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Processo n.º 217/13
Plenário
Relator: Conselheiro Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. interpôs recurso do acórdão proferido em 4 de dezembro de 2012 pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
O recorrente recorrera da sentença proferida, em 22 de junho de 2012, no incidente de qualificação da insolvência da sociedade B., Ld.ª, na qual, qualificando-se a insolvência de culposa, se declarou o seu gerente - o aqui recorrente -, afetado por aquela qualificação e inibido para administrar o património de terceiros e para o exercício da atividade que consta da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE).
Inconformado, o recorrente interpôs recurso da referida sentença que, todavia, não foi admitido, por ter sido considerado extemporâneo perante a natureza urgente do processo.
A reclamação que contra aquela decisão apresentou no Tribunal da Relação do Porto, foi indeferida em 9 de outubro de 2012, por decisão do Desembargador Relator.
Apresentada reclamação para a conferência, por acórdão de 4 de dezembro de 2012 foi a mesma indeferida.
É deste acórdão que vem, pois, interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1 b) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso o recorrente identifica, do seguinte modo, as normas cuja conformidade constitucional pretende ver apreciada:
«- A inconstitucionalidade material da interpretação e aplicação sufragada na decisão singular reclamada, do art. 9.º, n.º 1 do CIRE, no sentido de que o legislador atribuiu caráter urgente a todos os recursos interpostos, processados e julgados no âmbito do processo de insolvência, neles se incluindo aqueles que venham a ter lugar nos respetivos incidentes e apensos, e não distinguindo (para o referido efeito) o legislador qual a natureza, fase e importância do incidente ou apenso, incluindo assim, automaticamente, o incidente da qualificação da insolvência, sem ponderação do nexo de causalidade entre a atribuição da urgência e o fim que com a mesma se pretende atingir, descurando as garantias de defesa atribuídas ao vencido no âmbito do processo declarativo comum, por ser manifestamente desproporcionada tal interpretação da lei, cerceando a defesa dos interesses e direitos dos cidadãos, impossibilitando a sua tutela efetiva e consubstanciando um tratamento desigual dos cidadãos perante a lei, violando o disposto nos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, violando os Princípios da Proporcionalidade, da Igualdade e do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efetiva.
- A inconstitucionalidade material da interpretação e aplicação sufragada na decisão singular reclamada, dos artigos 685.º, n.º 9 do CPC, e 14.º, n.º 2, do CIRE, no sentido de que o prazo para alegações deve contar-se a partir da notificação da decisão – independentemente da efetiva notificação a todos os intervenientes processuais -, por obstaculizar a defesa dos interesses e direitos dos cidadãos, impossibilitando a sua tutela efetiva, violando o disposto no art. 20.º, n.º 1 da CRP, ou seja o Princípio do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efetiva».
3. Tendo o processo seguido para alegações, em cumprimento de despacho proferido pela relatora, foram as partes também notificadas para se pronunciarem, querendo, sobre a possibilidade de não ser conhecido o mérito do recurso no respeitante à segunda questão de inconstitucionalidade identificada, por não ter existido efetiva aplicação na decisão recorrida da norma invocada.
O recorrente sustenta o conhecimento também dessa parte do recurso, entendendo que a referida norma foi efetivamente aplicada.
Em sentido contrário, o Ministério Público, sublinhando que a aplicação dos preceitos legais que suportam a segunda norma formulada pelo recorrente foi expressamente afastada pela decisão recorrida, entende que a mesma não deve ser apreciada no presente recurso. Diferentemente, a primeira questão de inconstitucionalidade deverá ser conhecida, mas não merece censura constitucional.
Cumpre apreciar e decidir, começando pela questão prévia referente à delimitação do objeto do conhecimento do recurso.
II – Fundamentação
4. O recorrente coloca em causa a constitucionalidade:
Do artigo 9.º, n.º 1 do CIRE;
Dos artigos 685.º, n.º 9 do Código de Processo Civil (CPC), e 14.º, n.º 2, do CIRE.
5. Inicia-se a análise pela apreciação da questão prévia relativa ao conhecimento da segunda questão de constitucionalidade, já assinalada.
O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Ora, o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
6. No caso dos autos, pretende o recorrente que o tribunal recorrido interpretou e aplicou os artigos 685.º, n.º 9 do CPC e 14.º, n.º 2 do CIRE, no sentido de que o prazo para alegações deve contar-se a partir da notificação da decisão, independentemente da efetiva notificação a todos os intervenientes processuais.
Recorde-se que a decisão recorrida no recurso interposto nos autos para o Tribunal Constitucional é o acórdão proferido pela conferência do Tribunal da Relação de Guimarães e não a anterior decisão singular do Desembargador Relator.
Ora, o referido acórdão não aplicou os artigos 685.º, n.º 9 do CPC e 14.º do CIRE. Fundamento do decidido foi, sim, o artigo 685.º, n.º 1 do CPC, como resulta da leitura do ponto 3.2. do aludido acórdão, onde, de resto, é expressamente afastada a aplicação dos preceitos legais referidos pelo recorrente, com apoio em jurisprudência proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos que de seguida se reproduzem (fls. 187 dos autos):
«(…) a “tese” do reclamante foi já, e não há muito tempo, totalmente afastada pelo Supremo Tribunal de Justiça [Ac. de 10/7/2012], tendo no Acórdão em apreço sido expressamente (e bem a nosso ver) referido que “(…) sabendo-se que a faculdade e necessidade de recorrer depende do conhecimento/notificação da decisão, existindo a possibilidade de os interessados virem a ter esse conhecimento em diversos momentos, é evidente que o prazo para recorrer (de 30 ou de 15 dias nos processos urgentes) deverá correr autonomamente para cada um deles, contando-se a partir da notificação da decisão, de harmonia com o disposto no já referido art. 685.º, n.º 1 do CPC.
Assim sendo, e como igualmente se aduz no citado Acórdão do STJ, em circunstância alguma pode um recorrente beneficiar do prazo que teria (porque ainda não notificado da decisão objeto da instância recursória) um “potencial recorrente”, a que acresce que, nem sequer faz sentido nas situações em causa o recorrente invocar em seu auxílio o disposto no n.º 9 do art. 685.º [ e mutatis mutandis o n.º 2, do art. 14.º do CIRE], já que, o dispositivo se aplica aos recorrentes e recorrente é apenas aquele que interpôs recurso, não se vendo que existam razões pertinentes para que a norma, ao falar em “vários recorrentes ou vários recorridos”, pretenda referir-se a qualquer um dos vencidos, e, portanto a “potenciais recorrentes”».
No mais, o acórdão remete para a decisão reclamada (a decisão do relator – reproduzida no ponto 1.5 do acórdão – cfr. fls. 175 e ss.) que confirmou o despacho do tribunal a quo de não admissão do recurso, de onde resulta, mais uma vez de forma expressa, que «dispondo o art. 685.º, n.º 1, in fine, do CPC, que o prazo para a interposição do recurso conta-se a partir da notificação da decisão, manifesto é que não é o preceiturado no n.º 9 do mesmo dispositivo legal (ou o n.º 2, do art. 14.º do CIRE) que permite a alteração do dies a quo a partir do qual se conta o prazo para a interposição do recurso pela parte interessada/vencida (cfr. art. 680.º, n.º 1, do CPC)».
7. Termos em que não pode conhecer-se da segunda questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso, por a norma formulada pelo recorrente não constituir fundamento normativo da decisão recorrida.
8. Subsiste a primeira questão de constitucionalidade colocada, referente à aplicação do artigo 9.º, n.º 1 do CIRE, na interpretação dada pela decisão recorrida.
Dispõe o artigo 9.º, n.º 1 do CIRE:
«Artigo 9.º
Caráter urgente do processo de insolvência e publicações obrigatórias
1 – O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem caráter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal.
(…)»
9. O recorrente sustenta a inconstitucionalidade da interpretação dada à referida disposição legal na medida em que atribui caráter urgente ao incidente da qualificação de insolvência.
Nas conclusões que apresentou, o recorrente sintetiza do seguinte modo a fundamentação invocada:
«1ª - A natureza urgente de um processo, seus incidentes ou apensos não pode constituir um valor absoluto e abstrato, nem quanto à tramitação processual, nem quanto aos prazos para a prática de atos e modo da sua contagem.
2ª - A atribuição de caráter urgente a um procedimento tem em vista um determinado desiderato e este reside na especial exigência de celeridade para a efetiva tutela de interesses que a lei entendeu dar prevalência sobre outros.
3ª - O processo de insolvência, genericamente considerado, é composto por incidentes que, em ordem a proteger quer os interesses do devedor/insolvente, quer do coletivo formado pelos seus credores, impõem medidas e procedimentos céleres e consequentemente a atribuição aos mesmos, de caráter urgente, nos termos do disposto no art.º 9º, n.º 1 do CIRE.
4ª - Os interesses subjacentes ao fim visado com a atribuição do caráter de urgência ao processo de insolvência são os dos credores sociais e reflexamente o próprio devedor/insolvente.
5º - No incidente da qualificação da insolvência o sujeito é, única e exclusivamente, o administrador da insolvente.
6º - O incidente da qualificação da insolvência não visa os interesses dos credores.
7º - O Recorrente foi condenado no pagamento de uma indemnização aos credores sociais da sociedade insolvente nos termos do atual art.º 189º, n.º2, al. e) do CIRE.
8º - O recurso interposto da decisão que qualifica a insolvência como culposa não retarda qualquer fase do processo falimentar e dos desideratos que com o mesmo se pretende atingir.
9º - A atribuição, de forma automática e absoluta, de caráter urgente ao processo de insolvência consubstancia uma restrição, desproporcionada e desigual, dos direitos de defesa do recorrente, uma vez que os critérios de simplicidade e celeridade impostos pelo CIRE, visando a satisfação dos interesses dos credores, não são compatíveis com as necessárias garantias de defesa do primeiro, enquanto Requerido/Réu, próprias de uma normal ação declarativa de condenação.
10º - Deve a interpretação e aplicação sufragada na decisão controvertida, do art.º 9º, n.º 1 do CIRE, no sentido de que o legislador atribuiu caráter de urgente a todos os recursos interpostos, processados e julgados no âmbito do processo de insolvência, neles se incluindo aqueles que venham a ter lugar nos respetivos incidentes e apensos, e não distinguindo (para o referido efeito) o legislador qual a natureza, fase e importância do incidente ou apenso, incluindo assim, automaticamente, o incidente da qualificação da insolvência, sem ponderação do nexo de causalidade entre a atribuição da urgência e o fim que com a mesma se pretende atingir, descurando as garantias de defesa atribuídas ao vencido no âmbito do processo declarativo comum, declarada materialmente inconstitucional por ser manifestamente desproporcionada tal interpretação da lei, cerceando a defesa dos interesses e direitos dos cidadãos, impossibilitando a sua tutela efetiva e consubstanciando um tratamento desigual dos cidadãos perante a lei, violando o disposto nos artigos 2º, 13º, n.º 1, e 20º, n.º 1, da CRP, ou seja, violando os Princípios da Proporcionalidade, da Igualdade e do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efetiva.»
10. No essencial, pretende o recorrente que a natureza urgente de um processo ou incidente não pode ser vista como um valor absoluto, abstrato e de aplicação automática, antes dependendo dos interesses subjacentes ao fim visado com a atribuição da urgência.
Não contestando a natureza urgente do processo de insolvência - bem pelo contrário, o recorrente defende que tanto o processo de insolvência como a liquidação do ativo demandam procedimentos céleres em ordem a evitar, de um lado, a degradação ou desvalorização dos ativos, e, do outro, o retardamento do regresso à atividade de uma unidade produtiva -, salienta, no entanto, que os interesses subjacentes ao fim visado com a atribuição do caráter de urgência ao processo de insolvência, são os interesses dos credores sociais e, reflexamente, os interesses do próprio devedor. Ora, sendo o administrador da sociedade insolvente o único sujeito no incidente de qualificação da insolvência - incidente que não visa acautelar os interesses dos credores -, a atribuição automática e absoluta do caráter urgente ao referido incidente consubstancia, no entender do recorrente, uma restrição desproporcionada e desigual dos direitos de defesa daquele.
11. Cumpre começar por recordar que o processo de insolvência opera como uma ação executiva universal e coletiva em que se jogam interesses contrapostos não apenas entre o insolvente e os credores, como também dos diversos credores entre si, não devendo ignorar-se ainda o interesse de terceiros na normal prossecução da sua atividade, sem afetação pelas operações falimentares. Num tal contexto marcado ainda pela incerteza que caracteriza o estado do património envolvido durante o processo de insolvência, o fator tempo adquire uma dimensão primordial.
Compreende-se, assim, que a promoção da celeridade do processo de insolvência constitua, de há muito, preocupação do legislador infraconstitucional, enquanto fator decisivo de implementação de eficácia num procedimento que tem como principal objetivo a satisfação, pela forma mais eficiente, dos direitos dos credores.
Como salientado por Menezes Cordeiro (“Introdução ao Direito da Insolvência”, O Direito, 137.º, 2005, III, p. 480):
«Desde o momento em que se anuncie algum dos motivos de declaração de falência e até ao termo da liquidação do património responsável, verifica-se uma situação de incerteza que paralisa os bens e veda as iniciativas dos agentes envolvidos. Os meios produtivos implicados são afetados, sendo ainda de aguardar deteriorações e desperdícios. E enquanto o processo se arrastar, acumulam-se, naturalmente, as próprias despesas motivadas por ele, pelos seus incidentes e pela manutenção e administração da massa falida. (…) Na verdade, tratando-se de uma execução universal e, para mais, com interesses contrapostos, há que tornar firmes todas as situações jurídicas envolvidas (…). Podem ocorrer questões prévias, prejudiciais ou preliminares que, sendo consideradas – como não deixarão de ser, desde que pertinentes – alongam desmesuradamente todo o processo.
Ao apontar, ente os processos especiais, a falência, o Direito Processual procurou apurar uma metodologia que acelere e simplifique as operações da liquidação de patrimónios, nela subjacentes».
Ainda antes da aprovação de legislação especial na matéria, o Código de Processo Civil dispunha, no artigo 1179.º, n.º 2, (com a epígrafe, “prazo para julgamento”), que o pedido de falência era sempre considerado urgente e tinha preferência sobre qualquer outro serviço.
Idêntica preocupação de celeridade justificou o regime contido no artigo 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 177/86, de 2 de julho, que instituiu o processo especial de recuperação da empresa e da proteção dos credores (artigo 7.º, n.º 2 - «as diligências necessárias realizar-se-ão mesmo em período de férias judiciais e têm preferência sobre qualquer outro serviço») e o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 10/90, de 5 de janeiro, que introduziu algumas alterações naquele regime (artigo 9.º - «os atos processuais e as diligências necessárias até ser proferido o despacho de prosseguimento da ação especial de recuperação, previsto no n.º 1 do artigo 81.º do Decreto-Lei n.º 177/86, têm caráter urgente e realizar-se-ão mesmo em férias judiciais, correndo de igual modo em férias os respetivos prazos» -).
Com a entrada em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação da empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de abril (e que revogou as disposições legais anteriormente previstas no CPC, sobre a matéria – artigos 1135.º a 1325.º), a natureza urgente do processo viria a ser alargada a todas as fases dos processos de recuperação da empresa e falência. Dispunha o n.º 1 do artigo 10.º daquele código: «os processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e recursos a que houver lugar, têm caráter urgente e gozam de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal».
Todavia, como sublinhado por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2.ª edição, p. 97, em anotação ao artigo 9.º), «o texto do n.º 1 do art. 10.º do CPEREF deixava espaço para a dúvida sobre se a urgência era extensível a todos os apensos dos processos ou, pelo contrário, apenas abrangia aqueles que expressamente referia, a saber, os embargos e, quando devessem ser processados por esse meio, os recursos».
Esta questão viria a ser definitivamente esclarecida com a publicação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março - diploma que visou atribuir maior celeridade ao processo de insolvência, como se realça no seu preâmbulo. Com efeito, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do CIRE, todo o processo de insolvência tem natureza urgente, aí se incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos. A abrangência de todos os incidentes pela tramitação urgente atribuída ao processo de insolvência constitui, assim, hoje uma opção expressamente assumida pelo legislador no preceito legal citado.
É precisamente a constitucionalidade desta norma que o recorrente questiona.
12. A jurisprudência do Tribunal Constitucional ainda não incidiu sobre a norma contida no artigo 9.º, n.º 1, do CIRE.
No entanto, o Tribunal teve já ocasião de se pronunciar sobre outras normas do CIRE que, definindo o regime processual específico do processo de insolvência e da recuperação de empresa, se diferenciam do regime processual geral, precisamente por razões de celeridade.
Assim, foi a natureza urgente do processo decorrente das especificidades do processo falimentar que esteve na base de decisões do Tribunal que não consideraram inconstitucionais determinadas normas do anterior CPEREF. Por exemplo, pode-se referir o Acórdão n.º 106/2006, que não julgou inconstitucional a noma do artigo 49.º, n.º 3, do CPEREF, enquanto dispõe que não cabe recurso da decisão judicial que conheça das reclamações das deliberações da assembleia provisória de credores sobre aprovação de créditos, ou o Acórdão n.º 178/2007 que não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 20.º, n.º 3, 188.º, n.º 1 e 205.º daquele Código, na interpretação segundo a qual “no caso específico do credor hipotecário, tabularmente inscrito em relação a um imóvel constante do ativo da massa falida, dispensa a sua citação pessoal, contando-se o prazo para a reclamação de créditos ou propositura da ação a partir dos anúncios publicados, mesmo que o credor deles não tenha conhecimento”.
Igualmente, já no âmbito de vigência do CIRE, o Tribunal, debruçando-se sobre a norma contida na alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º daquele diploma legal, não julgou inconstitucional a interpretação, segundo a qual, o prazo de caducidade da ação de verificação ulterior de créditos é sempre de um ano a partir da data do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência, independentemente da data em que o credor comum dela tenha efetivo conhecimento (Acórdão n.º 8/2012). Determinante daquela avaliação, foi a consideração da garantia constitucional do património e a obrigação, dela decorrente, para o legislador ordinário, de disponibilizar aos credores instrumentos jurídicos eficientes para realização dos seus créditos, pelo que, visando a norma a máxima realização possível de todos os créditos (e não a satisfação de certos e determinados créditos), ela se encontrava justificada, e portanto, não merecia censura.
Por idênticas razões, de justificada celeridade, o Acórdão n.º 248/2012 não julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 8.º do CIRE, na parte em que proíbe a suspensão da instância nos casos previstos no n.º 1 do artigo 279.º do CPC.
13. O recorrente centra a argumentação, através da qual procura demonstrar a inconstitucionalidade da solução normativa em análise, na atribuição, de forma automática e absoluta, da natureza urgente ao incidente de qualificação da insolvência. Em seu entender, as razões que determinam a atribuição de caráter urgente ao processo falimentar não são extensíveis ao incidente de qualificação da insolvência. Enquanto o processo de insolvência, traduzindo uma execução coletiva, demanda um procedimento célere em ordem a proteger os interesses dos credores (e reflexamente os do próprio insolvente), o incidente de qualificação da insolvência, dirigido que é apenas ao gerente ou administrador da insolvente (que não é parte no processo principal), nenhum efeito tem na defesa dos interesses daqueles, nem o recurso interposto da decisão que qualifica a insolvência como culposa retarda qualquer fase do processo falimentar e dos fins pelo mesmo prosseguidos.
14. A natureza incidental do procedimento de qualificação da insolvência evidencia, porém, desde logo, a interligação existente entre o mesmo e o processo principal de insolvência. Os incidentes de qualificação da insolvência encontram-se regulados no Título VIII do CIRE, sendo claro o propósito que servem no contexto da regulação do processo de insolvência: apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à responsabilidade civil) se a falência é fortuita ou culposa. Como evidenciado no respetivo preâmbulo (n.º 40), um objetivo da reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, foi a «obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas. É essa a finalidade do novo “incidente de qualificação da insolvência”. As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações».
Ora, um tal desiderato demanda celeridade no procedimento.
15. Acresce que a classificação da falência como culposa implica consequências para as pessoas afetadas, como a inabilitação por um período determinado, a inibição temporária para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de determinados cargos (consequências sancionatórias obrigatoriamente sujeitas a registo na Conservatória do Registo Civil), ou mesmo a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência e a condenação a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos (artigo 189.º do CIRE).
Esta última consequência é especialmente importante, pois o pagamento aos credores da massa falida, pressupõe a estabilização dos créditos sobre a insolvência, devendo estes ser reconhecidos também por sentença (artigo 173.º do CIRE).
O incidente de qualificação da insolvência é suscetível de ter, portanto, influência sobre o processo falimentar – a autonomia alegada pelo recorrente não se verifica. De facto, as referidas consequências incidentes sobre a pessoa afetada pela qualificação da insolvência revelam que o incidente de qualificação da insolvência se encontra interligado com o processo principal, tendo as decisões proferidas no seio daquele consequências necessárias no desenvolvimento deste.
No caso em presença, atente-se que a sentença recorrida determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou a massa insolvente detidos pelo administrador afetado pela qualificação (alínea e) da sentença), tendo o recorrente sido ainda condenado a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos (alínea f) da sentença).
Todo este quadro permite, pois, concluir que a atribuição de natureza urgente ao incidente de qualificação da insolvência encontra justificada razão de ser na especificidade própria que envolve todo o processo de insolvência.
16. O fundamento existente para a especificidade do regime processual estabelecido para o processo de insolvência e respetivos incidentes, designadamente ao nível da celeridade do procedimento, afasta, desde logo, a pertinência na convocação do princípio da igualdade como parâmetro de verificação da conformidade constitucional da norma em análise.
O princípio da igualdade não é invocável, pois estamos a falar do tratamento diferenciado de realidades distintas. Não é possível sustentar-se que certas regras instituídas pelo legislador para dar resposta a exigências específicas, designadamente de matriz constitucional, postuladas pela natureza específica dos direitos que são objeto de discussão em determinado tipo de processo, devam ser igualmente adotados em outras formas de processo delineadas para dar resposta a outras exigências.
17. Subsiste, todavia, a pertinência na verificação da conformidade constitucional da norma à luz de outro princípio constitucional. Com efeito, aceitando-se que as exigências de celeridade que se fazem valer no processo de insolvência justificam alguma diferença de regime relativamente ao processo comum, designadamente ao nível da celeridade do procedimento, a questão reside em saber se o “desvio” em causa é constitucionalmente tolerável, face ao princípio da proporcionalidade.
A especificidade do processo e a necessidade de celeridade não podem, com efeito, justificar constitucionalmente toda e qualquer solução legislativa que prossiga aqueles fins. O Tribunal Constitucional já teve ocasião de o sublinhar, designadamente nos Acórdãos n.º 556/2008 e n.º 350/2012, que julgaram inconstitucional a norma do artigo 30.º, n.º 2, do CIRE na interpretação segundo a qual deve ser desentranhada a oposição que não se mostra acompanhada da informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido, sem que a este seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência. Como razão do assim decidido, o Tribunal considerou que a cominação estabelecida pelo Código para a falta de indicação pelo requerente dos credores a citar - tendo como consequência a confissão dos factos alegados na petição inicial -, retirava à parte demandada a possibilidade da sua defesa ser valorada, solução que, por isso, se afigurava como inadmissivelmente desproporcionada e violadora da exigência de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4 da Constituição).
As exigências de celeridade não podem ser de tal ordem que se revelem desproporcionais e violadoras do direito de acesso aos tribunais.
18. Pretende o recorrente que a solução normativa em presença traduz restrição desproporcionada do seu direito de defesa, uma vez que os critérios de celeridade que visam a satisfação dos interesses dos credores não são compatíveis com as necessárias garantias de defesa do requerido, próprias de uma normal ação declarativa de condenação. Esta argumentação tem subjacente a redução para 15 dias do prazo para interposição de recurso da sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência, o que representa metade do prazo comum previsto para a interposição do recurso, no regime geral (artigo 685.º, n.º 1, do CPC).
19. A celeridade processual constitui uma dimensão do direito de acesso aos tribunais (cfr. artigo 20.º, n.º 5, da Constituição República Portuguesa) e, nessa medida, deve estar presente na configuração de todo e qualquer processo judicial. Da própria previsão constitucional decorre que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos deve ser efetuada “mediante um processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma decisão em prazo razoável e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. Também o direito de acesso aos tribunais se encontra, pois, sujeito a regras ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de ação ou de recurso.
Indispensável é que esses condicionamentos, designadamente ao nível dos prazos, não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo daquele direito fundamental.
Relativamente ao regime normativo em presença cumpre notar, antes do mais, que a atribuição da natureza urgente atinge todo o incidente de qualificação da insolvência, e não apenas a fase de recurso. Além disso, o reconhecimento da natureza urgente do processo implica, não apenas o encurtamento dos respetivos prazos, como também o seu processamento em período de férias e com prioridade sobre outros processos.
Tendo em conta os interesses em presença, deve concluir-se que existem motivos atendíveis que justificam a urgência do processo. Como decorre do acima já consignado, todo este regime implementador da celeridade no procedimento de qualificação da insolvência encontra justificação bastante na finalidade visada pelo incidente em presença. Não faria sentido que o processado destinado a classificar a natureza da insolvência, como culposa ou meramente fortuita, pudesse arrastar-se no tempo, em prejuízo, desde logo, dos credores e do devedor, dada a implicação que a classificação da insolvência como culposa tem na própria estabilização do colégio de credores e delimitação dos créditos a solver. Mas, o arrastar do procedimento implicaria também prejuízos para as próprias pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, as quais têm, naturalmente, interesse em ver a sua situação definida, dadas as consequências que podem sofrer ao nível da sua situação profissional.
Acresce que o decurso do tempo corre contra a recolha e genuinidade da prova indispensável à qualificação da insolvência, para além de potenciar a dissipação do património garante do pagamento das dívidas.
Ora, no processo de insolvência a necessidade de celeridade assume especial intensidade por se repercutir na esfera jurídico-económica de um universo de sujeitos tendencialmente elevado (os credores da insolvência) o que torna ainda mais premente a tomada de medidas urgentes.
É o próprio regime especial do processo de insolvência que salvaguarda o interesse constitucionalmente tutelado consistente no direito à tutela jurisdicional efetiva dos vários sujeitos do processo, impondo ao legislador a adoção de procedimentos que, caracterizando-se pela celeridade e prioridade, possibilitem uma decisão em prazo razoável de modo a obter tutela efetiva, e em tempo útil, desses direitos.
20. Dentro da margem de ponderação constitutiva sobre o modo como deve ser desenhado o figurino processual adequado à efetivação jurisdicional da tutela própria dos específicos direitos ou interesses legalmente protegidos de que o legislador ordinário dispõe, não é possível deixar de reconhecer como adequada e necessária aos fins prosseguidos pelo processo de insolvência, a adoção de uma metodologia que acelere as operações da liquidação do património.
Afigura-se, outrossim, não ser possível concluir que o regime aqui em análise implique a privação do direito de defesa dos sujeitos afetados pela classificação da insolvência como culposa ou acarrete, para os mesmos, ónus que, por não poderem razoavelmente ser cumpridos, impliquem consequências desproporcionadamente lesivas de quaisquer situações jurídico-subjetivas fundamentais, designadamente as que decorrem do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. Em concreto, a redução para 15 dias do prazo para interposição de recurso da sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência permite ainda o exercício do poder de interposição do recurso, num prazo razoável, tendo em conta os interesses em presença. Note-se que o prazo de 15 dias constitui a regra nos prazos estabelecidos na tramitação do incidente de qualificação da insolvência (artigo 188.º do CIRE). A medida em análise não se revela, assim, uma medida excessiva, desrazoável, desnecessária ou desproporcionada.
Deste modo, ainda que tendo presente o efeito do encurtamento do prazo para a interposição de recurso para 15 dias, nada permite concluir que a atribuição da natureza urgente ao incidente de qualificação da insolvência implique para os visados um ónus excessivo, designadamente ao nível do exercício dos seus direitos de defesa.
Resta concluir.
III - Decisão
21. Termos em que se decide
a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 9.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de março, na parte em que atribui caráter urgente ao incidente de qualificação da insolvência.
b) não conhecer da questão de constitucionalidade dos artigos 685.º, n.º 9 do Código de Processo Civil e 14.º, n.º 2, do CIRE, e
c) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixadas em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 24 de Setembro de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro.