contencioso não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso (cfr. art. 9º, n° 2, do C. Civil), não pode ser acolhida, devendo ser considerado procedente o invocado vício de violação de lei por infracção do art. 1°. do D.L. n° 134/97.”
Confrontado com eventual violação do princípio constitucional da igualdade, o acórdão disse mais:
“Alega ainda o recorrido que o deferimento da pretensão do recorrente violaria o princípio constitucional da igualdade, consagrado no art. 13°. da CRP, porque originaria que um militar que optou pela reforma extraordinária fosse promovido a um posto superior ao daqueles, igualmente deficientados, mas que optaram pela continuação no activo e que se sujeitaram à aprovação no Curso de Formação de Sargentos e a outras condições gerais e especiais e que não obtiveram aproveitamento. Entendemos, porém, que essa violação não se verifica, dado que o recorrente não se encontra em situação igual à daqueles que optaram pelo serviço activo com dispensa de plena validez, uma vez que ele foi considerado incapaz para todo o serviço activo, ao contrário daqueles que foram considerados aptos para o serviço activo (com dispensa de plena validez), pelo que a desigualdade tem como fundamento uma situação de facto diversa (num caso há incapacidade para o serviço activo e nos outros não ).”
Efectivamente, nas alegações oportunamente apresentadas perante o Tribunal Central Administrativo, como recorrido, o ora recorrente suscitou que o entendimento defendido pelo então recorrente “constituiria um prémio para quem se desligou do serviço, em detrimento daqueles que apesar de deficientes continuaram a devotar o seu esforço e a sua capacidade restante em prol da carreira e do serviço militar”, em “flagrante violação” do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República.
2. - É deste acórdão que o Superintendente dos Serviços do Pessoal do Departamento da Marinha do Ministério da Defesa Nacional recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, na interpretação dada por aquele aresto, lesante, no seu entender, do artigo 13º da Constituição da República.
Notificadas as partes para alegações, só o recorrente veio aos autos, assim concluindo:
“1ª- A norma que o douto acórdão recorrido extraiu do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, no sentido de que os militares Deficientes das Forças Armadas com um grau de incapacidade igual ou superior a 30% que optaram pela reforma extraordinária podem agora ser promovidos ao posto a que teriam ascendido tendo apenas por referência a carreira do militar não deficiente situado à sua esquerda, promovido normalmente aos postos imediatos e sem quaisquer outros limites, é inconstitucional por violar o artigo 13º da Constituição da República;
2ª- De facto, uma tal norma discrimina positivamente estes militares por referência àqueles igualmente Deficientes das Forças Armadas que optaram pela continuação no serviço activo;
3ª- Não existe para o efeito qualquer desigualdade de situações de facto que justifique a desigualdade de tratamento, ao contrário do defendido no acórdão recorrido;
4ª- Os primeiros seriam – de acordo com aquela tese – promovidos em condições idênticas ao militar não deficiente e com capacidade plena situado à sua esquerda, enquanto que os segundos apenas foram promovidos aos postos a que as suas reduzidas capacidades permitiram que ascendessem, porque tiveram que preencher as condições gerais e especiais de promoção e que obter resultados nas provas a que foram sujeitos;
5ª- Os primeiros, por iniciativa sua – e não por efeito de qualquer juízo da Junta de Saúde, como erradamente se entende no acórdão recorrido – desligaram-se do serviço militar activo, enquanto que os segundos se sujeitaram às vicissitudes do serviço militar, subordinando-se aos deveres militares e à hierarquia, e sujeitando-se às limitações nos seus direitos decorrentes das especificidades da condição militar;
6ª- O citado artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, comporta duas interpretações: uma conforme à Constituição e que, socorrendo-se dos limites consagrados para uma situação equivalente – a das graduações dos mesmos militares – apenas permite a promoção até ao posto de Segundo-Sargento, que é assim o “posto a que teria ascendido”, e outra que a viola frontalmente , por favorecer os militares Deficientes das Forças Armadas que optaram pela reforma extraordinária relativamente aos que optaram por continuar no serviço activo, sem que, no entanto, se vislumbre razão objectiva para essa discriminação;
7ª- Assim, o citado preceito tem, naturalmente, de ser interpretado no sentido conforma à Constituição;
8ª- Ao decidir diferentemente, o douto acórdão recorrido extraiu do artigo 1º citado, e aplicou, uma norma inconstitucional, porque viola o Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.”
Cumpre decidir.
II
1. - O Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, dispõe assim no seu artigo 1º:
“Os militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas, nos termos das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%, e que não optaram pelo serviço activo, são promovidos aos posto a que teriam ascendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda, à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos.”
Com esta promoção, acrescenta-se no artigo 2º, os militares em questão “[...] passam a ter direito à pensão de reforma correspondente ao posto a que foram promovidos, e no escalão vencido à data de entrada em vigor do presente diploma, não havendo lugar as quaisquer efeitos retroactivos [...]”.
Colhe-se da leitura do requerimento de interposição do recurso – maxime do seu ponto 4 – que se questiona aquela norma do artigo 1º quando interpretada e aplicada no sentido de que os militares que não exerceram o seu direito de opção pela continuação no serviço activo em cargos ou funções que dispensam plena validez, podem agora ser promovidos sem limitações, tendo apenas por referência a carreira dos militares à sua esquerda, à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos – interpretação esta que se tem por manifestamente inconstitucional por violação do artigo 13º da Constituição da República.
A interpretação normativa observada na decisão recorrida pressupõe um não benefício dos militares que optaram pelo serviço activo, na medida em que lhes são impostas condições específicas de progressão na carreira que não atingem os que, igualmente deficientes, optaram pela situação de reforma extraordinária.
Como se observou no acórdão deste Tribunal nº 153/03, inédito, que se segue de perto, os primeiros só poderão progredir em termos limitados em função da redução das suas capacidades, sendo, assim, sujeitos a uma inevitável certa diferenciação, condicionada pela sua deficiência relativamente aos não deficientes. Diferentemente, os militares que passaram à reforma extraordinária beneficiam, na interpretação adoptada, de uma diferenciação positiva relativamente aos não deficientes que optaram pelo serviço activo.
Resta saber se tal diferenciação deve ser considerada efectiva violação do princípio da igualdade.
2. - À questão respondeu negativamente o citado acórdão nº
153/03, em termos com os quais se concorda, na sua essencialidade, e se transcrevem:
“O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Constituição, proíbe discriminações carecidas de fundamento e impõe tratamento diferenciado em situações substancialmente diferentes em que a igualização beneficiasse arbitrariamente uma das situações. Contudo, tal princípio não proíbe soluções idênticas para situações que apresentem diferenças que não suscitem, à luz de algum critério constitucionalmente relevante, uma diferenciação [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e
188/90, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e
16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente]. Com efeito, a norma em crise justificou-se pela reparação de uma situação anterior em que a norma constante da alínea a) do nº 7 da Portaria nº 162/76, de
24 de Março, foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 563/96, de 10 de Abril. Como se diz na introdução do Decreto-Lei nº 134/97, referindo-se à norma anterior, “tal norma, que assim foi expurgada do ordenamento jurídico, determinava que aos deficientes das Forças Armadas nas situações de reforma extraordinária ou de beneficiários de pensão de invalidez que já teriam podido usufruir do direito de opção nos termos da legislação em vigor anteriormente ao Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, não era reconhecido o direito de poderem optar pelo ingresso no serviço activo”. Assim, o diploma de 1997 visava “proceder à reconstrução da situação jurídica decorrente” da norma entretanto declarada inconstitucional que não seria atingível pela mera supressão da norma inconstitucional do ordenamento jurídico. O artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 concretiza efectivamente esta lógica de compensação pela situação prolongada anterior, violadora da Constituição. E foi essa também a dimensão concreta que esteve em causa nos presentes autos, já que o recorrido, tendo um grau elevado de deficiência, se encontrou durante vários anos sem poder optar pelo serviço activo ou apenas podendo optar “num específico circunstancialismo sócio-político” e com um “enquadramento legal” desfavorável
(cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 563/96). Se a norma sub judicio não existisse, o levantamento da proibição de opção pelo serviço activo não seria, por si, susceptível de compensar as consequências práticas já operadas da anterior impossibilidade legal de promoção dos militares que passaram à reforma extraordinária, sobretudo tendo em atenção os casos em que decorrera um número muito elevado de anos até ser possível a opção pelo serviço activo. A mera possibilidade abstracta de os deficientes que optaram pelo serviço activo no momento em que a norma foi declarada inconstitucional não atingirem o mesmo patamar de promoção do que os militares deficientes abrangidos pela norma em crise não é, pura e simplesmente, um privilégio injustificado dos primeiros, na medida em que eles não puderam de facto optar desde o início da sua deficiência pelo serviço activo, apenas o podendo fazer, em muitos casos, passadas décadas. Assim, a sua promoção automática através da ficção de uma situação continuada no activo, tal como se a deficiência não tivesse afectado a sua progressão na carreira, não foi mais do que uma compensação reparadora e reconstitutiva de uma situação anterior discriminatória.”
3. - Reitera-se, como já se adiantou, a tese professada no citado acórdão nº 153/03, no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, na interpretação feita ao aresto recorrido, coincidente com a apreciada naquele, ou seja, no sentido de permitir a reconstituição da carreira dos militares deficientes das Forças Armadas, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, sem as limitações decorrentes dos nºs. 3 e 4 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 210/73, de 9 de Maio.
II
Em fase do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 28 de Maio de 2003 Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida