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Processo n.º 310/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, foi condenado por acórdão de 19 de junho de 2012 da 4.ª Vara Criminal da Comarca do Porto, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de quatro anos e três meses de prisão.
Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, por decisão sumária de 21 de novembro de 2012, julgou o recurso manifestamente improcedente. Novamente inconformado, apresentou reclamação para a conferência. Por acórdão de 30 de janeiro de 2013, aquele Tribunal da Relação confirmou a decisão sumária reclamada.
Novamente insatisfeito, recorreu para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como “LTC).
2. Mediante a Decisão Sumária n.º 268/2013 foi decidido não conhecer do objeto do presente recurso de constitucionalidade, por ausência de pressupostos. Com efeito, depois de proceder a uma sumária descrição da função e dos pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), (cfr. o n.º 4 da citada Decisão), considerou o relator:
« 5. Vejamos de seguida, de modo detalhado, como é que se constata a ausência de pressupostos essenciais ao conhecimento do mérito do presente recurso de constitucionalidade:
5.1. A questão enunciada no ponto I) do requerimento de interposição do presente recurso diz respeito ao artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. Perante o tribunal recorrido, nas respetivas alegações de recurso, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade deste preceito, por violação do princípio da proporcionalidade, uma vez que o mesmo, reportando-se embora na sua previsão a condutas tão díspares, sanciona cada uma delas com a mesma moldura penal.
5.1.1.Importa começar por sublinhar que o recorrente não questiona nem a solução dada nas instâncias à questão de facto nem a medida da gravidade dos factos por que foi condenado na sua conjugação com o tipo objetivo do citado artigo 21.º ou, alternativamente, com o tipo objetivo menos grave do artigo 25.º do mesmo diploma. Essas são questões que apenas relevariam da própria decisão recorrida, e não já do critério normativo pela mesma aplicado, e que, como tal, não constituem objeto idóneo do recurso de constitucionalidade. O que o recorrente pretende sindicar é a proporcionalidade do referido critério normativo: a punição de acordo com a mesma moldura penal de condutas típicas tão díspares.
5.1.2. Considerando esta dimensão do pedido, é, ainda assim, questionável se o recorrente suscita a questão de constitucionalidade em moldes processualmente adequados, uma vez que não indica as razões que motivariam um eventual juízo de inconstitucionalidade. Como se afirmou no Acórdão n.º 710/2004 (disponível, como os demais adiante referidos, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ), o “pressuposto de admissibilidade do recurso só é, em regra, de considerar preenchido quando o interessado, pelo menos, identifica a norma que reputa de inconstitucional, menciona a norma ou princípio constitucional que considera infringido e justifica, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso, as razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a sua ‘não aplicação’ pelo tribunal da causa, ao abrigo do disposto no artigo 204.º da Constituição.”
No caso concreto, para que tal ónus se pudesse ter por cumprido, seria necessário que o recorrente tivesse concretizado relativamente a qual ou a quais das condutas típicas previstas no preceito a moldura penal – ou a respetiva criminalização – se mostra excessiva e, outrossim, que as condutas típicas por si consideradas punidas em termos desproporcionais pela norma em análise fossem precisamente aquelas que estiveram na base da sua punição no caso dos autos (pois só essa parte da norma constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida).Não basta, portanto, dizer-se que as condutas previstas no “artigo 21.º” – o recorrente nem sequer distingue os quatro números em que tal preceito se analisa - do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeirosão díspares e que, por isso, a previsão e sanção das mesmas com idêntica moldura seria violadora do princípio da proporcionalidade. Uma eventual conclusão no sentido de um juízo de inconstitucionalidade do preceito em apreço com fundamento na violação deste parâmetro requer que, previamente, se analise a norma e se demonstre, enunciando as razões, qual, ou quais das condutas ali estão a mais. A mera constatação de que a norma abrange, na respetiva previsão, condutas bastante díspares entre si não é suficiente para daí fazer decorrer, automaticamente, a violação do princípio da proporcionalidade.
A suscitação deste problema de constitucionalidade de modo adequado implicaria, portanto, que o recorrente justificasse, em termos precisos, a inconstitucionalidade, enquanto juízo de censura, identificando as condutas relativamente às quais se verificaria essa ofensa e enunciando as razões de uma tal censura. Esse esclarecimento não é, no entanto, prestado pelo recorrente pelo que subsiste o problema de saber relativamente a que condutas, de entre as que constam das previsões dos diferentes números do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, se verifica a ofensa do princípio da proporcionalidade. Não se pode, por isso, concluir que o mesmo tenha suscitado a questão de constitucionalidade de modo adequado perante o tribunal a quo. Este não decidiu tal questão e, pelo exposto anteriormente, também não estava obrigado a fazê-lo.
5.1.3. Sem prejuízo, sempre se dirá que não assiste razão ao recorrente. Em especial, no que se refere ao n.º 1 do artigo 21.º do citado Decreto-Lei n.º 15/93 – porventura o número desse artigo que mais condutas “díspares” contempla – é de subscrever o entendimento perfilhado por este Tribunal no seu Acórdão n.º 262/2001:
«7. O preceito impugnado prevê o crime de tráfico e outras atividades ilícitas, equiparando vários comportamentos, que vão desde o cultivo ou a importação até à efetiva venda ou distribuição de substância proibidas. Qualquer um desses comportamentos típicos corresponde à consumação (formal) do crime em questão. No entanto, alguns desses comportamentos situam-se num momento anterior ao da consumação material do crime.
[…]
8. O Direito Penal visa a proteção de bens jurídicos fundamentais, prevendo e punindo os comportamentos que de uma forma mais intensa ou, se se preferir, mais grave afetem esses mesmos bens jurídicos. Trata-se do princípio da necessidade e do mínimo de intervenção, que resulta do artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
A intervenção penal não tem, porém, de acontecer apenas nas situações em que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é efetivamente lesado pela conduta proibida. Em várias situações o legislador procede a uma antecipação da tutela penal, punindo comportamentos que ainda não lesaram efetivamente esse bem jurídico. Tal acontece, quando o comportamento em questão apresenta uma especial perigosidade para bens jurídicos essenciais à subsistência da própria sociedade, sendo, por essa via, legitimada aquela antecipação.
No caso em apreciação, o preceito impugnado define o tráfico de substâncias proibidas por uma série de condutas conducentes à efetiva transmissão da substância. Assim, qualquer um dos comportamentos previstos implica a consumação do crime.
Ora, a esta conceção subjaz o cariz particularmente perigoso das atividades em questão e a ideia do tráfico como processo e não tanto como resultado de um processo. Na verdade, o tráfico de droga assume consequências pessoais e sociais devastadoras (cuja relevância afigura-se agora ocioso realçar), que justificam plenamente uma intervenção penal preventiva sobre o processo que conduz a tais consequências, abrangendo várias atividades relacionadas com a atuação no mercado onde a droga se transaciona.
Aliás, mesmo em situações onde se verifica uma particular perigosidade das condutas anteriores à consumação material do crime, “o que justifica a ilicitude (sem dúvida, também típica) é ainda a típica conexão com a atividade lesiva do bem jurídico, prosseguida pela ‘preparação’ do crime” (cf., Maria Fernanda Palma, A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, vol. I, 1990, p. 324, referindo-se à punibilidade de atos preparatórios).
[…]
A dimensão normativa impugnada encontra assim o seu fundamento na particular perigosidade das condutas que justifica uma conceção ampla de tráfico, desligada da obtenção do resultado transação. Porque se trata de condutas que concretizam de modo particularmente intenso o perigo inerente à atividade relacionada com o fornecimento de estupefacientes, o legislador antecipa a tutela penal relativamente ao momento da transação. A não punição da tentativa tem por justificação o facto de este crime não ser um crime de dano nem de resultado efetivo. Assim, a não punição de tentativa é apenas consequência de não se pretender antecipar mais a tutela penal já suficientemente antecipada na descrição típica.
Ora esta construção normativa não viola qualquer disposição constitucional.»
5.2. A questão enunciada no ponto II) do requerimento de interposição recurso de constitucionalidade, integra a “interpretação normativa do artigo 344.º do Código de Processo Penal, no sentido de considerar que, tendo havido confissão integral e sem reservas dos factos constantes da acusação, os mesmos têm de ser dados como provados, mesmo que – como sucede nos presentes autos – o Tribunal tenha deliberado inexistirem factos não provados, ou dito de outro modo, considerou provadas as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, que prestou esclarecimentos que não permitem sustentar a condenação”.
Este sentido não corresponde, no entanto, àquele que foi aplicado na decisão recorrida. Com efeito, da decisão recorrida resulta que a “confissão integral implica, por parte de quem confessa, aceitação de todos os factos que lhe são imputados na acusação, não admitindo condições ou alterações aos factos aceites” (fls. 333). Mas não resulta que a confissão integral e sem reservas implica que não se possam dar como provados esclarecimentos que não permitem sustentar a condenação. Esta é uma valoração efetuada exclusivamente pelo recorrente, sem reflexo na ponderação normativa concretizada pelo tribunal recorrido. Não existindo, portanto, identidade entre a questão de constitucionalidade e a interpretação que foi efetivamente aplicada como fundamento decisório, não pode o objeto do recurso, no que a esta parte respeita, ser objeto de conhecimento.
5.3. A questão enunciada no ponto III), diz respeito à eventual inconstitucionalidade do artigo 369.º do Código de Processo Penal por, no entender do recorrente, “considerar que ao ser aplicada uma pena de prisão efetiva, sem que dos autos conste a perícia à sua personalidade, tal implicou o cometimento de um ato inválido, pois omitiu uma diligência que se reputa de essencial, para além de legalmente obrigatória, para a descoberta da verdade, conforme resulta da leitura conjugada dos artigos 160.º, 369.º, 1, 371.º, 120.º, 2 d) e 122.º todos do Código de Processo Penal, o que configura uma nulidade”.
Esta questão não foi igualmente objeto de suscitação adequada durante o processo. Com efeito, o juízo de inconstitucionalidade supera a mera constatação do desvalor que se traduz em nulidade processual. Para que se possa concluir pela existência de violação de uma norma ou princípio constitucional é necessário uma ponderação autónoma – no plano jurídico-constitucional – que conduza a esse resultado. Dito de outro modo, é necessário justificar o juízo de inconstitucionalidade, alegando e demonstrando que a Constituição proíbe a aplicação de uma pena de prisão efetiva sem que conste dos autos uma perícia à personalidade do arguido. O recorrente não logrou, no entanto, cumprir minimamente este ónus, limitando-se a fazer derivar a inconstitucionalidade da omissão de uma diligência legalmente obrigatória. Mas, colocada a questão nestes termos, a mesma apresenta apenas uma ressonância no plano processual penal, não resultando daí qualquer significado ao nível de um eventual desvalor jurídico-constitucional.
E, de qualquer modo, valem aqui as considerações expendidas no Acórdão n.º 489/2004:
«[S] e se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que se tem por violado com essa decisão, pois que se posta como contraditório sustentar-se que há violação desse ordenamento e este é desconforme com o Diploma Básico. Efetivamente, se um preceito da lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais acatá-lo, pelo que esgrimir com a violação desse preceito, representa uma ótica de acordo com a qual ele se mostra consonante com a Constituição.»
5.4. A questão enunciada no ponto IV) do requerimento de interposição do recurso, refere-se a uma eventual nulidade por omissão de “diligência legalmente obrigatória, na medida em que [se] utilizou o relatório social, exclusivamente para a determinação da sanção, sem reabertura da audiência a que alude o artigo 371.º do Código de Processo Penal”. E, transcrevendo o que havia dito em sede de reclamação para a conferência junto do Tribunal da Relação, invoca o recorrente ser inconstitucional a interpretação dos artigos 123.º e 371.º do Código de Processo Penal, no sentido de que, “sempre que o relatório social seja utilizado exclusivamente para a determinação da sanção, sem que se proceda à reabertura da audiência a que alude o artigo 371.º (…) tal irregularidade tem de ser arguida no prazo de três dias, sob pena de sanação” (cfr. fls. 415 e 356). Uma vez mais, a questão não foi adequadamente suscitada uma vez que o recorrente não indicou minimamente as razões que, no plano constitucional, invalidam a utilização do relatório social sem que se proceda à reabertura da audiência prevista no artigo 371.º do Código de Processo Penal, valendo neste ponto o que já se afirmou supra em 5.3.
5.5. Por fim, a questão enunciada no ponto V) do requerimento de interposição do recurso, diz respeito à “questão da gravação do depoimento da testemunha de defesa MANUEL TAVARES apresentar várias deficiências técnicas, que impediram o arguido de transcrever excertos relevantes do seu depoimento, tudo em prejuízo do direito ao reexame da matéria de facto, por um Tribunal Superior, em desrespeito pelas garantias constitucionais que o processo criminal tem de assegurar ao arguido, no qual se inclui o seu direito ao recurso, conforme o disposto no artigo 32.º, n.º 1 da Lei Fundamental” (cfr. fls. 415). Este problema assim enunciado traduz, como é evidente, a imputação da desconformidade ao ato mecânico de gravação do depoimento de testemunha e não, como imporia a construção de um objeto idóneo de um recurso de constitucionalidade, a uma qualquer norma legal ou dimensão normativa.
Como já se referiu, a fiscalização concreta da constitucionalidade tem por objeto a apreciação de normas – ou de interpretações de normas – estando afastadas da atividade deste Tribunal Constitucional quaisquer outras questões.
Resta, assim, concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso.»
3. Notificado de tal Decisão, vem agora o recorrente reclamar para a conferência da Decisão Sumária n.º 268/2013, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos termos seguintes:
«1. Por decisão sumária proferida pelo Exmo. Juiz Conselheiro Relator, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso de inconstitucionalidade interposto pelo arguido, condenado em pena de quatro anos e três meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21.º do Decreto – Lei n.º 15/93.
2. Compulsado o teor da mesma, e ressalvado sempre o devido respeito, não podemos acompanhar todos os considerandos aí vertidos, por os mesmos não serem subsumíveis aos presentes autos.
3. Vamos por partes.
4. Nos presentes autos, o arguido suscitou todas as questões de natureza jurídico – constitucional, em termos do Tribunal recorrido estar obrigado a delas conhecer, ou, dito de outro modo, antes de proferida a deliberação final, que culminou com a prolação do acórdão do tribunal de segunda instância.
5. No que concerne à questão enunciada no ponto 5.3. da decisão sumária, o arguido não pode deixar de afirmar o seguinte.
Nas motivações (e conclusões) de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o arguido exarou o seguinte:
“… deste modo, não podem subsistir dúvidas que, da interpretação conjugada dos artigos 160.º, 369.º, 1, 371.º, 120.º, 2 d) e 122.º do Código de Processo Penal, no sentido de não considerar o ato inválido, sempre que seja proferido ato decisório, em que ao arguido seja aplicada uma pena ou medida de segurança, sem que do mesmo conste toda a documentação elencada no artigo 369.º, 1 o arguido reputa tal interpretação como inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 3, 32.º 202.º,2 e 204.º da Lei Fundamental, o que se suscita, para todos os efeitos legais.” (sublinhado nosso).
Este foi o único ponto que o Tribunal da Relação, na sua decisão sumária, abordou implicitamente, para acompanhar o Ministério Público, ao afirmar que não se concretizou suficientemente qual a norma constitucional que considera ter sido violada.
Com efeito, salvo melhor e mais douta opinião, as normas foram suficientemente identificadas, pelo que não se compreendem as razões que fundamentaram a asserção que a questão não foi suscitada adequadamente durante o processo.
6. Por outro lado, a decisão sumária do Exmo. Conselheiro Relator (ponto 5.4.) também considerou que o arguido não suscitou qualquer questão constitucional, o que não é correto, pois ao suscitar-se a questão da inconstitucionalidade da artigo 371.º do Código de Processo Penal, por o ato decisório recorrido ter utilizado o relatório social, apenas para a determinação da sanção, sem a reabertura da audiência a que alude a norma legal citada, ser materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º,3, 20.º e 32.º da Lei Fundamental (sublinhado nosso, suscitados na reclamação para a conferência no Tribunal da Relação, bem como no requerimento de interposição de recurso para esse Tribunal), que correspondem a princípios estruturantes da axiologia de um Estado de Direito democrático.
7. Com efeito, o acórdão recorrido apenas utilizou o relatório social para a determinação da sanção, e não para a própria imputação penal, pelo que o arguido julga ter identificado a norma interpretada pelas instâncias com uma dimensão interpretativa, salvo melhor opinião, inconstitucional, por violação das normas legais da Constituição da República Portuguesa cuja apreciação se suscitou.
8. Assim, o acórdão recorrido, ao considerar que a utilização do relatório social, apenas para a determinação da sanção, sem a reabertura da audiência a que alude o artigo 371.º do Código de Processo Penal, era uma mera irregularidade, e não uma nulidade, pelo que não podia ser suscitada no recurso – como foi – mas apenas no prazo de três dias a contar do depósito do acórdão, sob pena de sanação, tal interpretação do artigo 123.º do Código de Processo Penal, conjugada com o artigo 371.º do mesmo diploma legal, padece de inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º,3, 20.º e 32.º da Lei Fundamental (sublinhado nosso, suscitados na reclamação para a conferência no Tribunal da Relação, bem como no requerimento de interposição de recurso para esse Tribunal).
9. Não acompanhámos o vertido na decisão reclamada, pois o arguido suscitou a questão da apreciação da constitucionalidade, antes do Tribunal da Relação ter proferido a sua deliberação final, pelo que foi adequadamente suscitada.
10. Posto isto, não se percebe como deveria a questão ter sido suscitada adequadamente durante o processo, de molde a que o Tribunal se pronunciasse sobre a substância – dando provimento, ou não – à questão suscitada.
11. Quanto à questão enunciada no ponto 5.2. da decisão sumária, o Tribunal diz que a dimensão interpretativa suscitada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, não corresponde àquele que foi aplicado no acórdão recorrido.
12. Ainda que se admita que a questão não seja pacífica, certo é que o acórdão recorrido, ao dar como provados todos os factos discutidos em audiência de julgamento (…), mas não faz do que considerar que tudo o que foi dito em sede de julgamento foi dado como provado, pelo que isso implica que tudo valorado, tem de se concluir que a confissão não pode implicar que todos os factos “confessados” tenham de ser dados como provados, pois isso colide com a confissão efetuada.
13. Ou seja, dito de outro modo: para que a confissão tivesse os efeitos cominatórios previstos na lei processual penal, o Tribunal teria que dar como não provados os factos que contradissessem a factualidade confessada, senão verifica-se um erro notório na apreciação da prova.
14. Basta que V. Excelências compulsem as motivações do recurso para o Tribunal da Relação, para que constatem esta evidência.
15. No ponto 5.2. da decisão sumária, em bom rigor não são esclarecimentos, mas antes as declarações prestadas pelo arguido em sede de julgamento, que são um meio de prova admissível, juntamente com a confissão.
16. E foi esta dimensão interpretativa – entre várias outras possíveis – do artigo 344.º do Código do Processo Penal que o arguido suscitou em termos processualmente adequados, pelo que o tribunal recorrido estava obrigado a delas conhecer.
17. Assim, resulta que o acórdão recorrido não tomou em devida consideração toda os factos discutidos em julgamento, pois ao deliberar inexistirem factos não provados, à contrário sensu, é evidente que as declarações do arguido, que foram dadas como provadas, permitem concluir que os factos dados como provados não permitem sustentar a condenação, por erro notório na apreciação da prova.
18. Não podemos deixar de manifestar a nossa “surpresa” com o entendimento desse Tribunal, no sentido de considerar que se um ato decisório não apreciar todas as dimensões interpretativas de uma determinada norma legal, cuja (s) inconstitucionalidade (s) foi (ram) suscitada (s), o mesmo esteja impedido de proceder a essa apreciação.
19. Isto significa que, se o Tribunal recorrido, por qualquer motivo, omitir qualquer pronúncia sobre questões de natureza jurídico constitucionais suscitadas, o Tribunal Constitucional se recusa a apreciar o objeto do recurso de constitucionalidade, apenas porque funciona por via de recurso.
20. Ressalvado sempre o devido respeito, que é mesmo muito, este entendimento tem efeitos perversos para o Estado de Direito democrático, mormente por não ser permitido ao recorrente proceder a uma modificação ulterior do objeto do recurso, redundando no não conhecimento do seu objeto, particularmente quando o arguido está condenado ao cumprimento de uma pena de prisão efetiva.
21. Não vamos aqui discutir da necessidade do legislador proceder a alterações legislativas na Lei do Tribunal Constitucional, a par das reformas em vários outros atos normativos recentemente encetadas, esta julgamos premente, por relevância que os arestos deste Tribunal assumem no quotidiano do sistema judicial.
22. Porém, uma coisa é certa: estas sucessivas “decisões sumárias”, que esse Tribunal tem vindo a proferir, cujas reclamações são sistematicamente todas indeferidas pela conferência – basta consultar o site do Tribunal, para perceber que assim é – provocam consequências muito nefastas na administração da justiça, que se repercutem de uma forma muito intensa em qualquer domínio, muito em particular no âmbito do processo penal, que é o direito constitucional aplicado.
23. Trata-se de uma questão que temos de refletir, enquanto operadores judiciários, pois estas “decisões sumárias” atingem todos os “estratos sociais” da advocacia, iniciantes e veteranos, conforme melhor consta do acórdão n.º 100/2011, sendo que isto implica que o problema não resida, apenas, na “suscitação adequada durante o processo”, por parte dos defensores constituídos, ou nomeados.
24. Por outro lado, estatui a norma do artigo 72.º, 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, que os recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º do mesmo diploma legal, apenas poderem ser interpostos pela parte que tiver suscitado a questão de constitucionalidade ou de ilegalidade, em termos em que o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, estar obrigado a dela conhecer.
Salvo melhor entendimento, o disposto no artigo 72.º, 2 da LTC é materialmente inconstitucional, quando interpretados no sentido de, na situação do Tribunal recorrido não se pronunciar sobre as questões de constitucionalidade e/ou ilegalidade suscitadas, por supostamente considerar que não foram suscitadas em termos processualmente adequados, embora nunca o tenha dito, poder não se pronunciar sobre as mesmas, sem que disso dê conhecimento aos sujeitos processuais visados, no sentido de, no entendimento do Tribunal recorrido, a questão estar indevidamente suscitada, para procederem ao “aperfeiçoamento” das mesmas, viola princípios estruturantes de um Estado de Direito democrático, mormente o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, a um processo justo e equitativo, bem como os princípios da proteção da confiança, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 3, 8.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, 32.º, 202.º, 2 204.º da Constituição da República, bem como no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como no artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aqui aplicáveis por força do disposto no artigo 8.º da Lei Fundamental.»
4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de se dever indeferir a reclamação, porquanto:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 268/2013, não se conheceu do recurso interposto por A., em relação às cinco questões de inconstitucionalidade que o recorrente identificara no requerimento de interposição do recurso.
2º
Vem agora o recorrente reclamar para a conferência.
3º
Na reclamação apenas se impugna, especificamente, a Decisão Sumária quanto ao não conhecimento das questões identificadas em segundo (“II”), terceiro (“III”) e quarto (“IV”) lugar (pontos 5.2., 5.3 e 5.4. da Decisão Sumária), pelo que, apenas quanto a essas, iremos responder.
4º
A segunda questão de inconstitucionalidade (enunciada no ponto II), integra uma determinada interpretação da norma do artigo 344.º do CPP.
5.º
Ora, parece-nos evidente que, como de forma clara se explicita na douta Decisão Sumária, aquela norma não foi aplicada, na decisão recorrida, com a interpretação questionada, nem expressamente, nem do aresto se extrai uma tal interpretação.
6.º
No acórdão não se diz, nem dele se extrai que, a confissão integral do arguido implicou que tivessem sido dados como provados quaisquer factos, mas somente que aquela mesma confissão implica a aceitação pelo arguido dos factos que lhe haviam sido imputados na acusação.
7.º
Entre a aceitação daqueles factos e a matéria dada como provada, que pode levar à condenação, há toda uma atividade de indagação e valoração, cuja sindicância não cabe nas competências do Tribunal Constitucional.
8.º
Quanto à questão enunciada em “III” (ponto 5.3 da Decisão Sumária) reportada a uma certa interpretação do artigo 369.º do CPP, efetivamente quando suscitou a questão de inconstitucionalidade o recorrente fê-lo, não na perspetiva da inconstitucionalidade mas antes de “conhecimento de um ato inválido” (aplicação de pena de prisão sem dos autos haver prova de perícia sobre a personalidade do arguido), ou seja, remete-nos para o campo das nulidades ou das irregularidades.
9.º
Por outro lado, no acórdão entendeu-se que devendo as perícias sobre a personalidade dos arguidos ser ordenadas quando tal se revelasse necessário (artigo 340.º do CPP), no caso ela não era necessária, face aos elementos que já constavam dos autos, sendo também certo que o arguido não a requereu.
10.º
Neste contexto diz-se no acórdão recorrido:
“Ora, os elementos constantes dos autos, designadamente os antecedentes criminais do arguido, são suficientemente elucidativos sobre a personalidade e perigosidade do arguido, designadamente no que concerne às fortes necessidades de prevenção, quer geral quer especial, decisivas na escolha e na determinação da medida da pena e não aponta o mesmo, factos concretos reveladores da necessidade da sua submissão a perícia sobre a personalidade.
Quanto à interpretação das citadas normas, no sentido de não considerar o ato inválido, que o recorrente diz ser inconstitucional por violação dos art.ºs 1.º, 2.º, 3.º 3, 32.º, 202.º 2 e 204.º da Constituição, concordamos também com o referido pelo MP, pelo que devemos dizer, em primeiro lugar, que lendo a motivação do arguido verificamos que este não concretiza suficientemente qual a norma constitucional que considera ter sido violada.
Ora, o art.º 369.º, n.º 1, do CPP determina a obrigação de o Tribunal ler ou mandar ler toda a documentação existente nos autos, relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a personalidade e ao relatório social, sendo certo que a leitura de tal documentação é obrigatória, quando, e apenas quando, tiver sido obtida e realizada.” (sublinhado nosso)
11.º
Ou seja, não sendo questionada a constitucionalidade do artigo 340.º, n.º 1, do CPP, enquanto ali não se exige a obrigatoriedade da realização, sempre, da perícia, o artigo 369.º, não foi, nem era aplicável.
12.º
Quanto à quarta questão “IV” (Ponto 5.4. da Decisão Sumária), para além do que consta da douta Decisão Sumária, acrescentaremos que, no acórdão recorrido, a referência a uma irregularidade – “a ter existido”, como ali se lê - surge com um mero obiter dictum.
13.º
Na verdade, a decisão começa por explicar que existe relatório social e que o mesmo foi junto antes da audiência de julgamento, sendo público e conhecido dos intervenientes processuais.
14.º
Como se vê da decisão condenatória proferida 1ª instância (confirmada pela Relação) o relatório é ali referido, utilizado e até transcrito, não tendo ocorrido a reabertura da audiência (artigo 371º do CPP) porque, naturalmente, tal não se revelou necessário.
15.º
Parece-nos, pois, evidente, que, neste contexto, falar de irregularidade na omissão do relatório social é uma matéria lateral.
16.º
Na reclamação, o recorrente levanta a seguinte questão de inconstitucionalidade:
“ Salvo melhor entendimento, o disposto no artigo 72.º, 2 da LTC é materialmente inconstitucional, quando interpretados no sentido de, na situação do Tribunal recorrido não se pronunciar sobre as questões de constitucionalidade e/ou ilegalidade suscitadas, por supostamente considerar que não foram suscitadas em termos processualmente adequados, embora nunca o tenha dito, poder não se pronunciar sobre as mesmas, sem que disso dê conhecimento aos sujeitos processuais visados, no sentido de, no entendimento do Tribunal recorrido, a questão estar indevidamente suscitada, para procederem ao “aperfeiçoamento” das mesmas (…)”.
17.º
Ora, tal questão de inconstitucionalidade não tem qualquer suporte na douta Decisão Sumária reclamada, quanto às questões em que se coloca tal problemática.
18.º
O não conhecimento do objeto do recurso ficou a dever-se ao não cumprimento adequado do ónus da suscitação prévia, que é um requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do art.º 70.º da LTC e não à circunstância de o Tribunal recorrido se ter ou não pronunciado sobre as questões de constitucionalidade.
19.º
Aliás, diremos mesmo que não conhecemos qualquer decisão do Tribunal Constitucional que, tendo considerado verificados os requisitos de admissibilidade, não conhecesse do objeto do recurso por na decisão recorrida não se ter pronunciado quanto à questão de constitucionalidade.
20.º
Efetivamente, se uma questão de constitucionalidade foi adequadamente suscitada, por forma a que o tribunal que profere a decisão recorrida dela devesse conhecer, a omissão de pronúncia não pode prejudicar os interesses processuais dos recorrentes.
21.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
5. Tendo sido ordenada a notificação ao recorrente para, querendo, se pronunciar quanto à matéria respeitante à alegada inconstitucionalidade do artigo 72.º, n.º 2 da LTC constante da resposta apresentada pelo Ministério Público, veio este dizer o seguinte:
«[…]
2.º
Em conformidade, pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação apresentada para a conferência desse Tribunal.
3.º
Porém, ressalvado sempre o devido respeito, que é muito, não acompanhamos esse entendimento, pelas razões que infra se explanarão.
4.º
Atenta a complexidade das matérias em discussão, vamos iniciar a resposta pela parte inicial da decisão sumária proferida, por ter uma conexão com o teor da resposta apresentada pelo Ministério Público.
5.º
Porém, antes de prosseguirmos na resposta, retenha-se que o recorrente pretende que a conferência se pronuncie sobre todas as questões de constitucionalidade suscitadas no requerimento de interposição de recurso, e cujo conhecimento foi negado pela decisão sumária.
6.º
Consideramos que a decisão sumária não é uma decisão de mérito, pois dela não se recorre, mas antes apresenta-se reclamação, pelo que deve conhecer-se do objeto do mesmo, in totum.
SEM PRESCINDIR,
7.º
Conforme vertido supra, na decisão sumária proferida, entendeu-se que o recorrente não suscitou as questões de constitucionalidade de modo processualmente adequado perante a Relação, em termos desta estar obrigada a delas tomar conhecimento.
8.º
Na decisão sumária, no que concerne ao objeto de recurso de constitucionalidade, é vertido o seguinte:
“A competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, reconduz-se à faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais. Por isso se compreende também o requisito de suscitação do problema de constitucionalidade em moldes processualmente adequados perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos tais que este estivesse obrigado a apreciar uma tal questão, tomando, sobre a mesma, a sua própria decisão (…)”.
“… Refira-se ainda que o objeto de recurso de constitucionalidade é definido, desde logo, pelo requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza (…)”
“… Importa começar por sublinhar que o recorrente não questiona nem a solução dada nas instâncias à questão de facto nem a medida da gravidade dos factos por que foi condenado na sua conjugação com o tipo objetivo do citado artigo 21.º ou, alternativamente, com o tipo objetivo menos grave do artigo 25.º do mesmo diploma. Estas são questões que relevariam da própria decisão recorrida, e não já do critério normativo pela mesma aplicado, e que, como tal, não constituem objeto idóneo do recurso de constitucionalidade…”.
9.º
Por outro lado, não podemos deixar de afirmar que, no ponto 5.1. da decisão sumária, o Exmo. Conselheiro Relator concluiu pela não suscitação adequada da questão, pese embora tenha iniciado a sua decisão, nestes termos:
“5.1.2. Considerando esta dimensão do pedido, é, ainda assim, questionável se o recorrente suscita a questão de constitucionalidade em moldes processualmente adequados, uma vez que não indica as razões que motivaram um tal juízo de inconstitucionalidade…” (sublinhado nosso).
10.º
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente apenas suscitou a dimensão interpretativa do artigo 21.º do Decreto – Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, nos termos descritos na decisão sumária.
11.º
Porém, nas motivações do recurso ordinário para o Tribunal da Relação, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade da aplicação do referido artigo 21.º, 1 do citado ato normativo, tendo em consideração a solução dada à matéria de facto, bem como a gravidade dos factos por que foi condenado na pena de quatro anos e três meses de prisão.
12.º
Por uma questão de princípio, o recorrente vai transcrever trechos relevantes da respetiva motivação, no que a esta específica questão concerne:
“…Salvo melhor e mais douta opinião, consideramos que a qualificação jurídica levado a cabo pelo tribunal recorrido, não se mostra a mais acertada.
Não podemos deixar de referir que o Tribunal se deixou influenciar, a nosso ver, de forma exagerada e desproporcional, nas quantidades apreendidas ao arguido.
Contudo, não podemos deixar de citar jurisprudência do Supremo Tribunal, no qual se considerou que integrava o tipo legal de tráfico de menor gravidade, situações em que estavam em causa a apreensão de 20 gramas de heroína (acórdão STJ de 13.04.2005 – Processo 459/05) e 211,700 gramas de haxixe (acórdão STJ 24.11.2004 – Processo 3239/04).
Julgamos que não devemos atender às quantidades, per si, para qualificar a conduta pelo artigo 21.º, mas antes, como resulta do artigo 25.º, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados,a modalidade e as circunstâncias da ação (sublinhado nosso).
Face à prova produzida em julgamento, e cuja reapreciação se requer a V. Excelências, sempre se dirá que as circunstâncias da ação são reveladoras da situação pessoal do arguido, que agiu motivado pela proteção da sua segurança, e integridade física, e, da sua família, sendo que tudo isto foi considerado provado pela primeira instância.
Com efeito, subsumir esta conduta do arguido ao artigo 21.º da Lei da Droga, em que se provou que o mesmo é consumidor de estupefacientes, desde a sua pré – adolescência, que tem problemas de saúde mental desde a infância, tendo sido acompanhado no hospital psiquiátrico
Magalhães Lemos, que comprou produto estupefaciente para consumo, a crédito, sendo que quando o pagamento lhe foi exigido não dispunha de meios de pagamento, que motivaram a que o mesmo fosse sujeito a ameaças à sua integridade física, bem como da respetiva família, e, que foi este quadro que originou a prática do ilícito, ao curtíssimo período de venda dos produtos estupefacientes, sempre se dirá que se mostra violado o princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18.º da Lei Fundamental.
Toda esta factualidade, aliada à sua situação pessoal, designadamente a sua idade à data dos factos, a sua qualidade de pai de uma criança, à sua possibilidade de inserção familiar, à sua problemática de saúde mental, à vontade manifestada de se sujeitar a tratamento, bem como à procura ativa de emprego, através da sua inscrição no centro e emprego, e, em empresas de trabalho temporário, sempre diremos que não estamos perante um caso perdido, mas antes,perante alguém cujo percurso de vida foi difícil, e, sobretudo, que necessita de apoio especializado para refazer a sua vida.
Por outro lado, ao arguido não lhe foram apreendidos quaisquer meios que revelem uma organização estruturada de tráfico, tais como balanças, nem objetos em ouro ou similares.
Tudo isto para dizer que, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, se conclui que o artigo 21.º se aplica a situações de ilicitude acentuada, ou, dito de outro modo, a peixe graúdo, sendo o artigo 25.º aplicável, genericamente, a médios e pequenos traficantes, em que a aplicação do tipo mais grave se revelaria desproporcional, e injustificado.
Assim, a título meramente exemplificativo, citamos alguns arestos do Supremo, onde se decidiu que era aplicável o artigo 25.º do Decreto – Lei n.º 15/93, designadamente nos acórdãos de 7.12.1999 e de 15.12.1999, ambos publicados no Boletim do Ministério da Justiça, páginas 149 e 215, bem como no acórdão de 30.11.2000 – Processo n.º 2849/00, publicado no mesmo boletim, número 501…”.
13.º
Com efeito, se no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente tivesse questionado a solução dada pela Relação à matéria de facto, e a medida da gravidade dos factos que levaram à subsunção dos mesmos no referido artigo 21.º do supra referido diploma legal, ou alternativamente com o tipo objetivo menos grave do artigo 25.º do mesmo diploma, a solução poderia seria diferente.
14.º
No que a esta específica questão concerne, vertida no artigo antecedente, o Tribunal decidiu que “… essas são questões que apenas relevariam da própria decisão recorrida, e não já do critério normativo pela mesma aplicado, e que, como tal, não constituem objeto idóneo de recurso de constitucionalidade…”.
15.º
Com efeito, este entendimento do Exmo. Conselheiro Relator tem suporte no disposto no artigo 71.º, 1 da Lei do Tribunal Constitucional, que determina que os recursos de decisões judiciais para esse Tribunal são restritos à questão de inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitadas.
16.º
Ou seja, tendo em consideração a legislação que regula o funcionamento desse Tribunal, mesmo que os (as) Magistrados (as) que no mesmo exercem funções, verifiquem que a deliberação das instâncias, ou a subsunção do direito aos factos podem redundar numa inconstitucionalidade, nada podem fazer, pois isso resulta apenas da própria decisão recorrida, não constituindo objeto idóneo do recurso de constitucionalidade.
17.º
Porém, não obstante a decisão sumária não identificar a norma legal em que fundamenta a sua asserção, julgamos que a mesma tem suporte no referido artigo 71.º, 1 da Lei do Tribunal Constitucional.
18.º
Com efeito, o facto do Tribunal Constitucional não apreciar a constitucionalidade da solução dada nas instâncias à questão de facto, nem a medida da gravidade dos factos por que foi condenado na sua conjugação com o artigo 21.º ou, alternativamente, com o tipo objetivo do artigo 25.º do Decreto – Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por o recorrente não ter suscitado tal questão no seu requerimento de interposição de recurso para esse Tribunal, e por tal questão derivar apenas da própria decisão recorrida, e não do critério
normativo pela mesma aplicado;
19.º
Sempre se dirá que tais interpretações do disposto, per si ou conjugadamente, nos artigos 69.º, 70.º, 1; 71,º, 1, 72.º, 2 da Lei do Tribunal Constitucional violam princípios estruturantes de um Estado de Direito democrático, mormente o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, a um processo justo e equitativo, bem como os princípios da proteção da confiança, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 3, 8.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, 32.º, 202.º, 2 204.º da Constituição da República, bem como no artigo 6.º, 1 e 3 c) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e do artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aqui aplicáveis por força do disposto no artigo 8.º da Lei Fundamental, sempre que interpretados como não permitindo a esse Tribunal apreciar a conformidade constitucional da aplicação de determinada norma legal do ordenamento jurídico, em detrimento de outra, quando daí possa resultar a violação de princípios e/ou normas estruturantes da Lei Fundamental, apenas porque tal questão relevaria da própria decisão recorrida, e não já do critério normativo pela mesma aplicado, não constituindo objeto idóneo de recurso, pois tal traduz-se numa ofensa à substância do direito de acesso a um Tribunal, enquanto elemento de um processo equitativo.
20.º
De igual forma, julgamos que o entendimento do Tribunal Constitucional, no sentido de que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza;
21.º
Considera o recorrente que tal interpretação do disposto, per si ou conjugadamente, nos artigos 75.º – A, 1 da Lei do Tribunal Constitucional, e do artigo 684.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 69.º da Lei do Tribunal Constitucional, padecem de inconstitucionalidade material, por violação do disposto no artigo 6.º, 1 e 3 c) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 3, 8.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, 32.º, 202.º,2 e 204.º da Lei Fundamental, designadamente o direito a um processo justo e equitativo, na dimensão do direito a um processo orientado para a justiça material, no qual não se permite a preterição do direito materialmente garantido devido a aspetos formais do processo, ínsito no princípio da tutela jurisdicional efetiva, que consubstancia o direito de defesa efetivo, bem como no princípio do Estado de direito democrático, tendo em consideração a pessoa enquanto sujeito ético, bem como os princípios da proibição do excesso ou da indefesa, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da proteção da confiança num direito ao recurso efetivo, pois não se permite o convite ao recorrente para corrigir o requerimento de interposição de recurso, não tomando, por isso, conhecimento do recurso, não se assegura o respeito concreto e efetivo dos direitos de defesa, em violação dos normativos legais citados, mormente o artigo 6.º, 1 e 3 c) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicáveis por força do disposto no artigo 8.º da Constituição da República.
22.º
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por acórdão de 12 de novembro de 2002, no processo BELES E OUTROS vs. REPÚBLICA CHECA, proferiu deliberação do seguinte teor:
“…I. O direito a um processo equitativo, garantido pelo artigo 6.º, 1 da Convenção, deve interpretar-se à luz da preeminência do direito, de que um dos principias elementos é o princípio da segurança das relações jurídicas, que exige seja assegurado um meio judiciário efetivo para a defesa dos direitos dos cidadãos.
II. A regulamentação das formalidades processuais, como sejam os prazos que devem ser respeitados nos recursos, visa assegurar uma boa administração da justiça e, em particular, o respeito pelo princípio da segurança jurídica; todavia, tal regulamentação ou a aplicação que dela é feita, não deve ser de molde a impedir o interessado de utilizar um meio de recurso disponível.
III. A recusa dos tribunais de decidir uma questão de fundo numa ação, resultante de uma interpretação particularmente rigorosa por parte das jurisdições internas de uma regra de natureza processual, traduz-se numa ofensa à substância do direito de acesso a um Tribunal, enquanto elemento do processo equitativo garantido pelo artigo 6.º, 1 da Convenção” (sublinhado nosso).
23.º
Por outro lado, não é de descurar que a deliberação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem foi proferida no âmbito de uma ação de natureza civil, em que estão em causa interesses predominantemente particulares, vulgo processo de partes, sem revestir a natureza pública que deriva do processo criminal, em que estão em relevo interesses eminentemente públicos.
24.º
Com relevo para a apreciação das questões suscitadas supra, o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no processo CZEKALLA vs. PORTUGAL, de 10 de outubro de 2002, cujo conteúdo poderá influir na deliberação a proferir, em sede de reclamação apresentada para a conferência:
“…I. O artigo 6.º, 3 c) da Convenção, que garante o direito a uma assistência jurídica efetiva, não impõe aos Estado a obrigação de intervir para superar as deficiências do advogado oficioso, salvo quando a carência da defesa se revele manifesta, ou quando as autoridades sejam, por qualquer modo, informadas da carência do advogado nomeado oficiosamente.
II. Em certas circunstâncias, o desrespeito, por negligência do advogado oficioso, de uma condição meramente formal, pode não ser assimilada a uma conduta errada ou falha de argumentação, nomeadamente quando tal condição de forma, omitida por negligência, apesar de privar o arguido de uma via de recurso, não é corrigida por uma jurisdição de recurso.
III. A deficiência da motivação do recurso para o Supremo Tribunal traduz, em si, uma manifesta carência de defesa, impondo a adoção de medidas positivas por parte das autoridades competentes, no caso, através do convite ao advogado oficioso para completar ou corrigir a motivação.
IV. Não convidando o advogado oficioso a corrigir a motivação e não tomando, por isso, conhecimento do recurso, a jurisdição competente – no caso o Supremo Tribunal de Justiça – não assegurou o respeitoconcreto e efetivo dos direitos de defesa, em violação do disposto no artigo 6.º, 1 e 3 c) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (sublinhado nosso).
25.º
Cremos que o vocábulo “corrigir” é relevante, pois no dicionário LELLO ESCOLAR, LELLO E IRMÃO – EDITORES PORTO, 1988, a definição é a seguinte: “ v. tr. Emendar; censurar, reprimir, castigar, modificar; temperar; regularizar por compensação (tratando-se dum maquinismo)”, e da palavra “modificar” é vertido o seguinte: “v. tr. Moderar, restringir; alterar; dar forma nova a.” (sublinhado nosso).
ISTO POSTO,
26.º
No que concerne ao ponto 5.2.) da decisão sumária, a resposta do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, no artigo 7.º do seu articulado de resposta, é a “confissão” da pertinência dos considerandos do recorrente.
27.º
Com efeito, há um erro notório na apreciação da prova, com graves prejuízos para os interesses do recorrente, pois o Tribunal recorrido considerou provada factualidade eminentemente contraditória entre si, que não permitem subsumir a mesma em qualquer dos normativos previstos no Decreto – Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, ou, dito de outro modo, os factos provados não correspondem a qualquer dos segmentos normativos da referida legislação, mormente o aplicado artigo 21.º, 1 do referido diploma legal.
28.º
E nem se diga que a tal obsta a confissão do recorrente, pois as declarações do arguido, e demais meios probatórios produzidos em audiência, podem levar a concluir pela não verificação do crime, conforme decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, 30.06.1993, in B.M.J., página 705.
29.º
E a ser confirmada a decisão sumária proferida, mantendo esse Tribunal o entendimento de que não pode conhecer da constitucionalidade da própria decisão recorrida, certo é que o Tribunal da Relação fez uma incorreta interpretação dos vícios elencados no artigo 410.º do Código de Processo Penal, que resulta do critério normativo aplicado pelo Tribunal recorrido, pelo que é um objeto idóneo de recurso de constitucionalidade.
30.º
Com efeito, quando no ponto 5.2.) se afirma que não resulta do texto da deliberação recorrida que a confissão integral e sem reservas implica que não se possam dar como provados esclarecimentos que não permitem sustentar a condenação, isto pode ser assim, do ponto de vista estritamente formal, pois as instâncias, ao contrário do vertido no acórdão recorrido, permitiram a prova sobre factos confessados, tendo até deliberado dar como provados factos contraditórios com a confissão.
31.º
Com o devido respeito, que é muito, não podemos dizer que nada aconteceu, pois as consequências daqui resultantes serão inaceitáveis para o arguido, atenta a sua situação particular.
32.º
No que concerne ao ponto 5.5.) da decisão sumária, um facto está assente, e nem o próprio Estado, representado pelo Ministério Público, disse o contrário, quer nesse Tribunal, quer nas instâncias: a prova produzida não foi integralmente gravada, conforme previsto no artigo 364.º do Código do Processo Penal, assim impedindo que o recorrente impugnasse, na sua integralidade, a prova testemunhal produzida na primeira instância junto da Relação, nos termos do artigo 412.º, 3 e 4 deste último diploma legal, pelo que o arguido viu preterido o direito ao recurso efetivo da matéria de facto produzida, não estando assegurado o direito do mesmo a que um Tribunal Superior pudesse rever a decisão de facto, bem como o direito da defesa a impugnar a matéria de facto, assim se preterindo as garantias de defesa do mesmo, previstas no artigo 32.º, 1 da Constituição, bem como o direito ao recurso material e o respeito integral pelos direitos de defesa do mesmo, conforme previsto no artigo 6.º, 1 e 3 c) da Convenção Europeia, aplicável ex vi artigo 8.º da Lei Fundamental.
33.º
Tendo em consideração os artigos 16.º a 20.º da resposta do Ministério Público, sempre se dirá que, embora não tendo um suporte na decisão sumária, certo é que o que motivou o não conhecimento do objeto do recurso foi o não cumprimento adequado do ónus de suscitação prévia.
34.º
Tendo em consideração a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a nosso ver, existem duas formas de ultrapassar a questão: o Tribunal Constitucional ordena a notificação do recorrente para corrigir o seu requerimento de interposição de recurso para esse Tribunal, admitindo uma modificação do objeto do recurso, ou, ordena a baixa dos autos à Relação, para que o Exmo. Desembargador Relator notifique o recorrente de que as questões de constitucionalidade não estão adequadamente suscitadas, para proceder a uma correção, e/ou modificação das mesmas, assim permitindo a esse Tribunal tomar a sua própria decisão sobre as questões de constitucionalidade suscitas, e, sendo caso disso, o Tribunal Constitucional então funcionar em sede de recurso, dando assim integral cumprimento à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, com valor superior a um ato normativo do ordenamento interno, como a Lei do processo nesse Tribunal, assim se cumprindo o disposto no artigo 8.º, 2 da Constituição.
35.º
A não se decidir assim, ainda que o arguido apresente queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a mesma não tem efeito suspensivo, pelo que serão emitidos mandados de condução a estabelecimento prisional, havendo o risco daquela instância internacional julgar a mesma procedente, o que determina a reabertura do processo judicial interno, porém, sem qualquer efeito útil, por a pena de prisão estar extinta, pelo seu cumprimento.
36.º
Pelo exposto, deve deferir-se o aqui requerido, in totum, que deve ser incorporada na reclamação apresentada, nos termos considerados mais adequados, que o recorrente deixa ao critério equitativo de V. Excelências.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. No seu requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade o recorrente delimitou o objeto do recurso em torno de cinco questões. A Decisão Sumária n.º 268/2013 apreciou todas e cada um delas, tendo decidido, a final, não conhecer do objeto do recurso. Na sua reclamação o recorrente apenas fundamentou a sua discordância relativamente à decisão das questões de constitucionalidade identificadas nos n.os 5.2., 5.3. e 5.4. da citada Decisão Sumária. Só depois, na resposta que apresentou a fls. 468 e seguintes, na sequência da oportunidade concedida para se pronunciar sobre o que foi dito pelo Ministério Público quanto à invocada inconstitucionalidade do artigo 72.º, n.º 2 da LTC, veio o recorrente dizer que “pretende que a conferência se pronuncie sobre todas as questões de constitucionalidade suscitadas no requerimento de interposição de recurso, e cujo conhecimento foi negado pela decisão sumária”. Em vista disso, aduziu algumas considerações adicionais.
7. Quanto ao n.º 5.1. da decisão reclamada (questão I do recurso de constitucionalidade)
O reclamante nada diz – nem na reclamação nem na sua resposta de fls. 468 e ss. – que infirme a conclusão alcançada quanto ao ponto em apreço na Decisão Sumária n.º 268/2013. Ao invés, o que se pode retirar das considerações vertidas nos n.os 11.º a 25.º da citada resposta é a tentativa de abrir a discussão sobre questões novas. Que assim é, resulta do n.º 10 daquela resposta (em que o ora reclamante descreve o que fez no requerimento de interposição de recurso) e, bem assim, do n.º 13.º (em que o mesmo reclamante equaciona a situação hipotética, caso no mesmo requerimento a questão colocada a este Tribunal tivesse sido outra). Porém, como o próprio recorrente reconhece (cfr. o n.º 5 da resposta em apreço), a presente reclamação para a conferência destina-se tão-somente a reapreciar as questões suscitadas no requerimento de interposição do recurso de inconstitucionalidade. Assim, nada há a acrescentar nesta sede quanto à matéria apreciada e decidida no n.º 5.1. da Decisão Sumária n.º 268/2013
8. Quanto ao n.º 5.2. da decisão reclamada (questão II do recurso de constitucionalidade)
8.1. No ponto II) do requerimento de interposição recurso de constitucionalidade, o recorrente questionou a constitucionalidade da “interpretação normativa do artigo 344.º do Código de Processo Penal, no sentido de considerar que, tendo havido confissão integral e sem reservas dos factos constantes da acusação, os mesmos têm de ser dados como provados, mesmo que – como sucede nos presentes autos – o Tribunal tenha deliberado inexistirem factos não provados, ou dito de outro modo, considerou provadas as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, que prestou esclarecimentos que não permitem sustentar a condenação”.
Esta questão foi objeto de decisão de não conhecimento, uma vez que o sentido assim especificado não encontrou correspondência com o sentido normativo que foi efetivamente aplicado na decisão recorrida. O que aí se afirmou foi que a “confissão integral e sem reservas implica, por parte de quem confessa, aceitação de todos os factos que lhe são imputados na acusação, não admitindo condições ou alterações aos factos aceites” (fls. 333). E o tribunal recorrido acrescentou: “[p]or isso, não se pode afirmar que o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe são imputados na acusação e, depois, aceitar como não provado um dos factos que lhe eram imputados na acusação”. Ou seja, e como referido na decisão recorrida, os factos aqui em causa são apenas os que, sendo imputados ao arguido na acusação, foram por este aceites mediante confissão (cfr. fls. 333). O tribunal recorrido não afirma «inexistirem factos não provados». Como refere o Ministério Público na sua resposta, nessa decisão não se diz, nem dela se extrai que, a confissão integral do arguido implicou que tivessem sido dados como provados quaisquer factos, mas somente que aquela mesma confissão implica a aceitação pelo arguido dos factos que lhe haviam sido imputados na acusação” e “entre a aceitação daqueles factos e a matéria dada como provada, que pode levar à condenação. Há toda uma atividade de indagação e valoração, cuja sindicância não cabe nas competências do Tribunal Constitucional” (cfr., respetivamente, os n.os 6.º e 7.º da resposta).
Assim, o critério normativo utilizado na decisão recorrida não foi o de, havendo confissão, ser impossível dar como provados esclarecimentos que não permitem sustentar a condenação. O facto de tal decisão ter dado como provados todos os factos discutidos em audiência de julgamento não implica – como pretende agora o recorrente – que a confissão tenha sido valorada no sentido por ele especificado. Significa apenas que, face ao conjunto da prova produzida e à respetiva valoração pelo tribunal recorrido – matéria cuja sindicância escapa, como se sabe, à competência do Tribunal Constitucional – se concluiu no sentido da verificação de tais factos a qual, consequentemente, conduziu à condenação do recorrente.
Aliás, a própria argumentação apresentada na reclamação quanto a esta matéria demonstra bem que o recorrente reconhece estar a ficcionar um sentido normativo não explicitado na decisão concreta, quando, na realidade, o que pretende é questionar o modo como, em concreto, se apreciou a prova. Nas palavras do recorrente: “ou seja, dito de outro modo: para que a confissão tivesse os efeitos cominatórios previstos na lei processual penal, o Tribunal teria que dar como não provados os factos que contradissessem a factualidade confessada, senão verifica-se um erro notório na apreciação da prova” (cfr. o n.º 13 da reclamação). O recorrente admite, por conseguinte, que, a valoração feita pelo tribunal só pode ter um de dois sentidos: ou, no fundo, o tribunal recorrido interpretou o artigo 344.º do Código de Processo Penal no sentido por ele especificado – e aí verificar-se-ia a invocada inconstitucionalidade; ou, não o tendo feito, então ocorreu erro notório na apreciação da prova. No entanto, como já se demonstrou, é perfeitamente claro que o tribunal recorrido não fez tal ponderação, no sentido de “considerar que, tendo havido confissão integral e sem reservas dos factos constantes da acusação, os mesmos têm de ser dados como provados, mesmo que – como sucede nos presentes autos – o Tribunal tenha deliberado inexistirem factos não provados, ou dito de outro modo, considerou provadas as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, que prestou esclarecimentos que não permitem sustentar a condenação”.
Tudo o resto contende com matéria absolutamente estranha a um recurso que tem por objeto material normas jurídicas, como são os recursos interpostos em fiscalização concreta da constitucionalidade.
8.2. Em especial, é de salientar que a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente na sua reclamação é totalmente desprovida de fundamento. Tal inconstitucionalidade relaciona-se com o artigo 72.º, n.º 2, da LTC interpretado no sentido de “na situação do Tribunal recorrido não se pronunciar sobre as questões de constitucionalidade e/ou ilegalidade suscitadas, por supostamente considerar que não foram suscitadas em termos processualmente adequados, embora nunca o tenha dito, poder não se pronunciar sobre as mesmas, sem que disso dê conhecimento aos sujeitos processuais visados, no sentido de, no entendimento do Tribunal recorrido, a questão estar indevidamente suscitada, para procederem ao «aperfeiçoamento» das mesmas”, por violação de «princípios estruturantes do Estado de Direito democrático” (cfr. o n.º 24 da reclamação).
Ora, o que se disse na decisão reclamada, a propósito dos pressupostos de conhecimento do recurso de constitucionalidade com fundamento no artigo 72.º, n.º 2, da LTC – preceito que, de resto, se filia diretamente no artigo 280.º, n.º 4, da Constituição -, foi que a inconstitucionalidade normativa deveria ser suscitada, em moldes processualmente adequados, durante o processo, em termos de se ter constituído o tribunal da causa num dever de decisão sobre a mesma (“em termos de este estar obrigado a dela conhecer”; e não, «caso tenha dela conhecido» ou «caso a tenha decidido»…). Deste modo, sempre que o recorrente observe com a diligência mínima que lhe é exigível o cumprimento de tais ónus que sobre ele impendem, será bem sucedido quanto ao conhecimento do recurso junto do Tribunal Constitucional, mesmo que o tribunal da causa não tenha tomado qualquer posição sobre o problema de constitucionalidade. A inconstitucionalidade suscitada pelo reclamante não apresenta, pois, qualquer relação com o que se disse na decisão ora reclamada.
9. Quanto ao n.º 5.3. da decisão reclamada (questão III do recurso de constitucionalidade)
No ponto III) do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o recorrente invocou a inconstitucionalidade do artigo 369.º do Código de Processo Penal, por “considerar que ao ser aplicada uma pena de prisão efetiva, sem que dos autos conste o relatório da perícia à sua personalidade, tal implicou o cometimento de um ato inválido, pois omitiu uma diligência que se reputa de essencial, para além de legalmente obrigatória, para a descoberta da verdade, conforme resulta da leitura conjugada dos artigos 160.º, 369.º, 1, 371.º, 120.º, 2 d) e 122.º todos do Código de Processo Penal, o que configura uma nulidade”. O não conhecimento do objeto do recurso nesta parte deveu-se ao facto deste problema não ter sido objeto de suscitação adequada durante o processo.
Ao suscitar a questão perante o tribunal a quo, o recorrente enquadrou-a sob a perspetiva de se verificar, in casu, uma invalidade processual (aplicação de pena de prisão sem constar dos autos perícia sobre a personalidade do arguido). A invocada inconstitucionalidade é, por conseguinte, uma consequência resultante deste primeiro desvalor inerente à violação de norma de legal. Contudo, a inconstitucionalidade, enquanto defeito normativo que pode ser conhecido e sindicado pelo Tribunal Constitucional, constitui um juízo de desvalor autónomo e independente. A violação de normas ou princípios constitucionais em que se traduz a inconstitucionalidade é uma ofensa imediata daqueles parâmetros e não o resultado da violação de outros comandos, designadamente infraconstitucionais. Como se salientou no Acórdão n.º 489/2004:
« [S] e se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que se tem por violado com essa decisão, pois que se posta como contraditório sustentar-se que há violação desse ordenamento e este é desconforme com o Diploma Básico. Efetivamente, se um preceito da lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais acatá-lo, pelo que esgrimir com a violação desse preceito, representa uma ótica de acordo com a qual ele se mostra consonante com a Constituição.»
Ora, na reclamação, o arguido limita-se a sustentar ter identificado uma questão de constitucionalidade pelo facto de ter identificado a norma e os parâmetros fundamentais eventualmente violados. Como refere o Ministério Público na sua resposta, a perspetiva em que a questão é suscitada pelo recorrente é a do «conhecimento de um ato inválido» (aplicação da pena de prisão sem dos autos haver prova da perícia sobre a personalidade do arguido), e não a da inconstitucionalidade (cfr. o respetivo n.º 8). Tal remete para o campo das nulidades ou das irregularidades (v. idem, ibidem), e não para o da inconstitucionalidade normativa aqui relevante.
A suscitação adequada desta última implicaria que o recorrente confrontasse a norma do artigo 369.º do Código de Processo Penal diretamente com os parâmetros constitucionais que indicou e que não se ficasse pela arguição da nulidade da decisão de aplicação da pena. Porém, como resulta do excerto da motivação do recurso para a Relação (mais tarde repetido em sede de reclamação para a conferência no tribunal recorrido) transcrito no requerimento do recurso de constitucionalidade, o recorrente ora reclamante preocupou-se apenas e somente com a questão da nulidade:
«“... Deste modo, não podem subsistir dúvidas que, da interpretação conjugada dos artigos 160.º, 369.º, 1, 371.º, 120.º, 2 d) e 122.º do Código do Processo Penal, no sentido de não considerar o ato inválido, sempre que seja proferido ato decisório, em que ao arguido seja aplicada uma pena ou medida de segurança, sem que do mesmo conste toda a documentação elencada no artigo 369.º, 1, o arguido reputa tal interpretação como inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 3, 32.º, 202.º, 2 e 204.º da Lei Fundamental, o que se suscita, para todos os efeitos legais...”.»
Colocada a questão nestes termos, não são indicadas as razões que, no plano constitucional, impõem ao tribunal a quo uma interpretação diversa, designadamente no sentido propugnado pelo recorrente. A suscitação adequada da questão da constitucionalidade normativa implicaria que o recorrente justificasse, em moldes mínimos, porque é que dos parâmetros constitucionais que indicou, decorre a ilegitimidade de tal interpretação, no sentido de, naquele caso concreto, se verificar uma nulidade e não uma mera irregularidade. Este esforço exegético – que constitui um ónus para o recorrente – não foi, no entanto, minimamente cuidado e observado pelo recorrente, pelo que sobressai a ausência de suscitação da questão em termos processualmente adequados.
Por isso, também neste ponto a decisão reclamada deve ser mantida.
10. Quanto ao n.º 5.4. da decisão reclamada (questão IV do recurso de constitucionalidade)
No ponto IV do mesmo requerimento, a questão de constitucionalidade respeita à eventual nulidade por omissão de “diligência legalmente obrigatória, na medida em que [se] utilizou o relatório social, exclusivamente para a determinação da sanção, sem reabertura da audiência a que alude o artigo 371.º do Código de Processo Penal”. Concretamente, o recorrente invoca ser inconstitucional a interpretação conjugada dos artigos 123.º e 371.º do Código de Processo Penal, no sentido de que, «sempre que o relatório social seja utilizado exclusivamente para a determinação da sanção, sem que se proceda à reabertura da audiência a que alude o artigo 371.º tal irregularidade tem de ser arguida no prazo de três dias, sob pena de sanação» - por outras palavras, aquela omissão deveria determinar uma nulidade e não simples irregularidade.
Também aqui se verifica que a suscitação do problema perante o tribunal a quo é feita pelo recorrente exclusivamente sob a perspetiva de se verificar, in casu, uma invalidade processual (resultante do facto de se ter utilizado o relatório social exclusivamente para a determinação da sanção, sem prévia reabertura da audiência). A inconstitucionalidade seria, por conseguinte, uma consequência resultante deste primeiro desvalor traduzido na invalidade processual enquanto violação de norma de legal. Contudo, e como referido, para que se possa emitir um juízo de inconstitucionalidade relevante nesta sede de fiscalização concreta é necessária uma ponderação autónoma – no plano jurídico-constitucional que conduza a esse resultado.
No caso presente a inconstitucionalidade, enquanto defeito normativo que pode ser conhecido e sindicado pelo Tribunal Constitucional, vai referida ao artigo 371.º do Código de Processo Penal (o recorrente invoca ser inconstitucional a interpretação dos artigos 123.º e 371.º do Código de Processo Penal, no sentido de que, sempre que o relatório social seja utilizado exclusivamente para a determinação da sanção, sem que se proceda à reabertura da audiência a que alude o artigo 371.º, existe uma irregularidade sanável, e não uma nulidade). Não logrou, no entanto, uma vez mais, em efetivar a separação entre essa norma e o cotejo imediato de parâmetros legais, como resulta do seguinte trecho da presente reclamação (cfr. o respetivo n.º 8):
“[…O] acórdão recorrido, ao considerar que a utilização do relatório social, apenas para a determinação da sanção, sem reabertura da audiência a que alude o artigo 371.º do Código de Processo Penal, era uma mera irregularidade, e não uma nulidade, pelo que não podia ter sido suscitada no recurso – como foi – mas apenas no prazo de três dias a contar do depósito do acórdão, sob pena de sanação, tal interpretação do artigo 123.º do Código de Processo Penal, conjugada com o artigo 371.º do mesmo diploma legal, padece de inconstitucionalidade material […]”.
Não resultam do assim invocado as razões que, no plano constitucional, impunham, por parte do tribunal a quo, uma interpretação diversa, designadamente no sentido pretendido pelo recorrente.
Deste modo, por razões idênticas às mencionadas supra no n.º 9, a propósito da questão enunciada no ponto III) do recurso de constitucionalidade, deve quanto ao ponto ora em apreciação, manter-se a decisão reclamada.
11. Quanto ao n.º 5.5. da decisão reclamada (questão V do recurso de constitucionalidade)
No n.º 32 da sua resposta à pronúncia do Ministério Público o recorrente apenas vem confirmar que a questão sobre a qual incidiu a análise do n.º 5.5. da Decisão Sumária n.º 268/2013, ora reclamada, não reveste caráter normativo. Com efeito, a questão enunciada no ponto V) do recurso de constitucionalidade respeitava ao depoimento de uma testemunha e foi enunciada como tratando-se da “questão da gravação do depoimento da testemunha de defesa MANUEL TAVARES apresentar várias deficiências técnicas, que impediram o arguido de transcrever excertos relevantes do seu depoimento, tudo em prejuízo do direito ao reexame da matéria de facto, por um Tribunal Superior, em desrespeito pelas garantias constitucionais que o processo criminal tem de assegurar ao arguido, no qual se inclui o seu direito ao recurso, conforme o disposto no artigo 32.º, n.º 1 da Lei Fundamental”. Diferentemente do que parece entender o reclamante no n.º 33 da aludida resposta, o que motivou o não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade nesta parte, não foi “o não cumprimento adequado do ónus de suscitação prévia”, mas sim, como resulta inequivocamente da decisão reclamada, a inidoneidade do objeto. Na verdade, o objeto material do recurso de constitucionalidade só pode ser integrado por normas jurídicas e não por quaisquer outras realidades, sejam as deficiências técnicas de uma gravação, sejam as dificuldades probatórias por ela suscitadas.
Deste modo, também neste particular falece razão ao reclamante.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de Setembro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.